quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (2.4 - Os "Direitos dos Ingleses" vs. Os Direitos do Homem)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

2. O Pensamento Racial Antes do Racismo
     2.4 - Os "Direitos dos Ingleses" vs. Os Direitos do Homem 
          Enquanto as sementes da ideologia racial alemã foram plantadas durante as guerras napoleônicas, o início do racismo inglês data da Revolução Francesa. Pode ser atribuído ao homem que a denunciou violentamente como "a mais espantosa (crise) que jamais ocorreu no mundo" — a Edmund Burke.[41] É bem conhecida a profunda influência que a sua obra exerceu não apenas sobre o pensamento político inglês, mas também sobre o alemão. Convém sublinhar esse fenômeno, dadas as semelhanças entre os sentimentos raciais alemão e inglês, em oposição ao francês. Essas semelhanças decorrem do fato de ambas as nações terem derrotado a França, tendendo, em consequência, à classificação negativa das ideias de Liberté-Egalité-Fraternité como resultantes do pensamento estrangeiro. Como a desigualdade social era a base da sociedade inglesa, os conservadores britânicos não se sentiam muito à vontade quando se tratava dos "direitos do homem". Ao contrário, segundo a opinião geral que emitiam no século XIX, a desigualdade fazia parte do caráter nacional inglês. Para Disraeli, "nos direitos dos ingleses existia algo melhor que os Direitos do Homem", e para sir James Stephen "poucos fatos da história [eram] mais deploráveis do que a maneira pela qual os franceses se deixavam empolgar por essas questões".[42] Esse é um dos motivos pelos quais os ingleses foram capazes de desenvolver pensamentos racistas numa base nacional antes do fim do século XIX, quando, na França, as mesmas opiniões revelaram desde o começo seu caráter antinacional.
     O principal argumento de Burke contra os "princípios abstratos" da Revolução Francesa está contido na seguinte frase: "A constante política da nossa constituição consiste em afirmar e assegurar as nossas liberdades como herança vinculada, que recebemos dos nossos antepassados e que devemos transmitir à nossa posteridade; como um patrimônio pertencente especialmente ao povo deste reino, sem qualquer referência a outros direitos mais genéricos e anteriores". O conceito de herança, aplicado à natureza da liberdade, foi a base ideológica da qual o nacionalismo inglês recebeu um curioso toque de sentimentos raciais desde a Revolução Francesa. Formulado por um escritor da classe média, significava a aceitação do conceito feudal de liberdade, vista como soma de privilégios herdados juntamente com o título e a terra sem infringir os direitos da classe privilegiada dentro da nação inglesa, Burke estendeu o princípio desses privilégios a todo o povo inglês, elevando-o, como todo, ao nível de nobreza entre as nações. Daí o seu desprezo por aqueles que davam à liberdade o nome de "direitos do homem", quando esses direitos, em sua opinião, só tinham sentido como os "direitos dos ingleses".
     Na Inglaterra, o nacionalismo surgiu sem que houvesse sérias ameaças às antigas classes feudais. Isso foi possível porque a pequena fidalguia inglesa a partir do século XVIII havia assimilado as camadas superiores da burguesia, de forma que, às vezes, até mesmo o homem comum podia atingir a posição de um lorde. Esse processo permitiu eliminar grande dose da habitual arrogância dos nobres, criando considerável senso de responsabilidade pela nação como um todo; mas, ao mesmo tempo, a mentalidade feudal e seus conceitos influenciavam mais facilmente que em outros países as ideias políticas das classes inferiores, sempre passíveis de ascensão. Assim, o conceito de herança foi aceito quase sem contestação e aplicado a toda a "estirpe" britânica. Resultou dessa assimilação de valores por todas as classes a preocupação quase obsessiva da ideologia racial inglesa com as teorias de hereditariedade e com o seu equivalente moderno, a eugenia.
     Desde o momento em que os europeus tentaram incluir todos os povos da terra no conceito de "humanidade ampla", começaram a irritar-se com a descoberta das substanciais diferenças físicas que os distinguiam dos homens dos outros continentes.[43] O entusiasmo que se manifestava no século XVIII pela diversidade em que se consubstanciava a natureza, na realidade idêntica e onipresente, do homem e da razão deparava com a seguinte questão crucial: se o dogma cristão da unidade e igualdade de todos os homens baseava-se na descendência comum de um casal original, como poderiam reagir os homens diante das tribos que, ao que se sabia, nunca haviam engendrado, por si mesmas, qualquer expressão da razão ou paixão humanas, quer em atos culturais, quer em costumes populares, e cujas instituições nunca haviam ultrapassado um nível muito baixo? Esse novo problema, que surgiu na cena histórica da Europa e da América em consequência do conhecimento mais profundo das tribos africanas, já havia provocado, especialmente na América e em algumas possessões britânicas, um retrocesso a formas de organização social que se acreditavam definitivamente ultrapassadas pelo cristianismo. Mas nem mesmo a escravidão, embora estabelecida em base estritamente racial, engendrou ideologias racistas entre os povos escravizadores antes do século XIX. Durante todo o século XVIII, até os senhores-de-escravos americanos consideravam a escravidão uma instituição provisória e pensavam em aboli-la gradualmente. Mas muito deles provavelmente repetiram com Jefferson: "Aterroriza-me pensar que Deus é justo".
     Na França, onde o problema das tribos negras havia provocado o desejo de assimilá-las e educá-las, o grande cientista Leclerc de Buffon elaborou uma classificação de raças que, catalogando todos os outros povos segundo as diferenças com relação aos europeus-, transmitia a ideia de igualdade através de justaposição de vários elementos.[44] O século XVIII, para usar a frase de Toc-queville, admiravelmente precisa, "acreditava na variedade das raças, mas na unidade da espécie humana".[45] Na Alemanha, Herder se recusara a aplicar aos homens a "ignóbil palavra" raça, e mesmo o primeiro historiador da cultura humana a usar a classificação de espécies diferentes, Gustav Klemm,[46] ainda respeitava a ideia da humanidade como o escopo geral dos seus estudos. Mas na América e na Inglaterra, onde os povos tinham de resolver um problema de convivência após a abolição da escravatura, as coisas se afiguravam bem mais difíceis. Com a exceção da África do Sul — nação que só influenciou o racismo ocidental depois da "corrida para a África" na década de 80 —, esses países foram os primeiros a lidar com o problema racial na política prática. A abolição da escravatura acirrou os conflitos internos em vez de solucionar as dificuldades existentes. Isso ocorreu especialmente na Inglaterra, onde os "direitos dos ingleses" não foram substituídos por uma nova orientação política que pudesse ter proclamado os direitos do homem. Assim, a abolição da escravatura nas possessões britânicas em 1834 e a discussão que precedeu a Guerra Civil Americana encontraram na Inglaterra uma opinião pública altamente confusa — solo fértil para as várias doutrinas "naturalistas" que surgiram nessas décadas.
     A primeira delas foi representada pelos poligenistas que, acusando a Bíblia de ser um livro de piedosas mentiras, negavam qualquer relação entre as raças humanas; seu principal feito foi a destruição da ideia da lei natural como elo de ligação entre todos os homens e todos os povos. Embora sem estipular uma superioridade racial predestinada, o poligenismo isolou arbitrariamente todos os povos, resultado do profundo abismo gerado pela impossibilidade física da compreensão e comunicação humanas. O poligenismo, ao explicar porque "o Leste é o Leste e o Oeste é o Oeste, e nunca os dois se encontrarão", ajudou a evitar casamentos inter-raciais nas colônias e a promover a discriminação contra indivíduos de origem mista, que, segundo o poligenismo, não são verdadeiros seres humanos, pois não pertencem a raça alguma; ao contrário, cada homem "misto" é uma espécie de monstro porque nele "cada célula é o palco de uma guerra civil".[47]
     Por mais duradoura que, a longo prazo, tenha sido a influência do poligenismo sobre a ideologia racial inglesa, ele foi derrotado e substituído por uma outra doutrina, o darwinismo, que também partia do princípio da hereditariedade, mas acrescentava-lhe o princípio político peculiar ao século XIX — o progresso. Assim, chegava à conclusão oposta, mas muito mais convincente, de que o homem é aparentado não apenas com os outros homens, mas também com a vida animal, que a existência de raças inferiores mostra claramente que somente diferenças graduais separam o homem do animal, e que uma forte luta pela existência domina todos os seres vivos. O darwinismo devia sua força especialmente ao fato de seguir o caminho da antiga doutrina do direito da força. Mas, enquanto essa doutrina, quando usada por aristocratas, expressava-se em orgulhosos termos de conquista, agora era traduzida na amarga linguagem de pessoas que apenas haviam conhecido a luta pelo pão de cada dia e que, se batalhavam, era só para conseguir a relativa segurança dos arrivistas.
     O esmagador sucesso do darwinismo resultou também do fato de ter fornecido, a partir da ideia de hereditariedade, as armas ideológicas para o domínio de uma raça ou de uma classe sobre outra, podendo ser usado tanto a favor como contra a discriminação racial. Do ponto de vista político, o darwinismo era neutro em si: servia como base tanto ao pacifismo e cosmopolitismo, como às formas mais agudas de ideologias imperialistas.[48] Nas décadas de 70 e 80 do século XIX, o darwinismo era ainda quase exclusivamente manejado na Inglaterra pelos anticolonialistas. E o primeiro filósofo da evolução, Herbert Spencer, que tratou a sociologia como parte da biologia, acreditava que a seleção natural era benéfica à evolução da humanidade e que dela resultaria a paz eterna. Para a discussão política, o darwinismo oferecia dois conceitos importantes: a luta pela existência, com a otimista afirmação da necessária e automática "sobrevivência dos mais aptos", e as infinitas possibilidades que pareciam haver na evolução do homem a partir da vida animal, e que deram origem à nova "ciência" da eugenia. A doutrina da necessária sobrevivência do mais apto, com a implicação de que as camadas superiores da sociedade são eventualmente as mais "aptas", morreu, como havia morrido a doutrina da conquista, no momento em que as classes dominantes da Inglaterra e a hegemonia inglesa nas colônias já não estavam absolutamente seguras, isto é, quando se tornou altamente duvidoso que os mais "aptos" hoje continuariam ainda os mais aptos amanhã. Mas a outra parte do darwinismo, a evolução do homem a partir da vida animal, infelizmente sobreviveu. A eugenia prometia vencer as incômodas incertezas da doutrina da sobrevivência, segundo a qual era tão impossível prever quem viria a ser o mais apto quanto proporcionar a uma nação os meios de desenvolver aptidão eterna. Essa possível consequência da eugenia aplicada foi enfatizada na Alemanha nos anos 20, como uma reação ao Declínio do Ocidente de Spengler.[49]  Bastava transformar o processo de seleção natural, que funcionava às ocultas do homem, em instrumento racional conscientemente empregado. A bestialidade sempre esteve inerente na eugenia, e é bem característica a velha observação de Haeckel, de que a eutanásia pouparia muitas "despesas inúteis à família e ao governo".[50] Finalmente, os últimos discípulos do darwinismo na Alemanha decidiram abandonar inteiramente o campo da pesquisa científica, esquecer a busca do elo que faltava entre o homem e o macaco e, em contrapartida, dar início aos esforços práticos para transformar o homem naquilo que os darwinistas acreditavam que o macaco fosse.
     Mas, antes que o nazismo, no decurso de sua política totalitária, tentasse transformar o homem em animal, houve numerosos esforços de transformá-lo num deus por meios estritamente hereditários.[51] Não somente Herbert Spencer mas todos os primeiros evolucionistas e darwinistas "acreditavam tão fortemente no futuro angelical da humanidade como na origem simiesca do homem".[52] Acreditava-se que a hereditariedade selecionada resultaria do "gênio hereditário",[53] e voltava-se a afirmar que a aristocracia era o produto natural não da política, mas da seleção natural de raças puras. Transformar toda a nação numa aristocracia natural, da qual exemplares seletos viriam a ser gênios e super-homens, era uma das muitas "ideias" produzidas por intelectuais liberais frustrados, em seus sonhos de substituir as antigas classes governantes por uma nova "elite" através de meios não-políticos. No fim do século XIX, escritores tratavam de assuntos políticos em termos de biologia e zoologia, e zoólogos escreviam "Observações biológicas sobre nossa política externa", como se houvessem descoberto um guia infalível para os estadistas.[54] Todos eles apresentavam novas maneiras de controlar e regular a "sobrevivência dos mais aptos" segundo os interesses nacionais do povo inglês.[55]
     O aspecto mais perigoso dessas doutrinas evolucionistas estava no fato de aliarem o conceito da hereditariedade à insistência nas realizações pessoais e nos traços de caráter individuais, tão importantes para o amor-próprio da classe média do século XIX. Essa classe média queria cientistas que provassem que os "grandes homens" e não os aristocratas eram os verdadeiros representantes da nação em que se personificava o "gênio da raça". Esses cientistas proporcionaram uma fuga ideal da responsabilidade política quando "provaram" a verdade da antiga afirmação de Benjamim Disraeli de que o "grande homem" é "a personificação da raça, o seu exemplar seleto". O desenvolvimento desse gênio teve o seu fim lógico quando outro discípulo do evolucionismo simplesmente declarou: "O inglês é o Homem Superior (Overman), e a história da Inglaterra é a história da sua evolução".[56]
     É significativo que o pensamento racial inglês, como, aliás, aconteceu na Alemanha, se tenha originado entre os escritores da classe média e não entre a nobreza, que tenha nascido do desejo de estender os benefícios dos padrões de nobreza a todas as classes, e que se nutrisse de sentimentos verdadeiramente nacionais. A esse respeito, as ideias de Carlyle referentes ao gênio e ao herói correspondiam mais às armas de um "reformador social" do que às doutrinas do "pai do imperialismo britânico", como foi acusado com injustiça.[57] A idolatria do herói, que lhe granjeou vastas plateias tanto na Inglaterra como na Alemanha, tinha as mesmas origens que a idolatria da personalidade do romantismo alemão. Tratava-se da mesma afirmação e glorificação da grandeza inata do caráter individual, independentemente do ambiente social. Entre os homens que influenciaram o movimento colonial a partir de meados do século XIX até o surgimento do verdadeiro imperialismo no fim desse século, nenhum escapou à influência de Carlyle, mas nenhum pode ser acusado de pregar um racismo declarado. O próprio Carlyle, em seu ensaio "A questão do negro", preocupa-se com os meios de ajudar as Índias Ocidentais a produzirem "heróis". Charles Dilke, cujo Greater Britam (1869) é apontado às vezes como o início do imperialismo,[58] era um radical avançado que glorificava os colonizadores ingleses como parte da nação britânica, discordando dos que, desdenhando-os, viam em suas terras meras colônias. J. R. Seeley, cujo Expansion of England (1883) vendeu 80 mil exemplares em menos de dois anos, ainda respeita os hindus como um povo estrangeiro e faz clara distinção entre eles e os "bárbaros". Mesmo Froude — cuja admiração pelos bôeres, o primeiro povo branco a aceitar abertamente a filosofia tribal do racismo, pode parecer suspeita — opunha-se à concessão de direitos excessivos à África do Sul, porque o "autogoverno na África do Sul significaria o governo dos nativos pelos colonizadores europeus, e isso não era autogoverno".[59]  De modo semelhante ao que ocorreu na Alemanha, o nacionalismo inglês foi estimulado por uma classe média que nunca se havia emancipado inteiramente da nobreza e que, portanto, trazia em si o germe da ideologia racial.
     Mas, diferentemente da Alemanha, cuja falta de unidade nacional tornara necessário erguer uma muralha ideológica que unisse o povo carente de história comum e de unificação geográfica, as Ilhas Britânicas eram completamente separadas do mundo por fronteiras naturais, e a Inglaterra como nação teve de formular uma teoria de unidade entre homens que viviam em colônias distantes, no além-mar, separados do país de origem por mares e oceanos. O elo que os unia era a descendência comum, a origem comum, a língua comum. A separação dos Estados Unidos havia demonstrado que esses elos, por si só, não garantiam o domínio; e não só a América, mas também outras colônias, embora não com a mesma violência, evidenciaram forte tendência de adotar uma orientação constitucional diferente da do país de origem. Para salvar esses antigos cidadãos britânicos, Dilke, influenciado por Carlyle, falou de "saxonidade", palavra que parecia ter o dom de seduzir e trazer de volta à pátria até mesmo o povo dos Estados Unidos, ao qual ele devota um terço do seu livro. Como radical, Dilke podia agir como se a Guerra de Independência não houvesse sido uma guerra entre duas nações, e sim uma espécie de guerra civil inglesa do século XVIII. E uma das razões que explicam o surpreendente fato de os reformadores sociais e os radicais promoverem o nacionalismo na Inglaterra é esta: desejavam manter as colônias não apenas por acharem que eram uma válvula de escape necessária às classes baixas; queriam, na verdade, conservar sobre o país natal a influência exercida por esses filhos mais radicais das Ilhas Britânicas. Essa motivação transparece em Froude, que desejava "manter as colônias, porque achava possível reproduzir nelas um estado social simples e um modo de vida mais nobre do que seria possível na Inglaterra industrial",[60] e influiu definitivamente no Expansion ofEngland, de Seeley: "Quando nos habituarmos a contemplar todo o Império reunido e chamarmos todo ele de Inglaterra, veremos que também existem os Estados Unidos". Qualquer que tenha sido o sentido que escritores pósteros deram à palavra "saxonidade", esta levava na obra de Dilke um genuíno sentido político para uma nação que já não era coesa num país limitado. "No decurso de todas as minhas viagens, a ideia que foi ao mesmo tempo minha companheira e guia — a chave que iria revelar-me as coisas ocultas das terras novas e estranhas — era o conceito (...) da grandeza de nossa raça que já envolvia a terra, e cujo destino era, talvez, vir a cobri-la no futuro", escreve. Para Dilke, a origem comum, a hereditariedade, a "grandeza da raça" não eram fatos físicos nem a chave da história, mas um guia muito necessário no mundo atual, o único laço digno de confiança num espaço sem limites. 
     Como os colonizadores ingleses se haviam espalhado por toda a terra, acontecia que o conceito de nacionalismo mais perigoso, a ideia de "missão nacional", era forte em especial na Inglaterra. Embora a ideia de missão nacional em si tenha crescido durante muito tempo desprovida de influências raciais nos países cujos povos aspiravam à nacionalidade, ela veio finalmente demonstrar sua afinidade com a ideologia racial. Os nacionalistas ingleses que citamos acima podem ser considerados casos extremos à luz dos conhecimentos mais recentes; não causaram mais danos que, por exemplo, Auguste Comte, na França, quando manifestou a esperança de uma humanidade unida, organizada e regenerada sob a liderança — aprésidence — da França.[61] 
     Não abandonavam a ideia da humanidade, embora só na Inglaterra vissem a sua suprema garantia. Não podiam afastar-se da ênfase dada a esse conceito nacionalista, já que a dissolução dos laços entre o solo e o povo, implícita na ideia de missão, não era uma simples ideologia para a política inglesa, mas sim um fato consumado que qualquer estadista tinha de levar em conta. O que os distingue definitivamente dos racistas que os sucederam é que nenhum deles jamais se preocupou seriamente em discriminar outros povos como raças inferiores, e isso, senão por outros motivos, pelo menos devido ao fato de que os países a que se referiam, o Canadá e a Austrália, eram quase desabitados e não tinham qualquer problema sério de população.
     Assim, não foi por acaso que o primeiro estadista inglês a acentuar repetidamente a sua crença nas raças e na superioridade racial como fator determinante na história e na política tenha sido um homem que, sem qualquer interesse particular com relação as colônias e aos colonizadores ingleses — que chamou de "peso morto das colônias que não governamos" —, quis estender o poder imperial britânico até a Ãsia e, na verdade, fortaleceu consideravelmente a posição da Grã-Bretanha na única colônia que se defrontava com um problema populacional e cultural. Foi Benjamin Disraeli quem fez da rainha da Inglaterra a imperatriz da Índia; foi ele o primeiro estadista inglês a considerar a índia como pedra fundamental de um Império e a querer cortar os laços que uniam o povo inglês às nações do continente.[62] Construiu assim um dos alicerces de uma mudança básica no domínio inglês da índia. A colônia havia sido governada com a crueldade habitual dos conquistadores — homens a quem Burke havia chamado de "transgressores das leis na índia". Agora, ela iria ter uma administração cuidadosamente planejada, cujo objetivo era o estabelecimento de um corpo permanente que governaria por meio de medidas administrativas. Essa experiência aumentou para a Inglaterra o perigo contra o qual Burke havia alertado: o perigo de que os "transgressores das leis na índia" viessem a ser "os fazedores da lei na Inglaterra".[63] Pois todos eles, para os quais não existia "transação na história da Inglaterra que mais nos orgulhe que o estabelecimento do Império da índia", afirmavam que a liberdade e a igualdade eram "grandes nomes para pequenas coisas".[64]
     A política introduzida por Disraeli significou o estabelecimento de uma casta exclusiva num país estrangeiro cuja única função era o domínio e não a colonização. Para que esse conceito se materializasse — e Disraeli não sobreviveu para vê-lo realizado —, o racismo iria ser realmente um instrumento indispensável. Vislumbrava a ameaçadora transformação do povo de uma nação em "raça pura" primorosamente organizada, que se considerava "a aristocracia da natureza" — para repetir as palavras do próprio Disraeli.[65]
     O que traçamos até aqui foi a história de uma opinião na qual só agora podemos ver, depois de todas as terríveis experiências do nosso tempo, os primeiros albores do racismo. Mas, embora o racismo tenha introduzido novos componentes ideológicos em todos os países, não se trata de uma ideia dotada de "lógica inerente"; O pensamento racial constituía uma fonte de argumentos de conveniência para diversos conflitos políticos, mas nunca monopolizou a vida política dos respectivos países; acirrou e explorou interesses opostos ou conflitos políticos, mas jamais criou novos conflitos, nem produziu novas categorias de pensamento político. O racismo surgiu de experiências e constelações políticas que eram desconhecidas e teriam sido completamente estranhas, até mesmo para ardorosos defensores da "raça" como Gobineau e Disraeli. Entre homens de ideias brilhantes e ágeis e homens de ações brutais e bestiais, existe um abismo que nenhuma explicação intelectual pode transpor. É provável que esse racismo tivesse desaparecido a tempo, juntamente com outras opiniões irresponsáveis do século XIX, se a corrida para a África e a nova era do imperialismo não houvessem exposto a população da Europa ocidental a novas e chocantes experiências. O imperialismo teria exigido a invenção do racismo como única "explicação" e justificativa de seus atos, mesmo que nunca houvesse existido uma ideologia racista no mundo civilizado.
     Mas, como existiu, o racismo recebeu considerável substância "teórica". A própria existência de uma opinião, até certo ponto tradicional, serviu para ocultar a essência destruidora da nova doutrina que, sem essa aparência de respeitabilidade nacional, ou sem a aparente sanção da tradição, teria revelado de imediato a incompatibilidade com todos os padrões morais e políticos ocidentais, antes que lhe fosse permitido destruir a comunidade das nações europeias.

Parte II Imperialismo (2.4 - Os "Direitos dos Ingleses" vs. Os Direitos do Homem)
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[41] Reflections on the revolution in France, 1790, Everyman's Library Edition, Nova York, p.8.
[42] Liberty, equality, fraternity, 1873, p. 254. Quanto a lorde Beaconsfield, ver Benjamin Disraeli, Lord George Bentinck, 1853, p. 184.
[43] Encontram-se ecos significantes, se bem que moderados, dessa perplexidade em muitas narrativas de viagens do século XVIII. Voltaire achou que ela valia uma nota especial em seu Dictionnaire philosophique: "Além disso, já vimos como são diferentes as raças que habitam este planeta, e quão grande deve ter sido a surpresa do primeiro negro e do primeiro branco ao se encontrarem" (artigo: "Homme").
[44] Histoire Naturelle, 1769-89.
[45] Op. cit., carta de 15 de maio de 1852.
[46] Allgemeine Kulturgeschichte der Menschheit [A história geral da cultura da humanidade], 1843-52.
[47] A. Carthill, Thelosí dominion, 1924, p. 158.
[48] Ver Friedrich Brie, Imperialistische Stròmungen in der englischen Literatur [Correntes imperialistas na literatura inglesa], Halle, 1928.
[49] Ver, por exemplo, Otto Bangert, Gold oder Blut [Ouro ou sangue], 1927. "Assim, a civilização pode ser eterna", p. 17.
[50] Em Lebenswunder (O milagre da vida), 1904, pp. 128 ss.
[51] Quase um século antes que o evolucionismo tivesse vestido o manto de ciência, vozes alertadoras previram as consequências inerentes de uma loucura que estava, então, apenas no estágio da pura imaginação. Voltaire, mais de uma vez, havia entretido opiniões evolucionistas — ver principalmente "Philosophie générale: métaphysique, morale et théologie", em Oeuvres completes, 1785, tomo 40, pp. 16 ss. Em seu Dictionnaire philosophique, artigo "Chaine des êtres créés", ele escreveu: "De início, nossa imaginação se compraz com a imperceptível transição da matéria bruta para a matéria organizada, das plantas aos zoófitos, desses zoófitos aos animais, destes ao homem, do homem para os espíritos, destes espíritos envoltos num pequeno corpo aéreo para as substâncias imateriais: e (...) para o próprio Deus. (...) Mas pode tornar-se Deus o mais perfeito espírito criado pela Entidade Suprema? Não há um infinito entre Deus e ele? (...) Não existe obviamente um vazio entre o macaco e o homem?"
[52] Hayes, op. cit., p. 11. Hayes corretamente acentua a forte moralidade prática de todos esses primeiros materialistas. Explica "esse curioso divórcio entre a moral e a crença" pelo "que sociólogos descreveram, mais tarde, com uma defasagem no tempo" (p. 130). Essa explicação, contudo, parece bastante débil quando se recorda que outros materialistas, que, como Haeckel na Alemanha ou Vacher de Lapouge na França, haviam abandonado a calma dos seus estudos e pesquisa para se dedicarem a atividades de propaganda, não foram muito afetados por essa defasagem de tempo; que, por outro lado, os seus contemporâneos não imbuídos de doutrinas materialistas, como Barres & Cia., na França, eram adeptos muito práticos da perversa brutalidade que varreu a França durante o Caso Dreyfus. A súbita decadência da moral no mundo ocidental parece ter sido causada' menos pelo desenvolvimento de certas "ideias" do que por uma série de novos eventos políticos e problemas sociais com os quais se defrontou uma humanidade surpresa.
[53] Era esse o título de um livro muito lido, de autoria de F. Galton, publicado em 1869, que provocou um dilúvio literário sobre o assunto nas décadas seguintes.
[54]  "A biological view of our foreign policy" foi publicado por P. Charles Michel no Satur-day Review, Londres, fevereiro de 1896. As obras mais importantes desse tipo são: Thomas Huxley, The strugglefor existence in human society, 1888 (sua tese principal: a queda das civilizações só é necessária quando a taxa de nascimento não é controlada); Benjamin Kidd, Social evolution, 1894; John B. Crozier, History of intellectual development on the Unes of modem evolution, 1897-1901; Karl Pearson (National Life, 1901), professor de eugenia na Universidade de Londres e um dos primeiros a descrever o progresso como uma espécie de monstro impessoal que devora tudo o que encontra pelo caminho; Charles H. Harvey, em The biology of British politics, 1904, argumenta que, por meio de um rígido controle da "luta pela existência" dentro de um país, esse país pode se tornar todo-poderoso para a luta pela existência com os outros povos.
[55] Ver K. Pearson, op. cit. Mas Fr. Galton já havia afirmado: "Desejo acentuar o fato de que o aperfeiçoamento dos dons naturais das gerações futuras da raça humana está, em grande parte, sob o nosso controle" (op. cit., ed. 1892, p. XXVI).
[56] Testament of John Davidson, 1908.
[57] C. A. Bodelsen, Studiesin mid-Victorian Imperialism, 1924, pp. 22 ss.
[58] E. H. Damce, The Victorian Ulusion, 1928. "O imperialismo começou com um livro. (...) O Greater Britam, de Dilke".
[59]  "Two lectures on South África", em Short Studies on great subjects, 1867-82.
[60] C. A. Bodelsen, op. cit., p. 199.
[61] Em seu Discours sur Vensemble dupositivisme, 1848, pp. 384 ss.
[62]  "Devemos ter poder e influência na Ásia; consequentemente, na Europa ocidental" (W. F. Monypenny e G. E. Buckle, The life of Benjamin Disraeli, Earl ofBeaconsfield, Nova York, 1929, II, 210). Mas, "se a Europa, por sua miopia, vier a decair para um estado inferior e exausto, restará para a Inglaterra um futuro ilustre" (ibid., I, livro IV). Porque "a Inglaterra já não é mais uma simples potência europeia (...) é mais uma potência asiática do que europeia" (ibid., II, 201).
[63] Burke, op. cit., pp. 42-3: "O poder da Câmara dos Comuns (...) é realmente grande; e possa ela preservar a sua grandeza durante muito tempo (...) e o fará, enquanto puder evitar que o infrator da lei na índia se torne o legislador da Inglaterra".
[64] Sir James F. Stephen, op. cit., p. 253 epassim; ver também seu "Foundations of the government of índia", 1883, em The Nineteenth Century, LXXX.
[65] Quanto ao racismo de Disraeli, compare o capítulo 3.

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