quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Apesar do extremo cansaço)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

continuando...

     Apesar do extremo cansaço que principiava a sentir, a princesa estava deslumbrada; nunca se sentira melhor. Não trocaria por uma temporada em Schonbrunn, que no entanto era a única coisa que lisonjeava, aqueles jantares divinos da Sra. de Guermantes, tonificantes devido a tanto sal. 

- Ele o escreve com um grande C! - exclamou a Sra. d'Arpajon. 
- Ou melhor, com um grande M, acho eu, minha pequena - respondeu a Sra. de Guermantes, não sem ter trocado com o marido um olhar alegre que queria dizer: "Ela é idiota demais!" - Olhe justamente - disse-me a Sra. de Guermantes fixando em mim um olhar risonho e suave e porque, como perfeita dona de casa, pretendia, acerca do artista que especialmente me interessava, deixar luzir seu conhecimento e, caso necessário, dar-me ocasião de mostrar o meu olhe disse-me ela, agitando levemente o seu leque de plumas, tanta consciência possuía naquele instante de que exercia plenamente os deveres da hospitalidade; e, para não falar a nenhum, fazendo sinal para que voltassem a me dar aspargos com molho mousseline -, olhe, creio que Zola escreveu justamente um estudo sobre Elstir, esse pintor de quem o senhor foi olhar alguns quadros agora há pouco, os únicos, aliás, que aprecio dele - acrescentou. 

     Na realidade, ela detestava a pintura de Elstir, mas julgava de qualidade única tudo o que se achava em sua casa. Perguntei ao Sr. de Guermantes se sabia o nome do senhor que figurava de cartola no quadro popular, e que eu reconhecera como sendo o mesmo de que os Guermantes possuíam, bem ao lado, o retrato de traje a rigor, datando mais ou menos do mesmo período em que a personalidade de Elstir ainda não se libertara de todo e se inspirava um pouco em Manet. 

- Meu Deus - respondeu-me ele -, sei que é um homem que não é desconhecido nem um imbecil em sua especialidade, mas confundo-me com os nomes. Tenho-o na ponta da língua, senhor... senhor... enfim, pouco importa, não sei mais. Swann poderia lhe dizer isso, foi ele quem fez com que a Sra. de Guermantes comprasse esses troços, ela que é sempre muito amável, que tem sempre receio de contrariar se recusa alguma coisa; cá entre nós, acho que ele nos impingiu umas drogas. O que posso afirmar é que aquele cavalheiro é, para Elstir, uma espécie de Mecenas que o lançou, e seguidamente o tem livrado de apuros encomendando-lhe quadros. Por gratidão (se chama a isso de gratidão, depende dos gostos), ele o pintou naquele quadro, onde, com seu jeito endomingado, faz um efeito bem divertido. Pode ser um figurão muito importante, mas evidentemente ignora em que circunstâncias se põe uma cartola. Com a sua, no meio de todas aquelas moças de cabelos soltos, dá impressão de um pequeno notário de província na farra. Mas, diga-me, parece que o senhor está inteiramente apaixonado por esses quadros. Se eu tivesse sabido disso antes, teria me informado para lhe responder. Além do mais, não faz sentido quebrar a cabeça para examinar a pintura do Sr. Elstir - como se se tratasse de A Fonte, de Ingres, ou de Os filhos de Eduardo, de Paul Delaroche. O que se pode apreciar naquilo é que é finamente observado, agradável, parisiense, e depois passa-se adiante. Não há necessidade de ser um erudito para olhar aquilo; sei muito bem que são simples esboços, mas não creio que sejam bastante trabalhados. Swann teve o topete de querer que comprássemos um Molho de Aspargos. Chegaram a ficar aqui por alguns dias. Não havia outra coisa no quadro, um molho de aspargos precisamente iguais aos que o senhor está comendo. Mas eu recusei-me a engolir os aspargos do Sr. Elstir. Pedia trezentos francos por eles. Trezentos francos por um molho de aspargos! Um luís, eis o que valem, mesmo quando novos. Achei demais. Quando ele acrescenta a essas coisas um certo número de personagens, fica tudo com um ar meio canalha, pessimista, que me desagrada. Espanta-me ver um espírito fino, um cérebro dotado como é o seu caso, gostar dessas coisas. 
- Mas não sei por que diz isso, Basin - comentou a duquesa, que não gostava que depreciassem o que seus salões continham. - Longe estou de admitir tudo sem distinção nos quadros de Elstir. Há o que pegar e o que deixar. Mas nem sempre é desprovido de talento. E é precioso confessar que estes que comprei são de rara beleza. 
- Oriane, nesse gênero, prefiro mil vezes o pequeno estudo do Sr. Vibert que vimos na Exposição dos Aquarelistas. Não é nada, se quiser, caberia na palma da mão, mas possui espírito até a ponta dos dedos: esse missionário descarnado, sujo, diante daquele padre afeminado que faz pular seu cãozinho, é todo um poemeto de finura e até de profundidade. 
- Creio que o senhor conhece o Sr. Elstir - disse-me a duquesa. - O homem é agradável. 
- É inteligente - disse o duque -; a gente se espanta, ao conversar com ele, de que sua pintura seja tão vulgar. 
- É mais do que inteligente, é até bastante espirituoso - afirmou a duquesa com o ar entendido e degustador de alguém que conhece o assunto. 
- Ele não tinha principiado um retrato seu, Oriane? - perguntou a princesa de Parma. 
- Sim, em vermelho-lagosta - respondeu a Sra. de Guermantes -, mas não é isso que fará passar seu nome à posteridade. É um horror, Basin queria destruí-lo. 

     Esta frase, a Sra. de Guermantes pronunciava-a seguidamente. Outras vezes, porém, sua apreciação era diversa: 

- Não gosto da sua pintura, mas ele fez antigamente um belo retrato meu. Um destes juízos endereçava-se de costume às pessoas que falavam à duquesa sobre o seu retrato, o outro aos que não lhe falavam dele e aos quais ela desejava informar sobre sua existência. O primeiro era-lhe inspirado pela coqueteria; o segundo, pela vaidade. 
- Fazer um horror com um retrato seu! Mas então não é um tolo, é uma mentira: eu, que mal sei segurar um pincel, tenho a impressão de que, se a pintasse, apenas representando o que vejo, faria uma obra - disse ingenuamente a princesa de Parma. 
- Ele me vê provavelmente como eu própria me vejo, isto é, destituída de atrativos - disse a Sra. de Guermantes com o olhar melancólico, modesto e carinhoso, que lhe pareceu o mais apropriado mostrá-la bem diferente do que a pintara Elstir. 
- Esse retrato não deve desagradar à Sra. de Gallardon – disse o duque. 
- Porque ela não entende nada de pintura? - indagou a princesa de Parma, que sabia que a Sra. de Guermantes desprezava infinitamente sua prima.
- Mas é uma boa mulher, não? -

     O duque assumiu um ar profundo espanto. 

- Ora, Basin, não vê que a princesa está zombando de você? A princesa nem pensava nisso. Ela sabe tão bem quanto você que é um veneno antigo - continuou a Sra. de Guermantes, cujo bulário, habitualmente limitado a todas essas velhas expressões, era horroroso como esses pratos que se podem descobrir nos livros deliciosos, Pampille. 

     Mas na realidade tornados tão raros, em que as geleias, a manteiga, os sumos e as almôndegas são autênticos, não comportam nenhuma mistura, e onde até se manda buscar o sal dos pântanos salinos Bretanha: pelo acento, pela escolha dos vocábulos, sentia-se que o fumento das conversações da duquesa provinha diretamente de Guermantes. Desse modo, a duquesa diferia essencialmente de seu sobrinho Saint-Loup, que absorvera tantas ideias e expressões novas; é difícil, quando se é turbado pelas ideias de Kant e pela nostalgia de Baudelaire, escrever elegante de Henrique IV, de modo que a pureza mesma da língua da duquesa era um sinal de limitação e que, nela, a inteligência e a sensibilidade permaneciam fechadas a todas as coisas novas. Mesmo o aspecto, o espírito da Sra. de Guermantes me agradava, justamente pelo que excluía (e que precisamente compunha a matéria de meu próprio pensamento) e por tudo o que, devido a isso mesmo, pudera conservar, com atraente vigor dos corpos flexíveis que nenhuma reflexão exaustiva, nenhum cuidado moral ou perturbação nervosa poderiam alterar. Seu espírito formação tão anterior ao meu, era para mim o equivalente do que nascera o andar das moças do pequeno grupo à beira-mar. A Sra. de Guermantes me ofertava, domados e submissos pela amabilidade, pelos valores espirituais, a energia e o encanto de uma cruel menina aristocracia dos arredores de Combray, que, desde a infância, montava cavalo, descadeirava os gatos, arrancava os olhos dos coelhos, e, tanto como ela, permanecera uma flor de virtude, teria podido, já que possuía as mesmas elegâncias não muitos anos atrás, ser a mais notável amante do príncipe de Sagan. Unicamente, era incapaz de compreender o que eu havia procurado nela o encanto do nome de Guermantes e o pouquinho que eu encontrava, um resto provinciano de Guermantes. Nossas relações se fundavam num mal-entendido que não podia deixar de se manifestar desde que minhas homenagens, em lugar de se dirigirem à mulher relativamente superior que ela julgava ser, se encaminhassem para qualquer outra mulher igualmente medíocre e de quem se evocasse o mesmo encanto involuntário. Mal-entendido tão natural e que existirá sempre entre um rapaz sonhador e uma mulher da sociedade, e que o perturba profundamente enquanto ele ainda não reconhecer a natureza de suas faculdades de imaginação e não tiver sua parte nas inevitáveis decepções que deve experimentar com as criaturas, tal como no teatro, em viagem, ou mesmo no amor. 
     Tendo o Sr. de Guermantes declarado (continuando com os aspargos de Elstir e os que acabavam de ser servidos após o poulet financiere) que os aspargos verdes crescidos ao ar livre, e que, como tão espirituosamente diz o autor refinado que se assina E. de Clermont-Tonnerre, "não possuem a rigidez impressionante de seus irmãos", deveriam ser comidos com ovos, comentou o Sr. de Bréauté: o que agrada a uns e desgosta a outros, e vice-versa. Na província de Cantão, na China, não nos podem oferecer algo mais refinado que ovos de hortulana completamente podres.  
     O Sr. de Bréauté, autor de um estudo sobre os mórmons, publicado na Revue des Deux Mondes, só freqüentava os meios aristocráticos, e entre estes somente os que tinham uma certa fama de inteligência. De modo que, pela sua presença pelo menos assídua, na casa de uma mulher, a gente reconhecia se esta possuía um salão. Pretendia detestar a sociedade e afirmava separadamente a cada duquesa que era devido a seu espírito e à sua beleza que ele a procurava. Todas se convenciam disso. Sempre que, com a morte na alma, se resignava a ir a um sarau de gala na casa da princesa de Parma, convocava-as a todas para lhe darem ânimo e, assim, só aparecia no meio de um círculo íntimo. Para que sua reputação de intelectual sobrevivesse à sua mundanidade, ele, aplicando certas máximas do espírito de Guermantes, partia com damas elegantes para longas viagens científicas, à época dos bailes; e, quando uma pessoa esnobe, por conseguinte ainda sem situação, começava a ir a toda parte, o Sr. de Bréauté punha uma obstinação feroz em não querer conhecê-la, nem se deixar apresentar. Seu ódio aos esnobes decorria de seu esnobismo, mas aos ingênuos, ou seja, ao mundo, fazia crer que ele estava isento dessa acusação. 

- Babal sempre sabe tudo! - exclamou a duquesa de Guermantes 
- Acho encantadora uma terra em que a gente quer estar segura de que o fornecedor nos venda ovos bem podres, ovos do ano do cometa Imme daqui mergulhando neles um pãozinho com manteiga. Devo dizer que isto acontece na casa da tia Madeleine (Sra. de Villeparisis), onde serve coisas apodrecidas, até mesmo ovos e, como a Sra. d'Arpajon protestam: ora, Phili, você sabe disso tão bem quanto eu. O pintinho já está no ovo. Nem sei como têm juízo para se manterem quietinhos ali. Não é omelete, é um galinheiro, mas, pelo menos, não vem indicado no cardápio. Você fez bem em não ir jantar lá, anteontem. Havia um rodovalho em acúmulo fênico! Não parecia um serviço de mesa, mas um serviço de contágio. Verdadeiramente, Norpois leva a fidelidade até o heroísmo! - ele repetiu. - Creio que o vi na casa dela no dia em que ela fez aquela réplica ao tal Sr. Bloch (o Sr. de Guermantes, talvez para dar feição mais estrangeira a um nome judeu, não pronunciava o ch de Bloch feito um K, e sim como na palavra alemã hoch), que dissera, já não sei de que puefa (poeta), que era sublime. Por mais que Châtellerault fustigasse as canelas do senhor este não entendia e achava que as joelhadas do meu sobrinho se destinavam a uma moça que estava sentada junto dele (aqui o Sr. de Guermantes enrubesceu de leve). Não percebia que irritava a nossa tia com seus "games", dados a torto e a direito. Em breve, a tia Madeleine, que não tinha papas na língua, retrucou: - Ei, senhor, o que guardará então para o Sr. Bossuet? - (O Sr. de Guermantes julgava que, diante de um nome célebre o uso de senhor e de uma partícula eram essencialmente Ancien Régime) - Era da gente pagar para ver. 
- E o que respondeu o Sr. Bloch? - perguntou distraidamente a Sra. de Guermantes, que, por falta de originalidade naquele instante, julgou dever copiar a pronúncia germânica do marido. 
- Ah, asseguro-lhes que o Sr. Bloch não esperou pela resposta correu ainda. 
- Ah, sim, lembro-me muito bem de o ter visto naquele dia - disse-me a Sra. de Guermantes acentuando as palavras, como se essa lembrança tivesse algo que devesse me lisonjear bastante. - É muito interessante na casa da minha tia. No último sarau, onde justamente o encontrei, desejava lhe perguntar se aquele velho senhor que sentou perto de nós não seria François Coppée. O senhor deve saber todos os nomes - disse ela com sincera inveja quanto às minhas relações e também por amabilidade para comigo, a fim de ostentar aos olhos dos convidados um rapaz tão versado em literatura.

     Assegurei à duquesa não ter visto nenhuma figura célebre no sarau da Sra. de Villeparisis. Disse-me arrebatadamente a Sra. de Guermantes, confessando assim que seu respeito pelos literatos e seu desdém pelas coisas mundanas eram mais superficiais do que dizia e talvez mais do que imaginava: 

- Como! Não havia grandes escritores! O senhor me surpreende, pois no entanto lá estavam alguns tipos impossíveis!

     Eu me lembrava muito bem daquela noite, por causa de um incidente de todo insignificante. A Sra. de Villeparisis apresentara Bloch à Sra. Alphonse de Rothschild, mas meu camarada não entendera o nome e, julgando que se tratava de uma velha inglesa meio doida, só respondera por monossílabos às frases prolixas da velha Beldade, quando a Sra. de Villeparisis, apresentando-a a outro qualquer, pronunciara, desta vez distintamente: "a baronesa Alphonse de Rothschild". Tinham entrado então nas artérias de Bloch, subitamente e de um só golpe, tantas ideias de milhões e de prestígio, as quais deveriam ter sido prudentemente subdivididas, que ele sentira como que um choque no coração, um arrebatamento no cérebro e pusera-se a exclamar na presença da velha e amável senhora: "Se eu tivesse sabido!" exclamação cuja estupidez o impedira de dormir durante oito dias. Essa frase de Bloch era de pouco interesse, mas eu a recordava como prova de que às vezes na vida, sob o impacto de uma emoção excepcional, a gente diz o que pensa. 

- Creio que a Sra. de Villeparisis não é absolutamente... moral - disse a princesa de Parma, sabendo que não se ia à casa da tia da duquesa e, pelo que esta acabava de dizer, vendo que era possível falar livremente. Mas tendo a Sra. de Guermantes um ar de desaprovação, ela emendou: - Mas a esse ponto, a inteligência faz perdoar tudo. 
- Vocês fazem da minha tia a ideia que se faz geralmente - replicou a duquesa -; e que, em suma, é bem falsa. É justamente o que me dizia Mémé ainda ontem. - Ela enrubesceu, uma lembrança ignorada de mim lhe embaciou o olhar. Formei a suposição de que o Sr. de Charlus lhe pedira para me desconvidar, como já mandara Robert pedir-me que não comparecesse à casa dela. Tive a impressão de que o rubor aliás incompreensível para mim que tivera o duque ao falar há pouco do irmão não podia ser atribuído à mesma causa. - Pobre tia! Ela conservará a reputação de uma pessoa do Ancien Régime, de espírito fascinante e de libertinagem desenfreada; não há inteligência mais burguesa, mais séria, mais terna; ela há de passar por uma protetora das artes, o que significa ter sido a amante de um grande pintor, mas ele jamais pôde fazê-la compreender o que era um quadro; e, quanto à sua vida, bem longe de ser uma pessoa depravada, ela era realmente feita para o casamento, de tal modo nascera Conjugal que, não tendo podido conservar um esposo, que aliás era um canalha, nunca teve uma ligação que não levasse tão a sério como se se uma união legítima, com as mesmas suscetibilidades, as mesmas cores, a mesma fidelidade. Reparem que estas são às vezes as mais sinceras em suma, há mais amantes que maridos inconsoláveis. 
- Entretanto, Oriane, repare justamente no seu cunhado Palamódik de que está falando; ele não tem amante que possa sonhar ser chorado, como o foi a pobre Sra. de Charlus. 
- Ah! - respondeu a duquesa- que Vossa Alteza me permita não ser inteiramente de sua opinião. Nem todos gostam de ser chorados da mesma forma, cada qual tem suas preferências. Enfim, ele lhe votou um verdadeiro culto após a sua morte. É verdade que algumas vezes fazemos pelos mortos o que não faríamos pelos vivos. 
- Primeiro - respondeu a Sra. de Guermantes, com um acento sonhador que contrastava com sua intenção zombeteira a gente vai ao enterro, o que nunca se faz pelos vivos! - O Sr. de Guermantes encarou o Sr. de Bréauté com ar malicioso, como para provocá-lo a rir do espírito da duquesa. - Mas, enfim, confesso francamente - continuou a Sra. do Guermantes que a forma como eu desejaria ser pranteada por um homem a quem amasse não é a de meu cunhado.

     O rosto do duque se ensombreceu. Não gostava que a mulher emitisse juízos a torto e a direito, sobretudo acerca do Sr. de Charlus. 

- Você é difícil. A mágoa dele sensibilizou todo mundo - disse ele em tom mal humorado.

     Mas a duquesa possuía, em relação ao marido, esta espécie dó ousada dos domadores ou dos que convivem com um doido e não receiam molestá-lo: 

- Muito bem! Que é que você quer, é edificante, não digo que ele vai todos os dias ao cemitério lhe contar quantas pessoas teve no jantar; lamenta-a enormemente, mas como a uma prima, a uma avó, a uma irmã. Não é luto de marido. É verdade que se tratava de dois santos, o que torna o luto um pouco especial.

     O Sr. de Guermantes, irritado com o falatório da mulher, fixava nela as pupilas carregadas, com terrível imobilidade. 

- Não é para falar mal do pobre Mémé, que, entre parênteses, não estava livre esta noite prosseguiu a duquesa -; reconheço que é bom como pessoa, delicioso, tem uma delicadeza, um coração de mulher, o Mémé! 
- O que você diz é absurdo - interrompeu vivamente o Sr. de Guermantes. - Mémé não tem nada de afeminado, ninguém é mais viril que ele. 
- Mas não digo que ele seja afeminado de jeito nenhum. Comenta pelo menos o que estou dizendo - retrucou a duquesa. - Ah, aí, quando acha que querem mexer com seu irmão... acrescentou ela voltando-se para a princesa de Parma. 
- É muito gentil, é delicioso de ouvir. Não há nada tão belo como dois irmãos que se estimam - disse a princesa de Parma, como o teria feito muita gente do povo, pois pode-se pertencer pelo sangue a uma família principesca e, pelo espírito, a uma família bem popular. 
- Já que falávamos da sua família, Oriane - disse a princesa -, vi ontem o seu sobrinho Saint-Loup; creio que desejava lhe pedir um favor. -

     O duque de Guermantes franziu o cenho jupiteriano. Quando não gostava de prestar um favor, não queria que a mulher se encarregasse dele, sabendo que isso daria no mesmo e que as pessoas a quem a duquesa se visse obrigada a pedi-lo o inscreveriam no débito comum do casal, tanto como se fosse solicitado apenas pelo marido. 

- Por que não me pediu pessoalmente? - Indagou a duquesa. - Ele ficou duas horas aqui, ontem, e Deus sabe como pôde ser aborrecido. Não seria mais estúpido que qualquer outro se tivesse tido, como tantas pessoas da sociedade, a inteligência de saber continuar estúpido. Apenas, esse toque de sabedoria é que é terrível. Ele quer ter uma inteligência aberta... aberta a todas as coisas que não compreende. Ele lhe fala de Marrocos, é horrível. 
- Ele não quer voltar para lá por causa de Rachel - disse o príncipe de Foix. 
- Mas já que romperam - interrompeu o Sr. de Bréauté. 
- Tanto não romperam que eu a encontrei há dois dias na garçonniere de Robert; asseguro-lhe que não davam a impressão de pessoas brigadas - respondeu o príncipe de Foix, que apreciava espalhar todos os rumores que pudessem fazer gorar um casamento para Robert e que, aliás, podia ter sido enganado pelos reatamentos intermitentes de uma ligação efetivamente encerrada. 
- Essa Rachel me falou do senhor; vejo-a de quando em vez, passando de manhã pelos Chames-Élysées, é uma espécie de évaporée como dizem os senhores, o que os senhores chamam uma dégrafée, uma espécie de "Dama das camélias", no sentido figurado, é claro. - Esse discurso me era dirigido pelo príncipe Von, que fazia questão de mostrar-se a par da literatura francesa e das finuras parisienses. 
- Justamente, é a propósito de Marrocos... - exclamou a princesa, apanhando a deixa precipitadamente. 
- Que pode querer ele para o Marrocos? - perguntou severamente o Sr de Guermantes -; Oriane não consegue absolutamente nada nesse sentido. E ele bem o sabe. 
- Ele crê que inventou a estratégia - prosseguiu a Sra. de Guermantes -; e depois, emprega palavras impossíveis para as menores coisas, o que não impede que faça borrões em suas cartas. Outro dia, disse que tinha comido batatas sublimes e que achara para alugar um camarote sublime. 
- Ele fala latim - encareceu o duque. 
- Como, latim? - perguntou a princesa. 
- Palavra de honra! Que Vossa Alteza pergunte a Oriane se eu exagero. 
- Como não, Alteza; outro dia ele disse uma frase, de um só diálogo: "Não conheço mais tocante exemplo de sic transit gloria mundi"; da frase a Vossa Alteza porque, depois de vinte perguntas e apelando 15 linguistas, chegamos a reconstituí-la, mas Robert lançou-a sem tomar algo, mas se podia verificar que havia latim aí, ele dava a impressão de um personagem do Doente imaginário! E tudo isso se relacionava à morte da imperatriz da Áustria! 
- Pobre mulher! - exclamou a princesa. - Era uma criatura preciosa! 
- Sim - concordou a duquesa -; um tanto louca, um tanto insensata, mas era uma boa mulher, uma louca gentil e muito amável; a qual nunca entendi por que jamais comprara uma dentadura que se mantivesse firme; a sua se despregava sempre antes do fim das frases, e ela era obrigada a interrompê-las para não a engolir. 
- Essa Rachel me falou do senhor; disse-me que o pequeno Saint-Loup o adorava, chegava a preferi-lo a ela - disse-me o príncipe Von, comendo sempre como um ogro, o rosto vermelho, e cujo riso perpétuo descobria todos os dentes. 
- Mas então, ela deve ter ciúme de mim e me detestar respondeu 
- De forma alguma. Ela me falou muito bem do senhor. A amado príncipe de Foix talvez se sentisse enciumada se ele o preferisse a ela. 
- Não compreende? Volte comigo, que eu lhe explicarei tudo. 
- Não posso; vou à casa do Sr. de Charlus às onze horas. 
- Veja só; ontem ele me convidou para jantar esta noite, mas que não aparecesse depois das dez e quarenta e cinco. Mas, se o senhor deve ir à casa dele, ao menos venha comigo até o Théâtre-Français, e o senhor estará na periferia - disse o príncipe, que sem dúvida achava que aquilo queria dizer "nas proximidades", ou talvez "no centro".

     Porém seus olhos dilatados em seu belo rosto rechonchudo e vermelho me deram medo, e recuei dizendo que um amigo devia vir me buscar. Tal resposta não me parecia ofensiva. Entretanto, o príncipe pensava de modo diverso, pois nunca mais me dirigiu a palavra. 

- É preciso justamente que eu vá ver a rainha de Nápoles, que desgosto ela não deve sentir! - disse (ou pelo menos me pareceu ter dito) a princesa de Parma. Pois estas palavras só me vieram indistintamente através das outras, mais próximas, que me dirigira no entanto em voz baixa, o príncipe Von, que sem dúvida receava, caso falasse em tom mais alto, ser ouvido pelo Sr. de Foix. 
- Ah, não - respondeu a duquesa -; creio que ela não tem desgosto nenhum. 
- Nenhum? Você está sempre nos extremos, Oriane - disse o Sr. de Guermantes, retomando seu papel de falésia que, opondo-se às vagas, obriga-as a lançarem mais alto o seu rolo de espumas. 
- Basin sabe ainda melhor que eu que estou dizendo a verdade - replicou a duquesa -, mas julga-se forçado a assumir ares de severidade devido à sua presença; tem medo que eu a escandalize. 
- Oh, não, por favor! - exclamou a princesa de Parma, temendo que por causa dela alterassem em alguma coisa aquelas deliciosas quartas-horas da duquesa de Guermantes, aquele fruto proibido que a própria rainha da Suécia ainda não tivera o direito de comer.

continua na página 227...
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