sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

O Brasil Nação - V2: § 83 – O presidencialismo... do presidente - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8


A Revolução Republicana



§ 83 – O presidencialismo... do presidente 


Com a República que se faz para o Brasil, os sucessivos chefes de Estado, ainda que não resultem de nenhuma legítima campanha eleitoral, são, no poder ostensivos chefes de bando. Podem desprezar quaisquer compromissos, não para que se neutralizem dentro da política, mas para fazerem-se árbitros exclusivos da mesma política. Nunca terá havido tão deslavado autocracismo como num presidente da República brasileira. Gênios, eles poderiam ter realizado o bem que concebessem: ninguém se oporia à vontade que pusessem em ação. Mínimos em tudo que faria a grandeza efetiva de um chefe de Estado, eles gastam o supremo poder em que se encontram na fátua ostentação do mesmo poder, arbítrio miúdo em todas vicissitudes da vida pública, miúdo distribuidor de todas as posições, prepotente reles, para maldades e caprichos mínimos, barreira de poder para o bem, sem mesmo a coragem dos grandes golpes de tirania em caráter.

Não se pede a um pobre presidente de democracia o valor de gênio; mas exige-se o dever estrito, no Brasil, de não ser mais tirano, nem mais mesquinho do que esses que se impuseram à nação por motivo histórico. Em verdade, todos os que, em nome da República, têm fruído o mando supremo, sendo tão despóticos, ou mais, que o nascido para reinar, não tiveram, na maioria dos casos, nem um pouco de compostura no despotismo. É que nenhum deles foi feito para governar uma nação.

São milhares, que levam até aí os seus sonhos; são centenas que admitem o sonho em realidade; mas, nem por exceção, haverá um político brasileiro compatível com a legítima liberdade, indispensável atmosfera de um governo digno. Dispersos em tantos andares, formam apenas uma desoladora hierarquia de mandados, sem outras linhas de destaque, além dos coleios com que assaltam as posições de mando. Falta-lhes a disciplina íntima, força de caráter, para que, aceito o dever, exalte-se o indivíduo na glória de ser uma consciência autônoma. Sem outra forma de afirmação além da vaidade do mando, são tão incapazes de livremente respeitar as outras afirmações pessoais como de compreender a necessidade de opinião. Só podem viver honestamente quando subordinados a uma autoridade exterior à própria consciência, se não, desnudam-se no gozo brutal do poderio ostensivo, em espojo de besta descabrestada. Nem pressentem o conceito público. Se o temem, quando ainda não são senhores, não o respeitam quando se veem potentes, na força que o Estado lhes confere, e, de modo nenhum, convêm com a salutar fiscalização, que a sociedade deve exercer sobre os que governam e administram. Indiferentes a influxos de autoridade moral, dão à sanção da lei o valor infame das respectivas penas, e têm, como exclusivos fatores de comportamento, o código, a hipocrisia e os instintos rateiros de família.

Num regime de verdadeiro presidencialismo democrático, o chefe do Governo é probidade lúcida, inspirada nas necessidades nacionais, superiormente discernidas, e que são essas mesmas definidas no respectivo programa. Tem colaboradores de confiança, na gerência dos negócios públicos, mas essa confiança atende explicitamente a condições do bem comum, como competência, probidade, capacidade de ação, lealdade, e que é, principalmente, para com a própria função. Como é diferente uma tal concepção, do presidencialismo em que nos decompomos?... Mandão, nulo para o bem sobre a nação anulada, o chefe do Estado brasileiro é o faz-tudo, tão onipotente como irresponsável, por sobre a horda de apaniguados, voluntariamente vergados, já impróprios a encarar o poder. Faz-tudo, o presidente, na onipotência, inclui a onisciência, em privilégio de alvitre, de tal sorte que, neste Brasil vastíssimo, com centenas de congressistas, oito ministros, dezenas de governadores, quase um milhar de legisladores provinciais; neste Brasil, onde tudo está por fazer, ninguém tem direito de iniciativas, em nenhum assunto que diga com o destino da nação, e o país continua carecido de toda lúcida providência a não ser a que venha do alvedrio presidencial. Infamando o nome de democracia, vivemos o regime dos abusos de poder, em governos de gozadores, sem possibilidade de contraste nem de correção. E cada vez mais nos degradamos nesse autocracismo, ao fermentar de conchavos que tresandam a ninhos de urubus. Contamos para mais de um século como nação soberana, sem avançar um milímetro em educação política, no sentido da justiça e da liberdade. Continuamos coloniais, anteontem de Lisboa, ontem da corte dos Braganças, hoje das oligarquias Minas-São Paulo. E chegamos à abatida condição em que nem mais importa quem seja a metrópole, tão certos estamos de que não pode haver domínio mais degradado do que este. Tirania corruptora de irresponsáveis, infecunda pelo transitório dos mandões, esgotante, pois que são muitos a fartarem-se, o nosso presidencialismo resume o pior governo – instável nas pessoas, constante na opressão: arreios que se mudam, chicote que varia. Mero mandonismo, nem mais aquelas frestas da traição, por onde mudavam, às vezes, os mandões provinciais: a última reforma da constituição calafetou essas frestas, e quando um governador trair o partido que lhe deu o lugar, partido que é serviço de Minas-São Paulo, o traído arma três companheiros, arremeda desordem, pretexto para a intervenção em vista do artigo 6º corrigido... Se um ativo, estranho aos arranjos oficiais, consegue ser eleito, os bandos locais negam-lhe o diploma; se, apesar de tudo, é diplomado, quando não agrada ao presidente, este manda que se dê a cadeira a outro... Democracia que apenas viveu, já se anuncia em – renascença... Renascença de que?... E, assim, a esmo, eles vão usando os termos e os cargos. Se tivessem de vazar a ideologia dessa República de que falam, seria a mesma inconsciência de valores, no vazio, ou na grosseria da inspiração. Nunca, nas pulhices que produzem, se encontrou a indicação de como a política deve fazer esse intermediário – entre o pensamento e a ação coletiva: como levar o governo a interpretar, com honestidade e lucidez, necessidades humanas em desenvolvimento de uma tradição localizada; como organizar os quadros próprios, que harmonizem atividades, levadas por motivos talvez indefinidos ainda; como ganhar, para a ação política e social, todos esses fatores que a ciência vai especificando... Ora, quando se contempla toda essa insuficiência, só há, para a visão, o lôbrego destino: de uma pátria amesquinhada, no mundo hoje avassalado pelo capitalismo inexorável e amoral, pátria que só teria por defesa esses dirigentes, prontos a tudo por qualquer lambugem... A própria nação se defenderá... É de esperar: mas – e a infinita dificuldade de organizar essa defesa quando, por fora deles, só há desorientados, desiludidos, e a massa informe, que eles deixaram cautelosamente na ignorância essencial? Sim: ao longo de toda a política sobre o Brasil, o mais constante, com o domínio, tem sido o cuidado de não deixar elevar-se o nível mental e humano das gentes. O infalível instinto lhes dizia e diz que para tanto é necessário uma massa ínfima própria a suportar o mais incapaz e vil dos governos. E tal será, tudo o demonstra, a continuação da atual República, pois que as remissões anunciadas são essas conduzidas por empreiteiros de motins políticos, bernardas, em cujos efeitos ninguém confia, nem os próprios empreiteiros, malfeitores de ontem, turbadores de hoje, e sempre nos mesmos intuitos. Esvaiu-se toda a confiança da nação, que já nem sabe definir as suas esperanças. Patenteia-se, no entanto, a convicção de que não há regeneração possível, na continuação disto, que tem sido a classe dirigente do país.

Tal é a significação da universal indiferença pela política vigente.

Deblateram uns poucos, motejam e satirizam muitos, geme a maior parte... Mas ninguém pensa em vir para a política – preparar a indispensável remissão de misérias, a não ser os que se candidatam a viver delas. O total é bem aquele mundo verificado em Tácito: resignação ungida de cinismo heroico, em face da degradação irremediável. Como não ser assim? Chegamos à situação inominável, de uma democracia republicana, onde ontem havia centenas de milhares de votos para candidatos que, no mesmo programa, com o mesmo eleitorado, não conseguem lhe contem nem os sufrágios dos eleitores que protestaram lhes ter dado votos... Os presidentes mudam, mudando ostensivamente tudo que, sem alterar a tradição, podem mudar, e as sucessivas Câmaras são quase unânimes, em torno da mutabilidade... Nas suas centenas de deputados a serviço do presidente, destacam-se, no entanto, em obrigatória oposição, os do Distrito Federal, única circunscrição onde há realidade de eleições, e que, indefectivelmente, consagram a universal execração em que a Nação repudia a política oficial.

Nessa quase unanimidade, a função suprema do Congresso se faz com o apurar o par de ouvidos, a receber as ordens do presidente, e que prontamente se cumprem. Quando o caso é mais sério, o mandão supremo nem confia a missão aos recadeiros: vem o Congresso à sala de despachos do Catete, onde tudo se arranja, restando ao recinto da representação nacional a formalidade da função. Só é lei o que o presidente quer, presidente que tem, geralmente, a sua maioria até no chamado Supremo Tribunal, para a decisão dos casos políticos, pois que nessa pândega República, também se faz política no Supremo.

Desta sorte, se desaparecessem os ajuntamentos distribuídos em Congresso, ninguém o notaria, talvez, ninguém o sentiria, certamente. Um bando de cócoras, a receber solícito os dejetos do alto, tal se simbolizaria a realidade da instituição, em que se codifica a expropriação da nação brasileira, esbanjada em privilégios pelos donos da República. Cada período faz a agravação dos males anteriores: mais filhos a colocar, mais genros a nutrir, na ratazania prolífera... mais automóveis ostensivos no esbanjamento, mais avenidas onde passeie a fartura... e mais a concordante miséria dos que realmente trabalham, e para quem o labor resume degradação remissível, na decadência geral. Não é exagero falar de decadência: Taine demonstra que essas quadras de flexidez e aviltamento moral exprimem a franca decadência. Diátese profunda em toda a nação brasileira, a política se fez cachexia, que só não é prostração porque se sintomatiza em grunhidos e haustos de deglutição. Por ela, o Brasil perdeu a estesia gloriosa de um povo em marcha pela vida. Num horizonte de pântano podre, toda atividade se reduziu ao espocar das bolhas em que a mesma podridão envenena os ares. Campo aberto ao canalhismo, a política republicana realiza a existência de uma sociedade de malfeitores, para a exploração de um país condenado à perpétua estupidez. Montureira humana, montureira sem uberdade, os nossos dirigentes fazem-se como escravos promovidos no servilismo... “Só o servilismo faz caminho”, registrou Plinio (o velho), quando Roma começou a descer na degradação que a consumiu. Servilismo aberto a todo mal contra a nação brasileira, eles se abrem, em cloacas desta República, que só pode ter cloacas, tal se produzem as suas obras. Se quiserem evadir-se da torpeza em que vivem, já não o podem, que nelas incluíram a própria alma. Não só apostataram da moral política, mas da decência, e lucidez, e autonomia, que de outro modo não existiria o grosseiro conluio de sátrapas, dessa federação, unida safardanagem, tirania e abjeção. Esses termos parecerão duros... nunca injustos. As palavras são para as ideias, e o espetáculo desta política não pode sugerir outras ideias. Esses termos impõem-se como a própria verdade. Mas, os homens políticos têm qualidades particulares que os elevam... Que importa? Ainda que se admitia a divisão ou a decomposição do caráter, duplicado em – digno, nos atos pessoais, infame na vida política; ainda assim: uma classe dirigente tem de ser julgada como valor coletivo, na medida dos resultados. Ora, como dirigentes, esses em que se degrada o Brasil, aviltaram-se tanto que nem para o relho podem ser aceitos: seria nobre para eles...

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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira

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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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