em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
continuando...
O Sr. de Guermantes, que atingira seu fim secreto, examinou com o rabo do olho, no rosto dos convivas, a impressão causada pela frase da duquesa.
- Aliás, acho um encanto particular nas correspondências - continuou, apesar da
interposição da cara do príncipe de Agrigento, a dama forte em literatura que possuía tão curiosas
cartas em seu castelo.
- Já repararam que muitas vezes as cartas de um escritor são superiores ao resto de sua
obra? Como se chama então esse autor que escreveu Salambô?
Eu teria preferido não responder, para não prolongar a conversa, mas senti que
desgostaria o príncipe de Agrigento, que parecia saber perfeitamente de quem era Salambô e me
deixar, por pura cortesia, o prazer de declinar o seu nome, mas estava num embaraço cruel.
- Flaubert - acabei por dizer, mas o sinal de assentimento feito pela cabeça do príncipe
abafou o som de minha resposta, de modo que minha interlocutora não soube exatamente se eu
dissera Paul Bert ou Fulbert, nomes que não a deixaram inteiramente satisfeita.
- Em todo caso - redarguiu ela -, como sua correspondência é curiosa e superior a seus
livros! Ela o explica, aliás, pois vê-se, por tudo o que se diz ali sobre o trabalho que dá fazer um
livro, que não se tratava de um verdadeiro escritor, um homem dotado.
- Já que falam de correspondências, acho admirável a de Gambetta - disse a duquesa de
Guermantes, para mostrar que não temia interessar-se por um proletário e um radical.
O Sr. de Bréauté compreendeu todo o espírito dessa audácia, olhou ao redor com um olhar
a um tempo "tocado", enternecido, após o que enxugou o monóculo.
- Deus, é terrivelmente enfadonho A Filha de Roland - disse o Sr. de Guermantes, com a
satisfação que lhe dava o sentimento de sua superioridade sobre uma obra com que tanto se
aborrecera, talvez também pelo suave mari magno que experimentamos, no meio de um bom
jantar, em nos lembrarmos de tão terríveis serões.
- Mas apresentava alguns bons versos, um sentimento patriótico. - Insinuei que não sentia
qualquer admiração pelo Sr. de Bornier.
- Ah, o senhor tem algo a censurar-lhe - indagou com curiosidade o duque, que sempre
achava, quando falavam mal de um homem, que isto se devia a um sentimento pessoal, e,
quando bem de uma mulher, que indicava o princípio de um romancezinho.
- Vejo que o senhor tem algo contra ele. Que foi que ele lhe fez? Conte-nos! Mas sim, deve
haver algum ressentimento entre os senhores, visto que o está difamando. A Filha de Roland é
uma peça comprida, mas muito penetrante.
- "Penetrante" é bem adequado para um autor tão odorífero - interrompeu ironicamente a
Sra. de Guermantes. - Se este pobre rapaz alguma vez se encontrou com ele, é compreensível
que esteja com ele pelo nariz!
- Aliás, devo confessar a Vossa Alteza - retornou o duque, dirigindo-se à princesa de
Parma que, A Filha de Roland à parte, em literatura e até em música, sou terrivelmente antiquado,
e não há rouxinol por mais velho que não me agrade. Talvez não acredite, mas de noite, se minha
mulher se senta ao piano, acontece-me pedir-lhe que toque uma velha ária de Auber, de
Boieldieu, e até de Beethoven. É disto que eu gosto. Quanto a Wagner, faz-me dormir
imediatamente.
- Você está errado retrucou a Sra. de Guermantes -; apesar da extensão insuportável,
Wagner é dotado de gênio. Lohengrin é uma obra prima. Mesmo no Tristão existe aqui e ali uma
página curiosa. E o Coro das fiandeiras do Navio Fantasma é pura maravilha.
- Não é, Babal? - disse o Sr. de Guermantes, dirigindo-se ao Sr. de Bréauté -, nós
preferimos; os encontros de nobre companhia dão-se todos no encanto desta casa. É delicioso. E
Fra Diavolo, e A Flauta Mágica, e O Chalé, e As Bodas de Fígaro, e Os Diamantes da Coroa, isso
é que é música! Em literatura, é a mesma coisa. Assim, adoro Balzac, O Baile de Sceaux, Os
Moicanos de Paris."
- Ah, meu caro, se você entra em luta por Balzac não vai terminar tão cedo. Guarde isso
para um dia em que Mémé estiver presente. Este é melhor ainda, sabe-o de cor.
Irritado com a interrupção da mulher, o duque manteve-a por instante sob o fogo de um
silêncio ameaçador. Entretanto, a Sra. d'Arpajon trocara com a princesa de Parma, sobre a poesia
trágica e a poesia em geral, frases que não me chegaram distintamente, quando ouvi esta,
pronunciada pela Sra. d'Arpajon:
- Oh, tudo o que Vossa Alteza quiser, concordo que ele nos faz ver feio o mundo porque
não sabe distinguir entre o que é feio e o que é belo, ou melhor, porque sua vaidade insuportável
lhe faz acreditar que tudo o que diz é belo; reconheço com Vossa Alteza que, na peça em
questão, há coisas ridículas, inteligíveis, falta de gosto, que ela é difícil de compreender, que, para
ler, dá tanto trabalho como se estivesse escrita em russo ou em chinês, pois evidentemente trata
se de tudo menos de francês; mas, quando a gente se dá a esse trabalho, como fica
recompensada, há tanta imaginação! -
Desse pequeno discurso eu não ouvira o começo. Acabei por entender não só que o poeta
incapaz de distinguir o belo do feio era Victor Hugo, mas ainda que a poesia que dava tanto
trabalho para compreender como se fosse russo ou chinês era: Quando a criança aparece, o
círculo familiar aplaude em grandes gritos...peça do primeiro período do poeta, e que está ainda
mais próximo da Sra. Deshoulieres que do Victor Hugo da Legenda dos Séculos. Longe de achar
ridícula a Sra. d'Arpajon, eu a vi (a primeira daquela mesa tão real, tão qualquer, onde eu me
sentara com tanta decepção), eu a vi com os olhos do espírito, sob aquela touca de rendas, de
onde se escapam os anéis redondos de longos caracóis, usados pela Sra. de Rémusat, a Sra. de
Broglie, a Sra. de Saint-Aulaire, todas essas mulheres tão distintas que, em suas cartas
encantadoras, citam, com tanta sabedoria e pertinência, Sófocles, Schiller e a Imitação, mas a
quem as primeiras poesias dos românticos causavam esse horror e esse cansaço, para minha
avó inseparáveis dos últimos versos de Stéphane Mallarmé.
- A Sra. d'Arpajon gosta muito de poesia - disse à Sra. de Guermantes a princesa de
Parma, impressionada com o tom ardente com que o discurso fora pronunciado.
- Não, ela não entende absolutamente nada de poesia - respondeu em voz baixa a Sra. de
Guermantes, que aproveitou que a Sra. d'Arpajon, respondendo a uma objeção do general de
Beautreillis, estava por demais ocupada com as próprias palavras para ouvir as que a duquesa
sussurrava. - Ela se tornou literária desde que foi abandonada. Devo dizer a Vossa Alteza que eu
é que suporto o peso de tudo isso, porque é junto a mim que ela vem gemer de cada vez que
Basin não vai vê-la, isto é, quase todos os dias. Não é absolutamente culpa minha se ela o
entedia, não posso forçá-lo a ir à casa dela, embora preferisse que ele lhe fosse um pouco mais
fiel, pois assim a veria um pouco menos. Mas ela o aborrece, o que não é extraordinário. Não é
má pessoa, mas é entediante a um ponto que a senhora não pode imaginar. Todos os dias, ela
me dá tanta dor de cabeça que sou obrigada a tomar de cada vez uma pílula de piramido. E tudo
isso porque aprouve a Basin, durante um ano, me enganar com ela. E, com tudo isso, ter um
lacaio que está apaixonado por outra mocinha à toa e que se mostra de cara amarrada se não
peço a essa jovem que deixe um momento a sua rendosa calçada para vir tomar chá comigo! Oh,
a vida é um tédio -, concluiu langorosamente a duquesa.
A Sra. d'Arpajon aborrecia o Sr. de Guermantes, principalmente porque ele se tornara,
desde pouco, o amante de uma outra, que eu fiquei sabendo ser a marquesa de Surgis-le-Duc.
Era justamente o lacaio privado de seu dia de folga quem estava servindo à mesa. E
pensei que, triste ainda, ele o fazia muito perturbado, pois reparei que, passando os pratos ao Sr.
de Châtellerault, se desempenhava tão desajeitadamente da tarefa que o cotovelo do duque
esbarrou diversas vezes no cotovelo do criado. O jovem duque de modo algum se zangou com o
lacaio enrubescido; pelo contrário, olhou-o risonho com seu olhar azul-celeste. O bom humor não
me pareceu, da parte do conviva, prova de bondade. Mas a insistência de seu riso me fez
acreditar que, evitando a par da decepção do criado, talvez, ao contrário, experimentasse alegria
maldosa.
- Mas, minha cara você sabe que não é uma descoberta que está fazendo ao nos falar de
Victor Hugo - continuou a duquesa, dirigindo-se desta vez à Sra. d'Arpajon, a quem acabava de
ver virar a cabeça inquieta. - Não espera lançar este estreante. Todos sabem que ele tem talento.
O que é detestável é o Victor Hugo do fim, A Legenda dos Séculos não sei mais os títulos. Mas As
Folhas de Outono, Os Cantos do Crepúsculo; são muitas vezes de um poeta, de um verdadeiro
poeta. Até nas Contemplações - acrescentou a duquesa, a quem os interlocutores não ousavam
contradizer, e não sem razão -, ainda há coisas bonitas. Mas confesso acho melhor não me
aventurar depois do Crepúsculo! E depois, nas belas poesias de Victor Hugo, e elas existem,
encontra-se muitas vezes mesmo uma ideia profunda.
E com um sentimento de justiça, fazendo sair a triste ideia de todas as forças de sua
entonação, colocando-a além da voz e fixando à sua frente um olhar atraente e sonhador, a
duquesa disse lentamente:
- Olhem: “A mágoa é um fruto. Deus não a faz crescer. Sobre o galho ainda frágil para
carregá-la”, ou então, ainda: “Os mortos bem pouco duram... Ai de mim, tombam em pó no
túmulo, menos depressa que em nosso coração!”
E, ao passo que um sorriso desencantado franzia com graciosa sinuosidade a sua boca
dolorosa, a duquesa fixou na Sra. d'Arpajon o olhar pensativo de seus olhos claros e
encantadores. Eu começava a conhecê-los, bem como a sua voz, tão asperamente saborosa, tão
pesadamente arrastada. Nesses olhos e nessa voz, eu encontrava muito da natureza de
Combray. Certo, na afetação com que essa voz fazia aparecer por instantes uma rudeza de solo,
havia muitas coisas: a origem toda provinciana de um ramo da família de Guermantes, que
permanecera mais tempo localizado, mais atrevido, mais selvagem, mais provocante; e depois, o
hábito de pessoas verdadeiramente distintas e de pessoas de espírito que sabem que a distinção
não está em falar com os cantos da boca, e também de nobres que confraternizaram mais de boa
vontade com seus camponeses do que com os burgueses; particularidades todas que a posição
de rainha da Sra. de Guermantes lhe permitira exibir mais facilmente, desfraldar as velas. Parece
que essa mesma voz existia em suas irmãs, que ela detestava e que, menos inteligentes e quase
burguesmente casadas, se se pode empregar este advérbio quando se trata de nobres obscuros,
enfurnados em sua província ou em Paris, num faubourg Saint-Germain sem brilho, também
possuíam essa voz, mas tinham-na refreado, corrigido, adocicado tanto quanto podiam, assim
como é bem raro que um dentre nós tenha o topete de sua originalidade e não se aplique em
assemelhar-se aos modelos mais elogiados. Mas Oriane era de tal modo mais inteligente, de tal
modo mais rica, e sobretudo de tal modo mais na moda do que suas irmãs, tivera, como princesa
des Laumes, tanta influência junto ao príncipe de Gales, que havia compreendido que essa voz
discordante era um atrativo, e fizera dessa voz, na ordem da sociedade, com a audácia da
originalidade e do êxito, aquilo que, na ordem do teatro, uma Réjane, uma Jeanne Granier (de
resto, se comparação, naturalmente, entre o valor e o talento destas duas artista)- fizeram da sua
algo de admirável e distintivo que talvez as irmãs de Réjae de Granier, que ninguém jamais
conheceu, tentaram disfarçar como um defeito. Há tantos motivos para ampliar sua originalidade
local, os escritores preferidos da Sra. de Guermantes - Mérimée, Meilhac e Halévy tinham vindo
ajuntar, com o respeito ao "natural", um desejo de prosaísmo pelo qual ela atingia a poesia, e um
espírito puramente de sociedade que ressuscitava paisagens diante de mim. Além disso, a
duquesa, acrescentando a essas influências um interesse artístico, era bem capaz de ter
escolhido, para maior parte das palavras, a pronúncia que lhe parecia a mais belle-de-France, a
mais da Champagne, visto que, se não totalmente na medida de sua cunhada Marsantes, ela
quase que só empregava o puro vocabulário de que poderia ter se servido um velho escritor
francês. E, quando se estava cansado da compósita e variada linguagem moderna, era, mesmo
sabendo que ela exprimia menos coisas, um grande repouso ouvir a conversa da Sra.Guermantes
quase o mesmo repouso, quando se estava a sós com ela, ainda restringia e aclarava o seu fluxo,
do que o que se experimenta ao ouvir uma velha canção. Então, olhando e ouvindo a Sra. de
Guermantes, eu via, prisioneiro da permanente e tranqüila tarde de seus olhos, um belle-de
France ou da Champagne estender-se, azulado, oblíquo, com mesmo ângulo de inclinação que
possuía em Saint-Loup. Assim, por essas diversas formações, a Sra. de Guermantes exprimia a
um tempo a mais antiga França aristocrática, e depois, muito mais tarde, o modo como a duquesa
de Broglie poderia ter desfrutado e censurado Victor Hugo sob a monarquia de Julho, enfim, um
vivo gosto pela literatura produzida por Mérimée e Meilhac. A primeira dessas formações me
agradava mais que a segunda, me auxiliava mais a reparar a decepção da viagem e da chegada
a esse faubourg Saint-Germain, tão diferente daquilo que eu havia pensado; mais preferia ainda a
segunda à terceira. Pois, ao passo que a Sra. de Guermantes era Guermantes quase que sem
querer, seu pailleronismo (derivado de Édouard Pailleron); seu gosto por Alexandre Dumas Filho
eram refletidos e intencionais. Como esse gosto era o oposto ao meu, ela fornecia literatura ao
meu espírito quando me falava do faubourg Saint-Germain, e nunca me parecia tão estúpida ao
faubourg Saint-Germain quando me falava de literatura. Comovida pelos últimos versos, a Sra.
d'Arpajon exclamou:
- Estas relíquias do coração também possuem seu pó! Senhor, precisa escrever-me isto no
meu leque - disse ela ao Sr. de Guermantes.
- Pobre mulher, ela me dá pena - disse a princesa de Parma à Sra. de Guermantes.
- Não; que Vossa Alteza não se enterneça, pois ela não o merece. - Mas... perdão por lhe
dizer isto... contudo, ela o ama de verdade! - Mas de modo algum; ela é incapaz disso; julga que o
ama como julga neste instante que cita Victor Hugo, quando está dizendo um verso de Musset.
Olhem - acrescentou a duquesa com um tom melancólico -, ninguém mais que eu se sentiria
tocado por um sentimento verdadeiro. Porém vou lhes dar um exemplo. Ontem, ela fez uma cena
terrível para Basin; Vossa Alteza talvez creia que fosse porque ele ama outras mulheres, porque
ele já não a ama; de modo algum, era porque ele não quer apresentar seus filhos ao Jockey!
Vossa Alteza acha que isso seja atitude de pessoa enamorada? Não! Digo mais - acrescentou a
Sra. de Guermantes, incisiva: - é uma pessoa de rara insensibilidade.
Entretanto, foi com os olhos brilhantes de satisfação que o Sr. de Guermantes ouvira sua
mulher falar de Victor Hugo "à queima-roupa" e citar-lhe aqueles poucos versos. Por muito que a
duquesa o irritasse, ele se sentia orgulhoso dela em momentos como aquele. Oriane é
verdadeiramente extraordinária. Pode falar sobre tudo, leu tudo. Ela não podia adivinhar que a
conversa recairia esta noite sobre Victor Hugo. Sobre qualquer assunto que a interroguem, ela
está pronta, pode enfrentar os mais sábios. Este rapaz deve estar subjugado.
- Mas mudemos de assunto - acrescentou a Sra. de Guermantes porque ele é muito
suscetível. Você deve me achar muito fora de moda - continuou, dirigindo-se a mim: sei que hoje
em dia é considerado fraqueza amar as idéias em poesia, a poesia em que existe um
pensamento.
- Fora de moda? - disse a princesa de Parma com a leve surpresa que lhe causava essa
vaga novidade inesperada, embora soubesse que a conversa da duquesa de Guermantes lhe
reservava sempre aqueles choques sucessivos e deliciosos, aquele espanto sufocante, aquela
saudável fadiga após os quais pensava instintivamente na necessidade de tomar um escalda-pés
num reservado e caminhar depressa para "fazer a reação".
- De minha parte não, Oriane - disse a Sra. de Brissac -; não censuro Victor Hugo por ter
idéias, muito pelo contrário; mas por ir buscá-las no que é monstruoso. No fundo, foi ele quem nos
habituou ao feio e literatura. Já existe muita feiúra na vida. Por que, pelo menos, não esquecê-Ia
enquanto estamos lendo? Um espetáculo penoso de que nos desviaríamos na vida, eis o que
atrai Victor Hugo.
- Mesmo assim, Victor Hugo não é tão realista quanto Zola? - perguntou a princesa de
Parma-
O nome de Zola não fez mover um só músculo ao rosto do Sr. de Beautreillis. O
antidreyfusismo do general era profundo demais para que buscasse exprimi-lo. E seu silêncio
benevolente, quando tais assuntos eram abordados, tocava os profanos com a mesma delicadeza
que mostram um padre ao evitar falar-nos de nossos deveres religiosos, um financista ao não se
empenhar em recomendar-nos os negócios que dirige, um Hércules, a se mostrar afável e não
nos dar socos.
- Sei que o senhor é parente do almirante Jurien de La Graviere - disse-me com ar
entendido a Sra. de Varambon, dama de honra da princesa de Parma, mulher excelente porém
tacanha, indicada à princesa da Parma antigamente pela mãe do duque. Ela ainda não me dirigira
a palavra e jamais pude, depois, apesar das admoestações da princesa e de meus próprios
protestos, lhe tirar da cabeça a ideia de que eu tinha alguma coisa a ver com o almirante
acadêmico, que me era totalmente desconhecido. A obstinação da dama de honra da princesa de
Parma em ver em mim um sobrinho do almirante Jurien de La Graviere tinha em si mesma algo de
vulgarmente risível. Mas o erro cometido por ela não passava do tipo excessivo e ressequido de
tantos erros mais leves, mais nuançados, involuntários ou intencionais, que acompanham o nosso
nome na "ficha" que a sociedade estabelece a nosso respeito. Lembre-se de que um amigo dos
Guermantes, tendo vivamente manifestado seu desejo de me conhecer, deu-me como motivo o
fato de que eu conhecia muito bem a sua prima, Sra. da Chaussegros, "ela é encantadora e gosta
muito do senhor". Tive o escrúpulo, totalmente vão, de insistir em que ele estava equivocado, que
eu não conhecia a Sra. de Chaussegros. "Então é a sua irmã que o senhor conhece, dá no
mesmo. Ela o encontrou na Escócia." Eu jamais fora à Escócia e, por honestidade, inutilmente
informei disso o meu interlocutor. Fora a própria Sra. de Chaussegros quem dissera que me
conhecia, e, sem dúvida, acreditavam de boa-fé, devido a uma primeira confusão, pois ela jamais
deixou de me estender a mão ao se encontrar comigo. E, como, em suma, o meio que eu
frequentava era exatamente o mesmo do da Sra. de Chaussegros, minha humildade não fazia
sentido. Que eu fosse íntimo dos Chaussegros era literalmente um erro, mas, do ponto de vista
social, tinha equivalência à minha posição, se se pode falar de posição no caso de um homem
jovem como eu. O amigo dos Guermantes, ainda que só dissesse falsidades a meu respeito, não
me rebaixou nem me valorizou (do ponto de vista mundano) na ideia que continuou a fazer de
mim. E, afinal de contas, para aqueles que não estão representando uma comédia, o tédio de
viver sempre a mesma personagem é dissipado num instante, como se subíssemos ao palco,
quando uma pessoa faz de nós uma ideia falsa, julga que temos relação com uma senhora que
não conhecemos e somos notados por tê-la conhecido no decurso de uma viagem encantadora
que jamais fizemos. Erros multiplicativos e amáveis quando não têm a inflexível rigidez do que
cometia, e continuou a cometer vida afora, apesar de minhas negativas, a imbecil dama de honor
da Sra. de Parma, presa para sempre na crença de que eu era parente do aborrecido almirante
Jurien de La Graviere.
- Ela não é muito forte - disse-me o duque -; e depois, não precisa de muitas libações;
creio-a ligeiramente sob a influência de Baco. -
Na verdade, a Sra. de Varambon só bebera água, mas o duque apreciava usar suas
locuções favoritas
- Mas Zola não é um realista, Alteza! É um poeta! - afirmou a duquesa de Guermantes,
inspirando-se em estudos críticos que havia lido naqueles últimos anos e adaptando-os ao seu
temperamento pessoal. Agradavelmente sacudida até aqui, no curso do banho de espírito, um
banho para si mesma, e que tomava nessa noite, julgando que lhe fosse particularmente salutar,
deixando-se levar pelos paradoxos que, um após outro, iam jorrando diante deste, mais tremendo
que os outros, a princesa de Parma saltou, com receio de ser derrubada. E foi com voz
entrecortada, como se estivesse sem fôlego, que exclamou:
- Zola, um poeta!
- Sim - respondeu rindo a duquesa, encantada com aquele efeito de sufocação. - Que
Vossa Alteza veja bem como ele engrandece tudo o que toca. Poderá me dizer que ele toca
apenas naquilo que... traz felicidade! Porém faz disso algo de imenso! Ele possui o estrume épico!
É o Homero da lixeira! Não tem suficientes maiúsculas para escrever a palavra de Cambronne.
continua na página 222...
________________
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - atingira seu fim secreto)
Volume 7
Nenhum comentário:
Postar um comentário