sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (3)

Simone de Beauvoir




02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR




PRIMEIRA PARTE

FORMAÇÃO
                              ______________________________________________________




CAPÍTULO II
A   M O Ç A





continuando...


Esse culto do eu não se traduz, na jovem, somente pela adoração de sua pessoa física. Ela almeja também possuir e incensar todo seu eu. Esse é o objetivo visado através desses diários íntimos em que ela expande de bom grado a alma. O de Maria Bashkirtseff é célebre e é um modelo no gênero. A jovem fala com seus cadernos como falava antes com suas bonecas, é um amigo, um confidente, interpela-o como se fora uma pessoa. Entre as páginas inscreve-se uma verdade escondida aos pais, aos colegas, aos professores, e com a qual a autora se embriaga solitariamente. Uma jovem de 12 anos que escreveu seu diário até a idade de 20 pusera-lhe em exergo:


                               Sou o caderninho
                            gentil, bonito e discreto,
                            confia-me todos os tens segredos
                            Sou o caderninho
[1].



[1] Citado por Debesse, La crise d'originalité juvénile.


Outras proclamam: "Para ser lido somente depois de minha morte" ou "para ser queimado depois da minha morte". O sentido do segredo desenvolvido na menina, no momento da pré-puberdade, aumenta sempre. Ela se encerra numa solidão arisca; recusa-se a desvendar aos que a cercam o eu recôndito que considera seu verdadeiro eu e que na realidade é um personagem imaginário: finge ser uma dançarina como a Natacha de Tolstoi, ou uma santa como fazia Marie Lenéru, ou simplesmente essa maravilha singular que é ela própria. Há sempre uma enorme diferença entre essa heroína e a figura objetiva que seus pais e amigos lhe reconhecem. Por isso, ela se persuade de que é incompreendida: suas relações consigo mesma são apenas mais apaixonadas. Ela se embriaga com seu isolamento, sente-se diferente, superior, excepcional: promete a si mesma que seu futuro será um revide à mediocridade de sua vida presente. Desta existência estreita e mesquinha, ela se evade nos sonhos. Sempre gostou de sonhar: não abandonará nunca mais esse pendor: mascara com clichês poéticos um universo que a intimida, aureola o sexo masculino de luar, de nuvens róseas, de noites aveludadas; faz do corpo um templo de mármore, de jaspe, de madrepérola; conta-se a si própria tolas histórias mágicas. É por falta de um domínio sobre o mundo que soçobra tão amiudadamente na necedade. Se devesse agir teria de enxergar claramente, ao passo que pode esperar no meio da bruma. O rapaz também sonha: sonha principalmente com aventuras em que desempenha um papel ativo. A jovem prefere o maravilhoso à aventura; ela expande sobre as pessoas e as coisas uma luz mágica incerta. A ideia de magia é a de uma força passiva; como é votada à passividade e no entanto aspira ao poder, é preciso que a adolescente acredite na magia: a de seu corpo que submeterá os homens a seu jugo, a do destino em geral que a satisfará sem que precise fazer nada. Quanto ao mundo real, tenta esquecê-lo.


"Por vezes, na escola, fujo, não sei como, do assunto explicado e me elevo ao país dos sonhos..." escreve uma jovem[2]. "Absorvo- -me então a tal ponto em deliciosas quimeras que perco completamente a noção da realidade. Fico pregada a meu banco e, quando acordo, espanta-me reencontrar-me entre quatro paredes."

[2] Citado por Marguerite Evard, L'Adolescente.

"Prefiro devanear a fazer versos", escreve outra, "esboçar em minha imaginação lindos contos sem pé nem cabeça ou inventar uma lenda, olhando as montanhas à luz das estrelas. É bem mais bonito porque é mais vago e deixa uma impressão de repouso, de frescor".


O devaneio pode assumir uma forma mórbida e invadir toda a existência como no caso seguinte [3]:

[3] Segundo Borel e Robin, Les rêveries morbides. Citado por Minkowski, La Schizophrénie.

Maria B., menina inteligente e sonhadora, no momento da puberdade, que se manifesta por volta dos 14 anos, sofre uma crise de excitação psíquica com idéias de grandeza. "Repentinamente, declara a seus pais que é rainha da Espanha, toma atitudes altivas, envolve-se em cortinados, ri, canta, manda, ordena." Durante dois anos esse estado repete-se no período das regras; a seguir, durante oito anos, leva uma vida normal, mas é muito sonhadora, adora o luxo e diz amiúde com amargura: "Sou a filha de um empregado". Por volta dos 23 anos torna-se apática, desdenhosa, dá mostra de concepções ambiciosas; definha a tal ponto que a internam em Sainte-Anne onde permanece oito meses. Volta para a casa de sua família, onde durante três anos fica de cama, "desagradável, má, violenta, caprichosa, desocupada, fazendo que toda gente ao redor dela leve uma vida verdadeiramente infernal". Internam-na novamente em Sainte-Anne de onde não sai mais. Fica de cama e não se interessa por nada. Em certos períodos, que parecem corresponder aos da menstruação, levanta-se, envolve- se nas suas cobertas, toma atitudes teatrais, poses, sorri aos médicos e olha-os ironicamente. . . Suas palavras exprimem muitas vezes certo erotismo e sua atitude altiva traduz concepções megalomaníacas. Entrega- se cada vez mais ao devaneio, durante o qual sorrisos de satisfação assomaram-lhe ao rosto; não faz mais nenhuma toilette e suja o próprio leito. "Exibe ornatos estranhos. Sem camisa, amiúde sem lençóis, enrolada nas cobertas quando não se expõe nua, arvora um diadema de papel de estanho na cabeça e numerosas pulseiras de barbante e fita nos punhos, nos ombros, nos tornozelos. Anéis do mesmo tipo enfeitam- lhe os dedos." Entretanto, faz por vezes confidencias inteiramente lúcidas acerca de seu estado. "Lembro-me da crise que tive outrora. No fundo eu sabia que não era verdade. Era como uma criança que brinca com boneca, que sabe que a boneca não vive, mas quer persuadir-se do contrário. . . Penteava-me, vestia-me com cobertas. Isso me divertia e depois, pouco a pouco, como contra minha vontade, ficava enfeitiçada, era como um sonho que vivia. Era uma comediante desempenhando um papel. Estava num mundo imaginário. Vivia várias vidas e em todas elas era o personagem principal... Ah! Tive tantas vidas diferentes! De uma feita casei-me com um americano muito bonito que usava óculos de ouro. .. Tínhamos um grande palacete e cada qual seu quarto. Quantas festas dei!. . . Vivi no tempo do homem das cavernas. Fiz farra outrora. Não contei todos com quem dormi. Aqui estamos um pouco atrasados. Não compreendem que me ponha nua com uma pulseira de ouro na coxa. Outrora tinha amigos de que gostava muito. Davam festas em casa. Havia flores, perfumes, mantos de arminho. Meus amigos davam-me objetos de arte, estátuas, automóveis. Quando me ponho nua nos lençóis, recordo a vida de outrora. Adorava-me ao espelho, como uma artista. . . Nesse encantamento fui tudo o que quis. Fiz até tolices. Fui morfinômana, cocainômana. Tive amantes. Introduziam-se à noite em minha casa. Vinham dois juntos, traziam cabeleireiros e olhávamos cartões-postais." Ela gosta também de um dos 'médicos de quem se diz amante. Teria tido uma filha de três anos. Tem também outra de seis, muito rica, e que está viajando. O pai é um homem ultrachique. "Há muitas outras histórias semelhantes. Cada uma é a narrativa de uma existência fictícia que ela vive imaginariamente."


Vê-se que esse devaneio mórbido destinava-se essencialmente a satisfazer o narcisismo da jovem que considera sua vida insatisfatória e teme enfrentar a verdade da existência; Maria B. não fez senão levar ao extremo um processo de compensação que é comum em numerosas adolescentes.

Entretanto, esse culto solitário que rende a si mesma não basta à jovem. Para se realizar, ela precisa existir numa outra consciência. Busca amiúde auxílio de suas companheiras. Com menos idade, a amiga mais íntima servia-lhe de ponto de apoio para evadir-se do círculo materno, para explorar o mundo e em particular o mundo sexual; agora ela é ao mesmo tempo um objeto que arranca a adolescente dos limites de seu eu a uma testemunha que lho restitui. Certas meninas exibem sua nudez umas às outras, comparam os seios. Talvez se lembrem da cena de jeunes filies en uniforme que mostrava esses folguedos ousados das internas; trocam carícias difusas ou precisas. Como Colette o indica em Claudine à Vécole, e menos francamente Rosamond Lehman em Poussière, há tendências lésbicas em quase todas as jovens. Essas tendências mal se distinguem da deleitação narcisista: o que cada uma deseja na outra é a doçura da própria pele, o modelado das curvas; e, reciprocamente, na adoração que tem por si mesma, está implicado o culto da feminilidade em geral. Sexualmente o homem é sujeito; os homens acham-se, portanto, normalmente separados pelo desejo que os impele para um objeto diferente deles; mas a mulher é objeto absoluto de desejo; eis por que nos liceus, escolas, internatos, ateliers, florescem tantas amizades especiais; algumas são puramente espirituais, outras fortemente carnais. No primeiro caso, trata-se principalmente de abrir o coração entre amigas, de trocar confidencias; a prova de confiança mais apaixonada consiste em mostrar o diário íntimo à amiga; na falta de amplexos sexuais, as amigas trocam manifestações de extremada ternura e muitas vezes trocam provas físicas de seus sentimentos. Assim é que Natacha queima o braço com uma régua em brasa para provar a Sônia seu amor; mas, sobretudo, elas se chamam por mil nomes carinhosos, trocam cartas fervorosas. Eis, por exemplo, o que escrevia à amada Emily Dickinson uma jovem puritana da Nova Inglaterra:


Penso em você todo dia e sonhei com você durante toda a noite passada. Estava passeando com você no mais maravilhoso dos jardins, ajudava-a a colher rosas e meu cesto nunca se enchia. Assim, durante todo o dia rezo para passear com você e quando a noite se aproxima fico feliz e conto impacientemente as horas que se interpõem entre mim e a escuridão, e meus sonhos e o cesto que nunca se e n c h e . ..


Em sua obra L'Âme de L'Adolescente, Mendousse cita numerosas cartas análogas:


Minha cara Susana. . . Gostaria de transcrever aqui alguns versículos do Cântico dos Cânticos: como és bela, minha amiga, como és bela! Como a noiva mística, você era semelhante à rosa de Saron, ao lírio do Vale e como ela você foi para mim mais do que uma moça comum; você foi símbolo, o símbolo de muitas coisas belas e elevadas.. . e por causa disso, branca Susana, eu a amo de um amor puro e desinteressado em que há algo religioso.


Outra confessa em seu diário emoções menos elevadas:


Estava ali, a cintura tomada por essa mãozinha branca, minha mão repousando em seu ombro redondo, meu braço em seu braço morno e nu, aconchegada à doçura de seu seio, e à minha fronte sua linda boca entreaberta sobre os dentinhos. . . Tremia e sentia meu rosto em fogo [4].

[4] Citado por Mendousse em L'Âme de L'Adolescente.

Era seu livro L'Adolescente, Mme Evard recolheu também bom número dessas efusões íntimas:


A minha fada bem amada, minha querida muito querida. Minha linda fada! Dize-me que me amas ainda, dize-me que continuo a ser sempre tua amiga devotada. Estou triste, amo-te tanto, minha L. .. e não posso falar-te, formular suficientemente minha afeição; não há palavras que descrevam meu amor. Idolatrar é dizer pouco em relação ao que sinto; parece-me, por vezes, que meu coração vai rebentar. Ser amada por ti é belo demais, não posso acreditar nisso. Oh!, minha mimosa, dize-me, tu me amarás ainda durante muito tempo?. . . etc.


Dessas ternuras exaltadas, passa-se facilmente a amores juvenis culposos. Por vezes, uma das duas amigas domina a outra e exerce seu poder com sadismo; mas, muitas vezes, trata-se de amores recíprocos sem humilhação nem luta. O prazer dado e recebido permanece tão inocente como no tempo em que cada uma se amava solitariamente sem se desdobrar num casal. Mas essa brancura é insossa; quando a adolescente almeja enfrentar a vida, atingir o Outro, quer ressuscitar em seu proveito a magia do olhar paterno, exige o amor e as carícias de uma divindade. Voltar-se-á para uma mulher, menos estranha e menos temível do que o homem, mas que participará do prestígio viril: uma mulher com um ofício, ganhando a vida, com certo prestígio social, será facilmente tão fascinante como um homem. Sabe-se quantas paixões se acendem no coração das escolares pelas professoras e as vigias. Em Régiment de femmes, Clémence Dane descreve, de maneira casta, paixões ardorosas. Por vezes, a jovem faz à sua amiga íntima a confidencia de uma grande paixão: acontece mesmo que ambas a partilhem e que cada qual se vanglorie de senti-la mais fortemente. Assim é que uma escolar escreve à sua colega predileta:


Estou de cama, com defluxo, nada faço senão pensar em Mlle X. Nunca amei uma professora a esse ponto. Já no primeiro ano gostava muito dela; mas agora é realmente amor. Creio que estou mais apaixonada do que você. Parece-me que a beijo; quase desfaleço e regozijo- -me com voltar à escola para vê-la [5].

[5] Citado por Marguerite Evard, L'Adolescente.

Mais comumente ela ousa confessar seus sentimentos ao próprio ídolo:


Acho-me perante a senhora, minha cara mademoiselle, num estado indescritível. . . Quando não a vejo, daria tudo no mundo para encontrá-la. Penso na senhora a cada instante. Se a percebo, fico com os olhos rasos de lágrimas, tenho vontade de me esconder; sou tão pequena, tão ignorante perto da senhora. Quando a senhora me fala, fico embaraçada, comovida, parece-me ouvir a doce voz de uma fada e um zunido de coisas amorosas, impossíveis de se traduzirem; espio seus menores gestos, não presto mais atenção à conversa, engrolo alguma tolice; a senhora convirá, cara mademoiselle, em que isso é bastante complicado. Só vejo uma coisa com nitidez, é que a amo do fundo do coração [6].

[6] Citado por Marguerite Evard, L'Adolescente.

A diretora de uma escola profissional conta (Liepmann, Jeunesse et sexualité):


Lembro-me de que, em minha própria juventude, disputávamos o papel em que uma de nossas jovens professoras trazia o almoço e pagávamos os pedaços até 20 pfennings. Os bilhetes de metro, já usados, eram igualmente objeto de nossa mania de colecionadoras.


Como deve desempenhar um papel viril, é preferível que a mulher amada não seja casada: o casamento nem sempre desanima a jovem amorosa, mas incomoda-a. Ela detesta que o objeto de sua adoração se apresente como submissa ao poder de um marido ou de um amante. Muitas vezes, essas paixões desenvolvem-se em segredo, ou pelo menos num plano puramente platônico; mas a passagem para um erotismo concreto é muito mais fácil, no caso, do que se o objeto amado pertence ao sexo masculino. Mesmo quando não teve experiências fáceis com amigas de sua idade, o corpo feminino não assusta a jovem; esta conheceu amiúde com as irmãs e a mãe uma intimidade em que a ternura se impregnava sutilmente de sensualidade, e, junto da amada que admira, a passagem da ternura ao prazer far-se-á também de maneira insensível. Quando em Jeunes Filles en uniforme, Dorothy Wieck beijava Herta Thill na boca, o beijo era maternal e sexual a um tempo. Há entre mulheres uma cumplicidade que desarma o pudor; a perturbação que uma desperta na outra é geralmente sem violência; as carícias homossexuais não implicam nem defloração nem penetração: satisfazem o erotismo clitoridiano da infância sem reclamar novas e inquietantes metamorfoses. A jovem pode realizar sua vocação de objeto passivo sem se sentir profundamente alienada. É o que exprime Renée Vivien em seus versos, em que descreve relações de "mulheres danadas" com suas amantes: 


                   Nossos corpos são para seus corpos um espelho fraternal, 
                 Nossos beijos lunares têm pálidas doçuras, 
                 Nossos dedos não magoam a penugem de um rosto 
                 E podemos, quando o cinto se solta, 
                 Ser a um tempo amantes e irmãs [7]

[7] L'Heure des mains jointes.
 
E nestes igualmente: 


                 Porque amamos a graça e a delicadeza 
                 E minha posse não te machuca os seios... 
                 Minha boca não poderia morder asperamente tua boca [8]. 

[8] Sillages.

Através da impropriedade poética das palavras "seios" e 'boca" o que ela promete realmente à amiga é não a violentar. E é em parte por medo da violência, da violação, que a adolescente dedica amiúde seu primeiro amor a uma amiga mais velha antes do que a um homem. A mulher viril reencarna ao mesmo tempo o pai e a mãe: do pai tem a autoridade, a transcendência, é fonte e medida dos valores, emerge para além do mundo dado, é divina. Mas continua mulher: que na infância tenha sido demasiado privada das carícias maternas ou, ao contrário, que a mãe a tenha mimado durante um tempo demasiado longo, a adolescente sonha, como seus irmãos, com o calor do seio. Nesta carne próxima da sua, ela reencontra com abandono essa fusão imediata com a vida que a desmama destruiu; e, através desse olhar estranho que a envolve, a separação que a individualiza é superada. Naturalmente, toda relação humana implica conflitos; todo amor, ciúmes. Mas muitas dificuldades que se erguem entre a virgem e seu primeiro amante são assim resolvidas. A experiência homossexual pode assumir o aspecto de um amor verdadeiro; pode dar à jovem um equilíbrio tão feliz que ela o desejará perpetuar, repetir, que dele conservará uma recordação nostálgica; ele poderá revelar ou dar origem a uma vocação lésbica [9]. Mas, o mais das vezes, não representa senão uma etapa: sua própria facilidade o condena. No amor que dedica a uma amiga mais velha, a jovem visa seu próprio futuro: quer identificar-se ao ídolo, mas este, exceto no caso de uma superioridade excepcional, logo perderá sua aura; quando começa a afirmar-se, a mais moça julga, compara: a outra, que fora escolhida exatamente porque era mais próxima e não intimidava, não é bastante outro para se impor durante muito tempo; os deuses masculinos estão mais solidamente instalados porque seu céu é mais longínquo. A curiosidade, a sensualidade incitam a jovem a desejar amplexos mais violentos. Muitas vezes ela só encarou, desde o início, a aventura homossexual como uma transição, uma iniciação, uma espera; representou o amor, o ciúme, a cólera, o orgulho, a alegria, a pena com a ideia mais ou menos confessada de que imitava sem grandes riscos as aventuras com que sonhava, mas que não ousava ainda ou não tinha a oportunidade de viver. Ela é destinada ao homem, sabe-o. E quer um destino de mulher normal e completa. 

[9] Cf. capítulo 4.

O homem deslumbra-a, entretanto amedronta-a. Para conciliar os sentimentos contraditórios que lhe dedica, vai dissociar nele o macho que a assusta e a divindade radiosa que adora piedosamente. Brusca, selvagem com colegas masculinos, ela adora longínquos príncipes encantados: atores de cinema cuja fotografia pendura em cima da cama, heróis mortos ou vivos mas em todo caso inacessíveis, desconhecidos divisados por acaso e que ela sabe que não tornará a ver. Tais amores não suscitam nenhum problema. Amiúde é a um homem de prestígio social ou intelectual, mas cujo físico não a pode perturbar, que se dedica; a um velho professor um tanto ridículo, por exemplo; esses homens idosos emergem além do mundo em que a adolescência se encerra, é possível destinar-se a eles em segredo, consagrar-se a eles como se consagraria a Deus: um tal dom nada tem de humilhante, é livremente consentido porquanto não desejado na carne. A amorosa romanesca aceita até de bom grado que o eleito tenha um aspecto humilde, seja feio, algo irrisório: sente-se com isso tanto mais segura. Finge deplorar os obstáculos que a separam dele, mas em verdade ela o escolheu exatamente porque nenhuma relação efetiva era possível entre ambos. Assim pode ela ter do amor uma experiência abstrata, puramente subjetiva, que não atenta contra sua integridade; seu coração bate, ela conhece a dor da ausência, as angústias da presença, o despeito, a esperança, o rancor, o entusiasmo, mas sem consequências; nada de si mesma se acha empenhado. É divertido constatar que o ídolo é escolhido tanto mais brilhante quanto mais distante: é útil que o professor de piano com quem ela se encontra quotidianamente seja ridículo e feio; mas se se apaixona por um estranho que se movimenta em esferas inacessíveis, prefere-o belo e macho. 0 importante é que, de uma maneira ou de outra, a questão sexual não se coloque. Esses amores de imaginação prolongam e confirmam a atitude narcisista em que o erotismo só aparece em sua imanência, sem presença real do Outro. É porque encontra um álibi, que lhe permite obviar as experiências concretas, que muitas vezes a adolescente desenvolve uma vida imaginária de extraordinária intensidade. Ela escolhe confundir seus fantasmas com a realidade. Entre outros exemplos, H. Deutsch (Psychology of Women) relata um muito significativo: é o de uma jovem bonita e sedutora que teria podido ser facilmente cortejada e que se recusava a qualquer comércio com os jovens de seu meio; entretanto, no segredo de seu coração, tinha, com a idade de 13 anos, decidido render um culto a um rapaz de 17, mais ou menos sem encantos e que nunca lhe endereçara uma palavra. Obteve uma fotografia dele, dedicou-a a si mesma, e durante três anos redigiu um diário em que relatava suas experiências imaginárias: trocavam beijos e amplexos apaixonados; havia, por vezes, entre duas cenas, lágrimas que lhe deixavam os olhos realmente vermelhos e inchados; depois reconciliavam-se, ela mandava flores a si mesma etc. Quando uma mudança de residência a separou dele, ela lhe escreveu cartas, que nunca lhe enviou, mas a que respondia ela própria. Essa história era evidentemente uma defesa contra experiências reais de que tinha medo.



continua página 86...

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O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (3)


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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.




"O que é uma mulher?"


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