baitasar
sinto que dilui minha aparência risonha e agradável, o coração parando de agradar, o susto na voz, a porta da gaiola se fechando, Não estou entendo, Rachel, pergunto sem lirismo afetado ou sangramento visível, O que está acontecendo, insisto na pergunta
hoje deveria ser o primeiro dia do resto da minha vida, entretanto, uma pequena e clássica nuvem de suspeição mostra-se como um anjo apocalíptico repetindo, O sol não aparece à noite, seu tolo. Existem coisas que não mudam.
olha para mim, sinto que busca um aliado naquela manhã ensolarada, as crianças brilhando, ela parece caminhar por uma trilha escondida entre árvores antigas, procurando alguém para acompanhá-la na andada dura e longa que se aproxima à sua frente, vasculha meus olhos, percebo a mesma acanhada e clássica nuvem em seus olhos
continua tranquila e gentil, quase como se fosse uma guardiã silenciosa
com um sorriso sem graça ajusto minha postura, estou menos confiante, lembro que nas jornadas mais solitárias há sempre um amigo escondido nas pequenas coisas, decidi que não vou desistir do meu silêncio até escutar sua queixa ou aviso
ela não se demora a falar
faz um breve resumo da situação e da decisão tomada, há uma pequena esperança na sua voz, diz estar confiante em mim, na minha força interior, reforçada na minha competente presença, começo a desconfiar que virá a seguir algo inusitado, uma substituição do antigo que não parece ser eu, Já fiz todos os movimentos possíveis, Marko. Mas não consegui preencher no quadro dos recursos humanos a professora referência e a volância de duas turmas do primeiro ano, o susto está dado, o inimaginável está dito, o momento para mim é de dúvida e hesitação, não sei se entendi bem o que me foi dito, busco na minha voz alguma inspiração para desencorajá-la da possibilidade que começa revelar-se, ela não para, não salta e não corre, parece um trator revirando terra à sua frente, Preciso que você assuma uma das turmas do primeiro ano como professor referência e a volância da outra turma.
estou em choque dentro da gaiola, tenta me convencer que preciso cantar, repete que confia em mim, na minha força interior, na minha presença habilidosa e inteligente, no meu comprometimento, isso tudo não acende meu desejo, não alivia o susto nem minha insegurança para superar tamanho desafio imprevisto, não basta determinação e decidir seguir em frente, Rachel, você está consciente que não sei como fazer? Eu não sei alfabetizar!
esse não é o primeiro dia do resto da minha vida, é um outro primeiro dia, e ele, esse primeiro dia de hoje, carrega um imenso e grave desafio, pela primeira vez desde minha primeira vez , estou com medo real e imediato, não consigo evitar, Não acredito que está me pedindo isso, Rachel!
Essa não é minha escolha, mas é minha decisão.
não sei se respiro – talvez deva fechar os olhos e acordar com um leve beliscão, espantado com tal pesadelo –, estou apavorado, pareço mergulhado em uma noite escura e barulhenta num sono inquieto, tomado por uma sombra imensa que parece se alimentar dos meus receios mais profundos, sinto o peso desse medo esmagando meu peito, o relógio do tempo sempre se movimentando para frente, longas manhãs me esperam e se tornam mais intensas a cada instante
fecho e abro os olhos, desesperadamente, não é medo das crianças, é o assombro com a tarefa, nada vejo além da minha incapacidade técnica opaca, minha inconsistência desse saber, essa realidade pulsante luta contra uma força invisível que me prende na cadeira com uma dor aguda na alma, cada tentativa de levantar é como nadar contra uma maré de trevas, gritos abafados por ausência de som, lágrimas desaparecidas na vastidão da noite
esse não é um primeiro dia comum, parece uma prisão medonha em minha mente, onde o desejo de escapar se mistura com a terrível compreensão que não posso fugir, levantar da cadeira torna-se um desafio, uma esperança, no limite entre sonho e realidade, amizade e silêncio, covardia e vaidade, querendo fugir, mas não podendo sair contra um algo tão bom, tão inusitado, um encantamento de olhos abertos sem nenhuma cruz, apesar do frio profundo que toma meu mundo e aproxima sombras estranhas silenciosamente
preciso levantar, mas o pesadelo insiste, cruel e com razão, nem na mais profunda distopia me escolheria para alfabetizar, o primeiro ano é a porta da inspiração para aprender, lugar e tempo da nossa iniciação para desapegar-nos da ignorância, a nossa relação afetiva com esse mundo de descobrir, entender, perceber a escola, amorosidade confidenciada no fazer ou deixar de fazer, construção do pensamento que observa, investiga, aprecia, estuda, comenta, debate afinidades e desconformidades, semelhanças e diferenças, busca fundamentos para atracar provisoriamente suas convicções porque descobre provocação no transitório
encontros e desencontros se materializando com seus efeitos diferentes, a consequente concretude humana e suas fantasias, Essas crianças têm seis anos, Rachel!
Eu sei, Marko.
busco desanimado outros argumentos, sei que tudo muda e pode ser permitido se o sistema assim o quer por suas próprias conveniências, Não sou alfabetizador!
Eu sei...
óbvio que sabe, mas o dia amanheceu e o axiomático de ontem, hoje é contestável, não desisto da minha procura por pressuposto, Eu sou professor de educação física!
Isso, Marko... você é professor. E o professor Marko vai acolher essas crianças com seus mistérios e seu amor, não vai permitir que fiquem desgarradas sem um professor.
continuo sentado, Tudo isso é um blefe na beirada do abismo, não quero ser a mão do carrasco. E amorosidade sem competência é ingenuidade, é apenas colo.
Então, seja a luz para os olhos delas, Marko... hoje, elas precisam de você, amanhã talvez não precisem mais.
abro a boca para choramingar que aquilo tudo não é justo com as crianças nem comigo, mas fico em silêncio, sabia que minhas palavras não derrubariam o muro erguido depois daquela decisão tomada, um banho de água fria no sapo
é a vida, nesta nossa gota de vida, ela nem sempre é bonita, quase sempre surpreendente, eu sei, devia ser melhor, um jeito com menos lamento e mais alegria, mas é preciso saber viver, acreditar num lugar que não tenha dono, saber viver não é para amadores
pobre coração escravo da ternura
quero acreditar nessa força que a Rachel sugere que tenho, esclarecendo minhas próprias perguntas, sofrendo muito com esse novo inusitado esforço, não consigo ficar animado com o papel mágico do professor de duas turmas do primeiro ano
ela levanta e vai até a porta, abre e me oferece dois cadernos de chamada, turmas D e E, olho sua mão estendida me exibindo os dois cadernos, permaneço sentado, quieto, esperando um milagre, um sorriso debochado anunciando que tudo foi uma brincadeira
sempre aceitei minhas tarefas, alguns desafios maiores que outros, mas esse não é só difícil, esse quefazer me apavora
Marko, chega dessa conversa. Pegue os cadernos. Você fica com a turma E até o recreio, depois do intervalo vai para a turma D e fica até a saída das crianças.
levantei surpreso comigo mesmo por ter conseguido ficar em pé
Eu faço o quê?
Você é o professor, não é?
resumindo, quer que eu toque a vida para frente, fazendo o meu melhor da melhor maneira possível, Dê pra cá os cadernos.
Isso, vá até o pátio e se apresente. Leve as crianças para a sala de aula..
Quais salas?
As duas do anexo... a primeira é a turma D, ao lado fica a turma E. Pronto, mais alguma pergunta?
aquele frio silencioso na barriga volta amedrontar meus olhos, grito na ausência de som na prisão de papel e cadernos de chamada, Rachel, você deve estar de brincadeira, mas não respondo, ficar em silêncio e pensar sem responder pode ser uma experiência poderosa, permitindo que o pensamento se organize e que as emoções emerjam com mais clareza, preciso de uma pausa para escutar além do barulho, entender sem pressa e encontrar respostas em uma conexão comigo mesmo, uma compreensão silenciosa do que está acontecendo
Sem perguntas... por enquanto.
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um professor bagunceirinho (3)
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