quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (3.1 - O Mundo Fantasma do Continente Negro)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

3. Raça e Burocracia
     3.1 - O Mundo Fantasma do Continente Negro
          Até o fim do século XIX, os empreendimentos coloniais dos povos marítimos da Europa produziram duas formas principais de realizações: nos territórios recém-descobertos e escassamente povoados, a colonização por meio da fundação de centros populacionais, que adotavam as instituições políticas e legais do país de origem; e nos países bem conhecidos, embora exóticos, entre povos estrangeiros, o estabelecimento de entrepostos marítimos e comerciais, cuja função única era a de facilitar a troca, nem sempre muito pacífica, das riquezas do mundo. A colonização ocorreu na América e na Austrália, dois continentes que, sem cultura ou história próprias, haviam caído nas mãos dos europeus. Já os entrepostos comerciais foram característicos da Ásia, onde, durante séculos, os europeus não haviam demonstrado qualquer ambição de domínio permanente ou de conquista, não pretendendo dizimar a população nativa nem estabelecer-se de modo duradouro.[4] Ambas as formas desses empreendimentos ultramarinos surgiram ao cabo de um longo processo, que começou no século XVI. Desde então, alguns povos gradualmente conseguiram conquistar a sua independência, enquanto os entrepostos comerciais passavam das mãos de uma nação para as de outra, de acordo com o seu relativo poder ou fraqueza na Europa.
     O único continente que a Europa não havia tocado no decurso de sua história colonial era a África. Só seu litoral norte, habitado desde o século VIII por povos e tribos arabizados, era bem conhecido, por ter pertencido na Antiguidade à área de influência europeia. Demasiado povoadas para atrair colonizadores e demasiado pobres para serem exploradas, essas regiões sofreram todas as modalidades de domínio estrangeiro e todos os tipos de abandono anárquico, mas, por mais estranho que pareça, desde o declínio do império egípcio e a destruição de Cartago, nunca, até a década 60 do século XX, alcançaram independência genuína ou organização política estável. É certo que os países europeus tentavam, volta e meia, atravessar o Mediterrâneo e impor o seu domínio às terras árabes e o cristianismo aos povos muçulmanos, mas sem tratar os territórios da África do Norte como possessões ultramarinas: pelo contrário, aspiraram muitas vezes a incorporá-los aos respectivos países colonizadores. Essa antiga tradição, seguida ainda em tempos recentes pela Itália e pela França, foi quebrada na década de 80 do século XIX, quando a Inglaterra dominou o Egito para proteger o canal de Suez, mas, ainda assim, sem qualquer intenção de conquista ou de incorporação política do país, já que a Inglaterra, não se situando nas praias do Mediterrâneo, como a França ou a Itália, não podia de forma alguma estar interessada no Egito [como esses dois países se interessaram pela Argélia ou Líbia, respectivamente], precisando dele tão-só por causa das riquezas da índia.
     Enquanto o imperialismo transformava o Egito de país ocasionalmente cobiçado em entreposto militar a caminho da índia e ponto de apoio para as eventuais expansões futuras, com a África do Sul ocorria exatamente o oposto. Desde o século XVII, a importância do cabo da Boa Esperança dependia da índia, centro da riqueza colonial: por conseguinte, qualquer país que estabelecesse ali seus entrepostos comerciais precisava de um apoio logístico no Cabo, que de fato só foi abandonado quando acabou o comércio unilateralmente explorado com a índia. No fim do século XVIII, a Companhia das índias Orientais britânica derrotou Portugal, Holanda e França e conquistou o monopólio do comércio com a índia; logicamente, seguiu-se a essa vitória a ocupação da África do Sul. Se o imperialismo simplesmente continuasse as tradicionais tendências do comércio colonial (que é tão freqüentemente confundido com o imperialismo), a Inglaterra teria liquidado a sua posição na África do Sul após a abertura do canal de Suez em 1869.[5] Mesmo quando a África do Sul pertencia à Comunidade Britânica, sempre foi diferente dos outros domínios da coroa; seu solo não sendo fértil e a população não sendo escassa, o país carecia de dois pré-requisitos para o estabelecimento definitivo do colonizador. O único esforço para instalar ali mil colonos — 5 mil ingleses desempregados — ocorreu ainda no começo do século XIX e acabou em fracasso. Não somente as correntes migratórias britânicas evitaram a África do Sul durante todo o século XIX, mas, curiosamente, a África do Sul era o único domínio do qual emigrantes retornavam para a Inglaterra ainda em tempos recentes.[6] A África do Sul, que se tornou "solo de cultivo do imperialismo" (Damce), não foi reclamada nem sequer pelos mais radicais defensores ingleses da "saxonidade" e não fazia parte das visões dos mais românticos sonhadores de um Império Asiático. Isso demonstra quão pequena foi a influência da empresa colonial pré-imperialista no desenvolvimento do próprio imperialismo. Se a política pré-imperialista houvesse prevalecido, a colônia do Cabo teria sido abandonada justamente quando era maior a sua importância.
     As descobertas de minas de ouro e de jazidas de diamantes nos anos 70 e 80 teriam tido consequências insignificantes, se não tivessem servido de agente catalisador para as forças imperialistas. É notável a alegação dos imperialistas de terem encontrado numa corrida em busca da matéria-prima mais supérflua da terra a solução permanente para o problema da superfluidade. A importância do ouro é mínima quando comparada à do ferro, do carvão, do petróleo e da borracha; por outro lado, é o mais antigo símbolo da riqueza. Em sua inutilidade para a produção industrial, o ouro se assemelha ao dinheiro supérfluo que financiou a sua mineração e aos homens supérfluos que cavaram as suas minas. À pretensão dos imperialistas de haverem descoberto a salvação permanente para uma sociedade decadente e uma organização política antiquada, acrescentava-se outra suposição: a da perene estabilidade gerada pelo ouro e sua independência de todos os outros fatores funcionais. É significativo que uma sociedade, às vésperas de romper com todos os tradicionais valores absolutos, começasse a buscar um valor absoluto no mundo da economia, onde, na verdade, não existe nem pode existir valor absoluto, já que tudo é funcional e mutável por definição. Essa ilusão do valor absoluto fez com que a produção do ouro desde os tempos antigos fosse a atividade de aventureiros, jogadores e criminosos, de elementos alheios à sociedade normal e sadia. A novidade na corrida do ouro sul-africano era que os aventureiros não eram de todo alheios à sociedade civilizada, mas, ao contrário, constituíam o seu subproduto, um resíduo inevitável do sistema capitalista, representantes de uma economia que originava e produzia incessantemente homens e capital supérfluos.
     Os homens supérfluos, "os boêmios dos quatro continentes"[7] que acorreram ao Cabo, ainda tinham muito em comum com os antigos aventureiros. Eles também diziam, como Kipling: "Ponham-me num navio que vá para leste de Suez, onde o bom é como o mau, onde não existem os Dez Mandamentos e onde todos os desejos são permitidos". A diferença não estava na sua moralidade ou imoralidade, mas sim no fato de que, se se uniam a esse bando de homens "de todas as nações e de todas as cores",[8] não era por escolha própria; não se haviam retirado voluntariamente da sociedade, mas sim tinham sido cuspidos por ela; eram suas vítimas sem função e sem uso. Sua única escolha havia sido negativa: haviam optado contra os movimentos operários, onde os rejeitados da sociedade criavam uma espécie de contra-sociedade através da qual podiam voltar ao mundo da camaradagem e do bom senso. Não resultavam de realizações próprias: eram símbolos vivos do que lhes havia acontecido, testemunhas vivas do absurdo das instituições humanas. Ao contrário dos antigos aventureiros, eram sombras de acontecimentos com os quais nada tinham a ver. Como o sr. Kurtz, em "Heart of  Darkness" de Conrad, eram "ocos por dentro", "arrojados sem atrevimento, cobiçosos sem audácia e cruéis sem coragem". Em nada acreditavam, mas "podiam chegar a crer em tudo". Expulsos de um mundo com valores sociais estabelecidos e jogados à mercê de si mesmos, sequer tinham onde se apoiar, a não ser lampejos de talento que os tornariam tão perigosos quanto Kurtz, se um dia lhes fosse permitido voltar aos seus países. Pois o único talento que germinava em suas almas vazias era o dom do fascínio que marca o "esplêndido líder de um partido extremista". Os mais talentosos eram encarnações vivas do ressentimento, como o alemão Carl Peters (possível modelo de Kurtz), que confessava abertamente estar "farto de ser considerado pária", ele que "queria pertencer a uma raça de senhores".[9] Mas, talentosos ou não, "topavam tudo, desde jogar cara-e-coroa até matar alguém", e para eles a vida do próximo "tanto fazia como tanto fez". Assim, trouxeram consigo ou logo aprenderam o código de boas maneiras ajustado ao futuro tipo de assassino, que só conhecia um pecado imperdoável: perder a calma.
     É verdade que entre eles havia cavalheiros autênticos, como ò sr. Jones do Victory de Conrad, que, por enfado, pagavam de bom grado o preço de viver no "mundo do perigo e da aventura", ou como o sr. Heyst, cheio de desprezo por tudo o que era humano, até que foi levado na correnteza "como uma folha solta (...) sem jamais se agarrar a nada". Sentiam-se irresistivelmente atraídos por um mundo onde tudo era uma piada que lhes podia ensinar o gracejo máximo que é "controlar o desespero". O cavalheiro perfeito e o canalha perfeito vieram a conhecer muito bem um ao outro na "grande selva selvagem sem lei", e verificaram ser "parecidos em sua dissimilitude, almas idênticas em disfarces diferentes". Conhecemos a conduta da alta sociedade francesa durante o Caso Dreyfus e vimos Disraeli descobrir a relação social entre o vício e o crime; mais uma vez estamos diante da alta sociedade que se apaixona por seu próprio submundo, e do criminoso que se sente enaltecido quando, desde que com frieza civilizada, sem esforço desnecessário e com boas maneiras, lhe é permitido criar uma atmosfera de refinado vício em torno de seus crimes. Esse refinamento, o próprio contraste entre a brutalidade do crime e a maneira de cometê-lo, cria um laço de profunda compreensão entre o criminoso perfeito e o cavalheiro perfeito. Mas aquilo que, afinal, levou décadas para surgir na Europa, dado o efeito retardador dos valores éticos sociais, explodiu subitamente como um curto-circuito no mundo fantasma da aventura colonial.
     Longe de qualquer controle e da hipocrisia social, tendo como pano de fundo só o mundo dos nativos, o cavalheiro e o criminoso sentiam não apenas a afinidade de homens da mesma cor e origem, mas também o impacto de um mundo que oferecia possibilidades infinitas para crimes em nome da diversão, para uma mistura de horror e de riso, ou seja, para a plena realização de suas existências fantasmas. A vida nativa forrava esses eventos fantasmagóricos com aparente garantia contra quaisquer consequências, uma vez que os nativos pareciam a esses homens "mero movimento de sombras. Sombras em movimento, a raça dominante podia caminhar entre elas impunemente e sem ser percebida, em busca de seus incompreensíveis propósitos e necessidades" ("Heart of darkness").
     O mundo dos selvagens nativos compunha perfeito cenário para homens (9) Citado por Paul Ritter, Kolonien im deutschen Schriftum [As colônias na literatura alemã], 1936 que haviam fugido da realidade da civilização. Sob o sol inclemente, rodeados pela natureza hostil, deparavam com seres humanos que, vivendo sem um determinado alvo para o futuro e sem um passado que incorporasse as suas realizações, pareciam-lhes tão incompreensíveis como os loucos de um hospício. "Esse homem pré-histórico nos amaldiçoava, implorava ou dava as boas-vindas? Quem poderia saber? Entre nós e o meio ambiente não havia qualquer entendimento; passávamos entre eles como fantasmas, cheios de espanto mas secretamente apavorados, como homens sãos diante da exaltada rebeldia de loucos. (...) A terra parecia aqui um outro mundo (...), e os homens. (...) Não, não eram inumanos. Mas isso era o pior, essa suspeita que me invadia aos poucos de que não eram inumanos. Porque, ao urrarem e pularem, e darem cambalhotas, e fazerem trejeitos horríveis, o que nos impressionava era justamente a ideia de que fossem humanos como nós, e foi difícil pensar em nosso remoto parentesco com esse tumulto selvagem e violento" ("Heart of darkness").
     É estranho que, do ponto de vista histórico, a existência de "homens pré-históricos" tenha tido tão pouca influência sobre o homem ocidental antes da corrida para a África. No entanto, o fato é que nada aconteceu enquanto tribos selvagens, apesar da desvantagem numérica dos colonizadores, eram exterminadas, enquanto navios negreiros levavam-nas como escravos, enquanto eram apenas alguns indivíduos que se embrenhavam no interior do Continente Negro, onde os selvagens eram suficientemente numerosos para constituírem seu mundo próprio, um mundo de loucura ao qual o aventureiro europeu acrescentava a loucura da caça ao marfim. Muitos desses aventureiros haviam enlouquecido na vastidão silenciosa daquele continente, onde a presença de seres humanos somente agravava a enorme solidão, e onde uma natureza intacta, avassaladoramente hostil, que jamais ninguém se dispusera a transformar em ambiente humano, parecia aguardar com sublime paciência que "acabasse a fantástica invasão" do homem. Mas, enquanto não passava de experiências individuais, essa loucura era sem consequências.
     Isso mudou com os homens que chegaram durante a corrida colonialista para a África. Já não se tratava de indivíduos solitários: toda a Europa contribuía para a corrida. Concentraram-se na parte sul do continente, onde encontraram os bôeres, um grupo de holandeses desgarrados, já quase esquecidos pela Europa, mas que agora serviam como guias naturais no desafio do novo ambiente. A reação dos homens supérfluos foi, em grande parte, determinada pela reação do único grupo europeu que jamais tivera de viver num mundo de selvagens negros, embora em completo isolamento.
     Os bôeres descendem de colonos holandeses que, em meados do século XVII, habitavam um posto marítimo no Cabo, destinado a fornecer carne e legumes aos navios que demandavam a índia. Um pequeno grupo de hugue-notes franceses os seguiu no decorrer do século XVIII. Graças à alta taxa de natalidade, o pequeno bando de holandeses pôde chegar à categoria de modesto grupo populacional. Completamente isolados da corrente da história europeia escolheram um caminho que "poucas nações haviam percorrido antes deles, e quase nenhuma com sucesso".[10]
     Os dois principais fatores materiais do desenvolvimento dos bôeres foram o solo de péssima qualidade, que só podia ser usado para a criação de gado, e a numerosa população negra, organizada em tribos nômades que viviam da caça.[11] O solo adverso tornava inviável a construção de povoados, impedindo que aqueles camponeses holandeses imitassem a organização urbana de sua terra natal. As grandes famílias, isoladas umas das outras por vastas regiões incultiváveis, formaram uma espécie de organização clânica, e somente a constante ameaça de um inimigo comum, muito mais numeroso que os colonos brancos, impedia que esses clãs guerreassem entre si. Á solução para a falta de fertilidade do solo foi a pecuária; e para a abundância de nativos, a escravidão.[12]
     Contudo, escravidão é uma palavra insuficiente para descrever o que realmente aconteceu. Em primeiro lugar, a escravidão, embora domesticasse certa parte da população selvagem, nunca atingiu a todos, de sorte que os bôeres jamais puderam esquecer o primeiro horrível susto diante de homens que seu orgulho e seu senso de dignidade não permitiam aceitar como semelhantes. Esse pavor de algo semelhante a nós que, contudo, não devia, de modo algum, ser semelhante a nós justificou em termos ideológicos a escravidão e constituiu a base da sociedade racista.
     A humanidade conhece a história dos povos, mas seu conhecimento de tribos pré-históricas é apenas lendário. O termo "raça" só chega a ter um significado preciso, quando e onde os povos com história conhecida se defrontam com tribos das quais não têm nenhum registro histórico e que ignoram a sua própria história. E não sabemos se essas tribos representam o "homem pré-histórico", os espécimes das primeiras formas de vida humana na terra que por acaso sobreviveram, ou se são os sobreviventes "pós-históricos" de algum desastre desconhecido que pôs fim a alguma civilização. Parecem, sem dúvida, sobreviventes de alguma grande catástrofe seguida de desastres menores, até que a monotonia catastrófica passou a ser a condição natural da sua vida. De qualquer modo, só se encontravam raças desse tipo em regiões onde a natureza era particularmente hostil. O que os fazia diferentes dos outros seres humanos não era absolutamente a cor da pele, mas o fato de se portarem como se fossem parte da natureza; tratavam-na como sua senhora inconteste; não haviam criado um mundo de domínio humano, uma realidade humana, e, portanto, a natureza havia permanecido, em toda a sua majestade, como a única realidade esmagadora, diante da qual os homens pareciam meros fantasmas, irreais e espectrais. Pareciam tão amalgamados com a natureza que careciam de caráter especificamente humano, de realidade especificamente humana; de sorte que, quando os europeus os massacravam, de certa forma não sentiam que estivessem cometendo um crime contra homens.
     Além disso, os insensatos massacres das tribos do Continente Negro pelos brancos não destoavam das próprias tradições dessas mesmas tribos. O extermínio de grupos hostis foi norma em todas as guerras entre os nativos africanos, que não foi abolida nem mesmo quando um líder negro veio a unir várias tribos sob o seu comando. O rei Tchaka, que no início do século XIX uniu as tribos zulus para formar uma organização extraordinariamente disciplinada e guerreira, não chegou na realidade a estabelecer uma nação de zulus. Conseguiu apenas exterminar mais de 1 milhão de membros das tribos mais fracas.[13] Como a disciplina e a organização militar, por si sós, não podem estabelecer uma estrutura política, a destruição ficou como um episódio não registrado num processo irreal e incompreensível, que não pôde ser aceito pelo homem e, portanto, não é relembrado pela história humana.
     A escravidão, no caso dos bôeres, foi uma forma de ajustamento de um povo europeu a uma raça negra;[14] apenas superficialmente lembra fenômenos históricos resultantes da conquista ou do comércio escravo. Nenhuma estrutura política, nenhuma organização comunitária unia os bôeres, nenhum território delimitado foi definitivamente colonizado por eles, e os escravos negros não serviam a nenhuma civilização branca. Os bôeres haviam perdido tanto a sua relação de camponeses com o solo quanto o seu sentimento civilizado de solidariedade humana. A regra do país preconizava a necessidade de "cada um fugir da tirania da presença do vizinho",[15] e assim cada família bôer repetia em completo isolamento a mesma experiência geral dos bôeres que viviam entre selvagens negros e os dominavam em completo desrespeito às leis, sem serem impedidos por "bondosos vizinhos, prontos a te aplaudir ou cair em cima de ti, interpondo-se delicadamente entre o assassino e o policial, num santo horror de escândalo, de cadeia e asilo de lunáticos" (Joseph Conrad). Dominando tribos e vivendo aparasitados ao seu trabalho, passaram a ocupar uma posição muito semelhante à dos chefes tribais nativos, cujo poder haviam liquidado. Fosse como fosse, os nativos reconheciam neles uma forma superior de liderança tribal, uma espécie de deidade natural à qual era mister obedecer, de sorte que o divino papel dos bôeres não foi imposto apenas pela escravização dos negros, mas também livremente assumido por eles. E, para esses deuses brancos de escravos negros, lei significava apenas a redução da própria liberdade, e governo significava apenas restrições à desenfreada arbitrariedade do seu clã.[16] Os bôeres descobriram nos nativos a única "matéria prima" que a África lhes oferecia em abundância, e a usaram não para produzir riqueza mas apenas para a satisfação das suas necessidades básicas.
     Os escravos negros da África do Sul tornaram-se rapidamente a única parte da população que trabalhava. Seus esforços portavam a marca de todas as desvantagens do trabalho escravo: falta de iniciativa, preguiça, desleixo com as ferramentas e ineficiência geral. Suas atividades, portanto, mal permitiam manter vivos os seus senhores e nunca produziram a abundância que sustenta a civilização. Essa absoluta dependência do trabalho alheio e o completo desprezo por qualquer forma de produtividade e pelo trabalho transformaram o holandês no bôer e deram ao seu conceito de raça um significado primordialmente econômico.[17]
     Os bôeres foram o primeiro grupo europeu a alienar-se completamente do orgulho que o homem ocidental sentia em viver num mundo criado e fabricado por ele mesmo.[18] Tratavam os nativos como matéria-prima e viviam à custa deles como se vive dos frutos de uma árvore. Preguiçosos e improdutivos, concordaram em vegetar mais ou menos no mesmo nível em que as tribos negras haviam vegetado durante milhares de anos. O grande horror que se apossara dos europeus por ocasião de sua primeira confrontação com a vida nativa foi inspirado exatamente por essa qualidade que transformava os seres humanos em parte da natureza, tanto quanto os animais. Mas os bôeres viviam à custa dos escravos do mesmo modo como os nativos viviam à custa da natureza, despreparada e inculta. Quando os bôeres, em seu pavor e miséria, decidiram usar esses selvagens como se eles fossem apenas uma forma de vida animal como qualquer outra, deram início a um processo que só podia terminar fazendo-os degenerar num grupo racial branco que vivia ao lado — em separação, mas em conjunto — com as raças negras, das quais finalmente iriam diferir apenas na cor da pele.
     Os brancos pobres da África do Sul, que em 1923 constituíam 10% de toda a população branca,19 e cujo padrão de vida não diferia muito dos membros das tribos bantus, são um claro exemplo desta afirmação. Sua pobreza resulta quase exclusivamente do desprezo pelo trabalho e, também, da adaptação ao modo de vida das tribos negras. Como os negros, abandonavam as terras quando o solo deixava de produzir o pouco que lhes era necessário, ou quando haviam exterminado os animais da região.[20] Juntamente com os seus antigos escravos, iam para os centros auríferos e diamantíferos, abandonando as fazendas quando os trabalhadores negros partiam. Mas, ao contrário dos nativos, que eram imediatamente empregados como mão-de-obra barata e não-qualificada, exigiam e recebiam caridade como um direito naturalmente decorrente de sua pele branca, tendo perdido a noção de que normalmente um homem não ganha a vida às custas da cor de sua pele.[21] Seus sentimentos raciais são hoje violentos, não apenas porque nada têm a perder exceto sua associação com outros brancos, mas também porque o conceito de raça parece definir a sua condição bem melhor que a dos seus antigos escravos, que estão gradualmente se tornando trabalhadores, ou seja, parte normal da civilização humana.
     O racismo como instrumento de domínio foi usado nessa sociedade de brancos e negros antes que o imperialismo o explorasse como ideia política. Sua base e sua justificativa ainda eram a própria experiência, uma terrível experiência de algo tão estranho que ficava além da compreensão e da imaginação: para os brancos foi mais fácil negar que os pretos fossem seres humanos. No entanto, a despeito de todas as explicações ideológicas, o homem negro teimosamente insistia em conservar suas características humanas, só restando ao homem branco reexaminar a sua própria humanidade e concluir que, nesse caso, ele era mais do que humano, isto é, escolhido por Deus para ser o deus do homem negro. Era uma conclusão lógica e inevitável no caminho da radical negação de qualquer laço comum com os selvagens; na prática, significou que o cristianismo não pôde atuar como força repressiva contra as perigosas perversões da consciência humana, o que prenunciava sua ulterior ineficácia em outras sociedades raciais.[22] Os bôeres simplesmente negavam a doutrina cristã da origem comum dos homens; e aquelas passagens do Antigo Testamento que ainda não transcendiam os limites da velha religião nacional israelita, eles as transformaram numa superstição que nem poderia ser chamada de heresia.[23] Como os judeus, acreditavam firmemente que eram o povo escolhido,[24] com a diferença fundamental de que haviam sido escolhidos não para a divina salvação da humanidade, mas para a ociosa dominação de outra espécie, condenada a um trabalho forçado não menos ocioso.[25] Esta é a vontade de Deus na Terra, segundo a Igreja Reformada Holandesa, que diverge dos missionários de todas as outras denominações cristãs.[26]
     O racismo bôer, em contraste com outros tipos de racismo, caracteriza-se por uma certa autenticidade. A completa ausência de literatura local e de outras realizações intelectuais é a melhor prova desta afirmação.[27] Resultou de uma reação desesperada a condições de vida desesperadoras, e era mudo e inconsequente enquanto o mundo o ignorava. A situação mudou após a chegada dos ingleses, que demonstravam pouco interesse por sua mais nova colônia à qual, em 1849, ainda chamavam de posto militar. Mas a sua presença e a sua atitude diferente em relação aos nativos, nos quais não viam mera espécie diferente de animais, bem como suas tentativas posteriores de abolir a escravidão e seus esforços de fixar limites às terras particulares, tudo isso levou a estagnada sociedade bôer a reações violentas. É típico dos bôeres reagirem segundo o padrão que repetiam durante todo o século XIX: os fazendeiros bôeres escapavam à lei britânica fugindo em carros de boi para o interior do país, abandonando sem remorsos os seus lares e as suas fazendas. A aceitar limitações de suas posses, preferiam abandoná-las de todo.[28] Isso não significa que os bôeres não se sentissem em casa onde quer que estivessem; sentiam-se e ainda se sentem muito mais em casa na África do que quaisquer imigrantes depois deles — mas na África, e não em qualquer território especificamente limitado. Suas fantásticas jornadas em carros de boi demonstraram claramente que eles haviam virado uma tribo, tendo perdido o apego europeu a um território, a uma pátria própria. Portavam-se exatamente como as tribos negras que haviam vagado pelo Continente Negro durante séculos, sentindo-se à vontade onde quer que o grupo estivesse, e fugindo, como quem foge da morte, de qualquer tentativa de permanência.
     O desarraigamento é característico de todas as organizações raciais. O que os movimentos racistas europeus conscientemente almejavam — a transformação do povo numa horda — pode ser estudado, como num teste de laboratório, na velha e triste tentativa dos bôeres. O desarraigamento como objetivo consciente baseava-se principalmente no ódio a um mundo onde não havia lugar para homens "supérfluos", de sorte que a destruição desse mundo podia tornar se supremo objetivo político; mas o desarraigamento dos bôeres foi o resultado normal de uma prematura emancipação do trabalho e da completa ausência de um meio ambiente construído por seres humanos. A mesma semelhança existe entre os "movimentos" e a interpretação bôer do conceito de "escolha". Mas, enquanto nos movimentos pangermânicos, paneslavos ou poloneses messiânicos o conceito de escolha era um instrumento mais ou menos consciente para fins de domínio, a perversão do cristianismo dos bôeres era solidamente enraizada na terrível realidade em que miseráveis "homens brancos" eram adorados como divindades por "homens negros" igualmente infelizes. Vivendo num ambiente que não podiam transformar em mundo civilizado, não conseguiram encontrar nenhum valor que fosse superior à imagem de si mesmos. Não obstante, quer o racismo resulte de uma catástrofe, quer seja instrumento consciente para provocá-la, está sempre intimamente ligado ao desprezo pelo trabalho, à rejeição de limitações de posse, ao desarraigamento geral e à fé na divina escolha do seu grupo.
     Os primeiros conquistadores britânicos da África do Sul, com os seus missionários, soldados e exploradores, não compreenderam que a atitude dos bôeres era baseada até certo ponto na realidade. Não compreenderam que a absoluta supremacia europeia — na qual eles, afinal, estavam tão interessados quanto os bôeres — não poderia ser mantida senão através do racismo, na medida em que a população europeia era irremediavelmente suplantada em quantidade de homens,[29] e ficavam chocados ao ver "europeus radicados na África agindo como selvagens, pelo fato de ser esse o costume do país".[[30] Para seu espírito simples e utilitário, parecia tolice sacrificar a produtividade e o lucro por amor a um mundo fantasma de deuses brancos que comandavam sombras negras. Somente com o estabelecimento colonial dos ingleses e outros europeus durante a corrida do ouro na África do Sul é que se adaptaram gradualmente a uma população que não podia ser atraída de volta à civilização europeia, nem mesmo com a motivação do lucro, e que havia perdido contato até com os mais simples incentivos do homem europeu ao renunciar às suas motivações mais elevadas, porque tudo perde seu sentido e atração numa sociedade em que ninguém quer realizar nada e todos são deuses.

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[4] É importante ter em mente que a colonização da América e da Austrália desenrolou-se concomitantemente com a rápida e cruel liquidação dos nativos, talvez em parte devido à fraqueza numérica destes, enquanto, "para compreender a gênese da sociedade sul africana moderna, é muito importante saber que a terra que se situava além do Cabo não era aberta, como a que se estendia diante do colonizador australiano. Era uma área povoada — e povoada por uma grande população bantu". Ver C. W. de Kiewiet, A history of South África, social and economic (Oxford, 1941), p. 59.
[5]  "Ainda em 1884, o governo britânico havia estado disposto a diminuir a sua autoridade e influência na África do Sul" (Kiewiet, op. cit., p. 113).
[6] Os seguintes dados de imigração e emigração britânicas na África do Sul entre 1924 e 1928 mostram que os ingleses eram mais inclinados a deixar o país do que outros imigrantes e que, com uma exceção, cada ano mostrava um número maior de ingleses deixando o país que chegando:
Imigração ano    Imigração britânica    Emigração total     Emigração britânica           Total
 1924                            1.724                          5.265                           5.275                           5.857 
 1925                            2.400                          5.426                           4.019                           4.483
 1926                            4.094                          6.575                           3.512                            3.799
 1927                            3.681                          6.595                           3.717                            3.988
 1928                            3.285                          7.050                           3.409                            4.127
                                   17.184                        30.911                         19.932                           22.254
(Cf. L. Barnes, Caliban in África. An impression of colour madness, 1931, Filadélfia, p. 59.) 
[7] J. A. Froude, "Leaves from a South African journal" (1874), em Short studies on great subjects, 1867-82, vol. IV.
[8] Ibid.
[9] Citado por Paul Ritter, Kolonien im deutschen Schriftum [As colônias na literatura alemã], 1936, prefácio.
[10] Lorde Selbourne em 1907: "Os povos brancos da Ãfrica do Sul escolheram um caminho que poucas nações trilharam antes deles, e quase nenhuma com sucesso". Ver Kiewiet, op. cit., cap. 6.
[11] Ver especialmente o cap. iii de Kiewiet, op. cit.
[12] "Juntos, os escravos e os hotentotes provocaram notáveis mudanças no pensamento e nos hábitos dos colonizadores, pois o clima e a geografia não foram os únicos fatores formadores das características da raça dos bôeres. Os escravos e as secas, os hotentotes e o isolamento, a mão-de-obra e a terra barata combinaram-se para criar as instituições e os hábitos da sociedade sul-afrí-cana. Os filhos e filhas dos robustos holandeses e huguenotes aprenderam a ver o trabalho do campo e todo esforço físico intenso como funções de uma raça servi!" (Kiewiet, op. cit., p. 21).
[13] Ver James, op. cit.,p. 28.
[14] "A verdadeira história da colonização da África do Sul é a história da evolução não de uma povoação de europeus, mas de uma sociedade inteiramente nova e singular de raças, cores e culturas diferentes, caracterizada por conflitos de herança racial e pela luta entre grupos sociais desiguais" (Kiewiet, op. cit., p. 19).
[15] Kiewiet, op. cit., p. 19.
[16] "A sociedade [dos bôeres] era rebelde, mas não revolucionária" (ibid., p. 58)
[17] "Pouco esforço foi feito para elevar o padrão de vida ou aumentar as oportunidades dos escravos e dos servos. Assim, a limitada riqueza da colônia era o privilégio da população branca. (...) Cedo, portanto, a África do Sul aprendeu que um grupo consciente de si mesmo pode fugir aos piores males da vida numa terra pobre e nefasta, transformando as distinções de raça e de cor em meios de discriminação social e econômica" {ibid., p. 22).
[18] Enquanto "nas índias Ocidentais um número tão grande de escravos como o que existia no Cabo teria sido um sinal de riqueza e uma fonte de prosperidade", "no Cabo, a escravidão era sinal de economia estagnada (...) cujo trabalho era usado com desperdício e ineficiência" (ibid.). Isso levou Barnes (op. cit., p. 107) e muitos outros observadores à conclusão de que "a África do Sul é um país estrangeiro, não apenas no sentido de que tem pontos de vista definitivamente alheios aos da Inglaterra, mas também no sentido muito mais radical de que sua própria raison d'être, como tentativa de sociedade organizada, está em contradição com os princípios sobre os quais se baseiam os países cristãos".
[19] Isso correspondia a cerca de 160 mil indivíduos (Kiewiet, op. cit., p. 181). James (op. cit., p. 43) calculava o número de brancos pobres em cerca de 500 mil em 1943, o que corresponderia a cerca de 20% da população branca.  
[20] "O branco pobre, vivendo no mesmo nível de subsistência dos bantus, é o resultado da incapacidade, ou da obstinada recusa dos bôeres de aprenderem a ciência da agricultura. Como o bantu, o bôer gosta de vagar de uma área para outra, trabalhando o solo até que deixe de ser fértil, matando a caça até que deixe de existir" (ibid.).
[21] "A raça era a sua garantia de superioridade sobre os nativos, e executar trabalhos manuais não condizia com a dignidade que a raça lhes outorgava. (...) Essa aversão degenerou, entre os mais desmoralizados, na exigência da caridade como um direito" (Kiewiet, op. cit., p. 216).
[22] A Igreja Reformada Holandesa está à vanguarda da luta dos bôeres contra a influência dos missionários cristãos no Cabo. Em 1944, ela adotou, "sem uma voz em contrário", uma moção que se opunha aos casamentos de bôeres com cidadãos de língua inglesa. (Segundo o Times do Cabo, editorial de 18 de julho de 1944. Citado pelo New África, Council on African Affairs, boletim mensal, outubro de 1944.)  
[23] Kiewiet (op. cit., p. 181) menciona "a doutrina de superioridade racial extraída da Bíblia e reforçada pela interpretação popular que o século XIX dava às teorias de Darwin".
[24] "O Deus do Velho Testamento tem sido para eles uma figura nacional, quase tanto quanto o foi para os judeus. (...) Lembro-me de uma cena memorável num clube da Cidade do Cabo, onde um ousado inglês, jantando por acaso com três ou quatro holandeses, observou que Cristo, não sendo europeu, teria sido, do ponto de vista legal, proibido de imigrar para a União da África do Sul. Os holandeses ficaram tão chocados com essa observação que quase caíram das cadeiras." (Barnes, op. cit., p. 33.)
[25] "Para a família bôer, a separação e a degradação dos nativos resultam de mandamento de Deus, e é crime e blasfêmia dizer o contrário." (Norman Bentwich, "South África. Dominion of racial problems", em Political Quartely, 1939, vol. X, n? 3.)
[26] "Até hoje o missionário é, para o bôer, o traidor fundamental, o homem branco que defende o preto contra o branco." (S. Gertrude Millin, Rhodes, Londres, 1933, p. 38.)
[27] "Como tinham pouca arte, menos arquitetura e nenhuma literatura, dependiam de suas fazendas, suas bíblias e seu sangue para se distinguirem dos nativos e dos estrangeiros." (Kiewiet, op. cit., p. 121.)
[28] "O verdadeiro Vortrekker [nome que se aplicava ao bôer que emigrava para o interior em carros de boi] detestava fronteiras. Quando o governo inglês insistiu em limites fixos para a colônia e suas fazendas, o bôer sentiu como se lhe roubassem algo. (...) Sentia-se mais seguro além do limite do poder inglês, onde havia água e terra livre e nenhum governo inglês para revogar as Leis de Vagabundagem, e onde o homem branco não seria arrastado aos tribunais para responder a queixas de seus servos" (ibid., pp. 54-5). "A Grande Fuga [em carros de boi], movimento único na história da colonização" (p. 58) "foi a derrota de uma política de colonização mais intensa. A prática que exigia a área de todo um município canadense para o estabelecimento de dez famílias foi estendida a toda a África do Sul. Ela impossibilitou para sempre a segregação das raças branca e negra em áreas diferentes de fixação. (...) Ao colocar os bôeres além do alcance da lei britânica, a Grande Fuga possibilitou-lhes estabelecer relações 'adequadas' com a população nativa" (p. 56). "Nos anos seguintes, a Grande Fuga iria ser mais que um protesto: tomar-se-ia uma revolta contra a administração britânica e a pedra fundamental do racismo anglo-bôer do século XX" (James, op. cit., p. 28).
[29] Em 1939, a população total da União Sul-Africana era de 9,5 milhões de habitantes, dos quais 7 milhões eram nativos e 2,5 milhões europeus. Desses últimos, mais de 1,25 milhão era bôeres, cerca de um terço eram ingleses e 100 mil eram judeus. Ver Norman Bentwich, op. cit.
[30] J. A. Froude, op. cit., p. 375.

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