Hannah Arendt
Parte II
IMPERIALISMO
Se eu pudesse, anexaria os planetas.
Cecil Rhodes
2.4 - Os "Direitos dos Ingleses" vs. Os Direitos do Homem
Enquanto as sementes da ideologia racial alemã foram plantadas durante as guerras
napoleônicas, o início do racismo inglês data da Revolução Francesa. Pode ser atribuído ao
homem que a denunciou violentamente como "a mais espantosa (crise) que jamais ocorreu no
mundo" — a Edmund Burke.[41] É bem conhecida a profunda influência que a sua obra exerceu
não apenas sobre o pensamento político inglês, mas também sobre o alemão. Convém sublinhar esse fenômeno,
dadas as semelhanças entre os sentimentos raciais alemão e inglês, em oposição ao francês.
Essas semelhanças decorrem do fato de ambas as nações terem derrotado a França, tendendo,
em consequência, à classificação negativa das ideias de Liberté-Egalité-Fraternité como
resultantes do pensamento estrangeiro. Como a desigualdade social era a base da sociedade
inglesa, os conservadores britânicos não se sentiam muito à vontade quando se tratava dos
"direitos do homem". Ao contrário, segundo a opinião geral que emitiam no século XIX, a
desigualdade fazia parte do caráter nacional inglês. Para Disraeli, "nos direitos dos ingleses
existia algo melhor que os Direitos do Homem", e para sir James Stephen "poucos fatos da
história [eram] mais deploráveis do que a maneira pela qual os franceses se deixavam empolgar
por essas questões".[42] Esse é um dos motivos pelos quais os ingleses foram capazes de
desenvolver pensamentos racistas numa base nacional antes do fim do século XIX, quando, na
França, as mesmas opiniões revelaram desde o começo seu caráter antinacional.
O principal argumento de Burke contra os "princípios abstratos" da Revolução Francesa está
contido na seguinte frase: "A constante política da nossa constituição consiste em afirmar e
assegurar as nossas liberdades como herança vinculada, que recebemos dos nossos
antepassados e que devemos transmitir à nossa posteridade; como um patrimônio pertencente
especialmente ao povo deste reino, sem qualquer referência a outros direitos mais genéricos e
anteriores". O conceito de herança, aplicado à natureza da liberdade, foi a base ideológica da
qual o nacionalismo inglês recebeu um curioso toque de sentimentos raciais desde a Revolução
Francesa. Formulado por um escritor da classe média, significava a aceitação do conceito feudal
de liberdade, vista como soma de privilégios herdados juntamente com o título e a terra sem
infringir os direitos da classe privilegiada dentro da nação inglesa, Burke estendeu o princípio
desses privilégios a todo o povo inglês, elevando-o, como todo, ao nível de nobreza entre as
nações. Daí o seu desprezo por aqueles que davam à liberdade o nome de "direitos do homem",
quando esses direitos, em sua opinião, só tinham sentido como os "direitos dos ingleses".
Na Inglaterra, o nacionalismo surgiu sem que houvesse sérias ameaças às antigas classes
feudais. Isso foi possível porque a pequena fidalguia inglesa a partir do século XVIII havia
assimilado as camadas superiores da burguesia, de forma que, às vezes, até mesmo o homem
comum podia atingir a posição de um lorde. Esse processo permitiu eliminar grande dose da
habitual arrogância dos nobres, criando considerável senso de responsabilidade pela nação como
um todo; mas, ao mesmo tempo, a mentalidade feudal e seus conceitos influenciavam mais
facilmente que em outros países as ideias políticas das classes inferiores, sempre passíveis de
ascensão. Assim, o conceito de herança foi aceito quase sem contestação e aplicado a toda a
"estirpe" britânica. Resultou dessa assimilação de valores por todas as classes a preocupação quase obsessiva da ideologia racial
inglesa com as teorias de hereditariedade e com o seu equivalente moderno, a eugenia.
Desde o momento em que os europeus tentaram incluir todos os povos da terra no conceito de
"humanidade ampla", começaram a irritar-se com a descoberta das substanciais diferenças
físicas que os distinguiam dos homens dos outros continentes.[43] O entusiasmo que se
manifestava no século XVIII pela diversidade em que se consubstanciava a natureza, na
realidade idêntica e onipresente, do homem e da razão deparava com a seguinte questão crucial:
se o dogma cristão da unidade e igualdade de todos os homens baseava-se na descendência
comum de um casal original, como poderiam reagir os homens diante das tribos que, ao que se
sabia, nunca haviam engendrado, por si mesmas, qualquer expressão da razão ou paixão
humanas, quer em atos culturais, quer em costumes populares, e cujas instituições nunca haviam
ultrapassado um nível muito baixo? Esse novo problema, que surgiu na cena histórica da Europa
e da América em consequência do conhecimento mais profundo das tribos africanas, já havia
provocado, especialmente na América e em algumas possessões britânicas, um retrocesso a
formas de organização social que se acreditavam definitivamente ultrapassadas pelo
cristianismo. Mas nem mesmo a escravidão, embora estabelecida em base estritamente racial,
engendrou ideologias racistas entre os povos escravizadores antes do século XIX. Durante todo
o século XVIII, até os senhores-de-escravos americanos consideravam a escravidão uma
instituição provisória e pensavam em aboli-la gradualmente. Mas muito deles provavelmente
repetiram com Jefferson: "Aterroriza-me pensar que Deus é justo".
Na França, onde o problema das tribos negras havia provocado o desejo de assimilá-las e educá-las, o grande cientista Leclerc de Buffon elaborou uma classificação de raças que, catalogando
todos os outros povos segundo as diferenças com relação aos europeus-, transmitia a ideia de
igualdade através de justaposição de vários elementos.[44] O século XVIII, para usar a frase de
Toc-queville, admiravelmente precisa, "acreditava na variedade das raças, mas na unidade da
espécie humana".[45] Na Alemanha, Herder se recusara a aplicar aos homens a "ignóbil palavra"
raça, e mesmo o primeiro historiador da cultura humana a usar a classificação de espécies
diferentes, Gustav Klemm,[46] ainda respeitava a ideia da humanidade como o escopo geral dos
seus estudos. Mas na América e na Inglaterra, onde os povos tinham de resolver um problema
de convivência após a abolição da escravatura, as coisas se afiguravam bem mais difíceis. Com a
exceção da África do Sul — nação que só influenciou o racismo ocidental depois da "corrida
para a África" na década de 80 —, esses países foram os primeiros a lidar com o problema racial
na política prática. A abolição da escravatura acirrou os conflitos internos em vez de solucionar
as dificuldades existentes. Isso ocorreu especialmente na Inglaterra, onde os "direitos dos
ingleses" não foram substituídos por uma nova orientação política que pudesse ter proclamado
os direitos do homem. Assim, a abolição da escravatura nas possessões britânicas em 1834 e a
discussão que precedeu a Guerra Civil Americana encontraram na Inglaterra uma opinião
pública altamente confusa — solo fértil para as várias doutrinas "naturalistas" que surgiram
nessas décadas.
A primeira delas foi representada pelos poligenistas que, acusando a Bíblia de ser um livro de
piedosas mentiras, negavam qualquer relação entre as raças humanas; seu principal feito foi a
destruição da ideia da lei natural como elo de ligação entre todos os homens e todos os povos.
Embora sem estipular uma superioridade racial predestinada, o poligenismo isolou
arbitrariamente todos os povos, resultado do profundo abismo gerado pela impossibilidade física
da compreensão e comunicação humanas. O poligenismo, ao explicar porque "o Leste é o Leste
e o Oeste é o Oeste, e nunca os dois se encontrarão", ajudou a evitar casamentos inter-raciais
nas colônias e a promover a discriminação contra indivíduos de origem mista, que, segundo o
poligenismo, não são verdadeiros seres humanos, pois não pertencem a raça alguma; ao
contrário, cada homem "misto" é uma espécie de monstro porque nele "cada célula é o palco de
uma guerra civil".[47]
Por mais duradoura que, a longo prazo, tenha sido a influência do poligenismo sobre a ideologia
racial inglesa, ele foi derrotado e substituído por uma outra doutrina, o darwinismo, que também
partia do princípio da hereditariedade, mas acrescentava-lhe o princípio político peculiar ao
século XIX — o progresso. Assim, chegava à conclusão oposta, mas muito mais convincente,
de que o homem é aparentado não apenas com os outros homens, mas também com a vida
animal, que a existência de raças inferiores mostra claramente que somente diferenças graduais
separam o homem do animal, e que uma forte luta pela existência domina todos os seres vivos.
O darwinismo devia sua força especialmente ao fato de seguir o caminho da antiga doutrina do
direito da força. Mas, enquanto essa doutrina, quando usada por aristocratas, expressava-se em
orgulhosos termos de conquista, agora era traduzida na amarga linguagem de pessoas que
apenas haviam conhecido a luta pelo pão de cada dia e que, se batalhavam, era só para
conseguir a relativa segurança dos arrivistas.
O esmagador sucesso do darwinismo resultou também do fato de ter fornecido, a partir da ideia
de hereditariedade, as armas ideológicas para o domínio de uma raça ou de uma classe sobre
outra, podendo ser usado tanto a favor como contra a discriminação racial. Do ponto de vista
político, o darwinismo era neutro em si: servia como base tanto ao pacifismo e cosmopolitismo, como às formas mais agudas de ideologias imperialistas.[48] Nas décadas de 70 e 80 do século
XIX, o darwinismo era ainda quase exclusivamente manejado na Inglaterra pelos
anticolonialistas. E o primeiro filósofo da evolução, Herbert Spencer, que tratou a sociologia
como parte da biologia, acreditava que a seleção natural era benéfica à evolução da humanidade
e que dela resultaria a paz eterna. Para a discussão política, o darwinismo oferecia dois
conceitos importantes: a luta pela existência, com a otimista afirmação da necessária e
automática "sobrevivência dos mais aptos", e as infinitas possibilidades que pareciam haver na
evolução do homem a partir da vida animal, e que deram origem à nova "ciência" da eugenia.
A doutrina da necessária sobrevivência do mais apto, com a implicação de que as camadas
superiores da sociedade são eventualmente as mais "aptas", morreu, como havia morrido a
doutrina da conquista, no momento em que as classes dominantes da Inglaterra e a hegemonia
inglesa nas colônias já não estavam absolutamente seguras, isto é, quando se tornou altamente
duvidoso que os mais "aptos" hoje continuariam ainda os mais aptos amanhã. Mas a outra parte
do darwinismo, a evolução do homem a partir da vida animal, infelizmente sobreviveu. A
eugenia prometia vencer as incômodas incertezas da doutrina da sobrevivência, segundo a qual
era tão impossível prever quem viria a ser o mais apto quanto proporcionar a uma nação os meios de desenvolver aptidão eterna. Essa possível consequência da eugenia aplicada foi
enfatizada na Alemanha nos anos 20, como uma reação ao Declínio do Ocidente de Spengler.[49] Bastava transformar o processo de seleção natural, que funcionava às ocultas do homem, em
instrumento racional conscientemente empregado. A bestialidade sempre esteve inerente na
eugenia, e é bem característica a velha observação de Haeckel, de que a eutanásia pouparia
muitas "despesas inúteis à família e ao governo".[50] Finalmente, os últimos discípulos do
darwinismo na Alemanha decidiram abandonar inteiramente o campo da pesquisa científica,
esquecer a busca do elo que faltava entre o homem e o macaco e, em contrapartida, dar início
aos esforços práticos para transformar o homem naquilo que os darwinistas acreditavam que o
macaco fosse.
Mas, antes que o nazismo, no decurso de sua política totalitária, tentasse transformar o homem
em animal, houve numerosos esforços de transformá-lo num deus por meios estritamente
hereditários.[51] Não somente Herbert Spencer mas todos os primeiros evolucionistas e darwinistas "acreditavam tão fortemente no futuro
angelical da humanidade como na origem simiesca do homem".[52] Acreditava-se que a
hereditariedade selecionada resultaria do "gênio hereditário",[53] e voltava-se a afirmar que a
aristocracia era o produto natural não da política, mas da seleção natural de raças puras.
Transformar toda a nação numa aristocracia natural, da qual exemplares seletos viriam a ser
gênios e super-homens, era uma das muitas "ideias" produzidas por intelectuais liberais
frustrados, em seus sonhos de substituir as antigas classes governantes por uma nova "elite"
através de meios não-políticos. No fim do século XIX, escritores tratavam de assuntos políticos
em termos de biologia e zoologia, e zoólogos escreviam "Observações biológicas sobre nossa
política externa", como se houvessem descoberto um guia infalível para os estadistas.[54] Todos
eles apresentavam novas maneiras de controlar e regular a "sobrevivência dos mais aptos"
segundo os interesses nacionais do povo inglês.[55]
O aspecto mais perigoso dessas doutrinas evolucionistas estava no fato de aliarem o conceito da
hereditariedade à insistência nas realizações pessoais e nos traços de caráter individuais, tão
importantes para o amor-próprio da classe média do século XIX. Essa classe média queria cientistas que provassem que os "grandes
homens" e não os aristocratas eram os verdadeiros representantes da nação em que se
personificava o "gênio da raça". Esses cientistas proporcionaram uma fuga ideal da
responsabilidade política quando "provaram" a verdade da antiga afirmação de Benjamim
Disraeli de que o "grande homem" é "a personificação da raça, o seu exemplar seleto". O
desenvolvimento desse gênio teve o seu fim lógico quando outro discípulo do evolucionismo
simplesmente declarou: "O inglês é o Homem Superior (Overman), e a história da Inglaterra é a
história da sua evolução".[56]
É significativo que o pensamento racial inglês, como, aliás, aconteceu na Alemanha, se tenha
originado entre os escritores da classe média e não entre a nobreza, que tenha nascido do desejo
de estender os benefícios dos padrões de nobreza a todas as classes, e que se nutrisse de
sentimentos verdadeiramente nacionais. A esse respeito, as ideias de Carlyle referentes ao gênio
e ao herói correspondiam mais às armas de um "reformador social" do que às doutrinas do "pai
do imperialismo britânico", como foi acusado com injustiça.[57] A idolatria do herói, que lhe
granjeou vastas plateias tanto na Inglaterra como na Alemanha, tinha as mesmas origens que a
idolatria da personalidade do romantismo alemão. Tratava-se da mesma afirmação e glorificação da grandeza inata do caráter individual, independentemente do ambiente social.
Entre os homens que influenciaram o movimento colonial a partir de meados do século XIX até
o surgimento do verdadeiro imperialismo no fim desse século, nenhum escapou à influência de
Carlyle, mas nenhum pode ser acusado de pregar um racismo declarado. O próprio Carlyle, em
seu ensaio "A questão do negro", preocupa-se com os meios de ajudar as Índias Ocidentais a
produzirem "heróis". Charles Dilke, cujo Greater Britam (1869) é apontado às vezes como o
início do imperialismo,[58] era um radical avançado que glorificava os colonizadores ingleses
como parte da nação britânica, discordando dos que, desdenhando-os, viam em suas terras
meras colônias. J. R. Seeley, cujo Expansion of England (1883) vendeu 80 mil exemplares em
menos de dois anos, ainda respeita os hindus como um povo estrangeiro e faz clara distinção
entre eles e os "bárbaros". Mesmo Froude — cuja admiração pelos bôeres, o primeiro povo
branco a aceitar abertamente a filosofia tribal do racismo, pode parecer suspeita — opunha-se à
concessão de direitos excessivos à África do Sul, porque o "autogoverno na África do Sul
significaria o governo dos nativos pelos colonizadores europeus, e isso não era autogoverno".[59] De modo semelhante ao que ocorreu na Alemanha, o nacionalismo inglês foi estimulado por
uma classe média que nunca se havia emancipado inteiramente da nobreza e que, portanto,
trazia em si o germe da ideologia racial.
Mas, diferentemente da Alemanha, cuja falta de unidade nacional tornara necessário erguer uma
muralha ideológica que unisse o povo carente de história comum e de unificação geográfica, as
Ilhas Britânicas eram completamente separadas do mundo por fronteiras naturais, e a Inglaterra
como nação teve de formular uma teoria de unidade entre homens que viviam em colônias
distantes, no além-mar, separados do país de origem por mares e oceanos. O elo que os unia era
a descendência comum, a origem comum, a língua comum. A separação dos Estados Unidos
havia demonstrado que esses elos, por si só, não garantiam o domínio; e não só a América, mas
também outras colônias, embora não com a mesma violência, evidenciaram forte tendência de
adotar uma orientação constitucional diferente da do país de origem. Para salvar esses antigos
cidadãos britânicos, Dilke, influenciado por Carlyle, falou de "saxonidade", palavra que parecia
ter o dom de seduzir e trazer de volta à pátria até mesmo o povo dos Estados Unidos, ao qual ele
devota um terço do seu livro. Como radical, Dilke podia agir como se a Guerra de
Independência não houvesse sido uma guerra entre duas nações, e sim uma espécie de guerra
civil inglesa do século XVIII. E uma das razões que explicam o surpreendente fato de os
reformadores sociais e os radicais promoverem o nacionalismo na Inglaterra é esta: desejavam
manter as colônias não apenas por acharem que eram uma válvula de escape necessária às
classes baixas; queriam, na verdade, conservar sobre o país natal a influência exercida por esses
filhos mais radicais das Ilhas Britânicas. Essa motivação transparece em Froude, que desejava
"manter as colônias, porque achava possível reproduzir nelas um estado social simples e um
modo de vida mais nobre do que seria possível na Inglaterra industrial",[60] e influiu
definitivamente no Expansion ofEngland, de Seeley: "Quando nos habituarmos a contemplar
todo o Império reunido e chamarmos todo ele de Inglaterra, veremos que também existem os
Estados Unidos". Qualquer que tenha sido o sentido que escritores pósteros deram à palavra
"saxonidade", esta levava na obra de Dilke um genuíno sentido político para uma nação que já
não era coesa num país limitado. "No decurso de todas as minhas viagens, a ideia que foi ao
mesmo tempo minha companheira e guia — a chave que iria revelar-me as coisas ocultas das
terras novas e estranhas — era o conceito (...) da grandeza de nossa raça que já envolvia a terra,
e cujo destino era, talvez, vir a cobri-la no futuro", escreve. Para Dilke, a origem comum, a
hereditariedade, a "grandeza da raça" não eram fatos físicos nem a chave da história, mas um
guia muito necessário no mundo atual, o único laço digno de confiança num espaço sem limites.
Como os colonizadores ingleses se haviam espalhado por toda a terra, acontecia que o conceito
de nacionalismo mais perigoso, a ideia de "missão nacional", era forte em especial na Inglaterra.
Embora a ideia de missão nacional em si tenha crescido durante muito tempo desprovida de
influências raciais nos países cujos povos aspiravam à nacionalidade, ela veio finalmente demonstrar sua afinidade com a ideologia racial. Os nacionalistas ingleses que citamos acima
podem ser considerados casos extremos à luz dos conhecimentos mais recentes; não causaram
mais danos que, por exemplo, Auguste Comte, na França, quando manifestou a esperança de
uma humanidade unida, organizada e regenerada sob a liderança — aprésidence — da França.[61]
Não abandonavam a ideia da humanidade, embora só na Inglaterra vissem a sua suprema
garantia. Não podiam afastar-se da ênfase dada a esse conceito nacionalista, já que a dissolução
dos laços entre o solo e o povo, implícita na ideia de missão, não era uma simples ideologia para
a política inglesa, mas sim um fato consumado que qualquer estadista tinha de levar em conta. O
que os distingue definitivamente dos racistas que os sucederam é que nenhum deles jamais se
preocupou seriamente em discriminar outros povos como raças inferiores, e isso, senão por
outros motivos, pelo menos devido ao fato de que os países a que se referiam, o Canadá e a
Austrália, eram quase desabitados e não tinham qualquer problema sério de população.
Assim, não foi por acaso que o primeiro estadista inglês a acentuar repetidamente a sua crença
nas raças e na superioridade racial como fator determinante na história e na política tenha sido
um homem que, sem qualquer interesse particular com relação as colônias e aos colonizadores
ingleses — que chamou de "peso morto das colônias que não governamos" —, quis estender o
poder imperial britânico até a Ãsia e, na verdade, fortaleceu consideravelmente a posição da
Grã-Bretanha na única colônia que se defrontava com um problema populacional e cultural. Foi
Benjamin Disraeli quem fez da rainha da Inglaterra a imperatriz da Índia; foi ele o primeiro
estadista inglês a considerar a índia como pedra fundamental de um Império e a querer cortar os
laços que uniam o povo inglês às nações do continente.[62] Construiu assim um dos alicerces de
uma mudança básica no domínio inglês da índia. A colônia havia sido governada com a
crueldade habitual dos conquistadores — homens a quem Burke havia chamado de
"transgressores das leis na índia". Agora, ela iria ter uma administração cuidadosamente
planejada, cujo objetivo era o estabelecimento de um corpo permanente que governaria por
meio de medidas administrativas. Essa experiência aumentou para a Inglaterra o perigo contra o
qual Burke havia alertado: o perigo de que os "transgressores das leis na índia" viessem a ser
"os fazedores da lei na Inglaterra".[63] Pois todos eles, para os quais não existia "transação na
história da Inglaterra que mais nos orgulhe que o estabelecimento do Império da índia", afirmavam que a liberdade e a igualdade eram "grandes nomes para
pequenas coisas".[64]
A política introduzida por Disraeli significou o estabelecimento de uma casta exclusiva num
país estrangeiro cuja única função era o domínio e não a colonização. Para que esse conceito se
materializasse — e Disraeli não sobreviveu para vê-lo realizado —, o racismo iria ser realmente
um instrumento indispensável. Vislumbrava a ameaçadora transformação do povo de uma nação
em "raça pura" primorosamente organizada, que se considerava "a aristocracia da natureza" —
para repetir as palavras do próprio Disraeli.[65]
O que traçamos até aqui foi a história de uma opinião na qual só agora podemos ver, depois de
todas as terríveis experiências do nosso tempo, os primeiros albores do racismo. Mas, embora o
racismo tenha introduzido novos componentes ideológicos em todos os países, não se trata de
uma ideia dotada de "lógica inerente"; O pensamento racial constituía uma fonte de argumentos
de conveniência para diversos conflitos políticos, mas nunca monopolizou a vida política dos
respectivos países; acirrou e explorou interesses opostos ou conflitos políticos, mas jamais criou
novos conflitos, nem produziu novas categorias de pensamento político. O racismo surgiu de
experiências e constelações políticas que eram desconhecidas e teriam sido completamente
estranhas, até mesmo para ardorosos defensores da "raça" como Gobineau e Disraeli. Entre
homens de ideias brilhantes e ágeis e homens de ações brutais e bestiais, existe um abismo que
nenhuma explicação intelectual pode transpor. É provável que esse racismo tivesse desaparecido
a tempo, juntamente com outras opiniões irresponsáveis do século XIX, se a corrida para a
África e a nova era do imperialismo não houvessem exposto a população da Europa ocidental a
novas e chocantes experiências. O imperialismo teria exigido a invenção do racismo como única
"explicação" e justificativa de seus atos, mesmo que nunca houvesse existido uma ideologia
racista no mundo civilizado.
Mas, como existiu, o racismo recebeu considerável substância "teórica". A própria existência de
uma opinião, até certo ponto tradicional, serviu para ocultar a essência destruidora da nova
doutrina que, sem essa aparência de respeitabilidade nacional, ou sem a aparente sanção da
tradição, teria revelado de imediato a incompatibilidade com todos os padrões morais e políticos
ocidentais, antes que lhe fosse permitido destruir a comunidade das nações europeias.
continua página 199...
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Parte II Imperialismo (2.4 - Os "Direitos dos Ingleses" vs. Os Direitos do Homem)
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[41] Reflections on the revolution in France, 1790, Everyman's Library Edition, Nova York, p.8.
[42] Liberty, equality, fraternity, 1873, p. 254. Quanto a lorde Beaconsfield, ver Benjamin Disraeli, Lord George
Bentinck, 1853, p. 184.
[43] Encontram-se ecos significantes, se bem que moderados, dessa perplexidade em muitas narrativas de viagens do
século XVIII. Voltaire achou que ela valia uma nota especial em seu Dictionnaire philosophique: "Além disso, já
vimos como são diferentes as raças que habitam este planeta, e quão grande deve ter sido a surpresa do primeiro
negro e do primeiro branco ao se encontrarem" (artigo: "Homme").
[44] Histoire Naturelle, 1769-89.
[45] Op. cit., carta de 15 de maio de 1852.
[46] Allgemeine Kulturgeschichte der Menschheit [A história geral da cultura da humanidade], 1843-52.
[47] A. Carthill, Thelosí dominion, 1924, p. 158.
[48] Ver Friedrich Brie, Imperialistische Stròmungen in der englischen Literatur [Correntes imperialistas na literatura
inglesa], Halle, 1928.
[49] Ver, por exemplo, Otto Bangert, Gold oder Blut [Ouro ou sangue], 1927. "Assim, a civilização pode ser eterna", p. 17.
[50] Em Lebenswunder (O milagre da vida), 1904, pp. 128 ss.
[51] Quase um século antes que o evolucionismo tivesse vestido o manto de ciência, vozes alertadoras previram as
consequências inerentes de uma loucura que estava, então, apenas no estágio da pura imaginação. Voltaire, mais de uma vez,
havia entretido opiniões evolucionistas — ver principalmente "Philosophie générale: métaphysique, morale et théologie", em
Oeuvres completes, 1785, tomo 40, pp. 16 ss. Em seu Dictionnaire philosophique, artigo "Chaine des êtres créés", ele
escreveu: "De início, nossa imaginação se compraz com a imperceptível transição da matéria bruta para a matéria organizada, das plantas aos zoófitos, desses zoófitos aos animais, destes ao homem, do homem
para os espíritos, destes espíritos envoltos num pequeno corpo aéreo para as substâncias imateriais: e (...) para o
próprio Deus. (...) Mas pode tornar-se Deus o mais perfeito espírito criado pela Entidade Suprema? Não há um
infinito entre Deus e ele? (...) Não existe obviamente um vazio entre o macaco e o homem?"
[52] Hayes, op. cit., p. 11. Hayes corretamente acentua a forte moralidade prática de todos esses primeiros
materialistas. Explica "esse curioso divórcio entre a moral e a crença" pelo "que sociólogos descreveram, mais tarde,
com uma defasagem no tempo" (p. 130). Essa explicação, contudo, parece bastante débil quando se recorda que
outros materialistas, que, como Haeckel na Alemanha ou Vacher de Lapouge na França, haviam abandonado a calma
dos seus estudos e pesquisa para se dedicarem a atividades de propaganda, não foram muito afetados por essa
defasagem de tempo; que, por outro lado, os seus contemporâneos não imbuídos de doutrinas materialistas, como
Barres & Cia., na França, eram adeptos muito práticos da perversa brutalidade que varreu a França durante o Caso
Dreyfus. A súbita decadência da moral no mundo ocidental parece ter sido causada' menos pelo desenvolvimento de
certas "ideias" do que por uma série de novos eventos políticos e problemas sociais com os quais se defrontou uma
humanidade surpresa.
[53] Era esse o título de um livro muito lido, de autoria de F. Galton, publicado em 1869, que provocou um dilúvio
literário sobre o assunto nas décadas seguintes.
[54] "A biological view of our foreign policy" foi publicado por P. Charles Michel no Satur-day Review, Londres,
fevereiro de 1896. As obras mais importantes desse tipo são: Thomas Huxley, The strugglefor existence in human
society, 1888 (sua tese principal: a queda das civilizações só é necessária quando a taxa de nascimento não é
controlada); Benjamin Kidd, Social evolution, 1894; John B. Crozier, History of intellectual development on the Unes
of modem evolution, 1897-1901; Karl Pearson (National Life, 1901), professor de eugenia na Universidade de
Londres e um dos primeiros a descrever o progresso como uma espécie de monstro impessoal que devora tudo o que
encontra pelo caminho; Charles H. Harvey, em The biology of British politics, 1904, argumenta que, por meio de um
rígido controle da "luta pela existência" dentro de um país, esse país pode se tornar todo-poderoso para a luta pela
existência com os outros povos.
[55] Ver K. Pearson, op. cit. Mas Fr. Galton já havia afirmado: "Desejo acentuar o fato de que o aperfeiçoamento dos
dons naturais das gerações futuras da raça humana está, em grande parte, sob o nosso controle" (op. cit., ed. 1892, p. XXVI).
[56] Testament of John Davidson, 1908.
[57] C. A. Bodelsen, Studiesin mid-Victorian Imperialism, 1924, pp. 22 ss.
[58] E. H. Damce, The Victorian Ulusion, 1928. "O imperialismo começou com um livro. (...) O Greater Britam, de
Dilke".
[59] "Two lectures on South África", em Short Studies on great subjects, 1867-82.
[60] C. A. Bodelsen, op. cit., p. 199.
[61] Em seu Discours sur Vensemble dupositivisme, 1848, pp. 384 ss.
[62] "Devemos ter poder e influência na Ásia; consequentemente, na Europa ocidental" (W. F. Monypenny e G. E.
Buckle, The life of Benjamin Disraeli, Earl ofBeaconsfield, Nova York, 1929, II, 210). Mas, "se a Europa, por sua
miopia, vier a decair para um estado inferior e exausto, restará para a Inglaterra um futuro ilustre" (ibid., I, livro IV).
Porque "a Inglaterra já não é mais uma simples potência europeia (...) é mais uma potência asiática do que europeia"
(ibid., II, 201).
[63] Burke, op. cit., pp. 42-3: "O poder da Câmara dos Comuns (...) é realmente grande; e possa ela preservar a sua
grandeza durante muito tempo (...) e o fará, enquanto puder evitar que o infrator da lei na índia se torne o legislador
da Inglaterra".
[64] Sir James F. Stephen, op. cit., p. 253 epassim; ver também seu "Foundations of the government of índia", 1883,
em The Nineteenth Century, LXXX.
[65] Quanto ao racismo de Disraeli, compare o capítulo 3.
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