terça-feira, 9 de setembro de 2025

Massa e Poder - Malta e História: Os Símbolos de Massa das Nações

Elias Canetti

MALTA E HISTÓRIA

     Os Símbolos de Massa das Nações 

      As tentativas de se chegar ao âmago das nações padeceram em sua maioria de um erro fundamental. Buscaram-se definições do nacional em si; uma nação é isso ou aquilo, dizia-se. Vivia-se na crença de que o importante seria encontrar a definição certa. Uma vez encontrada, ela se deixaria aplicar uniformemente a todas as nações. Tomava-se a língua ou o território, a literatura escrita, a história, o governo, o assim chamado sentimento nacional, mas, invariavelmente, as exceções revelavam-se mais importantes do que a regra. Sempre se descobria que se havia apanhado algo vivo na cauda solta de um manto casual; este, porém, desvencilhava-se com facilidade, e cava-se de mãos vazias.
     Paralelamente a esse método objetivo, havia um outro, ingênuo, que se interessava apenas por uma única nação — a sua própria —, todas as demais sendo-lhe indiferentes. Tal método consistia em uma inabalável reivindicação de superioridade, a partir de visões proféticas acerca da própria grandeza, de uma mescla singular de pretensões morais e animais. Não se creia, contudo, que essas ideologias nacionais efetivamente possuem todas o mesmo aspecto. O que as iguala é tão só seu apetite e reivindicação inoportunas. Elas querem, talvez, a mesma coisa, mas não são a mesma coisa. Querem engrandecer-se, e embasam esse engrandecimento na multiplicação. Aparentemente, a terra inteira foi prometida a cada uma delas, e acabará pertencendo naturalmente a cada uma delas. Todas as demais, ao ouvi-lo, sentem-se ameaçadas e, em seu medo, veem apenas a ameaça. Assim sendo, não se nota que o conteúdo concreto, que as verdadeiras ideologias dessas pretensões nacionais são bastante diversas. Necessário é dar-se ao trabalho de — sem compartilhar de sua cobiça — determinar o que é singular em cada nação. É preciso pôr-se à parte, não se estar à mercê de qualquer uma delas, mas interessar-se honesta e profundamente por todas. Há que se absorvê-las espiritualmente como se se estivesse condenado a, de fato, pertencer-lhes por boa parte da vida. Mas não se pode pertencer a uma única, a esta entregando-se à custa de todas as demais.
     E isso porque é inútil falar-se em nações se não sejam definidas em suas diferenças. Elas empreendem longas guerras umas contra as outras. Uma porção bastante grande dos membros de cada nação participa de tais guerras. Discute-se com frequência por que razão elas lutam. Contudo, na qualidade de que elas o fazem, isso ninguém sabe. Têm um nome para isso: lutam, dizem, na qualidade de franceses, alemães, ingleses, japoneses. Mas o que significam essas palavras para aquele que as emprega em relação a si próprio? Em que acredita ele ser diferente, quando parte para a guerra como francês, alemão, inglês, japonês? Não importa tanto aí em que ele de fato é diferente. Uma investigação de seus usos e costumes, de seu governo e de sua literatura poderia parecer minuciosa e, no entanto, passar inteiramente ao largo desse elemento nacional específico que está presente na condição de crença quando ele vai à guerra.
     As nações, portanto, deverão ser encaradas aqui como se fossem religiões. E elas de fato têm a tendência a, de tempos em tempos, assumir essa forma. A disposição para tanto está sempre presente; nas guerras, as religiões nacionais se aguçam.
     Pode-se supor, em princípio, que o membro de uma nação não se vê sozinho. Tão logo ele é designado ou se autodesigna como tal, algo mais abrangente penetra-lhe a imaginação, uma unidade mais ampla à qual ele se sente ligado. A natureza dessa unidade não é desimportante, assim como tampouco o é sua ligação com ela. Não se trata simplesmente da unidade geográfica de seu país, conforme se pode encontrá-la no mapa; esta é indiferente ao homem normal. As fronteiras podem ter seu interesse para ele, mas não a área total e propriamente dita de um país. Tampouco pensa ele em sua língua, conforme se poderia confrontá-la, definida e reconhecível, com as dos outros. Por certo, as palavras que lhe são familiares exercem um grande efeito sobre ele em tempos agitados. Mas o que ele tem atrás de si, aquilo pelo qual está pronto a lutar, não é um dicionário. Significado ainda menor tem para o homem normal a história de sua nação. Ele não conhece nem o seu verdadeiro curso nem a plenitude de sua continuidade; não conhece a vida, como ela era no passado, e sabe somente uns poucos nomes daqueles que viveram antes dele. As figuras e os momentos que lhe penetraram a consciência estão além de tudo o que o historiador metódico entende por história.
     A unidade mais ampla à qual ele se sente ligado é sempre uma massa ou um símbolo de massa. Tal unidade sempre possui alguns dos traços característicos das massas ou de seus símbolos: a densidade, o crescimento e a abertura para o infinito, a coesão surpreendente ou assaz notável, o ritmo comum e a descarga súbita. Muitos desses símbolos já foram abordados aqui. Falou-se já no mar, na floresta, no trigo. Seria supérfluo repetir-lhes as propriedades e funções, de que forma selaram seu destino como símbolo de massa. Reencontrar-se-ão esses símbolos nas ideias e sentimentos que as nações possuem em relação a si próprias. Contudo, eles jamais figuram cruamente, jamais aparecem sozinhos: o membro de uma nação vê-se sempre, travestido à sua maneira, em contato permanente com um determinado símbolo de massa que se tenha feito o mais importante para sua nação. No retorno regular deste, em seu aparecimento quando o momento o exige, reside a continuidade do sentimento nacional. É juntamente com ele, e somente com ele, que a autoconsciência de uma nação se modifica. Esse símbolo é mais mutável do que se pensa, podendo-se extrair daí alguma esperança de que a humanidade siga existindo.
     Intentar-se-á a seguir contemplar algumas poucas nações tendo em vista os seus símbolos. Afim de evitarmos a parcialidade, transportemo-nos para vinte anos atrás. Naturalmente, trata-se aqui — e nunca é demais enfatizá-lo — de uma redução a características bastante simples e genéricas, as quais pouco têm a dizer acerca do ser humano como indivíduo.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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