Elias Canetti
MALTA E HISTÓRIA
Os Símbolos de Massa das Nações
As tentativas de se chegar ao âmago das nações padeceram em sua
maioria de um erro fundamental. Buscaram-se definições do nacional
em si; uma nação é isso ou aquilo, dizia-se. Vivia-se na crença de que o
importante seria encontrar a definição certa. Uma vez encontrada, ela
se deixaria aplicar uniformemente a todas as nações. Tomava-se a língua
ou o território, a literatura escrita, a história, o governo, o assim
chamado sentimento nacional, mas, invariavelmente, as exceções
revelavam-se mais importantes do que a regra. Sempre se descobria que
se havia apanhado algo vivo na cauda solta de um manto casual; este,
porém, desvencilhava-se com facilidade, e cava-se de mãos vazias.
Paralelamente a esse método objetivo, havia um outro, ingênuo, que
se interessava apenas por uma única nação — a sua própria —, todas as
demais sendo-lhe indiferentes. Tal método consistia em uma inabalável
reivindicação de superioridade, a partir de visões proféticas acerca da
própria grandeza, de uma mescla singular de pretensões morais e
animais. Não se creia, contudo, que essas ideologias nacionais
efetivamente possuem todas o mesmo aspecto. O que as iguala é tão só
seu apetite e reivindicação inoportunas. Elas querem, talvez, a mesma
coisa, mas não são a mesma coisa. Querem engrandecer-se, e embasam
esse engrandecimento na multiplicação. Aparentemente, a terra inteira
foi prometida a cada uma delas, e acabará pertencendo naturalmente a
cada uma delas. Todas as demais, ao ouvi-lo, sentem-se ameaçadas e, em
seu medo, veem apenas a ameaça. Assim sendo, não se nota que o
conteúdo concreto, que as verdadeiras ideologias dessas pretensões
nacionais são bastante diversas. Necessário é dar-se ao trabalho de —
sem compartilhar de sua cobiça — determinar o que é singular em cada
nação. É preciso pôr-se à parte, não se estar à mercê de qualquer uma
delas, mas interessar-se honesta e profundamente por todas. Há que se
absorvê-las espiritualmente como se se estivesse condenado a, de fato,
pertencer-lhes por boa parte da vida. Mas não se pode pertencer a uma
única, a esta entregando-se à custa de todas as demais.
E isso porque é inútil falar-se em nações se não sejam definidas em
suas diferenças. Elas empreendem longas guerras umas contra as outras.
Uma porção bastante grande dos membros de cada nação participa de
tais guerras. Discute-se com frequência por que razão elas lutam.
Contudo, na qualidade de que elas o fazem, isso ninguém sabe. Têm um
nome para isso: lutam, dizem, na qualidade de franceses, alemães,
ingleses, japoneses. Mas o que significam essas palavras para aquele que
as emprega em relação a si próprio? Em que acredita ele ser diferente,
quando parte para a guerra como francês, alemão, inglês, japonês? Não
importa tanto aí em que ele de fato é diferente. Uma investigação de
seus usos e costumes, de seu governo e de sua literatura poderia parecer
minuciosa e, no entanto, passar inteiramente ao largo desse elemento
nacional específico que está presente na condição de crença quando ele
vai à guerra.
As nações, portanto, deverão ser encaradas aqui como se fossem
religiões. E elas de fato têm a tendência a, de tempos em tempos, assumir
essa forma. A disposição para tanto está sempre presente; nas guerras, as
religiões nacionais se aguçam.
Pode-se supor, em princípio, que o membro de uma nação não se vê
sozinho. Tão logo ele é designado ou se autodesigna como tal, algo mais
abrangente penetra-lhe a imaginação, uma unidade mais ampla à qual
ele se sente ligado. A natureza dessa unidade não é desimportante, assim
como tampouco o é sua ligação com ela. Não se trata simplesmente da
unidade geográfica de seu país, conforme se pode encontrá-la no mapa;
esta é indiferente ao homem normal. As fronteiras podem ter seu
interesse para ele, mas não a área total e propriamente dita de um país.
Tampouco pensa ele em sua língua, conforme se poderia confrontá-la,
definida e reconhecível, com as dos outros. Por certo, as palavras que
lhe são familiares exercem um grande efeito sobre ele em tempos
agitados. Mas o que ele tem atrás de si, aquilo pelo qual está pronto a
lutar, não é um dicionário. Significado ainda menor tem para o homem
normal a história de sua nação. Ele não conhece nem o seu verdadeiro
curso nem a plenitude de sua continuidade; não conhece a vida, como
ela era no passado, e sabe somente uns poucos nomes daqueles que
viveram antes dele. As figuras e os momentos que lhe penetraram a
consciência estão além de tudo o que o historiador metódico entende
por história.
A unidade mais ampla à qual ele se sente ligado é sempre uma massa
ou um símbolo de massa. Tal unidade sempre possui alguns dos traços
característicos das massas ou de seus símbolos: a densidade, o
crescimento e a abertura para o infinito, a coesão surpreendente ou
assaz notável, o ritmo comum e a descarga súbita. Muitos desses
símbolos já foram abordados aqui. Falou-se já no mar, na floresta, no
trigo. Seria supérfluo repetir-lhes as propriedades e funções, de que
forma selaram seu destino como símbolo de massa. Reencontrar-se-ão
esses símbolos nas ideias e sentimentos que as nações possuem em
relação a si próprias. Contudo, eles jamais figuram cruamente, jamais
aparecem sozinhos: o membro de uma nação vê-se sempre, travestido à
sua maneira, em contato permanente com um determinado símbolo de
massa que se tenha feito o mais importante para sua nação. No retorno
regular deste, em seu aparecimento quando o momento o exige, reside a
continuidade do sentimento nacional. É juntamente com ele, e somente
com ele, que a autoconsciência de uma nação se modifica. Esse símbolo
é mais mutável do que se pensa, podendo-se extrair daí alguma
esperança de que a humanidade siga existindo.
Intentar-se-á a seguir contemplar algumas poucas nações tendo em
vista os seus símbolos. Afim de evitarmos a parcialidade, transportemo-nos para vinte anos atrás. Naturalmente, trata-se aqui — e nunca é
demais enfatizá-lo — de uma redução a características bastante simples
e genéricas, as quais pouco têm a dizer acerca do ser humano como
indivíduo.
continua página 256...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e História: Os Símbolos de Massa das Nações
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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