Hannah Arendt
Parte II
IMPERIALISMO
Se eu pudesse, anexaria os planetas.
Cecil Rhodes
2.3 - A Nova Face da Velha História
Em 1853, o conde Arthur de Gobineau publicou seu Essai sur Vinégalité des races humaines,
que, somente cerca de cinquenta anos mais tarde, já no início do século XX, se tornaria
fundamental para as teorias racistas da história. A frase inicial dessa obra de quatro volumes —
"O declínio da civilização é o fenômeno mais notável e, ao mesmo tempo, o mais obscuro da
história"[*] — revela claramente o interesse essencialmente novo e moderno do autor e o tom
pessimista que domina sua obra, gerando a força ideológica capaz de unir todos os fatores
ideológicos anteriores e as opiniões em conflito. De fato, desde tempos imemoriais, a
humanidade tem desejado saber tanto quanto possível sobre culturas passadas, impérios
derrubados e povos extintos; mas ninguém antes de Gobineau cuidou de encontrar uma única
razão, uma força única que rege as civilizações em sua ascensão e declínio. As doutrinas da
decadência parecem ter alguma conexão ideológica íntima com o sentimento racista.
Certamente não foi por coincidência que outro dos primeiros apologistas do racismo, Benjamin
Disraeli, sentia igual fascínio pelo declínio das culturas, enquanto, por outro lado, Hegel, cuja
filosofia cuidava, em grande parte, da lei dialética da evolução aplicada à história, nunca se
interessou pela ascensão e declínio das culturas em si, nem por lei alguma que explicasse as
causas da extinção das nações. Foi precisamente essa a lei que Gobineau formulou. Sem o
darwinismo ou qualquer outra teoria evolucionista a influenciá-lo, esse historiador jactava-se de
haver colocado a história na categoria das ciências naturais, detectado a lei natural que regia o
curso de todos os acontecimentos e reduzido todas as manifestações espirituais e fenômenos
culturais a algo que, "graças à ciência exata, nossos olhos podem ver, nossos ouvidos podem
ouvir, nossas mãos podem tocar".
O aspecto mais surpreendente da teoria, apresentada em pleno otimismo do século XIX, está no
fato de o autor sentir-se fascinado pelo declínio das civilizações sem interessar-se por sua
ascensão. Ao escrever o Essai, Gobineau não previu o possível uso de sua teoria como arma da
política prática, e assim teve a coragem de chegar às consequências, inteiramente sinistras, da
sua "lei do declínio". Em contraste com Spengler, que prediz o declínio apenas da cultura
ocidental, Gobineau prevê, com precisão "científica", nada menos que o desaparecimento
definitivo do homem — ou, em suas palavras, da raça humana — da face da terra. Após
reescrever a história humana em quatro volumes, ele conclui: "Somos tentados a atribuir uma
duração total de 12 a 14 mil anos ao domínio do homem na Terra, sendo esse tempo dividido em dois períodos: o primeiro já passou,
e pertenceu à juventude (...) o segundo já começou, para testemunhar o declínio em direção à
decrepitude".
Já se observou que Gobineau, trinta anos antes de Nietzsche, se interessava pelo problema da
décadence.[30] Há, contudo, uma diferença: Nietzsche vivia a experiência da decadência europeia,
escrevendo no ápice desse movimento concomitantemente com as atividades de Baudelaire na
França, Swin-burne na Inglaterra e Wagner na Alemanha; Gobineau, porém, mal conhecia essa
variação, então moderna, de taedium vitae, e deve ser considerado o último herdeiro de
Boulainvilliers e da nobreza francesa exilada que, sem complicações psicológicas, simplesmente
(e corretamente) temia pelo futuro da aristocracia como casta. Com certa ingenuidade, aceitava
quase literalmente as doutrinas do século XVIII acerca da origem do povo francês: os burgueses
descendem de escravos galo-romanos, os nobres são germânicos.[31] O mesmo se aplica à sua
insistência no caráter internacional da nobreza. Embora, em termos nobiliárquicos, Gobineau
fosse possivelmente um impostor (seu título francês é mais do que duvidoso), exagerava e
levava além dos limites as doutrinas genealógicas, expondo-as ao ridículo quando afirmava
descender, por intermédio de pirata escandinavo, do deus germânico Odim e gabava-se por
"também pertencer à raça dos deuses".[32] Mas sua real importância reside no fato de que, em
meio a ideologias que louvavam o progresso, ele profetizava a ruína e o fim da humanidade
numa lenta catástrofe natural. Quando Gobineau iniciou sua obra, nos dias do rei burguês Luís
Filipe, o destino da nobreza parecia estar traçado. A nobreza não precisava mais recear a vitória
do Tiers Etat: esta já havia ocorrido, e aos nobres só restava lastimarem-se em vão. Seu
infortúnio, expresso por Gobineau, é muito semelhante ao profundo desespero dos poetas da
decadência que, um decênio mais tarde, cantavam a fragilidade de todas as coisas humanas,
comparando-as com les neiges d'antan, as neves de antanho. No tocante a Gobineau, essa
afinidade é perfeitamente acidental; mas é interessante notar que, uma vez estabelecida, nada
podia evitar que intelectuais muito respeitáveis do fim do século XIX, como Robert Dreyfus na
França ou Thomas Mann na Alemanha, levassem a sério esse descendente de Odim. Muito antes
que o horrível e o ridículo se conjugassem, nessa mistura humanamente incompreensível que
caracteriza nosso século, o ridículo já havia perdido o seu poder de matar.
Foi também à peculiar atmosfera pessimista e ao desespero das últimas décadas do século XIX
que Gobineau deveu a sua fama tardia. Isso, contudo, não significa necessariamente que ele
tenha sido um precursor da geração da "alegre dança da morte e do comércio", como a define
Joseph Conrad. Ele não era nem um estadista que acreditasse em negócios, nem um poeta que
louvasse a morte. Era apenas uma curiosa mistura de nobre frustrado e intelectual romântico, que
inventou o racismo quase por acaso, quando, em lugar de aceitar simplesmente as antigas
doutrinas dos "dois povos franceses", percebeu que era mais sensato e preferível reformular a
ideia de que os melhores homens galgam necessariamente o topo da sociedade. Cabia-lhe,
porém, obviamente, explicar por que os melhores homens — os nobres — não tinham mais
esperanças de recuperar sua antiga posição social. Assim, passo a passo, identificou a queda do
seu próprio castelo com a queda da França, com a queda da civilização ocidental e, finalmente,
com a de toda a humanidade, chegando à descoberta (pela qual foi tão admirado por escritores e
biógrafos pósteros) de que a queda das civilizações se deve à degenerescência da raça, e de que
esta, ao conduzir ao declínio, é causada pela mistura de sangue. Isso implica — logicamente —
que, qualquer que seja a mistura, é a raça inferior que acaba preponderando. Mas essa
argumentação, quase lugar-comum no fim do século XIX, encontrou entre os contemporâneos
de Gobineau uma outra idéefixe, a da "sobrevivência dos mais aptos". O otimismo liberal da
burguesia ainda triunfante preferia reformular a teoria do direito da força, rechaçando "a chave
da história" e a prova do declínio inevitável. Em vão Gobineau tentou granjear um público
maior tomando partido na questão da escravatura americana, e construindo jeitosamente todo
um sistema próprio para explicar o conflito básico entre negros e brancos. Teve de esperar quase cinquenta anos pelo sucesso que só alcançaria junto à "elite", e suas obras conquistaram grande
popularidade só em decorrência da Primeira Guerra Mundial, que permitiu o surgimento de
tantas "escolas" de filosofia da destruição.[33]
O que Gobineau realmente procurou na política foi a definição e a criação de uma "elite" que
substituísse a aristocracia. Em lugar de príncipes, propunha uma "raça de príncipes", os arianos,
que, segundo dizia, corriam o risco de serem engolfados, através do sistema democrático, pelas
classes não-arianas inferiores. O conceito de raça tornava possível organizar as "personalidades
inatas" do romantismo alemão e defini-las como membros de uma aristocracia natural, destinada
a dominar todos os outros. Se a raça e a mistura de raças são os fatores que tudo determinam
num indivíduo — e Gobineau não pressupunha a existência de raças "puras" —, é possível
encontrar a viabilidade do surgimento de superioridades físicas em qualquer indivíduo,
independentemente de sua situação social do momento, sendo lógico para Gobineau que todo
homem excepcional pertença aos "verdadeiros sobreviventes (...) dos merovíngios", os "filhos
dos reis". Graças à raça, podia ser formada uma "elite" com direito às antigas prerrogativas das
famílias feudais, e isso apenas pela afirmação de que se sentiam como nobres; e bastava aceitar a ideologia racial para provar o fato de ser "bem
nascido" e de ter "sangue azul" em suas veias: a origem superior recebida pelo nascimento
implicava direitos superiores. A partir, portanto, de um só evento político — o declínio da
nobreza —, o conde tirou duas consequências contraditórias: a decadência da raça humana e a
formação de uma nova aristocracia natural. Mas não sobreviveu para assistir à aplicação prática
dos seus ensinamentos, com a qual a nova aristocracia racial resolveu as contradições de sua
teoria, quando realmente iniciou o "inevitável" declínio da humanidade num supremo esforço de
destruí-la.
Seguindo o exemplo de seus precursores, isto é, dos nobres franceses exilados, Gobineau viu
nessa elite racial não apenas um baluarte contra a democracia, mas também contra a
"monstruosidade canaanita" do patriotismo.[34] E, como sucedia que a França era a "patrie" par
excellence, pois o seu governo — fosse reino, império ou república — baseava-se sempre na
igualdade essencial dos homens, e como, pior ainda, a França era o único país de sua época
onde mesmo gente de cor preta gozava de direitos civis, era natural que Gobineau declarasse sua
lealdade não ao povo francês, mas ao inglês e, mais tarde, após a derrota francesa de 1871, aos
alemães.[35] Não se pode chamar de acidental essa falta de dignidade, nem de infeliz coincidência
esse oportunismo. O velho ditado de que "nada é tão bem-sucedido como o sucesso" aplica-se
principalmente a pessoas afeitas a opiniões arbitrárias. Os ideólogos que pretendem dispor da
chave da verdade são forçados a alterar e torcer suas opiniões sobre casos específicos de acordo
com os acontecimentos, e jamais podem dar-se ao luxo de entrar em conflito com o seu deus
mutável, a realidade. Seria absurdo exigir fidelidade daqueles que, por suas próprias convicções,
são forçados a justificar qualquer situação.
É preciso admitir que, até a época em que os nazistas, ao se estabelecerem como elite racial,
admitiram com franqueza o seu desprezo por todos os povos, inclusive pelo povo alemão, o
racismo francês foi o mais consistente, pois jamais caiu na fraqueza do patriotismo. Mesmo
durante a última guerra essa atitude não mudou; é verdade que a "essência ariana" já não era
monopólio dos alemães, e sim dos anglo-saxões, suecos e normandos; mas a nação, o
patriotismo e a lei eram tidos como "preconceitos, valores fictícios e nominais".[36] Até mesmo Taine acreditava firmemente no gênio superior da "nação germânica",[37] e Ernest Renan
foi provavelmente o primeiro a opor os "semitas" aos "arianos", numa definitiva "divisão do
gênero humano", embora afirmasse ao mesmo tempo que a civilização era a força superior
destruidora das especificidades locais e diferenças raciais.[38] Todo o linguajar racista — tão
típico dos escritores franceses após 1870,[39] mesmo que não fossem racistas num sentido estrito
deste termo — segue um padrão antinacional e pró-germânico.
Enquanto a consistente tendência antinacional do gobinismo serviu para aliciar aliados reais ou
fictícios além das fronteiras aos inimigos da democracia francesa e, mais tarde, da Terceira
República, o amálgama dos conceitos de raça e de "elite" deu à intelligentsia internacional
novos e excitantes jogos psicológicos com que brincar no grande parque de diversões da
história. Os fils des róis de Gobineau eram parentes chegados dos heróis, santos, gênios e super
homens do fim do século XIX, todos românticos de indisfarçável origem germânica. A inerente
irresponsabilidade das opiniões românticas encontrou na mistura de raças de Gobineau um novo
alento, porque essa mistura mostrava grandiosos eventos históricos que podiam ser
reconhecidos no íntimo de cada um. Isso significava que as experiências íntimas podiam ter
importância histórica, e que a história se desenrolava no íntimo de cada pessoa. "Desde que li o
Essai, sempre que algum conflito perturbava as fontes ocultas do meu ser, sentia como se uma
batalha interminável se travasse em minha alma, a batalha entre o negro, o amarelo, os semitas e
os arianos".[40] Por mais significativas que sejam esta e outras confissões semelhantes que revelavam o estado de espírito de intelectuais modernos, verdadeiros herdeiros do romantismo,
independentemente das opiniões que professem, ressalta delas a inocuidade espiritual e a
inocência política de homens que, provavelmente, poderiam ter sido facilmente persuadidos a
adotar toda e qualquer ideologia.
continua página 185...
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Parte II Imperialismo (2.3 - A Nova Face da Velha História)
__________________[*] As citações de Gobineau, em inglês no original, foram confrontadas com Essai sur Vinégalité des races humaines, Ed.
Librairie de Paris Firmin-Didot, Paris, 1933, e traduzidas diretamente do francês. (N. E.)
[30] Ver Robert Dreyfus, "La vie et les prophéties du Comte de Gobineau", Paris, 1905, em Cahiers de Ia Quinzaine,
série VI, cad. 16, p. 56.
[31] Essai, tomo II, livro IV, e o artigo "Ce qui est arrivé à Ia France en 1870", em Eu-rope, 1923.
[32] L. Duesberg, "Le Comte de Gobineau", em Revue Générale, 1939.
[33] Ver a revista francesa Europe, 1923, número dedicado à memória de Gobineau, especialmente o artigo de
Clément Serpeille de Gobineau, "Le gobinisme et Ia pensée moderne": "Foi só em (...) meados da guerra que achei
que o Essai sur les races era inspirado por uma hipótese produtiva, a única que podia explicar certas coisas que
estavam acontecendo debaixo dos nossos olhos. (...) Fiquei surpreso ao verificar que esta opinião era quase unânime.
Após a guerra, notei que, para quase toda a geração mais moça, as obras de Gobineau haviam se tornado uma
revelação".
[34] Essai, tomo II, livro IV: "A palavra patrie (...) recuperou sua importância somente depois da ascensão das camadas
galo-romanas que assumiram um papel político. Com o seu triunfo, o patriotismo novamente se tornou uma virtude".
[35] Ver Seillière, op. cit., vol. I: "Le Comte de Gobineau et 1'aryanisme historique, p. 32: "NoEssai, a Alemanha mal é
germânica; a Grã-Bretanha é muito mais germânica. (...) Certamente Gobineau mudou de opinião mais tarde, mas sob a
influência do sucesso". É interessante notar que para Seillière, que, durante os seus estudos, se tornou adepto ardoroso do
gobinismo — "o clima intelectual ao qual provavelmente os pulmões do século XX terão de se adaptar" —, o sucesso parecia
razão suficiente para que Gobineau subitamente mudasse de opinião.
[36] Poderíamos multiplicar os exemplos. A citação é tirada de Camille Spiess, Impéria-lismes. Gobinisme en France, Paris,
1917.
[37] Quanto à posição de Taine, ver John S. White: "Taine on race and genius", em Social Research, fevereiro de 1943.
[38] Na opinião de Gobineau, os semitas eram uma raça branca híbrida, abastardada por uma mistura com os negros.
Quanto a Renan, ver a Histoire générale et système compare des lan-gues, 1863, parte I, pp. 4, 503 e passim. A mesma
distinção em seu Langues sémitiques, I, 15.
[39] Isso foi muito bem exposto por Jacques Barzun, op. cit.
[40] Esse surpreendente cavalheiro é ninguém mais que o conhecido escritor e historiador Elie Faure, "Gobineau et le
problème des races", em Europe, 1923.
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