terça-feira, 2 de setembro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Neve (c)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI
Neve

continuando...

     Nisso, porém, não havia nenhum prazer, pois nada se enxergava além da dança dos flocos, que, aparentemente sem cair, enchiam o espaço com sua abundância turbilhonante. As lufadas glaciais que os remexiam faziam arder as orelhas numa dor aguda, tolhiam os membros e entorpeciam os dedos, de modo que Hans Castorp já não sabia se ainda segurava o bastão ou se não tinha nada nas mãos. Por detrás a neve lhe entrava no colarinho e, derretendo, descia pelas costas. Também se amontoava nas suas espáduas e lhe cobria o flanco direito. Parecia-lhe que ia transformar-se num homem de neve, com o bastão na mão enrijecida. E todos esses inconvenientes eram as consequências de uma situação relativamente favorável. Se ele desse meia-volta a coisa pioraria, e não obstante convinha empreender sem demora aquela tarefa laboriosa que constituía o caminho de volta.
     Parou; furiosamente encolheu os ombros e dirigiu os esquis para o lado oposto. O vento contrário logo lhe impediu a respiração, de maneira que mais uma vez se submeteu à penosa manobra da meia-volta, a fim de retomar fôlego e de enfrentar o inimigo impassível numa disposição melhor. Com a cabeça abaixada, respirando econômica e cautelosamente, conseguiu, com efeito, pôr-se em movimento na direção desejada. Embora esperasse o pior, mostrou-se surpreendido pelas dificuldades da marcha, que tinham a sua origem antes de mais nada no ofuscamento e na falta de fôlego. A cada instante via-se obrigado a deter-se, em primeiro lugar para respirar ao abrigo da tempestade, e ainda porque, olhando para cima com a cabeça baixa, nada enxergava naquelas trevas brancas e devia andar com cautela, para evitar choques com árvores ou quedas causadas por obstáculos. Flocos em massa fustigavam-lhe o rosto e nele se derretiam, de modo que a pele gelava. Entravam-lhe na boca, onde se fundiam com sabor insípido e aquoso; voavam contra as pálpebras, que se cerravam convulsivamente; inundavam os olhos, estorvando a visão, que, por outro lado, teria sido inútil, uma vez que o campo visual estava velado por uma cortina espessa e o sentido da vista achava-se obstruído pelo deslumbramento resultante de toda essa brancura. Quando Hans Castorp fazia um esforço para ver, deparava com o nada, o remoinho branco do nada. E só de tempos em tempos assomavam fantasmagóricas sombras do mundo real, um arbusto definhado, um grupo de pinheiros, e também a pálida silhueta do galpão pelo qual passara havia pouco.
     Hans Castorp deixou-o para trás e procurou encontrar o caminho de volta, atravessando a vertente, a cuja beira se erguia o chalé. Ora, não existia caminho. Conservar um rumo, a direção aproximada do sanatório, era uma questão de sorte antes que de raciocínio, já que a vista, que talvez conseguisse enxergar a mão diante dos olhos, nem sequer alcançava as pontas dos esquis, e mesmo que se divisasse mais, existiam ainda numerosos óbices que se opunham ao avanço: o rosto estava coberto de neve; a tempestade lutava contra ele, impedindo, tolhendo a respiração, tornando quase impossíveis tanto o ato de aspirar como o de expelir o ar, e forçando o jovem a cada instante a virar-lhe as costas para resfolegar. Quem poderia progredir desse modo? Nem Hans Castorp, nem outro mais forte do que ele. Era preciso parar, tomar alento, apertar as pálpebras para fazer a água sair dos olhos piscos, sacudir a couraça de neve que se formara sobre a parte anterior do corpo. Não deixava de ser insensata a pretensão de avançar em tais condições.
     Apesar de tudo, Hans Castorp avançou, isto é: continuou marchando. Mas restava saber se se tratava de uma marcha profícua, de um avanço na direção certa, e se não seria mais indicado para ele permanecer no lugar onde se encontrava – o que, no entanto, tampouco parecia útil. A probabilidade teórica inclinava-se para o contrário, e do ponto de vista prático, Hans Castorp, dentro em breve, teve a impressão de que alguma coisa não andava bem no solo em que pisava, que não era mais aquela encosta pouco inclinada que ele realcançara a muito custo, subindo do barranco, e que urgia transpor antes de mais nada. O trecho plano fora muito curto, e logo recomeçou a subida. Evidentemente, a tempestade, que vinha do sudoeste, da região da extremidade oposta do vale, desviara-o da sua rota, pela furiosa pressão contrária. Já fazia algum tempo que o jovem se esfalfava num avanço errado. Às cegas, envolto na turbilhonante noite branca, apenas se esforçara por penetrar mais fundo no elemento indiferente, ameaçador.

– Vejam só! – murmurou entre dentes, enquanto estacava. Não se serviu de uma expressão mais enfática, se bem que, por um momento, tivesse a sensação de que uma mão gélida lhe agarrava o coração, fazendo-o sobressaltar-se e bater de encontro às costelas num ritmo acelerado, como naquele dia em que Radamanto lhe descobrira o lugar úmido no peito. Hans Castorp compreendia que não lhe cabia pronunciar palavras altissonantes, pois ele mesmo lançara o desafio e era responsável por tudo quanto a situação tivesse de inquietante. – Essa é boa! – disse de si para si, e sentiu que suas feições, os músculos faciais, já não obedeciam à alma e nada sabiam reproduzir, nem medo, nem raiva, nem desdém, por estarem enregelados. – Que fazer agora? Descer obliquamente por aí, direto para a frente, sempre contra o vento. Na verdade, é mais fácil dizer do que fazer – continuou, ofegante, proferindo palavras entrecortadas, a meia voz, enquanto voltava a pôr-se em movimento. – Mas é preciso que aconteça alguma coisa. Não posso sentar-me e esperar. Nesse caso ficaria coberto por toda essa simetria hexagonal, e Settembrini, se me procurasse com a corneta na mão, haveria de me achar acocorado aqui, com os olhos vidrados e com um boné de neve de través na cabeça... – Hans Castorp percebeu que estava falando sozinho, e de um jeito um tanto esquisito. Proibiu-se, pois, de falar assim, mas fez também isso à meia voz e em palavras expressas, embora seus lábios estivessem tão atordoados que renunciou a utilizá-los e falou sem pronunciar aquelas consoantes que são formadas com o auxílio deles, o que lhe chamou à memória uma situação anterior na qual ocorrera o mesmo. – Cala-te e trata de livrar-te! – prosseguiu e acrescentou: – Parece-me que estás desvairando e já não tens o cérebro muito claro. Isso é triste, sob certos aspectos.

     Que isso fosse triste, do ponto de vista da sua salvação, constituía, entretanto, uma simples verificação do juízo controlador, feita, por assim dizer, por uma pessoa estranha, desinteressada, ainda que invadida de preocupações. Quanto à sua inclinação natural, Hans Castorp sentia-se muito disposto a abandonar-se àquela confusão que se queria apoderar dele com o aumento do cansaço. Todavia, deu-se conta dessa tendência e refletiu sobre ela. – É a modificação que se produz no modo de sentir de um homem que nas montanhas foi surpreendido por uma tempestade de neve e não encontra o caminho para casa – raciocinou penosamente, pronunciando, em voz trêmula, partes dos seus pensamentos, e evitando, por discrição, expressões mais claras. – Quem ouve falar disso imagina que é horroroso, mas esquece que a enfermidade – e a minha situação é de certo modo uma enfermidade – prepara a sua vítima com o fim de adaptá-la a si própria. Há diminuições de sensibilidade, narcoses providenciais, medidas da natureza para dar-nos alívio; sim, senhor!... No entanto, devemos lutar contra elas, uma vez que têm duas caras e são sumamente equívocas. A sua apreciação depende inteiramente do ponto de vista. São bem-intencionadas e benéficas para quem não está destinado a regressar; mas são prejudiciais e devem ser combatidas, enquanto ainda se pode ter esperança de regresso, como no meu caso. Eu não penso em... No meu coração, que palpita tumultuosamente, não tenho a mínima intenção de me deixar enterrar aqui por essa cristalometria estupidamente regular. 
     De fato, já se sentia bastante esgotado e, de modo confuso e febril, ia debelando a incipiente perturbação dos seus sentidos. Não se assustou, assim, como o teria feito se tivesse estado em seu juízo, quando notou que novamente se afastara da pista plana; dessa vez, provavelmente, na direção oposta, para onde o declive era mais forte. Pois tornara a descer, tendo o vento oblíquo contra si. Embora isso fosse errado, parecia-lhe mais cômodo agir assim, pelo menos por enquanto. – Não faz mal – opinou. – Um pouco mais abaixo voltarei a tomar o rumo certo. – E foi o que fez, ou acreditou fazer, ou talvez nem sequer o acreditasse, ou – o que era ainda mais inquietante – já não ligava importância à diferença entre fazer ou não fazer. Tal era o efeito daquelas equívocas diminuições da sensibilidade, contra as quais Hans Castorp se debatia apenas debilmente. A mescla de excitação e fadiga que formava o estado familiar e constante de um pensionista cuja aclimatação consistia no hábito de não se habituar intensificara-se nos seus dois componentes de tal maneira que já não se podia falar de uma reação sensata contra os desfalecimentos do espírito. Tonto e cambaleante, estremecia de ebriedade e de emoção semelhantes àquelas que experimentava depois de um colóquio com Naphta e Settembrini, porém num grau muito mais forte. Daí lhe sucedia justificar a sua preguiça na luta contra os desfalecimentos narcóticos por meio de desordenadas reminiscências daquelas discussões. Apesar da sua desdenhosa revolta contra a ideia de se ver soterrado pela simetria hexagonal, balbuciava de si para si qualquer coisa cujo sentido ou não-sentido era o seguinte: o senso do dever que procurava induzi-lo a combater as diminuições de consciência suspeitas não era pura ética, mas sim o mísero modo de viver burguês e a mentalidade de filisteus irreligiosos. O desejo e a tentação de deitar-se e descansar insinuavam-se na sua alma e faziam com que raciocinasse que a sua situação era semelhante a uma tempestade de areia no deserto, e nesse caso os árabes costumavam estender-se com o rosto para baixo, puxando o albornoz por cima da cabeça. Unicamente o fato de não possuir albornoz e de ser impossível envolver a cabeça numa blusa de lã constituía para ele uma objeção incisiva contra tal modo de agir, se bem que já não fosse criança e estivesse inteirado, por muitas narrativas, da maneira como se processava a morte por congelamento.  
     Depois de uma descida moderadamente rápida e de um trecho plano, reiniciou-se a subida, desta vez bastante íngreme. Isso não implicava necessariamente que ele se achasse num caminho errado, pois o que conduzia para o vale forçosamente incluía trechos que subiam, e quanto ao vento, era provável que tivesse mudado, obedecendo a um capricho, já que Hans Castorp o recebia, desde havia pouco, pelas costas, e esse fato, encarado isoladamente, parecia lhe simpático. Era a tempestade que o dobrava, ou o declive macio, branco e velado pelo torvelinho crepuscular, que exercia uma atração sobre o seu corpo, fazendo-o inclinar-se para a frente? Bastaria ceder, abandonando-se a essa tendência, e a sedução era grande, tão grande como os livros a descrevem, qualificando-a como perigosa e típica. Mas essa noção não diminuía em nada a força viva e atual da atração. Reivindicava ela direitos individuais, não queria deixar-se classificar entre as coisas conhecidas, não admitia confronto, insistia em ser única e incomparável na sua urgência, sem que, no entanto, pudesse negar a sua origem numa sugestão emanada de certa pessoa, criatura vestida de preto, à espanhola, com uma alvíssima golilha pregueada, e cuja imagem ou concepção fundamental evocava toda sorte de conceitos sombrios, penetrantemente jesuíticos, hostis à humanidade, visões de escravidão torturada e flagelada, coisas de que o Sr. Settembrini tinha horror, embora na sua guerra contra elas só se tornasse ridículo, com seu realejo e sua ragione...
     Não obstante, Hans Castorp comportou-se valentemente e resistiu à tentação de se deixar cair. Não enxergava nada, mas continuava lutando e ganhando terreno; com ou sem proveito, cumpria o seu dever e trabalhava, desprezando os grilhões cada vez mais pesados, com os quais a tempestade glacial lhe prendia os membros. Como a subida se mostrasse extraordinariamente escarpada, enveredou para o lado, sem se dar conta disso, e seguiu algum tempo ao longo da vertente. Abrir as pálpebras convulsas e espreitar em torno de si exigia um esforço cuja inutilidade comprovada pouco o animava a repeti-lo. Mesmo assim deparava com alguma coisa, de vez em quando: uns pinheiros aglomerados, um arroio ou riacho, cuja negrura ressaltava na paisagem, entre os rebordos cobertos de neve. E quando, para variar, se encontrou novamente num trecho de descida, dessa vez contra a ventania, descobriu, a alguma distância, flutuando livremente na confusão de véus varridos, a sombra de uma habitação.
     Que vista simpática, reconfortante! Pela sua energia, em que pese a todos os obstáculos, Hans Castorp conseguira avançar até onde assomavam moradas humanas, indicando a proximidade do vale habitado. Talvez houvesse homens ali; talvez lhe permitissem entrar, para aguardar, sob a proteção do teto, o fim da tormenta; talvez fosse possível arranjar um companheiro ou um guia, o que se tornaria necessário no caso de a escuridão natural sobrevir nesse meio tempo. O jovem encaminhou-se para aquela coisa quimérica, que a todo instante desaparecia nas trevas borrascosas. Teve ainda que realizar uma exaustiva ascensão contra o vento, antes de alcançá-la. Uma vez chegado, verificou, com um misto de revolta, pasmo, susto e vertigem, que era aquela cabana que conhecia, o galpão com o teto carregado de pedras, que, por inúmeros rodeios e à custa dos mais intensos esforços, acabava de reconquistar.
     Que diabo! Violentas pragas saíram, com omissão dos sons labiais, da boca enregelada de Hans Castorp. Para orientar-se, deu volta à choça, apoiando-se nos bastões, e constatou que dessa vez chegara até ela por trás, e que, por conseguinte, durante mais de uma hora – segundo as suas avaliações – cometera tolices das mais perfeitas e das mais infrutuosas. Mas isso costumava acontecer, conforme se podia ler nos livros. A gente movimentava-se em círculo, labutava, com o coração cheio da quimera de um esforço útil, e em realidade descrevia vastas e estúpidas curvas que reconduziam ao ponto de partida, tal e qual a órbita falaz do ano. Destarte, as pessoas extraviavam-se e não encontravam o caminho de volta. Hans Castorp reconheceu o fenômeno tradicional com certa satisfação, embora também com algum terror. Deu na coxa uma palmada de raiva e espanto, ao ver que a experiência geral se reproduzira tão pontualmente no seu caso particular e presente.
     O galpão solitário era inacessível; a porta estava chaveada; não se podia entrar em parte alguma. Contudo, Hans Castorp resolveu permanecer, por enquanto, onde estava, porque o telhado saliente dava a ilusão de um certo abrigo. Realmente, a própria choça, no lado dirigido para a montanha, lá onde o jovem buscou refúgio, oferecia boa proteção contra a tempestade a quem se apoiasse com o ombro à parede construída de tábuas, uma vez que não era possível encostar-se, devido ao comprimento dos esquis. Aconchegando-se obliquamente à construção, deixou-se ficar ali, depois de haver cravado o bastão na neve, a seu lado; afundou as mãos nos bolsos, levantou a gola da blusa de lã e escorou-se na perna de fora. A cabeça estonteada repousava, de olhos fechados, nas tábuas do galpão. Só de quando em quando Hans Castorp lançava olhares piscos por cima do barranco, em direção à vertente oposta que às vezes assomava vagamente por entre os véus da neve.
     A sua situação era relativamente cômoda. “Desse jeito poderei agüentar de pé a noite toda, se for necessário”, pensou. “Basta mudar, de tempos em tempos, de pé, e virar-me, por assim dizer para o outro lado. É apenas indispensável que me mexa um pouco nos intervalos. Sinto-me transido exteriormente, mas acumulei bastante calor graças a caminhada que dei, e assim o desvio não foi completamente inútil, embora eu tenha andado perdido, dando voltas em torno da cabana... Perdido? De que expressão acabo de servir-me? Não é necessária nem cabe como referência àquilo que me aconteceu. Servi-me dela arbitrariamente, porque não tenho a cabeça muito clara. E todavia, em certo sentido, parece-me que é uma palavra apropriada... Ainda bem que tenho resistência, pois o torvelinho, a nevada, o caos, podem perfeitamente prolongar se até amanhã de manhã, e mesmo que se estendam apenas até o escurecer, já seria bem grave, porque de noite o perigo de a gente perder-se e dar voltas à toa é tão grande como no meio de uma tempestade de neve... Agora já deve ser de tardezinha, seis horas, pouco mais ou menos. Desperdicei muito tempo errando pela região. Que horas são, afinal?” Procurou o relógio, se bem que não fosse fácil tirá-lo do bolso com os dedos gelados, insensíveis. Olhou o relógio de ouro, com tampa de mola e monograma, que, nessa solidão desolada, continuava a tiquetaquear, viva e lentamente, semelhante ao seu coração, o comovente coração humano a pulsar no calor orgânico do tórax...
     Eram quatro e meia. Puxa! não passara muito tempo desde que começara a tempestade. Podia-se acreditar que suas andanças houvessem durado apenas um quarto de hora? “O tempo me pareceu longo”, pensou. “Ao que parece, essa coisa de andar perdido é meio fastidiosa. Mas é indiscutível que às cinco ou às cinco e meia entra a noite. Terminará a tempestade bastante depressa para evitar que me perca outra vez? Que tal um gole de porto para me fortificar?”
     Trouxera essa bebida de diletantes pelo único motivo de haver no Berghof um estoque de garrafas chatas, que eram vendidas aos excursionistas, embora, naturalmente, não se pensasse em pessoas que ilicitamente se desgarrariam na neve e no frio glacial das montanhas e aguardariam a noite em tais condições. Se as suas faculdades mentais estivessem menos esgotadas, deveria ter dito a si próprio que, sob o ponto de vista das probabilidades de regresso, o vinho do Porto era aproximadamente a pior coisa que se podia beber. Foi o que notou após ter engolido alguns tragos que lhe produziram um efeito semelhante àquele que tivera a cerveja de Kulmbach, na noite do primeiro dia após a sua chegada, quando seu palavrório desordenado e incontido sobre molhos para peixe e outras coisas do mesmo quilate havia chocado o Sr. Lodovico Settembrini, o pedagogo cujo olhar reconduzia à razão até mesmo os loucos mais varridos. Precisamente nesse instante Hans Castorp ouvia através dos ares o harmonioso som da corneta do italiano, sinal de que o eloquente educador se aproximava em marcha forçada, a fim de libertar dessa situação maluca e de guiar pelo caminho de volta o discípulo que tantas preocupações lhe causava, o filho enfermiço da vida... Tudo isso, naturalmente, era absurdo e tinha a sua origem na cerveja de Kulmbach, que Hans Castorp bebera por distração. Em primeiro lugar, o Sr. Settembrini não dispunha de corneta, mas apenas de um realejo com uma perna de pau, plantado no calçamento da rua, e cujas melodias animadas acompanhava de olhares humanísticos na direção das fachadas; e em segundo, nada sabia nem notara do que estava acontecendo, visto que deixara de morar no Sanatório Berghof e se achava na casa de Lukacek, costureiro de senhoras, naquele cubículo com a garrafa de água, acima da cela forrada de sedas do Sr. Naphta. Além disso, tinha tão pouco direito e oportunidade de intervir quanto tivera em certa noite de carnaval, quando Hans Castorp se encontrara numa posição igualmente maluca e arriscada, ao devolver à enferma Clávdia Chauchat son crayon, seu lápis, o lápis de Pribislav Hippe... Que posição era essa, afinal de contas? A posição adequada à sua existência devia ser horizontal e não vertical, no sentido genuíno, próprio e não apenas metafórico da palavra. Horizontal, como convinha a um membro veterano da sociedade aqui de cima. Não estava ele acostumado a ficar estendido ao ar livre, num ambiente de neve e de frio, tanto de dia como de noite? E já se ia deixando cair ao chão, quando o penetrou uma percepção, agarrando-o pela gola e mantendo-o de pé, a percepção que toda essa lengalenga íntima sobre a “posição” devia ser atribuída à cerveja de Kulmbach e provinha exclusivamente do seu desejo de deitar-se e dormir, desejo impessoal, tipicamente perigoso, que procurava seduzi-lo por meio de sofismas e de trocadilhos.

“Acaba-se de cometer um erro”, reconheceu. “O vinho do Porto não era recomendável; esses poucos goles me puseram chumbo na cabeça, de modo que ela me cai sobre o peito. Os meus pensamentos não passam de coisas confusas e de gracejos insípidos. Não devo fiar-me neles, nem nos primeiros que me ocorrem, nem tampouco nas observações críticas que faço a seu respeito. Aí é que está o mal. ‘Son crayon’... Quer dizer, o crayon dela e não dele; ‘son’ se diz, somente porque ‘crayon’ é masculino. Todo o resto é apenas um jogo de palavras. Nem vale a pena perder tempo com isso. No momento acho muito mais urgente a circunstância de a minha perna esquerda, na qual me apoio, recordar-me, de modo surpreendente, a perna de pau do realejo de Settembrini, que ele empurra à frente com o joelho, sobre a calçada, cada vez que se aproxima da janela e estende o chapéu de veludo, na esperança de que a moça lá de cima lhe atire alguma moeda. E ao mesmo tempo sinto qualquer coisa assim como mãos a me atrair impessoalmente para a neve. O único remédio contra isso é o movimento. Preciso movimentar me, como castigo por ter bebido a cerveja de Kulmbach, e para desentorpecer a perna de pau.” 

continua pág 319...
___________________

Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Neve (c)
___________________

A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário