quarta-feira, 28 de setembro de 2011

V - Memórias


 É isso, invasão de privacidade
Reunião
baitasar


O quarto da Cândida não é róseo, a cor lilás combina com os cartazes da princesa pop hollywoodiana Avril Lavigne e deixa tudo com perfume cor de rosa. Ela colou pelas paredes a biografia, discografia, videografia, notícias, fórum, turnês, galeria de fotos e curiosidades sobre a cantante canadense.
Como sei tanto do quarto da patricinha? É fácil. Basta um celular e alguém disposta em fazer a reportagem ou delação. É isso, invasão de privacidade, tenho uma espiã acomodada naquele ninho. Uma verdadeira correspondente-repórter vende a alma das outras por uma boa reportagem. No fundo ninguém é diferente de ninguém. O sucesso é o que conta no que fazemos. A barra do fracasso pesa e apavora.
Na porta do quarto, lê-se: A revolução chegou e tem nome Avril Lavigne. É a influência exercida pelas celebridades no mundo das pessoas comuns. Por que desejamos tanto quem não somos? A criatura insatisfeita com a fera que é? Somos bundas e músculos? Peitos e bíceps? Princesas ou bruxas? Não somos apenas uma coisa ou outra, um quadro, uma fotografia, um jeito moderno ou um jeito antigo, mocinho ou bandido; somos tudo isso e mais um tanto que nem imaginamos.
Em um dos cantos do quarto, um espelho de corpo inteiro mostra quem entra ou sai. A cama é alta e fica no meio do dormitório, toda recoberta em vários tons de rosa. Tudo está no lugar: os sapatos, os jeans, as bolsas e nas paredes do guarda-roupa branco tem colados dezenas de adesivo rosa brilhantes da Hello Kitty. O computador colocado embaixo da janela está ligado. Sempre no msn, no twitter, no facebook. Talvez, nunca tenha sido desligado duas ou três vezes, e claro, por motivo de força maior. Um raio durante um furacão ou susto durante um tremor de terra. No mais, está sempre ligado.
As meninas conversam animadas pelo sucesso que saboreiam na escola, nada parece que pode dar errado
(Como seu quarto é maaara!) (Adoreiii esse tom lilás.)
Outro sinal da campainha, Cândida espicha o olhar pela janela, lá para baixo, no hall de entrada
(Fiquem aí, vou buscar o resto do bando.)
Desce as escadas aos pulos, nada lhe dá mais satisfação que receber o seu bando em sua casa. Mostrar quanto é rica, gostosa e feliz lhe dá poder sobre aquelas tolas
(Oi, meninaaas, entrem.) (Estamos chegando cedo?) (São as últimas, subam, subam.)
Estão todas ali. Cândida, Leila, Pati, Shayane, Gracii, Gyaanara e Alinii. Todas combinando. Rosa, branco, lilás. Não saem sem telefonarem umas às outras e ajustar a roupa que o bando vai vestir
(Cândida, quando começamos?) (Já começou, Shayane.) (Então, o que a gente faz?) (Vamos fofocar!) (Legal!) (Precisamos organizar as coisas.) (Concordo, Leila. Pensei alguns venenos para facilitar nosso trabalho.) (O que você pensou, Cândiiiiii?) (Fofocas: da semana; caidinhas e loucas; paqueras e ficadas; namoro sério; fim de namoro; os eleitos da semana e as eleitas da semana.) (Gostei.) (Leila, que tal uma assim: Saiba qual a medida da sua afinidade com seu amor.) (É iiisso, somos óóótimas!) (Precisamos de um título pra nossas páginas.) (Hum... O que vocês acham: Antes, nós éramos convencidas... Hoje, nós somos perfeitas.) (Mara, muito mara!) (Tá, tá meninas, vamos dividir as tarefas.) (Esperem.) (O que foi Gracii?) (To sentindo falta de algo?) (O que, por exemplo?) (Sei lá, uma campanha de socorro!) (Hum... O que vocês acham, meninas?) (É legal.) (Leila, o que você, acha?) (Que tal isto: Adote um cachorrinho ou gatinho abandonado.) (É mesmo, vamos arrumar um lar pra esses bicinhos de rua.)
Desligo o celular. Não preciso ouvir mais. Sei o que vocês estão pensando, mas é isso mesmo, estou espionando. É tudo por minha conta e risco. Estou chegando à casa da Tamires, bastante atrasado. Ela me recebe sem maiores comentários
(O que te aconteceu?) (Uns probleminhas, mas já tá tudo resolvido. O que eu perdi?) (Tu fica com a crônica semanal.) (Tudo bem.) (Temos também que preencher a sessão com a entrevista nervosa, escolhendo o entrevistado e o entrevistador.) (Sugiro a gente entrevistar a irmã diretora.) (Ou um professor.) (Acho melhor entrevistar as meninas do voleibol.) (Legal, elas foram muito bem no ano passado.) (Quem faz a entrevista?) (Outra menina... a Tamires.) (Você aceita?) (Tá, eu topo. Mas precisam me ajudar com as perguntas.) (Tá.) (Outra coisa, Charles. Nós precisamos de alguém para escrever algumas ideias diferentes.) (Sobre o quê?) (Sei lá, sobre as coisas do espírito e da alma, usando o amor como assunto.)
A Júlia que estava em silêncio ergue a mão e aguarda. Eu vejo sua indecisão e peço que fale
(Júlia, você não precisa erguer a mão para falar.) (Ok. Sobre essas ideias estava pensando que, em vez da gente escrever, a gente podia pedir aos alunos, professores ou quem mais queira, para escrever sobre o que quiserem.) (E o título do espaço poderia ser: Julgamentos da Imaginação.) (Legal, legal)
Na minha avaliação, desta primeira edição, falta um pouco de poesia. Sugiro a criação de um espaço para a poesia
(Será?) (Poesia, palavras cruzadas.) (Tenho um nome. Uma poetisa.) (Quem?) (Não é da escola.) (Hihihihihi, não vai dar.) (Por que não? A gente dá pra eles o título de correspondentes estrangeiros.) (Eles?) (São dois.) (Quem são?) (A Nanii e o Lenon.)
Estou preparado para a próxima pergunta. Ela é inevitável. Venho descobrindo que existem coisas, lances e gente fixadas pela sina em nossas vidas. Estava escrito nas estrelas a vinda da Júlia. Ela teria que vir para nossa turma, só assim, podemos enxergar que ela é diferente do molde de gente da escola, e melhor, ela não é de gesso
(Qual a escola deles?) (Os dois estudam na escola da Júlia.) (É muito legal, eles são ótimos.) (Você os conhece, Júlia?) (E passa pelas patricinhas?) (São muito legais.) (Então, essa vai ser a tarefa do Charles e da Tamires, convencer as meninas que o nosso jornal pode ter a contribuição dos alunos de outra escola.) (Escola pública!) (Isso vai dar em merda.) (Sèzar?!)
Pedi desculpas pela mixaria das minhas palavras.
Continuamos a conversar sobre as coisas do jornal, os desafios deste ano. A ansiedade do final do ano. Tudo desemboca lá em dezembro. O resultado do esforço de todo ano vai ser explicado por duas palavras: aprovado ou reprovado. Seguir em frente ou repetir tudo. Mas se fosse somente este tempero para o nosso desespero as chances não seriam tão ruins, a verdade, é que logo na frente tem o vestibular. É um ano tenso por tantas coisas e mais esse tal de vestibular. A pressão ainda está levinha, mas vem jogo pesado por aqui. Lanço a ideia de uma matéria sobre está imensa tarefa que temos pela frente: vestibular de verão. Todos gostam e me deixam com o trabalho de fazer as entrevistas e o texto final. Minha boca é muito grande.
Terminamos a reunião e retornamos para nossas casas. É preciso dar conta de outras formas de estudo na escola. Os trabalhos de pesquisa, as aulas de laboratório em biologia, as provas que não têm data marcada. É uma roleta russa quando chegamos à escola jamais sabemos com antecedência se teremos alguma prova. Pressão durável. É a forma que encontraram de nos humanizar. Mas, na verdade, não reclamamos, bem lá no fundo, gostamos desse padrão de qualidade que nos é atribuído, treinamos desde cedo que não podemos gorar. A barra pesa pra que fica gelado, com medo de enfrentar desafios
(Os alunos da Imaculada Senhora estão mais bem preparados.)
Chego em casa, antes mesmo dos cumprimentos, me tranco em meu quarto. Tenho muitas ideias que preciso deixar escritas. Acionei a bombinha uma única vez, por todo o dia. Um pequeno sorriso aparece em meus lábios
(Nada melhor que estar fazendo aquilo que se gosta.)
Enquanto vou ligando o computador, reviso o dia em minha cabeça. Foi legal, muitas coisas para minhas anotações
(O que foi, mãe?) (Meu filho, já são duas horas da madrugada e você está dormindo com as roupas do dia e o seu computador continua ligado.) (Foi mal, mãe. Desculpa... vou desligar.) (Não demora, boa noite.) (Boa noite.)
Aperto o botão desligar.

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