Elias Canetti
MALTA E HISTÓRIA
Os Ingleses
É aconselhável começar-se pela contemplação de uma nação que
pouco alardeia acerca de si própria e que, no entanto, indubitavelmente
segue ostentando sempre o mais estável sentimento nacional que o
mundo de hoje conhece: a Inglaterra. Todos sabem o que o mar significa
para o inglês. Muito pouco conhecido é, porém, exatamente de que
forma seu muito discutido individualismo e sua relação com o mar se
inter-relacionam. O inglês vê-se a si próprio como um capitão a bordo
de um navio, juntamente com um pequeno grupo de homens — a seu
redor e sob seus pés, o mar. Está quase sozinho; mesmo na qualidade de
capitão, encontra-se isolado da tripulação em muitos aspectos.
O mar, contudo, é dominado — e essa ideia é decisiva. Sobre sua
gigantesca superfície, os navios são solitários qual indivíduos isolados,
cada um personificado na figura de seu capitão; o absoluto poder de
comando deste é incontestável. O curso que ele toma é a ordem que dá
ao mar, e somente o cumprimento mediado dessa ordem pela
tripulação dissimula o fato de que é, na verdade, o mar que tem de
obedecer. O capitão determina a meta, e o mar, à sua maneira viva, o
carrega para lá, não sem tempestades e outras reações. Dada a grandeza
do oceano, o que importa é a quem ele obedece com maior frequência.
Sua obediência é facilitada se a meta é uma colônia inglesa. O mar é,
então, como um cavalo que conhece bem o seu caminho. Os navios dos
outros parecem-se mais com cavaleiros ocasionais, aos quais se
emprestou o cavalo — mas apenas para, mais tarde, de volta às mãos de
seu senhor, ele cavalgar muito melhor. O mar é tão grande, que importa
também o número de navios com os quais é embridado.
No que se refere a seu caráter, há que se considerar a quantas e quão
apaixonadas transformações o mar está sujeito. Em suas metamorfoses,
há mais variedade do que em todas as massas de animais com as quais os
homens geralmente lidam; e, comparadas ao mar, quão inofensivas e
estáveis são as florestas do caçador e as terras do camponês. O inglês
busca suas catástrofes no mar. Seus mortos, ele tem sempre de imaginá-los no fundo do mar. Este oferece-lhe, assim, as metamorfoses e o
perigo.
Sua vida em casa, o inglês a configura complementarmente ao mar: a
uniformidade e a segurança são seus traços essenciais. Cada um tem seu
lugar, o qual não deve ser abandonado por metamorfose alguma, a não
ser que se vá para o mar; e todos estão seguros tanto de seus costumes
quanto de suas posses.
continua página 257...
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Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e História: Os Ingleses
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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