sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O Brasil Nação - V2: § 79 – Raça - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8



A Revolução Republicana



§ 79 – Raça



Num povo que se exprime em patente nacionalidade, caracterizada numa história inconfundível, com tradições seguras, o primeiro esforço de engrandecimento político está em apurar o seu valor nacional. De outro modo, se se faz, sobre esse Brasil tradicional, indiferente a ele, uma outra população – multiplicadas Germânias ao Sul, e Itálias em São Paulo ou Espirito Santo, outra nacionalidade advirá, mais apta, se quiserem, em gentes mais cultas e mais prósperas, se tanto o forem; mas aquilo que era a nação brasileira, continuação e expansão dos que expulsaram o holandês e conquistaram os sertões, esta desapareceu, eliminada pelas tradições adventícias, naturais a novas populações acumuladas nas zonas vazias, populações ensoberbecidas pelas mesmas tradições em que se formaram, e, até pelos inconsiderados e desqualificados elogios que lhes fazem a maioria dos dirigentes. Pois não é nota característica deles enaltecer o valor do gado humano que importam, em cotejo com o trabalhador nacional? É a própria nota de bom-tom, em que elevam as estultices e lugares-comuns, quando discorrem a respeito de imigração e de brasileirismo. Podem ter vivido anos e anos, nessas paragens onde houve abundante imigração: não trazem daí uma observação original, nada colhem para comentário da questão. Note-se: estas restrições não pretendem diminuir – o valor humano dos estrangeiros que aqui se têm estabelecido, sobretudo tantos desprotegidos, espoliados na sua pátria, e que, aqui, ainda continuam a dar o melhor do seu esforço para a parasitagem de fazendeiros ou industriais, sem outros méritos além da ganância com que exploram o trabalho alheio, graças às facilidades que a política brasileira oferece aos poderosos e inescrupulosos. Não com o intuito de retaliar, mas porque é verdade, e porque os estultos conceitos dos dirigentes a respeito do seu valor são descabidos e injustos: não há dúvida que imigrantes provenientes de uma Alemanha disciplinada, ou mesmo, da Itália, bem mais culta que a média do Brasil, aqui estabelecidos, em povoações que quase são suas, dão um espetáculo de mais ordem, mais atividade e mais conforto do que o temos em arraiais de humildes brasileiros, descendentes dos perpétuos escorraçados, bestialmente oprimidos, e cuja forma geral da vida é ainda a continuação do antigo escravo, ou do pobre caboclo, que passou da ingenuidade à degradação. Mas, não é a simples inspeção de povoados que permite fazer o completo juízo, no caso, senão a verificação explícita de uma totalidade de resultados: a vida econômica por todo aquele Norte, onde não há imigração, e que prospera, apesar da inclemência do clima; a segurança de ânimo dos intrépidos nordestinos, que só abandonam a terra atormentada pela seca quando já não há água para a sede, e que, se emigram, é para o duro labor em que se tem feito a patente prosperidade do Amazonas. A par disto, procurem-se os descendentes dos alemães de Petrópolis: que situação têm, dentro do resto da população? E os de Nova Baden, em Minas?...

A resposta leva-nos diretamente à questão de raça – para reduzir à inanidade do próprio merecimento, as baboseiras, pretensiosas e erradas, dos que, brasileiros, e das classes dirigentes, têm feito para esta pátria um estigma de irremissível inferioridade – o ter, na massa da população característica, a combinação dos três fatores, onde entra o caboclo e o negro, condenados, inumanamente, antipatrioticamente, e asnaticamente, por inferiores. É, essa, a mais caracterizada pulhice do bacharelismo em arremedo de ciência.

Há um século, no encanto das filiações linguísticas, destacou- se, no pensamento científico, o tipo – Aria... Era natural: confundiu-se parentesco idiomático e aproximação ou filiação de sangue: o Aria, que conquistara o idiomatismo, tomou o vulto de uma humanidade superior, a avassalar povos, dominar a universidade do pensamento, tanto como avassalara o regime de expressão. Mas, presto, se fez a correção, e não há critério científico em que o conceito ariano se não tenha limitado a um valor linguístico: o Aria-raça passou definitivamente para o museu das futilidades e pulhices, mas permaneceu no uso do bacharelesco, enfartado de dolicocefalia, nordiquismo, lourismo... com que a protérvia pseudocientífica distribuiu a espécie humana, qual o zootécnico separa bovinos – pelas tetas e o pelo. Nesse critério, o francês Gobineau, mesquinha mentalidade de diplomata, que se promoveu a conde, considerou-se promovido também em sangue, e proclamou, sobre as raças desiguais, a absoluta superioridade dos germanos... pois que um aristocrata francês é de sangue germano: Les plus purs, les plus intelligents de la race blanche... decretada essa raça branca – a mais elevada, única realmente civilizável.. E, num momento decisivo, esses brancos destroem-se estupidamente, como se neles não houvesse, nem humanidade, nem visão política. Nessa instância mesma, os mais puros, fortes e inteligentes, os que deram à humanidade todos os progressos, fazem a prova da superioridade em insuficiência: sabem, apenas, bater-se – bárbaros, em técnica científica. São, esses puros germanos, os mais empenhados em conservar a paz; querem-na sinceramente; têm, indiscutivelmente, a superioridade militar sobre os outros, e não sabem manter essa paz de que tanto aproveitavam: querem- -na, são os únicos a convencidamente desejá-la, e, finalmente, dão ao mundo o espetáculo de serem os provocadores da guerra!... 8.204.000 mortos, 5.669.000 estropiados expressão da inferioridade sob a premência do dolico-louro-cefal!...

Pois é nessa monstruosa concepção que se monta uma etnologia oficial brasileira, na pretensão de trazer inspiração científica à solução do problema da população! E como tanta insânia não podia deixar de decompor-se em novos erros, da falsa ciência bacharelesca vêm brotando preconceitos de raça, teóricas incompatibilidades, dificuldades que se anunciam, e de que, cinquenta anos antes, ninguém desconfiava. Motivos históricos – a necessidade de aproveitar o indígena e o negro, facilidades de contato do português, desenvolvida mestiçagem, na bondade do coração brasileiro fizeram que não houvesse, aqui, prevenções da raça, motivos de graves turbações noutras colônias; e o que para outros foi doloroso problema, no Brasil era questão de antemão resolvida. Há, reconheçamo-lo, uma fortíssima proporção de sangue índio, hoje contado nos pretensos brancos-morenos, de cabelos corridos; há, também, em muitas partes do país, forte dosagem de sangue negro. Mas como o número de misturas é ainda maior; dada a tradicional ausência de preconceitos – o preto no mulato, o mulato no claro, o claro no branco... em dois ou três séculos, com o infalível afluxo de estrangeiros brancos, teríamos uma população relativamente homogênea, com o negro muito esmaecido, e o caboclo incorporado ao branco.

Contemos que será assim; mas já surgem veleidades, em futricadas etnologias bacharelescas, e que proclamam a essencial inferioridade de índios e negros, inferioridades irremissivelmente comunicadas aos respectivos produtos com o branco. São asininas pretensões, fátuas cretinices de impostores da ciência, e que repetem de oitiva mirrados conceitos, havidos de conclusões vesgas, contrariadas ainda na época em que foram enunciadas. Em verdade, nunca foi moeda corrente – qualquer hierarquia orgânica ou psíquica das raças humanas: a história não permitiria tal concepção. Admitamos, no entanto, que haja ciência verdadeira, nessa etnologia e sociologia grimpadas em despejados desníveis, e que têm de varrer para os irremissivelmente inferiores – japoneses e chineses: um verdadeiro brasileiro, quando verifica que, durante todo o período de formação desta pátria, a proporção [1] de brancos era inferior a 30% das outras duas raças, trata de dar, de si mesmo, o melhor esforço, no sentido de compensar qualquer efetiva inferioridade do elemento humano. Em vez de arremedar ciência, que só poderia deprimir e desmoralizar os ânimos porventura crentes no suspeito arianismo, volta-se para essa tradição, onde não há incompatibilidade de união e de solidariedade por motivos de sangue, e apura-a, sublima-a, concorrendo para formar na liberdade, educar e cultivar, os descendentes das raças infelizes, cujo trabalho fez esta nação, e que, nela, foram somente bestas de cargo, esbulhados de toda justiça.

[1] Uma publicação oficial, em comemoração do centenário desta nação feita sobre o trabalho de negros e caboclos, estuda (?) e julga a Evolução da Raça, aqui, nesse critério – da absoluta e irremissível inferioridade de africanos e índios, inferioridade comunicada, nos mesmos termos, aos produtos do cruzamento. E, assim, discreteia um sub-Agassiz, velado em Antropologia, Etnologia, Eugenia, e outras pretensões científicas, de uma ciência tão errada que nem se reconhece: “Na sua maioria, os mestiços ficam abaixo do tipo superior de que procedem”... De tal sorte, a eugenia oficial nem chega a ser pessimista, mesmo porque a voz dirigente não pode ser agourenta: limita- -se a decretar a imprestabilidade disto que aí está, e que tem sido o Brasil, e propõe o remédio: substituição das gentes mediante imigração ariana, e acelera-as na marcha do processo arianizante... Processo arianizante que é a própria imigração que substituirá as gentes no Brasil. Subindo na complexidade etnológica, chega o eugênico a falar num “theor (com o mesmo th) aria do nosso sangue...” Ora, demos que isto de aria-sangue seja coisa a buscar-se: é demais, dizer a este Brasil, que está – organize-se!... Não se pode conceber que conselho daria o salvador de nações pela arianização, a Portugal, por exemplo, onde ele encontra os arias de que se orgulha, e que, depois de verdadeira grandeza, com esses arias, se vê, há dois séculos, abatido, e como sem remédio, apesar de que o sangue aria continue a correr naquelas veias... Enfim, tudo se compreende, quando não se compreende o seguimento de conceitos: “A salvação da raça, no Brasil, está na arianização... o sangue cruzado não se torna puro (não, Mendel?)... o tipo antropológico brasileiro só poderá surgir quando o trabalho da fusão (cruzado que nunca será puro) das três raças se tiver completado... O tipo mestiço, fusão das três raças, e que viria a ser realmente o tipo brasileiro... o mestiço indo-ariano tem de ser finalmente um tipo puro (sim, Mendel!), índio, ou branco... Conclusão fulminante: Arianização... teor... puro... sangue... Dolico-louro-cefalismo... euroantrogenicológico... adusum imbecis.

Só não foram alijados da condição humana justamente porque na população que, finalmente, se formou, com abundância de origens inferiores, infiltrou-se muito da cordialidade e da compaixão ingênua e primitiva das raças dominadas. Redimimo-nos, assim, em parte, da injustiça original, e, com isto só, compensaríamos qualquer diferença mental, ou social. Lembremo-nos de que, nos Estados Unidos, os preconceitos de raça cortaram a população em brancos e negros (e mais amarelos) de tal sorte, que os proclamados superiores sabem como sair da dificuldade. Há labours-unions, ali, que não aceitam negros entre os seus consócios...

Esta, sim, é uma comprovada inferioridade. Um americano de sangue e de tradição, com toda a responsabilidade de universitário, com reputação europeia, registra: “Em nenhuma parte do mundo se encontra, entre gentes humanas, o abismo que separa o americano do negro.” [2] Em desenvolvimento de consequências, esse mesmo Coolidge nos mostra a sua pátria, na perspectiva de dificuldades com meio mundo, por motivo dos seus preconceitos de raça. E, note-se, ele mesmo é uma voz ostensiva desses preconceitos. Notemos, ainda, que na outra América, a espanhola, não faltam incompatibilidades de sangue; mas, deverão, os neocastelhanos, felicitar-se porque os reputados brancos se consideram superiores aos índios e aos muitos negros que por lá existam? Uma estatística reproduzida pelo peruano Sr. Garcia Calderon revela que, na Argentina de 1905: “... sobre 1.000 habitantes, havia, 128 platinos, e que somente 99 argentinos por mil possuíam terras... para 1.900 mulheres argentinas, nascem 88 crianças, o mesmo número de espanholas dão à luz 123 filhos, e 1.000 italianas, a 175”. Dir-se-ia que a pátria dos heróis de 1810-1822 está passando para gentes que não são os descendentes dos mesmos heróis. Garcia Calderon, no intuito de reforçar as razões dos partidários da superioridade branca, copia o argentino Manuel Galvez, que, superiormente, aceita a supremacia financeira dos estrangeiros: “Se os estrangeiros dispõem da fortuna material, é justo que nós outros disponhamos da riqueza intelectual...” Triste soberbia de superior!... Uma tal desvirtuação de critério não se explica, em mentes que se exaltam de patriotismo, sem o preconceito que fecha a luz da razão. Na voz de argentinos, brasileiros, peruanos... tais conceitos levam à penosa meditação: será possível que povos feitos, com uma tradição onde comovidamente se reconhecem, aceitem, ou aspirem, assim, a ser o que não são, aspirem a desaparecer – afogados, diluídos... nas ondas vivaces e... purificantes, de uma abundante imigração?... “Sem novas gentes, estamos perdidos!...” brama, desvairado e confuso, o mesmo Garcia Calderon. Será possível?!... Pois não era muito mais purificante que esses patriotas, daqui, e de lá, erguessem-se no ideal de dar ao seu povo, qual ele é, o máximo das qualidades boas da sua tradição, do que aspirarem, desse modo, a ser o que são? Apuremo-nos, em nós mesmos, como expansão natural de um gênio próprio, em vez de pedir suposta superioridade, destemperando o que possa haver de original nessa combinação já feita – branco, índio, negro, na massa de expatriados, menos afirmativos, por isso mesmo que são expatriados e desenraizados.

[2] Coolidge, op. cit.

Em verdade, a única inferioridade de que sofrem os ibero- -americanos é essa insuficiência mental que os leva a receber, sem crítica, os mais descabidos julgamentos dos que têm interesse em manter-nos humilhados, baldos de confiança em nós próprios. Em si mesma, tal inferioridade explica-se pela nossa evolução social – desigual, turbada, hesitante... E, daí, essa esquivança em concluir por conta própria, e a incapacidade de conceber sistemas em correspondência com a nossa realidade, a dubiedade de conceitos, e a aceitação de fórmulas desmentidas na nossa mesma experiência. Nem é preciso ir mais longe, para ter o exemplo: basta o mesmo Garcia Calderon, que endossa todas as inferioridades a nós imputadas, e que só lhes vê o remédio na inflação de imigração branca. Sem dar fé, talvez, consagra a verdade, que lhe inutiliza o remédio: “Não esqueçamos de que o nosso povo não é, nem o europeu, nem o americano do Norte.” Depois, ao passar pelos fatos, ele comprova, orgulhoso, a franca prestabilidade dessa gente provinda do cruzamento, e onde se encontram verdadeiros heróis, que ele enumera: “... Paez (Venezuela), Porfírio Diaz, Castilla (Peru), Santa Cruz (Bolívia), eram mestiços” (pág. 333). Não são menos deploráveis os conceitos, análogos, por conta de dirigentes brasileiros, fáceis, quase enlevados, em repetir as baboseiras que, da borra da ciência, têm derivado em detrimento do Brasil. Um caso, entre muitos: a propósito desse mesmo centenário, que fez publicar-se a Evolução da Raça: a título de propaganda da festança no estrangeiro, o governo brasileiro organizou a distribuição, na Europa e norte-América, de um longo reclame, em que éramos oficialmente apresentados como preguiçosos; então, como justificativa, desculpava-nos, o fraseado do reclame, com o clima... No entanto, um Southey, que nos conheceu melhor que essa tropa dirigente, repele, de antemão, a acusação: “Onde quer que o brasileiro se negue ao trabalho, outros motivos haverá, não a preguiça”. Não houve, entre os muitos que ingressaram na festança, e nela tinham responsabilidade [3] nem um que voltasse os sentidos para este Brasil, notadamente para aquele Norte, cuja população representa completa fusão – de sangue e tradições, das raças formadoras, aquele Norte onde não tem havido injeções imigratórias, capazes de modificar as qualidades em que os brasileiros se definiram... Não seria preciso inspiração patriótica: pelo prestígio simples da verdade, o observador exato e sincero reconheceria, nas populações naturais, qualidades e virtudes que, bem conduzidas, podem fazer grandeza e glória de qualquer povo.

[3] Na famosa comemoração do Centenário, em 1922, não se viu nem ouviu nenhuma aclamação à nacionalidade; não na consagraram, pois que tudo não passou de festança de negocialismo.

Verdades assim, que dignificam o ânimo brasileiro, e podem valer, mesmo a observadores desinteressados, escapam aos dirigentes brasileiros, ou são por eles desprezadas, justamente porque a estes falta o verdadeiro patriotismo. Tão abundantes de invocações em nome desses motivos, não há um só, deles, que tenha deixado por onde verificar – como compreendiam a realidade da pátria, como concebiam a nacionalidade. Os raros – José Bonifácio, Feijó, Floriano... patentearam, em atos, que sentiam a pátria, através de uma nacionalidade. E é tudo. Para os outros, pátria, nacionalidade... são coisas nulas no pensamento, inertes no coração. No entanto, não há efeitos de ênfase mais repetidos do que esses. Busque-se, porém, nos longos e insípidos verbalismos que têm produzido, a sequência de conceitos em que se define a pátria de que falam, e em que se afirma a nacionalidade que os incorpora: só se encontra a pátria – pretexto e escusa de sórdida ambição, como só figura a nacionalidade no sentido de nosso – deles. E não cause estranheza o vazio e a inércia de tais noções, na mentalidade desses dirigentes. Pátria e nacionalidade valem em formas e em intuitos diametralmente opostos – nas mentalidades reacionárias, de espoliadores, e nas consciências em halo de justiça e de solidariedade. Para aqueles, é a opressão imperialista, é a política de armamentos, a instigadora da guerra, como é, na vida interna, a justificativa da eterna espoliação e do irreparável parasitismo da classe dirigente. Para os justos e livres, a pátria, necessariamente nacionalizada, é a simples cordialidade imediata, concreta, da realização humana. Para dar pleno sentido a essa pátria de reacionários, torna-se indispensável um passado de aventuras guerreiras, expressão do imperialismo implacavelmente dominador, incorporando a própria existência do Estado. No Brasil, dada a sua história, e, sobretudo, a índole compassiva das suas gentes, os dirigentes não poderiam, nunca, erguerem-se em nome de uma pátria agressiva e guerreira; estariam tão fora da realidade que já não teriam base para os privilégios de que vivem. Lembremo-nos de que a aventura da Cisplatina, como as demais guerras externas, sempre foram odientas e repelidas pela nação brasileira. Nestas condições, igualmente exploradores da pátria, os nossos dirigentes, não na podendo erguer em nome de um imperialismo agressivo, tem-na como tábula rasa dos seus pretextos de existência, lugar comum vazio, com que mal disfarçam os intuitos de espoliação, torpemente pessoal. Nulos para qualquer sincera afirmação de caráter, eles não têm, sequer, o valor mau em que se eleva a pátria reacionária e imperialista, e, menos, ainda, o livre ânimo de justiça em que se proclama a pátria ideal, fórmula de irmanação dos povos.

Como estas páginas têm de chegar a conclusões condenadoras de todas essas torpezas, mascaradas em patriotismo e nacionalismo, torna-se preciso prevenir confusões e definir o valor com que as duas ideias – pátria e nacionalidade entram nestas considerações, em que esta é reclamada e aquela se ergue idealmente.

Consciente dos seus destinos, o homem se reconhece na humanidade, incorpora-se a ela, e, sedento de justiça, incorpora-se a cada um dos seus companheiros naturais: todos que, igualmente carecidos de justiça, vivem espoliados e oprimidos em nome de diferenciações que a força brutal tem instituído, e que o privilégio conserva. Forma-se, destarte, a classe proletária, a grande reserva da humanidade. Mas, essa humanidade a que propendemos, nas formas políticas e sociais, é como abstração: não na sentimos se não fracionada em grupos, as próprias pátrias em que nos encontramos. Tanto vale dizer: a humanidade se realiza em grupos, nítida e necessariamente situados através de um passado: são as pátrias, cada uma das quais tem a significação de uma paisagem humanizada numa tradição. Não há que fugir daí; isto é, na série social, não podemos sair da pátria sem sair da própria humanidade. E a nacionalidade? É a caracterização da tradição histórica em cada pátria. Então, não há nenhuma incompatibilidade natural entre o ideal de solidariedade completa na espécie humana – sem nenhuma restrição, nem privilégios, e a necessidade de pertencermos a uma pátria, e de reclamá-la livre e defendê-la, como não há antagonismo entre essa mesma concepção de irmanação dos povos, com a inteira cordialidade de relações, e a caracterização de cada grupo, na feição que a história e a geografia lhe deram. Não poderia haver contestação de intuitos entre pátria, nacionalidade e solidariedade e justiça, pois que aí estão necessidades da realização humana, estas como condições daquelas. Eis outros tantos fatos positivos, iniludíveis.

Existimos incorporados a uma pátria; reconhecemo-nos como consciência impregnada de uma tradição nacional; aspiramos a justiça, clamamos pelo progresso consubstanciado em reivindicações precisas: justiça contra os privilégios em que se avilta essa pátria que conhecemos. É a reivindicação de progresso, em que a tradição nacional humanamente se possa expandir. O patriotismo que assim reclama, não pode convir com esse, que é o dos nossos dirigentes, em que a pátria se avilta, odienta, como eles mesmos. Nem há maior inimigo desta nacionalidade e mais forte obstáculo ao amor de todos nós pelo Brasil. Um tal afeto, sem reservas, não pode ganhar os corações, quando já os encontra tomados de asco pelas formas em que os dirigentes realizam o Estado brasileiro. Este é grande mal que eles fazem a esta pátria: o mal supremo. Como, exaltação de amor ao Brasil, quando a moldura em que o mostram é isso que aí está? [4]


[4] No prosseguir da vida, os dirigentes têm o olhar nos índices de prosperidade material, ávidos de tudo que diz – riqueza, força, poder... única prosperidade ou grandeza a que aspiram. São, no entanto, incapazes de orientar eficazmente o país para a realização racional e sistemática dessa prosperidade. Terá havido um qualquer progresso, nesse, ou naquele rumo de desenvolvimento material, mas sempre como puro resultado de tentamens isolados, apenas incluídos no espontâneo da vida, para totalizar-se em potencial negativo, futuro acúmulo de dificuldades, muitas vezes. Seja exemplo o que aconteceu com a lavoura da cana e o fabrico do açúcar. Trata-se de uma produção que foi a origem, mesma, da nossa primeira riqueza, a base econômica na formação da nacionalidade, e que lhe deu feição. Pois bem, chegado o momento, com o impositivo progresso no trabalho, nas formas de produção e de fabrico do açúcar, fez-se imediatamente, graças à ganância capitalista, uma tal distribuição de trabalho na cultura que a produção diminuiu de cinquenta por cento, e se criou um grave problema socioeconômico: desenvolveu-se um latifundismo especial, sem compensação econômica, ao mesmo tempo em que se agravavam as condições de existência aos já miseráveis proletários. De tal sorte, finalmente, que chegaram a ser monstruosas as condições da produção do açúcar. Sabe-se que essa produção compreende: a lavoura da cana, até a respectiva colheita ou corte, e, nos engenhos, moagem da cana, e, com o respectivo caldo, a fabricação do açúcar. É óbvio que, se se realiza progresso, ele se tem de fazer na cultura, isto é, no amanho da terra, e no fabrico propriamente dito. Assim tem sido em toda parte – Antilhas, Insulindia, África... mas no Brasil, sobretudo nas zonas típicas do açúcar, cujos magnatas – os senhores dos antigos grandes engenhos, proprietários já das melhores terras para cana, facilmente compreenderam as vantagens de adotar mecanismos modernos e aperfeiçoados: construíram, assim, grandes usinas, dotadas de magníficos recursos industriais, desde as moendas aos vacuos de concentração dos xaropes, às turbinas de separação e depuração do açúcar. E, com isto, concentraram a sua atividade no fabrico propriamente dito, convertendo-se ostensivamente em meros industriais, a trabalhar com uma matéria prima que lhes era, e é, fornecida pelos feitores-empreiteiros, a quem eles entregam as massapés e as vargens, para que, por sua conta as cultivem, ou é vendida pelos antigos proprietários de pequenos engenhos, obrigados a utilizar as suas terras na cultura a que elas mais se prestam, devendo ceder a cana a peso, ao usineiro vizinho. De todo modo, assim separadas as coisas, ao grande capitalista, industrial- -usineiro, já não interessam os progressos agrícolas – de cultura da cana, que lhe é fornecida na linha de seus transportes, e de que extrai o açúcar com toda segurança industrial, pelo preço irrisório de 200 a 300 réis a saca de 60 quilos. E isto lhe basta. Previdente, bem armado do capital, que lhe vem de sucessivas heranças, ele se garantiu – comprando – tanto quanto pôde das terras vizinhas, aniquilando, como é de regra, o pequeno proprietário – o pequeno-burguês, que, no prosseguir indefectível da vida, teve de se reduzir a simples plantador de cana, para fornecedor da usina, ou mero empreiteiro- -feitor, por conta do usineiro proprietário-capitalista, que lhe adianta as somas para a féria dos trabalhadores e para a própria manutenção, livre de fazer o trabalho da lavoura como entender, com tanto que o faça, sob a fiscalização inexorável do usineiro, com plena garantia das somas adiantadas. Como sempre acontece, todos os cálculos da exploração – quantias a fornecer, média de salário, extensão de canaviais, preço da tonelada de cana, tudo isto é ditado pelo industrial, perfeitamente garantido, pois trabalha com uma matéria-prima cuja exclusividade lhe pertence, como no mais monstruoso dos privilégios. Não interessa ao usineiro, do tipo comum (pouco mais que um boçal), explorador de trabalho alheio, mero acumulador e gozador, o progresso que houvesse numa lavoura aratória completada por outros tantos aparelhos de amanho, levados por tratores, como a indústria mecânica fornece. No entanto, isto significa dispêndio e um esforço que só por sua iniciativa se poderia fazer... Ele, porém, não o faz – para quê? No interesse econômico acessível à sua compreensão, o que tem valor e significação é a margem do preço entre a tonelada da cana e a saca de açúcar, qual lhe sai do apurado maquinismo onde entram as hastes túrgidas para saírem adiante as sacas de cristal puro e alvo, com a despesa, apenas, infalível, de 200 réis. No mais, ele tem a certeza, como o determina o ritmo dos astros, de que haverá, sempre, e cada vez mais, proletários, novos escravos, para tanger a enxada nos eitos dos canaviais, a preço de não morrer de fome – 2$000, 2$500, quando muito, por dia de nove horas de trabalho, sob a vigilância do empreiteiro (por sua vez vigiado), muito feliz, este, de poder viver com o adiantamento de 35$000, 40$000 por semana, e que lhe garantem a feira. Como fórmula definitiva, (tais se arranjam as coisas), o empreiteiro, quase sempre sob um teto propriedade do usineiro, está normalmente em débito. Fornece a cana a 15, 18, 20 mil réis a tonelada, sem margem nunca para sair do débito. Tudo apurado – criaram-se novos latifúndios, agravou-se em miséria a condição do trabalhador, e reduziu-se, geralmente, de 50%, em muitas regiões, a produção do açúcar, amesquinhando-se desoladoramente as condições gerais de vida, e a produção de tudo mais. Sergipe, há trinta anos, produzia, com os seus engenhos de bangué, 800.000 sacas de açúcar; hoje, o seu total, com as 12 ou 15 grandes usinas em que se monopolizou o fabrico, não sai da casa dos 400.000. Em Pernambuco, zonas como da histórica Goiana, onde alvejavam, há 40 anos, para mais de 100 bagaceiras, ao reflexo de outros tantos açudes, com um comércio e um movimento que consagraram ali um dos grandes centros do Norte; uma zona de tais antecedentes, tem hoje o aspecto de um país abandonado – calados os tradicionais engenhos, reduzida a produção das usinas, naturalmente em número reduzido, à metade do que se conduzia, em tempo, nos carros de bois ou nas tropas. Um curto ramal férreo apanha facilmente a bem-calculada produção das usinas, sem qualquer estágio que possa conservar para a velha Goiana do açúcar a situação comercial que tanto tempo manteve na história.




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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira

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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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Leia também:

O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário (fim)
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O Brasil Nação - v2: § 54 – O lirismo brasileiro - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - v2: § 61 – A Abolição: a tradição brasileira para com os escravos - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - v2: § 69 – Mais Dejanira... e nova túnica - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 70 – A farda na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 71 – O positivismo na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 72 – A reação contra a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 73 – A Federação brasileira - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: §§ 73-a – Significação da tradição de classe  - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: §§ 74 – A descendência de Coimbra - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: §§ 75 – Ordem... - Manoel Bomfim


nunca é demais pensar...


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