segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (2.3 - A Nova Face da Velha História)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

2. O Pensamento Racial Antes do Racismo
     2.3 - A Nova Face da Velha História
          Em 1853, o conde Arthur de Gobineau publicou seu Essai sur Vinégalité des races humaines, que, somente cerca de cinquenta anos mais tarde, já no início do século XX, se tornaria fundamental para as teorias racistas da história. A frase inicial dessa obra de quatro volumes — "O declínio da civilização é o fenômeno mais notável e, ao mesmo tempo, o mais obscuro da história"[*] — revela claramente o interesse essencialmente novo e moderno do autor e o tom pessimista que domina sua obra, gerando a força ideológica capaz de unir todos os fatores ideológicos anteriores e as opiniões em conflito. De fato, desde tempos imemoriais, a humanidade tem desejado saber tanto quanto possível sobre culturas passadas, impérios derrubados e povos extintos; mas ninguém antes de Gobineau cuidou de encontrar uma única razão, uma força única que rege as civilizações em sua ascensão e declínio. As doutrinas da decadência parecem ter alguma conexão ideológica íntima com o sentimento racista.
     Certamente não foi por coincidência que outro dos primeiros apologistas do racismo, Benjamin Disraeli, sentia igual fascínio pelo declínio das culturas, enquanto, por outro lado, Hegel, cuja filosofia cuidava, em grande parte, da lei dialética da evolução aplicada à história, nunca se interessou pela ascensão e declínio das culturas em si, nem por lei alguma que explicasse as causas da extinção das nações. Foi precisamente essa a lei que Gobineau formulou. Sem o darwinismo ou qualquer outra teoria evolucionista a influenciá-lo, esse historiador jactava-se de haver colocado a história na categoria das ciências naturais, detectado a lei natural que regia o curso de todos os acontecimentos e reduzido todas as manifestações espirituais e fenômenos culturais a algo que, "graças à ciência exata, nossos olhos podem ver, nossos ouvidos podem ouvir, nossas mãos podem tocar".
     O aspecto mais surpreendente da teoria, apresentada em pleno otimismo do século XIX, está no fato de o autor sentir-se fascinado pelo declínio das civilizações sem interessar-se por sua ascensão. Ao escrever o Essai, Gobineau não previu o possível uso de sua teoria como arma da política prática, e assim teve a coragem de chegar às consequências, inteiramente sinistras, da sua "lei do declínio". Em contraste com Spengler, que prediz o declínio apenas da cultura ocidental, Gobineau prevê, com precisão "científica", nada menos que o desaparecimento definitivo do homem — ou, em suas palavras, da raça humana — da face da terra. Após reescrever a história humana em quatro volumes, ele conclui: "Somos tentados a atribuir uma duração total de 12 a 14 mil anos ao domínio do homem na Terra, sendo esse tempo dividido em dois períodos: o primeiro já passou, e pertenceu à juventude (...) o segundo já começou, para testemunhar o declínio em direção à decrepitude".
     Já se observou que Gobineau, trinta anos antes de Nietzsche, se interessava pelo problema da décadence.[30] Há, contudo, uma diferença: Nietzsche vivia a experiência da decadência europeia, escrevendo no ápice desse movimento concomitantemente com as atividades de Baudelaire na França, Swin-burne na Inglaterra e Wagner na Alemanha; Gobineau, porém, mal conhecia essa variação, então moderna, de taedium vitae, e deve ser considerado o último herdeiro de Boulainvilliers e da nobreza francesa exilada que, sem complicações psicológicas, simplesmente (e corretamente) temia pelo futuro da aristocracia como casta. Com certa ingenuidade, aceitava quase literalmente as doutrinas do século XVIII acerca da origem do povo francês: os burgueses descendem de escravos galo-romanos, os nobres são germânicos.[31] O mesmo se aplica à sua insistência no caráter internacional da nobreza. Embora, em termos nobiliárquicos, Gobineau fosse possivelmente um impostor (seu título francês é mais do que duvidoso), exagerava e levava além dos limites as doutrinas genealógicas, expondo-as ao ridículo quando afirmava descender, por intermédio de pirata escandinavo, do deus germânico Odim e gabava-se por "também pertencer à raça dos deuses".[32] Mas sua real importância reside no fato de que, em meio a ideologias que louvavam o progresso, ele profetizava a ruína e o fim da humanidade numa lenta catástrofe natural. Quando Gobineau iniciou sua obra, nos dias do rei burguês Luís Filipe, o destino da nobreza parecia estar traçado. A nobreza não precisava mais recear a vitória do Tiers Etat: esta já havia ocorrido, e aos nobres só restava lastimarem-se em vão. Seu infortúnio, expresso por Gobineau, é muito semelhante ao profundo desespero dos poetas da decadência que, um decênio mais tarde, cantavam a fragilidade de todas as coisas humanas, comparando-as com les neiges d'antan, as neves de antanho. No tocante a Gobineau, essa afinidade é perfeitamente acidental; mas é interessante notar que, uma vez estabelecida, nada podia evitar que intelectuais muito respeitáveis do fim do século XIX, como Robert Dreyfus na França ou Thomas Mann na Alemanha, levassem a sério esse descendente de Odim. Muito antes que o horrível e o ridículo se conjugassem, nessa mistura humanamente incompreensível que caracteriza nosso século, o ridículo já havia perdido o seu poder de matar.
     Foi também à peculiar atmosfera pessimista e ao desespero das últimas décadas do século XIX que Gobineau deveu a sua fama tardia. Isso, contudo, não significa necessariamente que ele tenha sido um precursor da geração da "alegre dança da morte e do comércio", como a define Joseph Conrad. Ele não era nem um estadista que acreditasse em negócios, nem um poeta que louvasse a morte. Era apenas uma curiosa mistura de nobre frustrado e intelectual romântico, que inventou o racismo quase por acaso, quando, em lugar de aceitar simplesmente as antigas doutrinas dos "dois povos franceses", percebeu que era mais sensato e preferível reformular a ideia de que os melhores homens galgam necessariamente o topo da sociedade. Cabia-lhe, porém, obviamente, explicar por que os melhores homens — os nobres — não tinham mais esperanças de recuperar sua antiga posição social. Assim, passo a passo, identificou a queda do seu próprio castelo com a queda da França, com a queda da civilização ocidental e, finalmente, com a de toda a humanidade, chegando à descoberta (pela qual foi tão admirado por escritores e biógrafos pósteros) de que a queda das civilizações se deve à degenerescência da raça, e de que esta, ao conduzir ao declínio, é causada pela mistura de sangue. Isso implica — logicamente — que, qualquer que seja a mistura, é a raça inferior que acaba preponderando. Mas essa argumentação, quase lugar-comum no fim do século XIX, encontrou entre os contemporâneos de Gobineau uma outra idéefixe, a da "sobrevivência dos mais aptos". O otimismo liberal da burguesia ainda triunfante preferia reformular a teoria do direito da força, rechaçando "a chave da história" e a prova do declínio inevitável. Em vão Gobineau tentou granjear um público maior tomando partido na questão da escravatura americana, e construindo jeitosamente todo um sistema próprio para explicar o conflito básico entre negros e brancos. Teve de esperar quase cinquenta anos pelo sucesso que só alcançaria junto à "elite", e suas obras conquistaram grande popularidade só em decorrência da Primeira Guerra Mundial, que permitiu o surgimento de tantas "escolas" de filosofia da destruição.[33]
     O que Gobineau realmente procurou na política foi a definição e a criação de uma "elite" que substituísse a aristocracia. Em lugar de príncipes, propunha uma "raça de príncipes", os arianos, que, segundo dizia, corriam o risco de serem engolfados, através do sistema democrático, pelas classes não-arianas inferiores. O conceito de raça tornava possível organizar as "personalidades inatas" do romantismo alemão e defini-las como membros de uma aristocracia natural, destinada a dominar todos os outros. Se a raça e a mistura de raças são os fatores que tudo determinam num indivíduo — e Gobineau não pressupunha a existência de raças "puras" —, é possível encontrar a viabilidade do surgimento de superioridades físicas em qualquer indivíduo, independentemente de sua situação social do momento, sendo lógico para Gobineau que todo homem excepcional pertença aos "verdadeiros sobreviventes (...) dos merovíngios", os "filhos dos reis". Graças à raça, podia ser formada uma "elite" com direito às antigas prerrogativas das famílias feudais, e isso apenas pela afirmação de que se sentiam como nobres; e bastava aceitar a ideologia racial para provar o fato de ser "bem nascido" e de ter "sangue azul" em suas veias: a origem superior recebida pelo nascimento implicava direitos superiores. A partir, portanto, de um só evento político — o declínio da nobreza —, o conde tirou duas consequências contraditórias: a decadência da raça humana e a formação de uma nova aristocracia natural. Mas não sobreviveu para assistir à aplicação prática dos seus ensinamentos, com a qual a nova aristocracia racial resolveu as contradições de sua teoria, quando realmente iniciou o "inevitável" declínio da humanidade num supremo esforço de destruí-la.
     Seguindo o exemplo de seus precursores, isto é, dos nobres franceses exilados, Gobineau viu nessa elite racial não apenas um baluarte contra a democracia, mas também contra a "monstruosidade canaanita" do patriotismo.[34] E, como sucedia que a França era a "patrie" par excellence, pois o seu governo — fosse reino, império ou república — baseava-se sempre na igualdade essencial dos homens, e como, pior ainda, a França era o único país de sua época onde mesmo gente de cor preta gozava de direitos civis, era natural que Gobineau declarasse sua lealdade não ao povo francês, mas ao inglês e, mais tarde, após a derrota francesa de 1871, aos alemães.[35] Não se pode chamar de acidental essa falta de dignidade, nem de infeliz coincidência esse oportunismo. O velho ditado de que "nada é tão bem-sucedido como o sucesso" aplica-se principalmente a pessoas afeitas a opiniões arbitrárias. Os ideólogos que pretendem dispor da chave da verdade são forçados a alterar e torcer suas opiniões sobre casos específicos de acordo com os acontecimentos, e jamais podem dar-se ao luxo de entrar em conflito com o seu deus mutável, a realidade. Seria absurdo exigir fidelidade daqueles que, por suas próprias convicções, são forçados a justificar qualquer situação.
     É preciso admitir que, até a época em que os nazistas, ao se estabelecerem como elite racial, admitiram com franqueza o seu desprezo por todos os povos, inclusive pelo povo alemão, o racismo francês foi o mais consistente, pois jamais caiu na fraqueza do patriotismo. Mesmo durante a última guerra essa atitude não mudou; é verdade que a "essência ariana" já não era monopólio dos alemães, e sim dos anglo-saxões, suecos e normandos; mas a nação, o patriotismo e a lei eram tidos como "preconceitos, valores fictícios e nominais".[36] Até mesmo Taine acreditava firmemente no gênio superior da "nação germânica",[37] e Ernest Renan foi provavelmente o primeiro a opor os "semitas" aos "arianos", numa definitiva "divisão do gênero humano", embora afirmasse ao mesmo tempo que a civilização era a força superior destruidora das especificidades locais e diferenças raciais.[38] Todo o linguajar racista — tão típico dos escritores franceses após 1870,[39] mesmo que não fossem racistas num sentido estrito deste termo — segue um padrão antinacional e pró-germânico.
     Enquanto a consistente tendência antinacional do gobinismo serviu para aliciar aliados reais ou fictícios além das fronteiras aos inimigos da democracia francesa e, mais tarde, da Terceira República, o amálgama dos conceitos de raça e de "elite" deu à intelligentsia internacional novos e excitantes jogos psicológicos com que brincar no grande parque de diversões da história. Os fils des róis de Gobineau eram parentes chegados dos heróis, santos, gênios e super homens do fim do século XIX, todos românticos de indisfarçável origem germânica. A inerente irresponsabilidade das opiniões românticas encontrou na mistura de raças de Gobineau um novo alento, porque essa mistura mostrava grandiosos eventos históricos que podiam ser reconhecidos no íntimo de cada um. Isso significava que as experiências íntimas podiam ter importância histórica, e que a história se desenrolava no íntimo de cada pessoa. "Desde que li o Essai, sempre que algum conflito perturbava as fontes ocultas do meu ser, sentia como se uma batalha interminável se travasse em minha alma, a batalha entre o negro, o amarelo, os semitas e os arianos".[40] Por mais significativas que sejam esta e outras confissões semelhantes que revelavam o estado de espírito de intelectuais modernos, verdadeiros herdeiros do romantismo, independentemente das opiniões que professem, ressalta delas a inocuidade espiritual e a inocência política de homens que, provavelmente, poderiam ter sido facilmente persuadidos a adotar toda e qualquer ideologia.

Parte II Imperialismo (2.3 - A Nova Face da Velha História)
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[*] As citações de Gobineau, em inglês no original, foram confrontadas com Essai sur Vinégalité des races humaines, Ed. Librairie de Paris Firmin-Didot, Paris, 1933, e traduzidas diretamente do francês. (N. E.)
[30] Ver Robert Dreyfus, "La vie et les prophéties du Comte de Gobineau", Paris, 1905, em Cahiers de Ia Quinzaine, série VI, cad. 16, p. 56. 
[31]  Essai, tomo II, livro IV, e o artigo "Ce qui est arrivé à Ia France en 1870", em Eu-rope, 1923. 
[32] L. Duesberg, "Le Comte de Gobineau", em Revue Générale, 1939. 
[33] Ver a revista francesa Europe, 1923, número dedicado à memória de Gobineau, especialmente o artigo de Clément Serpeille de Gobineau, "Le gobinisme et Ia pensée moderne": "Foi só em (...) meados da guerra que achei que o Essai sur les races era inspirado por uma hipótese produtiva, a única que podia explicar certas coisas que estavam acontecendo debaixo dos nossos olhos. (...) Fiquei surpreso ao verificar que esta opinião era quase unânime. Após a guerra, notei que, para quase toda a geração mais moça, as obras de Gobineau haviam se tornado uma revelação". 
[34] Essai, tomo II, livro IV: "A palavra patrie (...) recuperou sua importância somente depois da ascensão das camadas galo-romanas que assumiram um papel político. Com o seu triunfo, o patriotismo novamente se tornou uma virtude". 
[35] Ver Seillière, op. cit., vol. I: "Le Comte de Gobineau et 1'aryanisme historique, p. 32: "NoEssai, a Alemanha mal é germânica; a Grã-Bretanha é muito mais germânica. (...) Certamente Gobineau mudou de opinião mais tarde, mas sob a influência do sucesso". É interessante notar que para Seillière, que, durante os seus estudos, se tornou adepto ardoroso do gobinismo — "o clima intelectual ao qual provavelmente os pulmões do século XX terão de se adaptar" —, o sucesso parecia razão suficiente para que Gobineau subitamente mudasse de opinião. 
[36] Poderíamos multiplicar os exemplos. A citação é tirada de Camille Spiess, Impéria-lismes. Gobinisme en France, Paris, 1917.
[37]  Quanto à posição de Taine, ver John S. White: "Taine on race and genius", em Social Research, fevereiro de 1943.
[38]  Na opinião de Gobineau, os semitas eram uma raça branca híbrida, abastardada por uma mistura com os negros. Quanto a Renan, ver a Histoire générale et système compare des lan-gues, 1863, parte I, pp. 4, 503 e passim. A mesma distinção em seu Langues sémitiques, I, 15.
[39]  Isso foi muito bem exposto por Jacques Barzun, op. cit.
[40]  Esse surpreendente cavalheiro é ninguém mais que o conhecido escritor e historiador Elie Faure, "Gobineau et le problème des races", em Europe, 1923.

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