sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Úrsula - VIII Luísa B. (2)

 Maria Firmina dos Reis


Úrsula



VIII - Luísa B. 



continuando...
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— Vosso irmão, senhora? – interrogou o cavaleiro, como admirado de que um irmão pudesse odiar a sua irmã.

— Sim – tornou ela – meu irmão. Mas, senhor, ele é implacável no ódio, e nunca o esquecerá.

— Não é possível, senhora. – objetou o cavaleiro – Vosso irmão, quem quer que seja, não vos pode odiar. O vosso estado, e as desgraças que por certo tem pesado sobre vós, que ele talvez não ignore, lavarão toda a ofensa, que por ventura lhe houverdes feito.

— Lavarão, dizeis vós, todas as ofensas que lhe hei feito? Ah! Pudera assim acontecer! Mas não, eu chamei seu ódio sobre minha cabeça, eu o conhecia: seu coração só se abriu uma vez, foi para o amor fraterno. Amou-me, amou-me muito; mas quando tive a infelicidade de incorrer no seu desagrado, todo esse amor tornou-se em ódio, implacável, terrível e vingativo. Meu irmão jamais me poderá perdoar.

— Talvez! O tempo...

Luísa B. meneou tristemente os olhos, e interrompeu o cavaleiro:

— Então, senhor, não conheceis o comendador F. de P***!...

— O comendador P***?! – exclamou o moço admirado. – É ele vosso irmão?...

— Sim, senhor – tornou-lhe a mãe de Úrsula, – e um desvelado irmão foi ele. Conhecei-lo talvez pela sua reputação de fereza de ânimo; mas esse homem tão implacável como o vedes, era um terno e carinhoso irmão. Amou-me na infância com tanto extremo e carinho que o enobreciam aos olhos de meus pais, que o adoravam, e depois que ambos caíram no sepulcro, ele continuou sua fraternal ternura para comigo. Mais tarde, um amor irresistível levou-me a desposar um homem, que meu irmão no seu orgulho julgou inferior a nós pelo nascimento e pela fortuna. Chamava-se Paulo B.

— Ah! Senhor! – continuou a infeliz mulher – Este desgraçado consórcio, que atraiu tão vivamente sobre os dois esposos a cólera de um irmão ofendido, fez toda a desgraça da minha vida. Paulo B. não soube compreender a grandeza de meu amor, cumulou-me de desgostos e de aflições domésticas, desrespeitou seus deveres conjugais, e sacrificou minha fortuna em favor de suas loucas paixões. Não tivera eu uma filha, que jamais de meus lábios cairia sobre ele uma só queixa! Mas ele me perdoará do fundo do seu sepulcro; porque sua filha mais tarde foi o objeto de toda a sua ternura, e a dor de fracamente poder reabilitar sua casa em favor dela lhe consumia, e ocupava o tempo. E ele teria sido bom; sua regeneração tornar-se-ia completa, se o ferro do assassino lhe não tivesse cortado em meio à existência!

E uma lágrima pendeu dos olhos alquebrados da desditosa viúva.

— Assassinaram vosso marido, senhora? – interrompeu-a o hóspede horrorizado.

— Assassinaram-no, sim – tornou Luísa B. com voz pausada.

— Oh! Isso é horrível! E sabeis vós quem foi o seu assassino?

— Não, senhor. Ninguém, a não ser eu, sentiu a morte de meu esposo. A justiça adormeceu sobre o fato, e eu, pobre mulher, chorei a orfandade de minha filha, que apenas saía do berço, sem uma esperança, sem um arrimo, e alguns meses depois, veio a paralisia – essa meia morte – roubar-me o movimento e tirar-me até o gozo ao menos de seguir os primeiros passos desta menina, que o céu me confiou.

— Oh! – disse o cavaleiro comovido – quantas desgraças! E não tendes suspeita alguma de quem quer que fosse esse assassino, que a justiça não procurou punir?

— Não sei. – tornou ela com desânimo

— E para que pensar temerariamente, quando já me acho tão próxima do meu fim, e tantas culpas para com aquele que a todos nós há de julgar? Só Deus, senhor, deve conhecer o culpado e os remorsos tê-lo-ão punido. Uma tarde, meu esposo deixou-me para ir à cidade de *** donde voltaria ao cabo de três dias. Foi embalde que o esperei; porque a sua alma estava com Deus, e só ao amanhecer do outro dia dois homens compassivos trouxeram-me o seu cadáver! Ah! que triste recordação!

— E vosso irmão, senhora, não procurou consolar-vos?

— Meu irmão? – tornou ela sorrindo-se dolorosamente

— Esse comprou as dívidas do meu casal, e estabeleceu-se na fazenda de Santa Cruz, outrora habitação de meus pais, onde eu passei os anos de minha juventude, onde nascera minha pobre Úrsula.

— Oh! Minha mãe, – exclamou Úrsula com amargura – pelo céu, não vos aflijais mais falando desse homem que tanto mal vos tem feito.

— Conhecei-lo, senhora? – perguntou-lhe o mancebo sorrindo com ternura para a animar.

— Não. Oh! Que nunca o veja – tornou-lhe a donzela refugiando-se nos braços de sua mãe.

— Tens razão, minha cara Úrsula, – disse a pobre mãe procurando ampará-la – grande mal nos tem ele feito.

— Sossegai, minhas queridas senhoras – objetou o mancebo, – acaso ignorais que de hoje em diante velarei por vós? E o que mais podeis recear dele? Tem sobejamente saciado seu terrível rancor.

— Tendes razão, senhor – prosseguiu Luísa B. – ele habita as nossas vizinhanças desde que morreu meu marido, e jamais nos tem incomodado.

— O comendador habita estes arredores? – perguntou o cavaleiro.

— Sim, senhor – a fazenda de Santa Cruz está a meia légua de nós.

— E eu tenho-lhe tanto horror, – disse Úrsula a tremer – que mal posso suportar a ideia de que estejamos sempre tão próximas dele. Parece-me que esse homem ainda me há de ser funesto. E algumas lágrimas lhe orvalharam as faces.

— Pelo céu, minha filha, – disse a mãe angustiada – essas lágrimas me matam. Não, eu quero ver-te risonha e feliz.

— Sim, feliz! – interrompeu o mancebo tão comovido que tocou o coração de Luísa B. – Contai comigo, senhora, vossa filha há de ser feliz, prometo-o sob juramento.

— Vós!... – interrogou a pobre a mãe, sem atinar verdadeiramente com o sentido destas palavras proferidas com tanto fogo.

E o jovem cavaleiro tornou-lhe:

— Sim, minha senhora, eu; porque amo-a, e como o meu amor não poderá jamais arrefecer, juro-vos em nome do céu, que nos escuta, que Úrsula será a mais venturosa de todas as mulheres, se anuirdes aos meus desejos.

Luísa B., reduzida à última miséria, e descobrindo nas maneiras de seu hóspede os sinais de um nascimento distinto, assim como o esplendor de uma próspera fortuna, julgou-se vivamente ofendida por aquelas palavras proferidas com tanto arrebatamento, e que aos seus ouvidos pareceram insultuosa ofensa; e ressentida, envergonhada, e quase que desesperada, abandonada já de forças, caiu quase que completamente desmaiada nos braços de Úrsula, que lhe bradava:

— Minha mãe... Minha mãe!...

E o mancebo arrependeu-se de não se haver exprimido de outra maneira, e pediu ao céu um momento de vida para aquela infeliz mulher, cuja delicadeza, involuntariamente ele acabava de ofender, para convencê-la da pureza dos seus sentimentos.

E Deus o escutou, porque aos esforços da donzela, ao acento de sua voz meiga e doce a pobre mãe abriu os olhos, e fitando a filha com redobrado amor lhe disse:

— Oh! Minha Úrsula!... Este homem...

— Puro é o seu amor, minha pobre mãe! – animou-se a dizer a moça, rubra de pejo – é o esposo que meu coração tem escolhido.

— Ele? – perguntou-lhe angustiada a receosa mãe conchegando-se a si. – Ele? E sabes tu quem seja?

Então o jovem cavaleiro erguendo-se com dignidade, exclamou:

— Senhora, eu sou Tancredo de ***

— Tancredo de ***! – exclamaram ao mesmo tempo mãe e filha; e depois um profundo silêncio reinou na câmara.

Então uma viva palidez tingiu as faces avermelhadas da pobre Úrsula, que na sua ingenuidade nunca tinha indagado do nobre cavaleiro o seu sobrenome. Sabia de seu nome, que era Tancredo, e esse lhe bastou; seu nascimento, sua posição social, não lhe lembraram ao menos. Ela amou o mancebo desconhecido, seu amor era por tanto desinteressado, mas agora que um nome ilustre lhe soara aos ouvidos, agora que ela acabava de reconhecer no mancebo convalescente seu primo, de distinto nascimento, sua fronte curvou-se abatida, como a flor que, no arrebol da manhã ostentando beleza e sedução, vai rastear na terra, quebrada a haste por furacão violento.

O mancebo, compreendendo então o que se passava na alma dessa menina tão casta e tão delicada como um anjo, tomou-lhe a mão, dizendo-lhe:

— Úrsula, eu sou incapaz de uma má ação. O mancebo, que junto ao bosque solitário, depois de consultar o vosso coração, vos jurou amor e fidelidade, e que tomou a Deus por testemunha de que seria vosso esposo, está agora de novo ante vós. Sou o mesmo, Úrsula. Olhai-me.

Então ela levantou os olhos – havia neles amor e confiança.

— Agora, senhora, – continuou o mancebo dirigindo-se a Luísa B. que apenas ouvia-lhe a voz – agora não me negueis o único bem que ambiciono na vida. Senhora, eu amo a Úrsula, e fora preciso não conhecê-la para sair desta casa sem levá-la no pensamento e no coração. É Úrsula, senhora, o anjo dos meus sonhos, é a esperança de minha vida. Viver sem ela ora em diante fora morrer mil vezes, sem nunca encontrar o descanso da sepultura. Não me negueis. Úrsula é a esposa que convém a minha alma, é a esposa que pede o meu coração. Sereis vós surda à minha súplica?

Entanto Luísa B., mais tranquila por aquelas palavras que francas e leais lhe pareciam, cobrando ligeira esperança, sem contudo poder vencer sua comoção, disse com voz fraca:

— Perdoai, senhor, se não tenho bastante confiança em vós. Bem vedes a que estado me vejo reduzida... e eu nunca aspirei à mão de um homem como vós para minha filha. Tancredo de ***, quem vos não conhece? Sois grande, sois rico, sois respeitado; e nós, senhor? Nós que somos?! Ah! Vós não podeis desejar para vossa esposa a minha pobre Úrsula. Seu pai, senhor, era um pobre lavrador sem nome, e sem fortuna.

O mancebo sorriu-se, e redarguiu-lhe:

— Então recusai-me a mão de vossa filha?

— Oh! Senhor, – tornou Luísa – minha filha é uma pobre órfã, que só tem a seu favor a inocência, e a pureza de sua alma.

— Úrsula, – disse o mancebo, voltando-se para a donzela – pelo amor do céu, fazei conhecer à vossa mãe a lealdade dos meus sentimentos.

Então a desvelada mãe, procurando ler no coração do jovem Tancredo, e no de sua filha, o sentimento que os animava, e elevando a Deus seu pensamento, por alguns segundos guardou silêncio, que ninguém ousou interromper, e depois, erguendo as mãos ambas ao céu, disse:

— Tomo-vos por testemunha, meu Deus, de que as minhas intenções são puras.

E acenando para os dois jovens, que a escutavam, disse-lhes:

— Aproximai-vos.

Então Úrsula ajoelhou aos pés do leito de sua mãe, e Tancredo, imitando-a, dobrou também os joelhos, e unidos assim, e cheios de respeito, de amor, e de veneração, aguardaram um gesto, ou uma palavra dessa mulher, a quem o amor materno tornava nessa hora tão radiante de celeste beleza. E depois de uma breve pausa, ela exclamou solenemente:

— Meus filhos, eu os abençoo em nome de Deus. Que ele escute a minha oração, e os vossos dias corram risonhos e tranquilos sobre a terra.

E depois acrescentou:

— Bendito seja o Senhor! Minha filha não será mais uma desditosa órfã!





continua pág 76...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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Úrsula - VIII Luísa B. (2)

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