Elias Canetti
MALTA E RELIGIÃO
Catolicismo e Massa
Contemplando-se-lhe imparcialmente, chama a atenção no
catolicismo uma certa lentidão e tranquilidade, aliadas a uma grande
amplidão. Sua principal reivindicação — a de ter lugar para todos — está
contida já em seu nome. Deseja-se que todos se convertam a ele, e, sob
certas condições que não se podem tomar por duras, todos são aceitos.
Preservou-se aí — no princípio, e não no processo da aceitação — um
último vestígio de igualdade que contrasta curiosamente com a essência
rigorosamente hierárquica do catolicismo.
Sua tranquilidade — que, ao lado da amplidão, exerce grande atração
sobre muitos —, ele a deve à idade que tem e à aversão a tudo quanto
apresenta o caráter violento da massa. A antiga desconfiança em relação
à massa nunca mais abandonou o catolicismo, já a partir, talvez, dos
primeiros movimentos heréticos dos montanistas, que, com resoluta
falta de respeito, se voltaram contra os bispos. A periculosidade das
súbitas erupções, a facilidade com que elas avançam, sua rapidez e
imprevisibilidade, mas, acima de tudo, a supressão das distâncias, entre as
quais há que se incluir em especial medida as distâncias da hierarquia
eclesiástica — tudo isso fez com que, logo cedo, a Igreja visse na massa
aberta seu principal inimigo, a ela se opondo de todas as formas
possíveis.
Todo o teor de sua crença, bem como todas as formas práticas
assumidas por sua organização, apresentam-se matizadas por essa
percepção inabalável. Até hoje, jamais houve um Estado na face da terra
que soubesse se defender da massa de tantas e tão variadas formas.
Comparados à Igreja, todos os detentores de poder parecem pobres
amadores.
Há que se pensar aí sobretudo no próprio culto, que atua da forma
mais imediata sobre os fiéis reunidos. Este é de uma lentidão e
gravidade insuperáveis. Os movimentos dos padres, em seus hábitos
pesados e rígidos; o comedimento de seus passos, o alongamento de suas
palavras — tudo isso lembra um pouco um lamento fúnebre
infinitamente diluído, distribuído com tamanha regularidade pelos
séculos que quase nada restou da subtaneidade da morte, da violência da
dor: o desenvolvimento temporal da lamentação é mumificado.
A união entre os próprios fiéis é obstruída de várias formas. Eles não
pregam uns para os outros; a palavra de um simples fiel não se reveste de
nenhuma santidade. Tudo o que ele espera, o que quer que venha a
libertá-lo da múltipla pressão que sobre ele pesa provém de cima; ele
nem sequer entende aquilo que não lhe é explicado. A palavra sagrada lhe
é ministrada já mastigada e dosada; precisamente por ser sagrada, ela é
protegida dele. Até os pecados pertencem aos padres, aos quais ele tem de
confessá-los. Não constitui alívio algum para ele revelá-los a outros fiéis
comuns, nem tampouco é-lhe lícito guardá-los para si. Para todas as
questões morais e mais profundas, ele dispõe apenas do clero; em troca
da vida medianamente satisfatória que este lhe possibilita, o fiel
entrega-se por inteiro a ele.
Mesmo o modo como a comunhão é ministrada, porém, em vez de
uni-los prontamente, aparta o fiel dos demais que a recebem
conjuntamente com ele. Aquele que comunga recebe sozinho um
tesouro precioso, assim como sozinho o aguarda e sozinho deve
protegê-lo. Quem quer que tenha contemplado a leira dos que se
preparam para a comunhão não pode deixar de notar em que grande
medida cada um se ocupa exclusivamente de si mesmo. A pessoa que
está na sua frente ou atrás de si importa-lhe ainda menos do que aqueles
com quem ele está em contato na vida cotidiana, e sua vinculação com
estes é já tênue o suficiente. A comunhão une aquele que a recebe à
Igreja, que é invisível e ostenta portentosas dimensões; ela o arrebata
dos presentes. Os comungantes entre si sentem-se em tão pouca medida
um corpo único quanto um grupo de pessoas que encontrou um
tesouro e acaba de reparti-lo.
Na natureza desse acontecimento, de tão central importância para
sua crença, a Igreja revela seu cuidado em relação a tudo o que lembre a
massa. Ela enfraquece e atenua a coletividade das pessoas efetivamente
presentes e coloca em seu lugar uma coletividade misteriosa e distante,
coletividade esta que é superpoderosa, que não necessita
incondicionalmente do fiel e que, em vida, jamais suprime realmente a
fronteira que o separa dela. A massa que o catolicismo admite e para a
qual sempre aponta — a dos anjos e bem-aventurados — é não apenas
deslocada para um distante além, e, já por isso, por seu caráter remoto,
tornada inofensiva e apartada da esfera da contaminação imediata; ela é
também, em si própria, de uma serenidade e tranquilidade exemplares.
Não se imagina que os bem-aventurados façam muita coisa; sua
serenidade lembra a de uma procissão. Eles passeiam, cantam, louvam e
sentem sua felicidade. Comportam-se todos de maneira semelhante;
não há como ignorar uma certa uniformidade de seu destino; jamais se
tentou ocultar ou perturbar a profunda uniformidade de sua conduta.
Eles são muitos, estão bem juntos um do outro e encontram-se
impregnados da mesma bem-aventurança. Com isso, porém, estão já
enumeradas todas as suas características de massa. Eles se tornam mais,
mas tão lentamente, que não se nota: jamais se fala do número crescente
dos bem-aventurados. Tampouco têm eles uma direção. Seu estado é
definitivo. A corte que compõem é imutável. Não querem ir a lugar
algum e não mais esperam por coisa alguma. Essa é, decerto, a forma
mais branda e inofensiva de massa que se pode conceber. Talvez estejam
no limite daquilo que se pode ainda chamar de massa; na verdade, tem
se aí precisamente a fronteira da massa — um coro reunido, a cantar
canções belas, mas não demasiado excitantes; tem-se aí a condição do
eleito como um estado, posterior a todos os atos que comprovam seu
mérito e de duração eterna. Não fosse a durabilidade, de tudo quanto o
homem anseia, o mais difícil de se atingir, seria difícil compreender do
que, verdadeiramente, se compõe a força de atração dos bem
aventurados, na qualidade de massa.
As coisas aqui na terra não são tão serenas quanto o são entre os bem
aventurados, mas o que quer que a Igreja tenha a mostrar, ela o mostra
lentamente. As procissões são um exemplo impressionante disso. Elas
devem ser vistas pelo maior número possível de pessoas, e seu
movimento atende a esse propósito: ele se assemelha a um suave
empurrar. Tal movimento congrega os fiéis roçando-lhes
paulatinamente, e sem incitá-los a um movimento maior, a não ser o do
ajoelhar-se para a prece ou o do juntar-se à procissão no local
apropriado, bem ao final do cortejo, sem jamais pensar ou desejar passar
na frente.
A procissão sempre oferece uma imagem da hierarquia eclesiástica.
Cada um avança vestido de toda a sua dignidade e é reconhecido e
designado pelos demais como aquilo que representa. Espera-se a bênção
daquele que tem o direito de concedê-la. Já essa hierarquização da
procissão inibe no espectador o aproximar-se de um estado semelhante
ao da massa. Muitos níveis de contemplação o retêm simultaneamente;
qualquer equiparação entre eles, qualquer transformação dos diversos
níveis em um único está excluída. O espectador adulto jamais verá a si
próprio como o padre ou o bispo. Estes permanecem sempre apartados
dele, que invariavelmente os coloca acima de si mesmo. Mas, quanto
maior a sua devoção, tanto mais tenderá ele a demonstrar-lhes — a eles,
tão superiores e tão mais santos que ele — sua veneração. É
precisamente isso, e nada mais, que a procissão pretende: ela quer
conduzir a uma veneração conjunta por parte dos fiéis. Uma comunhão
maior nem sequer é desejada, pois poderia levar a erupções sentimentais
e a atividades não mais controláveis. A própria veneração é também
graduada: na medida em que, ao longo da procissão, ela aumenta de
grau em grau — graus estes todos conhecidos, esperados e permanentes
—, retiram-se-lhe os espinhos da subtaneidade. A veneração aumenta de
maneira suave e inequívoca como a maré, alcança seu apogeu e, então,
torna a refluir lentamente.
Considerando-se a importância para a Igreja de todas as formas de
organização, não é de se admirar que ela apresente um abundante
número de cristais de massa. Em nenhuma outra parte, talvez, a função
destes se deixa estudar tão bem quanto aí; não se há de esquecer,
contudo, que também eles servem à orientação geral da Igreja, que é a
de evitar ou, mais propriamente, retardar a formação de massas.
Desses cristais de massa fazem parte os mosteiros e as ordens. Eles
contêm os verdadeiros cristãos, os que vivem para a obediência, a
pobreza e a castidade. Servem, ademais, para continuamente exibir aos
outros — aos muitos que, embora sejam chamados de cristãos, não são
capazes de viver como tais — cristãos que efetivamente o são. Seu traje
constitui o instrumento isolado mais importante para tanto. Ele
significa renúncia e desprendimento em relação à habitual união
familiar.
A função de tais cristais de massa modifica-se inteiramente em épocas
de perigo. Nem sempre a Igreja pode permitir-se sustentar seu nobre
retraimento, sua aversão à massa aberta, a proibição que impôs à sua
formação. Há épocas nas quais inimigos externos a ameaçam, ou nas
quais a apostasia propaga-se tão rapidamente que só se pode combatê-la
com os meios oferecidos pela própria epidemia. Em épocas assim, a
Igreja vê-se obrigada a contrapor massas próprias às inimigas. Os
monges transformam-se então em agitadores a atravessar o país
pregando e convocando os homens a uma atividade que, em geral,
prefere-se evitar. O exemplo mais grandioso de uma tal formação
consciente de massas por parte da Igreja é o das Cruzadas.
continua página 242...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e Religião: Catolicismo e Massa
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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