A Montanha Mágica
Capítulo VI
Neve
continuando...
Nisso, porém, não havia nenhum prazer, pois nada se enxergava além da dança dos
flocos, que, aparentemente sem cair, enchiam o espaço com sua abundância turbilhonante. As
lufadas glaciais que os remexiam faziam arder as orelhas numa dor aguda, tolhiam os membros e
entorpeciam os dedos, de modo que Hans Castorp já não sabia se ainda segurava o bastão ou se
não tinha nada nas mãos. Por detrás a neve lhe entrava no colarinho e, derretendo, descia pelas
costas. Também se amontoava nas suas espáduas e lhe cobria o flanco direito. Parecia-lhe que ia
transformar-se num homem de neve, com o bastão na mão enrijecida. E todos esses
inconvenientes eram as consequências de uma situação relativamente favorável. Se ele desse
meia-volta a coisa pioraria, e não obstante convinha empreender sem demora aquela tarefa
laboriosa que constituía o caminho de volta.
Parou; furiosamente encolheu os ombros e dirigiu os esquis para o lado oposto. O vento
contrário logo lhe impediu a respiração, de maneira que mais uma vez se submeteu à penosa
manobra da meia-volta, a fim de retomar fôlego e de enfrentar o inimigo impassível numa
disposição melhor. Com a cabeça abaixada, respirando econômica e cautelosamente, conseguiu,
com efeito, pôr-se em movimento na direção desejada. Embora esperasse o pior, mostrou-se
surpreendido pelas dificuldades da marcha, que tinham a sua origem antes de mais nada no
ofuscamento e na falta de fôlego. A cada instante via-se obrigado a deter-se, em primeiro lugar
para respirar ao abrigo da tempestade, e ainda porque, olhando para cima com a cabeça baixa,
nada enxergava naquelas trevas brancas e devia andar com cautela, para evitar choques com
árvores ou quedas causadas por obstáculos. Flocos em massa fustigavam-lhe o rosto e nele se
derretiam, de modo que a pele gelava. Entravam-lhe na boca, onde se fundiam com sabor
insípido e aquoso; voavam contra as pálpebras, que se cerravam convulsivamente; inundavam os
olhos, estorvando a visão, que, por outro lado, teria sido inútil, uma vez que o campo visual
estava velado por uma cortina espessa e o sentido da vista achava-se obstruído pelo
deslumbramento resultante de toda essa brancura. Quando Hans Castorp fazia um esforço para
ver, deparava com o nada, o remoinho branco do nada. E só de tempos em tempos assomavam
fantasmagóricas sombras do mundo real, um arbusto definhado, um grupo de pinheiros, e
também a pálida silhueta do galpão pelo qual passara havia pouco.
Hans Castorp deixou-o para trás e procurou encontrar o caminho de volta, atravessando
a vertente, a cuja beira se erguia o chalé. Ora, não existia caminho. Conservar um rumo, a direção
aproximada do sanatório, era uma questão de sorte antes que de raciocínio, já que a vista, que
talvez conseguisse enxergar a mão diante dos olhos, nem sequer alcançava as pontas dos esquis, e
mesmo que se divisasse mais, existiam ainda numerosos óbices que se opunham ao avanço: o
rosto estava coberto de neve; a tempestade lutava contra ele, impedindo, tolhendo a respiração,
tornando quase impossíveis tanto o ato de aspirar como o de expelir o ar, e forçando o jovem a
cada instante a virar-lhe as costas para resfolegar. Quem poderia progredir desse modo? Nem
Hans Castorp, nem outro mais forte do que ele. Era preciso parar, tomar alento, apertar as
pálpebras para fazer a água sair dos olhos piscos, sacudir a couraça de neve que se formara sobre
a parte anterior do corpo. Não deixava de ser insensata a pretensão de avançar em tais condições.
Apesar de tudo, Hans Castorp avançou, isto é: continuou marchando. Mas restava saber
se se tratava de uma marcha profícua, de um avanço na direção certa, e se não seria mais indicado
para ele permanecer no lugar onde se encontrava – o que, no entanto, tampouco parecia útil. A
probabilidade teórica inclinava-se para o contrário, e do ponto de vista prático, Hans Castorp,
dentro em breve, teve a impressão de que alguma coisa não andava bem no solo em que pisava,
que não era mais aquela encosta pouco inclinada que ele realcançara a muito custo, subindo do
barranco, e que urgia transpor antes de mais nada. O trecho plano fora muito curto, e logo
recomeçou a subida. Evidentemente, a tempestade, que vinha do sudoeste, da região da
extremidade oposta do vale, desviara-o da sua rota, pela furiosa pressão contrária. Já fazia algum
tempo que o jovem se esfalfava num avanço errado. Às cegas, envolto na turbilhonante noite
branca, apenas se esforçara por penetrar mais fundo no elemento indiferente, ameaçador.
– Vejam só! – murmurou entre dentes, enquanto estacava. Não se serviu de uma
expressão mais enfática, se bem que, por um momento, tivesse a sensação de que uma mão gélida
lhe agarrava o coração, fazendo-o sobressaltar-se e bater de encontro às costelas num ritmo
acelerado, como naquele dia em que Radamanto lhe descobrira o lugar úmido no peito. Hans
Castorp compreendia que não lhe cabia pronunciar palavras altissonantes, pois ele mesmo lançara
o desafio e era responsável por tudo quanto a situação tivesse de inquietante. – Essa é boa! –
disse de si para si, e sentiu que suas feições, os músculos faciais, já não obedeciam à alma e nada
sabiam reproduzir, nem medo, nem raiva, nem desdém, por estarem enregelados. – Que fazer
agora? Descer obliquamente por aí, direto para a frente, sempre contra o vento. Na verdade, é
mais fácil dizer do que fazer – continuou, ofegante, proferindo palavras entrecortadas, a meia
voz, enquanto voltava a pôr-se em movimento. – Mas é preciso que aconteça alguma coisa. Não
posso sentar-me e esperar. Nesse caso ficaria coberto por toda essa simetria hexagonal, e
Settembrini, se me procurasse com a corneta na mão, haveria de me achar acocorado aqui, com
os olhos vidrados e com um boné de neve de través na cabeça... – Hans Castorp percebeu que
estava falando sozinho, e de um jeito um tanto esquisito. Proibiu-se, pois, de falar assim, mas fez
também isso à meia voz e em palavras expressas, embora seus lábios estivessem tão atordoados
que renunciou a utilizá-los e falou sem pronunciar aquelas consoantes que são formadas com o
auxílio deles, o que lhe chamou à memória uma situação anterior na qual ocorrera o mesmo. –
Cala-te e trata de livrar-te! – prosseguiu e acrescentou: – Parece-me que estás desvairando e já não
tens o cérebro muito claro. Isso é triste, sob certos aspectos.
Que isso fosse triste, do ponto de vista da sua salvação, constituía, entretanto, uma
simples verificação do juízo controlador, feita, por assim dizer, por uma pessoa estranha,
desinteressada, ainda que invadida de preocupações. Quanto à sua inclinação natural, Hans
Castorp sentia-se muito disposto a abandonar-se àquela confusão que se queria apoderar dele
com o aumento do cansaço. Todavia, deu-se conta dessa tendência e refletiu sobre ela. – É a
modificação que se produz no modo de sentir de um homem que nas montanhas foi
surpreendido por uma tempestade de neve e não encontra o caminho para casa – raciocinou
penosamente, pronunciando, em voz trêmula, partes dos seus pensamentos, e evitando, por
discrição, expressões mais claras. – Quem ouve falar disso imagina que é horroroso, mas esquece
que a enfermidade – e a minha situação é de certo modo uma enfermidade – prepara a sua vítima
com o fim de adaptá-la a si própria. Há diminuições de sensibilidade, narcoses providenciais,
medidas da natureza para dar-nos alívio; sim, senhor!... No entanto, devemos lutar contra elas,
uma vez que têm duas caras e são sumamente equívocas. A sua apreciação depende inteiramente
do ponto de vista. São bem-intencionadas e benéficas para quem não está destinado a regressar;
mas são prejudiciais e devem ser combatidas, enquanto ainda se pode ter esperança de regresso,
como no meu caso. Eu não penso em... No meu coração, que palpita tumultuosamente, não
tenho a mínima intenção de me deixar enterrar aqui por essa cristalometria estupidamente
regular.
De fato, já se sentia bastante esgotado e, de modo confuso e febril, ia debelando a
incipiente perturbação dos seus sentidos. Não se assustou, assim, como o teria feito se tivesse
estado em seu juízo, quando notou que novamente se afastara da pista plana; dessa vez,
provavelmente, na direção oposta, para onde o declive era mais forte. Pois tornara a descer,
tendo o vento oblíquo contra si. Embora isso fosse errado, parecia-lhe mais cômodo agir assim,
pelo menos por enquanto. – Não faz mal – opinou. – Um pouco mais abaixo voltarei a tomar o
rumo certo. – E foi o que fez, ou acreditou fazer, ou talvez nem sequer o acreditasse, ou – o que
era ainda mais inquietante – já não ligava importância à diferença entre fazer ou não fazer. Tal era
o efeito daquelas equívocas diminuições da sensibilidade, contra as quais Hans Castorp se debatia
apenas debilmente. A mescla de excitação e fadiga que formava o estado familiar e constante de
um pensionista cuja aclimatação consistia no hábito de não se habituar intensificara-se nos seus
dois componentes de tal maneira que já não se podia falar de uma reação sensata contra os
desfalecimentos do espírito. Tonto e cambaleante, estremecia de ebriedade e de emoção
semelhantes àquelas que experimentava depois de um colóquio com Naphta e Settembrini,
porém num grau muito mais forte. Daí lhe sucedia justificar a sua preguiça na luta contra os
desfalecimentos narcóticos por meio de desordenadas reminiscências daquelas discussões. Apesar
da sua desdenhosa revolta contra a ideia de se ver soterrado pela simetria hexagonal, balbuciava
de si para si qualquer coisa cujo sentido ou não-sentido era o seguinte: o senso do dever que
procurava induzi-lo a combater as diminuições de consciência suspeitas não era pura ética, mas
sim o mísero modo de viver burguês e a mentalidade de filisteus irreligiosos. O desejo e a
tentação de deitar-se e descansar insinuavam-se na sua alma e faziam com que raciocinasse que a
sua situação era semelhante a uma tempestade de areia no deserto, e nesse caso os árabes
costumavam estender-se com o rosto para baixo, puxando o albornoz por cima da cabeça.
Unicamente o fato de não possuir albornoz e de ser impossível envolver a cabeça numa blusa de
lã constituía para ele uma objeção incisiva contra tal modo de agir, se bem que já não fosse
criança e estivesse inteirado, por muitas narrativas, da maneira como se processava a morte por
congelamento.
Depois de uma descida moderadamente rápida e de um trecho plano, reiniciou-se a
subida, desta vez bastante íngreme. Isso não implicava necessariamente que ele se achasse num
caminho errado, pois o que conduzia para o vale forçosamente incluía trechos que subiam, e
quanto ao vento, era provável que tivesse mudado, obedecendo a um capricho, já que Hans
Castorp o recebia, desde havia pouco, pelas costas, e esse fato, encarado isoladamente, parecia
lhe simpático. Era a tempestade que o dobrava, ou o declive macio, branco e velado pelo
torvelinho crepuscular, que exercia uma atração sobre o seu corpo, fazendo-o inclinar-se para a
frente? Bastaria ceder, abandonando-se a essa tendência, e a sedução era grande, tão grande como
os livros a descrevem, qualificando-a como perigosa e típica. Mas essa noção não diminuía em
nada a força viva e atual da atração. Reivindicava ela direitos individuais, não queria deixar-se
classificar entre as coisas conhecidas, não admitia confronto, insistia em ser única e incomparável
na sua urgência, sem que, no entanto, pudesse negar a sua origem numa sugestão emanada de certa
pessoa, criatura vestida de preto, à espanhola, com uma alvíssima golilha pregueada, e cuja
imagem ou concepção fundamental evocava toda sorte de conceitos sombrios, penetrantemente
jesuíticos, hostis à humanidade, visões de escravidão torturada e flagelada, coisas de que o Sr.
Settembrini tinha horror, embora na sua guerra contra elas só se tornasse ridículo, com seu
realejo e sua ragione...
Não obstante, Hans Castorp comportou-se valentemente e resistiu à tentação de se deixar
cair. Não enxergava nada, mas continuava lutando e ganhando terreno; com ou sem proveito,
cumpria o seu dever e trabalhava, desprezando os grilhões cada vez mais pesados, com os quais a
tempestade glacial lhe prendia os membros. Como a subida se mostrasse extraordinariamente
escarpada, enveredou para o lado, sem se dar conta disso, e seguiu algum tempo ao longo da
vertente. Abrir as pálpebras convulsas e espreitar em torno de si exigia um esforço cuja
inutilidade comprovada pouco o animava a repeti-lo. Mesmo assim deparava com alguma coisa,
de vez em quando: uns pinheiros aglomerados, um arroio ou riacho, cuja negrura ressaltava na
paisagem, entre os rebordos cobertos de neve. E quando, para variar, se encontrou novamente
num trecho de descida, dessa vez contra a ventania, descobriu, a alguma distância, flutuando
livremente na confusão de véus varridos, a sombra de uma habitação.
Que vista simpática, reconfortante! Pela sua energia, em que pese a todos os obstáculos,
Hans Castorp conseguira avançar até onde assomavam moradas humanas, indicando a
proximidade do vale habitado. Talvez houvesse homens ali; talvez lhe permitissem entrar, para
aguardar, sob a proteção do teto, o fim da tormenta; talvez fosse possível arranjar um
companheiro ou um guia, o que se tornaria necessário no caso de a escuridão natural sobrevir
nesse meio tempo. O jovem encaminhou-se para aquela coisa quimérica, que a todo instante
desaparecia nas trevas borrascosas. Teve ainda que realizar uma exaustiva ascensão contra o
vento, antes de alcançá-la. Uma vez chegado, verificou, com um misto de revolta, pasmo, susto e
vertigem, que era aquela cabana que conhecia, o galpão com o teto carregado de pedras, que, por
inúmeros rodeios e à custa dos mais intensos esforços, acabava de reconquistar.
Que diabo! Violentas pragas saíram, com omissão dos sons labiais, da boca enregelada de
Hans Castorp. Para orientar-se, deu volta à choça, apoiando-se nos bastões, e constatou que
dessa vez chegara até ela por trás, e que, por conseguinte, durante mais de uma hora – segundo as
suas avaliações – cometera tolices das mais perfeitas e das mais infrutuosas. Mas isso costumava
acontecer, conforme se podia ler nos livros. A gente movimentava-se em círculo, labutava, com o
coração cheio da quimera de um esforço útil, e em realidade descrevia vastas e estúpidas curvas
que reconduziam ao ponto de partida, tal e qual a órbita falaz do ano. Destarte, as pessoas
extraviavam-se e não encontravam o caminho de volta. Hans Castorp reconheceu o fenômeno
tradicional com certa satisfação, embora também com algum terror. Deu na coxa uma palmada
de raiva e espanto, ao ver que a experiência geral se reproduzira tão pontualmente no seu caso
particular e presente.
O galpão solitário era inacessível; a porta estava chaveada; não se podia entrar em parte
alguma. Contudo, Hans Castorp resolveu permanecer, por enquanto, onde estava, porque o
telhado saliente dava a ilusão de um certo abrigo. Realmente, a própria choça, no lado dirigido
para a montanha, lá onde o jovem buscou refúgio, oferecia boa proteção contra a tempestade a
quem se apoiasse com o ombro à parede construída de tábuas, uma vez que não era possível
encostar-se, devido ao comprimento dos esquis. Aconchegando-se obliquamente à construção,
deixou-se ficar ali, depois de haver cravado o bastão na neve, a seu lado; afundou as mãos nos
bolsos, levantou a gola da blusa de lã e escorou-se na perna de fora. A cabeça estonteada
repousava, de olhos fechados, nas tábuas do galpão. Só de quando em quando Hans Castorp
lançava olhares piscos por cima do barranco, em direção à vertente oposta que às vezes assomava
vagamente por entre os véus da neve.
A sua situação era relativamente cômoda. “Desse jeito poderei agüentar de pé a noite
toda, se for necessário”, pensou. “Basta mudar, de tempos em tempos, de pé, e virar-me, por
assim dizer para o outro lado. É apenas indispensável que me mexa um pouco nos intervalos.
Sinto-me transido exteriormente, mas acumulei bastante calor graças a caminhada que dei, e
assim o desvio não foi completamente inútil, embora eu tenha andado perdido, dando voltas em
torno da cabana... Perdido? De que expressão acabo de servir-me? Não é necessária nem cabe
como referência àquilo que me aconteceu. Servi-me dela arbitrariamente, porque não tenho a
cabeça muito clara. E todavia, em certo sentido, parece-me que é uma palavra apropriada... Ainda
bem que tenho resistência, pois o torvelinho, a nevada, o caos, podem perfeitamente prolongar
se até amanhã de manhã, e mesmo que se estendam apenas até o escurecer, já seria bem grave,
porque de noite o perigo de a gente perder-se e dar voltas à toa é tão grande como no meio de
uma tempestade de neve... Agora já deve ser de tardezinha, seis horas, pouco mais ou menos.
Desperdicei muito tempo errando pela região. Que horas são, afinal?” Procurou o relógio, se bem
que não fosse fácil tirá-lo do bolso com os dedos gelados, insensíveis. Olhou o relógio de ouro,
com tampa de mola e monograma, que, nessa solidão desolada, continuava a tiquetaquear, viva e
lentamente, semelhante ao seu coração, o comovente coração humano a pulsar no calor orgânico
do tórax...
Eram quatro e meia. Puxa! não passara muito tempo desde que começara a tempestade.
Podia-se acreditar que suas andanças houvessem durado apenas um quarto de hora? “O tempo
me pareceu longo”, pensou. “Ao que parece, essa coisa de andar perdido é meio fastidiosa. Mas é
indiscutível que às cinco ou às cinco e meia entra a noite. Terminará a tempestade bastante
depressa para evitar que me perca outra vez? Que tal um gole de porto para me fortificar?”
Trouxera essa bebida de diletantes pelo único motivo de haver no Berghof um estoque de
garrafas chatas, que eram vendidas aos excursionistas, embora, naturalmente, não se pensasse em
pessoas que ilicitamente se desgarrariam na neve e no frio glacial das montanhas e aguardariam a
noite em tais condições. Se as suas faculdades mentais estivessem menos esgotadas, deveria ter
dito a si próprio que, sob o ponto de vista das probabilidades de regresso, o vinho do Porto era
aproximadamente a pior coisa que se podia beber. Foi o que notou após ter engolido alguns
tragos que lhe produziram um efeito semelhante àquele que tivera a cerveja de Kulmbach, na
noite do primeiro dia após a sua chegada, quando seu palavrório desordenado e incontido sobre
molhos para peixe e outras coisas do mesmo quilate havia chocado o Sr. Lodovico Settembrini, o
pedagogo cujo olhar reconduzia à razão até mesmo os loucos mais varridos. Precisamente nesse
instante Hans Castorp ouvia através dos ares o harmonioso som da corneta do italiano, sinal de
que o eloquente educador se aproximava em marcha forçada, a fim de libertar dessa situação
maluca e de guiar pelo caminho de volta o discípulo que tantas preocupações lhe causava, o filho
enfermiço da vida... Tudo isso, naturalmente, era absurdo e tinha a sua origem na cerveja de
Kulmbach, que Hans Castorp bebera por distração. Em primeiro lugar, o Sr. Settembrini não
dispunha de corneta, mas apenas de um realejo com uma perna de pau, plantado no calçamento
da rua, e cujas melodias animadas acompanhava de olhares humanísticos na direção das fachadas;
e em segundo, nada sabia nem notara do que estava acontecendo, visto que deixara de morar no
Sanatório Berghof e se achava na casa de Lukacek, costureiro de senhoras, naquele cubículo com
a garrafa de água, acima da cela forrada de sedas do Sr. Naphta. Além disso, tinha tão pouco
direito e oportunidade de intervir quanto tivera em certa noite de carnaval, quando Hans Castorp
se encontrara numa posição igualmente maluca e arriscada, ao devolver à enferma Clávdia
Chauchat son crayon, seu lápis, o lápis de Pribislav Hippe... Que posição era essa, afinal de contas?
A posição adequada à sua existência devia ser horizontal e não vertical, no sentido genuíno,
próprio e não apenas metafórico da palavra. Horizontal, como convinha a um membro veterano
da sociedade aqui de cima. Não estava ele acostumado a ficar estendido ao ar livre, num ambiente
de neve e de frio, tanto de dia como de noite? E já se ia deixando cair ao chão, quando o
penetrou uma percepção, agarrando-o pela gola e mantendo-o de pé, a percepção que toda essa
lengalenga íntima sobre a “posição” devia ser atribuída à cerveja de Kulmbach e provinha
exclusivamente do seu desejo de deitar-se e dormir, desejo impessoal, tipicamente perigoso, que
procurava seduzi-lo por meio de sofismas e de trocadilhos.
“Acaba-se de cometer um erro”, reconheceu. “O vinho do Porto não era recomendável;
esses poucos goles me puseram chumbo na cabeça, de modo que ela me cai sobre o peito. Os
meus pensamentos não passam de coisas confusas e de gracejos insípidos. Não devo fiar-me
neles, nem nos primeiros que me ocorrem, nem tampouco nas observações críticas que faço a
seu respeito. Aí é que está o mal. ‘Son crayon’... Quer dizer, o crayon dela e não dele; ‘son’ se diz,
somente porque ‘crayon’ é masculino. Todo o resto é apenas um jogo de palavras. Nem vale a
pena perder tempo com isso. No momento acho muito mais urgente a circunstância de a minha
perna esquerda, na qual me apoio, recordar-me, de modo surpreendente, a perna de pau do
realejo de Settembrini, que ele empurra à frente com o joelho, sobre a calçada, cada vez que se
aproxima da janela e estende o chapéu de veludo, na esperança de que a moça lá de cima lhe atire
alguma moeda. E ao mesmo tempo sinto qualquer coisa assim como mãos a me atrair
impessoalmente para a neve. O único remédio contra isso é o movimento. Preciso movimentar
me, como castigo por ter bebido a cerveja de Kulmbach, e para desentorpecer a perna de pau.”
continua pág 319...
___________________
___________________
Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Neve (c)
___________________
A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário