Émile Zola
Tradução de Francisco Bittencourt
Tradução de Francisco Bittencourt
Segunda Parte
I
.A propriedade dos Grégoire, a Piolaine, ficava a dois quilômetros de Montsou, para leste, na estrada de Joiselle. Era um casarão quadrado, sem estilo, construído no começo do século passado. Das vastas terras que, no princípio, faziam parte da propriedade, apenas restavam uns trinta hectares rodeados de muros e de fácil conservação. Eram muito falados o pomar e a horta, célebres por seus frutos e legumes, tidos como os melhores da região. Não tinha parque; uma pequena mata tomava seu lugar. A alameda de velhas tílias, uma abóbada de folhagem de trezentos metros, desde o portão até a escadaria, era uma das curiosidades daquela planície rasa onde, de Marchiennes a Beaugnies, podiam-se contar as árvores.
Naquela manhã, os Grégoire levantaram-se às oito horas. De
ordinário, só saíam da cama uma hora mais tarde, dormindo muito e com
paixão, mas a tempestade noturna os enervara. E, enquanto o marido fora
logo ver se o vento não fizera estragos, a Sra. Grégoire descera à cozinha
em chinelos e roupão de flanela. Baixa, gorda, já com cinquenta e oito anos
de idade, conservava um largo rosto alvar de boneca, sob a brancura
resplandecente dos cabelos.
— Mélanie — disse ela à cozinheira —, já que a massa está pronta,
você bem que poderia fazer bolo esta manhã. A senhorita só se levantará
daqui a meia hora, e então teria bolos para comer com o chocolate. Que tal?
Seria uma surpresa...
A cozinheira, uma velha magra que. trabalhava na casa havia trinta
anos, pôs-se a rir.
— É verdade, seria uma bela surpresa. O fogão já está aceso, o
forno deve estar quente e a Honorine vai ajudar-me um pouco.
Honorine, uma moça dos seus vinte anos, recolhida criança e criada
pela casa, desempenhava agora as funções de camareira. Como criadagem,
além destas duas mulheres, havia somente o cocheiro, Francis, encarregado
dos trabalhos pesados. Um jardineiro e uma jardineira cuidavam dos
legumes, das frutas, das flores e do aviário. E, como o serviço era patriarcal,
de uma pacatez familiar, esse pequeno mundo vivia em harmonia.
A Sra. Grégoire, que tinha meditado na cama a surpresa do bolo,
ficou para ver a massa ser posta no forno.
A cozinha era muito grande e percebia-se a importância que davam
a essa peça pelo seu extremo asseio e pelo arsenal de caçarolas, utensílios e
potes que a enchiam; cheirava a comidas boas; as provisões chegavam a
não caber nas prateleiras e armários.
— E que fique bem tostado, sim? — recomendou a Sra. Grégoire,
passando à sala de jantar.
Apesar do calorífero que aquecia toda a casa, um fogo de hulha
alegrava aquela sala; luxo, nenhum: a mesa grande, as cadeiras, um
aparador de mogno e apenas duas cômodas poltronas denunciavam o amor
pelo conforto, as longas digestões felizes. O salão nunca era usado; ficava
se ali, em família.
Nesse momento, entrava o Sr. Grégoire, vestindo um casaco grosso
de fustão, corado ele também para os seus sessenta anos, de largas feições
honestas e bondosas sob a neve dos seus cabelos encaracolados. Tinha
estado com o cocheiro e o jardineiro: não houvera estragos importantes,
apenas um cano de chaminé caído. Costumava todas as manhãs ir dar uma
vista de olhos na Piolaine, que não era bastante grande para lhe inspirar
cuidados e de que tirava todas as alegrias de proprietário.
— E Cécile? — perguntou ele. — Não se levanta hoje?
— Não estou entendendo — respondeu a mulher. — Parecia-me tê-la ouvido mexer-se.
A mesa estava posta: três chávenas sobre a toalha branca.
Mandaram Honorine ver o que era feito da moça; a criada voltou logo a
descer, contendo o riso, abafando a voz como se estivesse falando lá em
cima, no quarto.
Se os senhores a vissem! Está dormindo, dormindo como um
Menino Jesus... Nem fazem idéia, é um prazer olhá-la.
Pai e mãe trocaram olhares enternecidos. Ele disse, sorrindo:
— Vens ver?
— Coitadinha! — murmurou ela. — Vou, sim.
Subiram juntos. O quarto era a única peça luxuosa da casa, forrado
de seda azul, com mobiliário laqueado de branco e filetes azuis, um
capricho de criança mimada satisfeito pelos pais. No alvor informe do leito,
à meia-luz filtrada pela abertura de um cortinado, a mocinha dormia, cabeça
apoiada no braço nu. Não era bonita, mas muito sadia, muito vigorosa,
madura mesmo nos seus dezoito anos, com uma carnação soberba, uma
frescura de leite, cabelos castanhos, rosto redondo, narizinho voluntarioso
afundado entre as faces. As cobertas tinham escorregado e podia-se vê-la
respirando, mas tão levemente que a respiração nem sequer movimentava
seu colo já desenvolvido.
— Foi esse maldito vento que a impediu de pregar olho — disse a
mãe, baixinho.
O pai, com um gesto, mandou que se calasse. Ambos se curvaram
para contemplar com adoração, na sua nudez de virgem, aquela filha tanto
tempo desejada, vinda tardiamente, quando não esperavam mais. Viam-na
perfeita, nunca demasiadamente gorda, jamais alimentando-se a contento.
A moça continuava dormindo, sem sentir a presença deles, seus
rostos colados ao dela. De repente, uma sombra ligeira perpassou naquelas
feições serenas. Temendo acordá-la, o casal saiu na ponta dos pés.
— Psiu! — fez o velho, já na porta. — Se ela não dormiu bem,
deixemo-la dormir.
— Quanto a queridinha quiser — apoiou a esposa. — Esperaremos.
Desceram, instalando-se nas poltronas da sala de jantar, enquanto as
criadas, rindo do sono pesado da moça, conservaram, sem reclamar, o
chocolate ao fogo. Ele apanhou um jornal e ela começou a tricotar uma
manta de lã para os pés. Estava muito quente; a casa voltou a cair no
silêncio.
A fortuna dos Grégoire, quarenta mil francos de rendimento
aproximadamente, consistia toda numa ação das minas de Montsou.
Contavam com bonomia suas origens: nascera com a criação da companhia.
Lá pelo começo do século passado, teve lugar, de Lille a
Valenciennes, uma febre de busca de hulha. O sucesso dos concessionários
que deviam mais tarde formar a companhia de Anzin virara todas as
cabeças. Em todas as comunas o solo era sondado, criavam-se sociedades e
as concessões surgiam como cogumelos.
Dos cabeçudos dessa época, porém, o Barão Desrumaux era o que,
certamente, deixara a lembrança da inteligência mais heróica. Durante
quarenta anos, batera-se sem fraquejar contra os mais variados obstáculos:
primeiras pesquisas infrutíferas, novas galerias abandonadas depois de
longos meses de trabalho, desabamentos que fechavam as escavações,
inundações súbitas que afogavam os operários, milhões de francos
perdidos; depois, as complicações da administração, o pânico entre os
acionistas, a luta com os proprietários das terras resolvidos a não
reconhecer as concessões régias, se recusassem negociar com eles em
primeiro lugar. Por fim, foi fundada a sociedade Desrumaux, Fauquenoi &
Cia., para explorar a concessão de Montsou, e as minas começaram a dar
pequenos lucros quando duas concessões vizinhas, a de Cougny,
pertencente ao Conde de Cougny, e a de Joiselle, pertencente à sociedade
Cornille & Jenard, quase a esmagaram com o peso terrível de sua
concorrência. Felizmente, em 25 de agosto de 1760, realizou-se um acordo
entre os três grupos de concessionários, reunindo as três firmas numa só. A
Companhia das Minas de Montsou foi então fundada, tal como existe até
hoje. Para a partilha dividiu-se, segundo o padrão monetário da época, a
propriedade total em vinte e quatro soldos, cada um dos quais se subdividia
em doze dinheiros, o que perfazia duzentos e oitenta dinheiros; e, como o
dinheiro era de dez mil francos, o capital representava uma soma de
aproximadamente três milhões. Desrumaux, agonizante mas vencedor,
recebeu nessa partilha seis soldos e três dinheiros.
Naquele tempo, o barão possuía a Piolaine, que tinha trezentos
hectares de extensão; a seu serviço, como administrador, encontrava-se
Honoré Grégoire, um rapaz da Picardia, bisavô de Léon Grégoire, pai de
Cécile. Na época da convenção de Montsou, Honoré, que escondia um pé
de-meia de uns cinqüenta mil francos, cedeu, tremendo, ante a fé inabalável
do patrão. Agarrou dez mil libras de belos escudos e comprou um dinheiro,
sempre com o terror de estar roubando os filhos dessa importância. Seu
filho Eugène, com efeito, recebeu dividendos bem reduzidos, e, como se
tinha aburguesado cometera a loucura de empatar os outros quarenta mil
francos da herança paterna numa associação desastrosa; assim, viveu quase
na miséria. Mas os lucros do dinheiro foram subindo; e a fortuna começou
com Félicien, que pôde realizar o sonho com que seu avô, o antigo
administrador, o embalara na infância: a compra da Piolaine desmembrada,
que obteve como bem nacional, por uma soma irrisória. Mas os anos
seguintes foram maus, teve de esperar pelo desenlace das catástrofes
revolucionárias, depois pela queda sangrenta de Napoleão. Foi portanto
Léon Grégoire quem lucrou, numa progressão espantosa, desde a jogada
tímida e nervosa do seu bisavô. Os parcos dez mil francos engrossaram,
multiplicaram-se com a prosperidade da companhia. A partir de 1820 eles
renderam cem por cento, dez mil francos; em 1844, produziram vinte mil;
em 1850, quarenta; enfim, havia dois anos que o dividendo subira à cifra
prodigiosa de cinquenta mil francos: o valor do dinheiro, cotado na Bolsa
de Lille em um milhão, centuplicara num século.
O Sr. Grégoire, a quem aconselharam que vendesse sua parte
quando essa cotação de um milhão foi atingida, recusou-se, com seu ar
sorridente e paternal. Seis meses mais tarde, explodia uma crise industrial e
o dinheiro voltou a cair para seiscentos mil francos. Mas ele continuou a
sorrir, sem sombra de preocupação: os Grégoire tinham agora uma fé
obstinada em sua mina; voltaria a subir, nem Deus era tão sólido. Aquela
crença religiosa misturava-se uma profunda gratidão por uma ação que,
havia um século, sustentava a família, que não fazia nada. Era como uma
divindade particular que seu egoísmo rodeava de um culto, a benfeitora do
lar, embalando-os no grande leito de preguiça, engordando-os na mesa da
gula. Isso ia passando de pai para filho: por que correr o risco de
descontentar a sorte, duvidando dela? No fundo daquela fidelidade havia
um terror supersticioso, o medo que o milhão dos juros derretesse de
repente, logo depois de ser trocado e guardado numa gaveta. Acreditavam
no mais seguro na terra, de onde uma população de mineiros, gerações de
famintos, extraía-o para eles, um pouco por dia, segundo as suas
necessidades.
continua na página 68...
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Segunda Parte - (I.a) um casarão quadrado, sem estilo
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu.
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura.
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.
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