A Montanha Mágica
Capítulo VI
Neve
continuando...
Afastou-se da parede, tomando impulso com o ombro. Mas apenas se distanciou do
galpão, dando um único passo para a frente, o vento feriu-o com verdadeiros golpes de foice e
rechaçou-o até o abrigo. Indiscutivelmente era esse o lugar mais indicado para ele. Por enquanto,
o jovem devia conformar-se com isso, além do quê, tinha plena liberdade de encostar o ombro
esquerdo, para variar, de apoiar-se na perna direita e de sacudir a outra para revigorá-la. “Com
um tempo destes”, disse de si para si, “a gente não deve sair de casa. Um pouco de variação pode
ser admissível, mas não a mania de inovações nem o desafio da Dona Borrasca. Fica quietinho e
deixa pender a tua cabeça, uma vez que está muito pesada. A parede é boa. As tábuas são de
madeira. Parece mesmo que se desprende delas um certo calor, se é que aqui se pode falar de
calor. Um discreto calor natural da madeira, ou talvez apenas um produto da imaginação, coisa
subjetiva... Vejam só todas essas árvores! Ah, esse clima vivo dos homens vivos! Que perfume!...”
Um parque estendia-se a seus pés, sob a sacada onde ele se encontrava; um vasto parque
de luxuriante verdor, formado de árvores frondosas – olmos, plátanos, faias, bordos, bétulas –
levemente matizadas quanto ao colorido da folhagem abundante, fresca, lustrosa, com as copas
agitando-se num suave sussurro. Um ar delicioso, úmido, embalsamado pelas árvores, envolvia a
região. Um aguaceiro quente vinha se abatendo, mas a chuva parecia iluminada. Até as alturas do
céu via-se a atmosfera resplandecer de gotinhas cintilantes. Que beleza! Ah, esse sopro do torrão
natal, o aroma e a plenitude da planície, depois de tão prolongada privação! O ar ressoava com
vozes de aves, pios, silvos, gorjeios, chilidos e soluços, cheios de fervor, de graça e de doçura,
sem que se enxergasse um único passarinho. Hans Castorp sorriu, respirando gratamente. E o
quadro tornava-se ainda mais belo. Um arco-íris curvava-se sobre um lado da paisagem, um arco
completo e nítido, puro na sua magnificência, com o brilho úmido de todas as suas cores, que,
untuosas como óleo, inundavam o verde espesso e reluzente. Mas isso parecia música, era como
o som intenso de harpas, mesclado de flautas e violinos! O azul e o violeta, sobretudo,
espalhavam-se maravilhosamente. Tudo se confundia com eles, como por um feitiço,
transformando-se, evoluindo de modo sempre e cada vez mais belo. Lembrava aquele dia, anos
atrás, quando Hans Castorp tivera ensejo de ouvir um cantor de fama mundial, um tenor italiano,
de cuja garganta partiam sons de uma arte benéfica e de uma força abençoada, inundando os
corações dos homens. Sustentara esse homem uma nota aguda, linda desde o começo; aos
poucos, porém, de momento a momento, a harmonia apaixonada descortinara-se, ampliara-se,
tomando volume, iluminara-se com um esplendor mais e mais deslumbrante. Um a um, os véus
que antes ninguém percebera se haviam desfeito; caíra mais um, o último, revelando, segundo o
pensamento de todos, a luz suprema, a luz mais pura, mas seguira-se outro e ainda outro –
incrível! –, o derradeiro, desencadeando tamanha exuberância de fulgor e de perfeição banhada
em lágrimas, que um rumor surdo de arrebatamento, soando quase como um protesto ou uma
objeção, elevava-se do seio da multidão. Ele próprio, o jovem Hans Castorp, fora tomado de
soluços. E o mesmo lhe acontecia agora, em face dessa paisagem que se metamorfoseava, se
desdobrava em progressiva transfiguração. O azul a pairar em toda parte... Os véus luzentes da
chuva iam caindo. Eis que surgiu o mar, um mar, o mar do sul, de um azul profundo e saturado,
refulgindo de luzes argentinas, com uma belíssima enseada a abrir-se vaporosa, para um lado,
enquanto o outro estava engastado em montanhas de azul cada vez mais pálido. No meio da baía
emergiam ilhas, onde cresciam palmeiras e resplandeciam casinhas brancas por entre bosques de
ciprestes. Oh, oh! Eram demais. Ele não merecia tudo isso. Que bem-aventurança de luz, de
absoluta pureza do céu, de frescor de águas ensolaradas! Hans Castorp jamais vira aquilo, nem
coisa semelhante. Nas suas viagens de férias mal passara pelas regiões do sul. Conhecia o mar
áspero, o mar cinzento, ao qual se apegava com sentimentos vagos e pueris. Mas nunca chegara a
ver o Mediterrâneo, Nápoles, a Sicília ou a Grécia. E todavia recordava-se. Sim, por estranho que
pareça, o que Hans Castorp fazia nesse momento era reconhecer. “Ah, sim! É isso!”, exclamou
nele uma voz, como se tivesse levado no seu coração, desde tempos imemoriais, às escondidas e
sem confessá-lo a si próprio, toda essa alegria azul, irradiada pelo sol. E esses “tempos
imemoriais” eram vastos, infinitamente vastos, tal e qual o mar que se abria à sua esquerda, ali
onde o céu, num tom delicado de violeta, descia até as águas.
O horizonte era alto; o espaço dava a ideia de elevar-se, o que se devia ao fato de Hans
ver o golfo de cima, de certa altura. Em forma de promontórios abraçavam-no as montanhas
coroadas de selvas; entravam no mar, retrocediam em semicírculo, do centro do quadro, até o
ponto onde se encontrava o jovem e mais longe ainda. Era uma costa rochosa, em cujos degraus
de pedra aquecidos pelo sol se achava acocorado. À sua frente inclinava-se a ribeira pedregosa,
escadeada, coberta de musgos e brenhas, até uma praia plana, onde o cascalho, por entre os
juncos, formava angras azuladas, pequenos portos e lagoas avançadas. E essa região banhada pelo
sol, essas margens de fácil acesso, essas bacias risonhas no meio de rochedos, bem como o mar
até as ilhas distantes entre as quais iam e vinham embarcações – tudo estava povoado. Homens,
filhos do sol e do mar, mexiam-se ou repousavam em toda parte, uma humanidade bela e jovem,
sensata e jovial, tão agradável de se ver que o coração de Hans Castorp se dilatava todo num
sentimento amplo, quase doloroso, de amor.
Mancebos adestravam cavalos; corriam, com a mão no cabresto, ao lado dos animais que
trotavam relinchando e sacudindo a cabeça; montavam-nos sem sela e forçavam-nos a entrar na
água, batendo com os calcanhares desnudos os flancos da cavalgadura, enquanto os músculos das
espáduas, sob a pele trigueira, jogavam ao sol. Os gritos que trocavam entre si ou dirigiam às
montarias tinham qualquer coisa de mágico. À margem de uma enseada que penetrava
profundamente na terra firme, e cujas ribanceiras se espelhavam como num lago alpino, havia
moças dançando. Uma delas, cujos cabelos atados na nuca tinham um encanto singular, estava
sentada, com os pés enterrados numa concavidade do solo, e tocava uma flauta pastoril. Por cima
dos dedos ágeis, seu olhar vagava em direção às companheiras, que, nos seus largos e flutuantes
vestidos, executavam os passos da dança, ora isoladas, sorridentes, com os braços abertos, ora
aos pares, com as fontes graciosamente coladas umas nas outras. Atrás das costas da flautista,
costas alvas, longas, delgadas, que a posição dos braços tornava redondas, viam-se outras irmãs,
sentadas ou em pé, de mãos dadas, conversando calmamente e contemplando a cena. A maior
distância, alguns jovens exercitavam-se no tiro de arco. Que aprazível e ameno quadro! Os mais
velhos ensinavam a uns adolescentes de cabelos encaracolados como retesar o arco e apontá-lo
ao alvo; rindo, amparavam os novatos cambaleantes sob o rechaço da corda, quando a seta se
desprendia dela com um sussurro. Outros pescavam com anzol. Achavam-se de bruços nas lajes
dos penedos da costa, com uma das pernas balouçando no ar, enquanto mergulhavam a linha na
água. Palestrando calmamente voltavam a cabeça para o vizinho, que reclinava o corpo para
lançar muito longe a isca. Ainda outros estavam ocupados em transportar ao mar, arrastando,
empurrando, levantando, um barco de alto bordo, provido de mastro e vergas. Crianças
brincavam e exultavam no meio da rebentação. Uma jovem mulher, estendida no solo, de costas,
olhava para trás, enquanto com uma das mãos apertava contra os seios o vestido floreado, e com
a outra, avidamente, procurava alcançar um fruto ornado de folhas, que um moço de ancas
estreitas, de pé atrás dela, brincando lhe oferecia e retirava. Havia vultos recostados nos nichos
dos rochedos. Outros hesitavam à beira d'água, experimentando-lhe o frescor com a ponta do pé
e segurando os ombros com os braços cruzados. Alguns casais passeavam ao longo da praia, e
perto da orelha da jovem encontrava-se a boca de quem a guiava carinhosamente. Cabras
felpudas saltavam de rocha em rocha, guardadas por um jovem pastor que se quedava sobre uma
elevação, com uma mão na cintura, apoiando a outra num comprido cajado; um chapeuzinho de
abas dobradas para trás cobria-lhe os crespos cabelos castanhos.
“Mas isso é um encanto!”, pensou Hans Castorp com toda a sinceridade. “É realmente
delicioso e cativante! Como são formosos, sadios, sensatos e felizes! Sim, não somente têm
beleza, mas também seriedade e graça íntima. É isso o que tanto me comove e faz com que me
apaixone por eles: o espírito e a mentalidade que formam a base do seu ser e lhes determinam a
união e a convivência!” Referia-se àquela grande amabilidade e às considerações iguais para todos,
que os filhos do sol usavam nas suas relações recíprocas. Existia ali um respeito natural,
escondido sob o sorriso que uns demonstravam aos outros, a cada passo, um respeito
manifestado quase imperceptivelmente, e que todavia tinha a sua raiz numa formação comum a
todos, numa idéia arraigada neles. Havia até um quê de dignidade e de rigor, mas todo diluído na
alegria, e que se tornava sensível nos seus atos somente em forma de certa inefável influência
espiritual, fundada numa seriedade nada sombria e numa piedade razoável, embora não faltasse a
tudo isso o lado cerimonioso. Pois ali, numa pedra redonda coberta de musgo, estava sentada
uma jovem mãe, que retirara de um dos ombros o vestido pardo e saciava a sede do filhinho. E
todos os que passavam perto dela saudavam-na de um modo especial que resumia tudo quanto
ficava tão expressivamente inexprimido na atitude geral dessas criaturas. Os jovens, voltando-se
para a mãe, cruzavam ligeiramente os braços sobre o peito, num gesto rápido e formal, e
inclinavam a cabeça com um sorriso. As moças apenas esboçavam uma genuflexão, semelhante
àquela com que os devotos na igreja passam pelo altar-mor; mas, ao mesmo tempo, faziam-lhe
cordiais, alegres e vivos sinais com a cabeça, e essa mistura de reverência comedida e de amizade
jovial, assim como a vagarosa brandura com que a mãe, que apertava o seio com o indicador,
para ajudar o pequerrucho, tirava dele os olhos e retribuía os cumprimentos com outro sorriso –
tudo isso arrebatava a alma de Hans Castorp. Não se cansava de olhar e, contudo, se perguntava,
angustiado, se lhe era permitido olhar, se esse ato de encarar aquela felicidade civilizada, cheia de
sol, não era um crime para ele, o intruso, que se sentia lerdo com os seus sapatos, e falta de
nobreza e garbo.
Parecia não haver inconveniente. Um belo menino, cuja espessa cabeleira penteada para
um lado avançava além da testa e caía sobre a fronte, achava-se embaixo do lugar onde Hans
Castorp estava sentado. Com os braços cruzados sobre o peito, mantinha-se distante dos
companheiros, sem dar mostras de tristeza ou de rancor, senão apenas de perfeita calma. E o
rapaz divisou Hans Castorp; fixou nele o olhar, e seus olhos passaram entre o homem que estava
à espreita e as imagens da praia, observando o espião. De repente, porém, levantou a vista,
enxergando ao longe, por cima do estranho, e de um instante para outro desapareceu do lindo
rosto de linhas clássicas, ainda meio pueris, o sorriso comum a toda essa gente que tinha a sua
origem numa consideração cortês e fraternal. Sem que o cenho se tivesse anuviado, assomou-lhe
no semblante uma gravidade como que pétrea, inexpressiva, insondável, um retraimento frio
como a morte, que encheu o desassossegado Hans Castorp de pálido terror, mesclado de um
vago pressentimento da significação dessa atitude.
Também ele virou a cabeça... Poderosas colunas sem base, compostas de blocos
cilíndricos e de cujas junturas brotava musgo, erguiam-se atrás dele; as colunas de um pórtico de
templo, até o qual conduziam duas escadarias, com um vão entre si. Hans Castorp encontrava-se
sentado num dos degraus. Com o coração opresso, levantou-se, desceu a escada, dirigindo-se
para o lado, e entrou numa extensa galeria. Atravessou-a e seguiu um caminho lajeado que o
conduziu até outros propileus. Passou também por estes e defronte de si viu o templo maciço,
cinzento-esverdeado, corroído pela inclemência do tempo. Escadas íngremes levavam às
fundações. O largo frontão repousava sobre os capitéis de vigorosas e quase atarracadas colunas,
que se adelgaçavam pata cima, e em cuja estrutura um ou outro dos tambores canelados, que se
deslocara, formava uma saliência lateral. Laboriosamente, às vezes recorrendo ao apoio das mãos,
por entre suspiros que lhe arrancava a crescente angústia do coração, Hans Castorp galgou os
altos degraus e alcançou a floresta das colunas do peristilo. Esta era muito profunda, e o jovem
passeou por ela como por entre os troncos de um bosque de faias à beira do mar descorado.
Evitou penetrar-lhe no âmago e esquivou-se do centro. Mas terminou voltando-se para ele e
chegou ao lugar onde se separavam as fileiras de colunas. Ali deparou com um grupo de estátuas,
duas figuras de mulheres talhadas em pedra, sobre um pedestal, mãe e filha, segundo parecia;
uma, sentada, mais idosa, mais digna, muito branda e divina, mas com sobrancelhas lamentosas
acima dos olhos vazios, sem pupilas, trajava uma túnica flutuante, um manto pregueado e um véu
que lhe cobria os cabelos ondulados de matrona; a outra, de pé, abraçada maternalmente pela
primeira, com um rosto redondo de donzela, ocultava braços e mãos juntos nas dobras do
vestido.
Enquanto Hans Castorp contemplava o grupo, o seu coração, por motivos obscuros,
fazia-se ainda mais pesado, mais temeroso e mais opresso de presságios. Mal se animava e,
contudo, se via forçado a contornar as figuras para franquear, atrás delas, a segunda colunata
dupla. Aí encontrou aberta a porta brônzea do santuário, e os joelhos do pobre jovem quase
cederam diante do espetáculo que se lhe oferecia aos olhos estarrecidos. Duas mulheres grisalhas,
seminuas, de cabelos desgrenhados, com seios pendentes de bruxa e mamilos do comprimento
de um dedo, entregavam-se lá dentro, no meio de chamejantes braseiros, a manipulações
horrorosas. Por cima de uma bacia esquartejavam uma criancinha. Dilaceravam-na com as mãos,
num furioso silêncio – Hans Castorp divisou os finos cabelos louros poluídos de sangue –, e
devoravam os pedaços. Os frágeis ossinhos estalavam entre as suas presas, e o sangue pingava
dos lábios selvagens. Um pavor gélido paralisou Hans Castorp. Fez menção de tapar os olhos
com as mãos e não conseguiu. Quis fugir e não pôde. E elas acabavam de descobri-lo, no meio
da sua atividade abominável. Agitaram os punhos ensanguentados, ralhando sem voz, mas com
extrema vulgaridade, em termos obscenos, na gíria da terra de Hans Castorp. Este se sentiu mal,
pior do que nunca. Desesperadamente esforçou-se por sair do lugar – e na mesma posição em
que, durante essa tentativa, caíra de lado junto a uma coluna, encontrou-se na neve, ao pé do
galpão, deitado sobre um braço, com a cabeça encostada e as pernas providas de esquis
estendidas à sua frente. Ainda lhe ecoavam nos ouvidos aquelas vozes surdas, proferindo
invectivas medonhas, e o terror glacial que se apoderara dele continuava a possuí-lo.
No entanto, não chegou a acordar, no sentido próprio da palavra. Apenas piscou os
olhos, aliviado por se ver livre dessas megeras atrozes. Mas não tinha certeza e também pouco lhe
importava saber se se achava estatelado junto a uma coluna de templo ou a um galpão. Em certo
sentido prosseguia sonhando, se não em imagens, ao menos em pensamentos, porém de forma
não menos atrevida e curiosa.
Era imensamente difícil a libertação dos laços que o enredavam e procuravam mantê-lo
deitado. Mas o impulso que Hans Castorp soubera tomar era mais forte. Bruscamente soergueu
se no cotovelo; com um esforço enérgico dobrou os joelhos; puxando, apoiando-se, fazendo
ginástica, conseguiu pôr-se de pé. Calcou a neve com os esquis; bateu os braços em torno das
costelas e sacudiu os ombros, enquanto lançava olhares nervosos e forçados em todas as direções
e para o céu, onde um pálido azul assomava entre nuvens cinzento-azuladas, fininhas como um
véu, que singravam devagar, descobrindo o delgado crescente da lua. Leve crepúsculo. Nada de
tempestade nem de nevada. A parede rochosa do outro lado, com a encosta hirsuta de pinheiros,
era plena e claramente visível, e jazia em paz. A sombra subia até meia altura, ao passo que a
metade superior estava iluminada num delicadíssimo cor-de-rosa. Que é que havia? Que se
passava com o mundo? Era manhã? E ficara ele deitado na neve durante toda a noite, sem
morrer de congelamento, ao contrário do que se lia nos livros? Nenhum dos seus membros
estava entanguido, nenhum deles se fragmentava com um ruído agudo, enquanto ele calcava o
solo, agitando-se e batendo-se, o que fazia sem cessar. Mas ao mesmo tempo seus pensamentos
esforçavam-se por examinar a fundo a situação. Sem dúvida, as orelhas, as extremidades das
mãos e os dedos dos pés achavam-se entorpecidos, não, porém, num grau mais intenso do que
muitas vezes lhe acontecera em noites de inverno, durante o repouso na sacada. Uma tentativa de
tirar o relógio foi coroada de êxito. Ele andava. Não parara, como costumava fazer quando Hans
Castorp se esquecia de lhe dar corda à noite. Estava ainda longe de marcar cinco horas. Faltavam
doze ou treze minutos. Inacreditável! Seria possível que somente houvesse levado uns dez
minutos ou pouco mais, estendido na neve, remoendo tantas imagens deleitantes ou medonhas,
tantos pensamentos ousados, enquanto o tumulto hexagonal sumia com a mesma rapidez com
que chegara? Nesse caso tivera uma sorte notável, do ponto de vista do regresso seguro. Pois
duas vezes os seus sonhos e as suas fantasias haviam tomado um rumo que o fizera sobressaltar
se reanimado: a primeira vez, de horror; a segunda, de alegria. Parecia que a vida tinha boas
intenções com seu filho enfermiço, extraviado nas alturas...
Fosse como fosse, raiasse para ele a manhã ou a tarde – indubitavelmente tratava-se ainda
do crepúsculo –, em todo caso não existia nenhum obstáculo, nas circunstâncias gerais ou no
estado particular de Hans Castorp, que o pudesse impedir de regressar. E foi o que fez. Com um
arranco grandioso, quase em linha reta, encaminhou-se ao vale, onde, ao chegar, já encontrou as
lâmpadas acesas, embora os restos da luz do dia, conservada pela neve, lhe tivessem bastado
plenamente durante o caminho. Desceu pelo Bremenbühl, ao longo do bosque, e às cinco e meia
alcançou a “aldeia”, onde deixou os esquis na casa do merceeiro. Foi descansar no cubículo de
Settembrini, no sótão, e contou como se deixara surpreender pela tempestade de neve. O
humanista mostrou-se sumamente alarmado. Ergueu a mão por cima da cabeça; censurou-o
energicamente pela perigosa imprudência e não tardou em acender o crepitante fogareiro de
álcool, a fim de preparar para o jovem exausto um café, cuja força, no entanto, não impediu que
Hans Castorp adormecesse na cadeira.
Uma hora mais tarde, a atmosfera ultracivilizada do Berghof circundava-o com sua aura
acariciadora. Por ocasião do jantar, Hans Castorp mostrou enorme apetite. O que sonhara estava
em vias de apagar-se. O que pensara já não o compreendia naquela mesma noite.
continua pág 325...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Neve (d)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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