sexta-feira, 2 de março de 2012

Não te enxergas, índia madraça?


XVII (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres
baitasar
As manhãs no casarão – minha querida, você precisa entender aquela menina que dormia na pequeña cabaña en Piedras Altas: me deslumbró con tantos lugares para ir en una casa – da família Caraca começavam agitadas e nervosas, até que os filhos daquele casario de quartos saiam para seus quefazeres con el patrón.
Dona Lara voltava para seus sonhos de festas e luxos: los dos se pavoneaban en las caballerizas, vestidos de branco e descalços dos sapatos pisavam entre vacas, bostas e tetas. O peludo não descansava e enfiava as mãos nas entranhas das leiteiras, ela reclama aos berros
(El hijo de puta no contento con una vaca... tem que enfiar em todas.) (É sina de homem.)
O menino leporino aprofundava o sono com o pulgar chupado até a raiz.
Não era tiempo de trégua para mim, no tenía tiempo a perder.
Entrava nos dormitórios recolhendo as roupas para a trouxa de la lavandera. Cantarolava canções com Blanca y mi madre. Estendia un gran lienzo no chão. Ali, empilhava as sujeiras de todos. Até que chegava no cuarto de la Vieja, después de terminar de revistar o cuarto de la anciana a pilhagem estava terminada.
Pulava nos destroços de la ropa sucia, uma das quatro pontas do lençol na mão, atravessava meu outro braço, minha outra mão, em diagonal, atrás da outra ponta. Entrelaçava as duas e o nó cego abraçava aquelas sujeiras de cobras e lagartos. Outra laçada com as duas pontas que restavam e a trouxa da lavadeira estava pronta.
La mujer lavandera chegava quase no mismo tiempo com suas trouxas de roupas do dia anterior, limpinhas, macias e cheirosas, dobradas no mismo feitio. Después de entregar a trouxa limpa recebia as sujeiras entrouxadas. Com a carga sobre la cabeza saia porta afora. Nunca trocamos palavra de conforto. Cada uma fez seu papel de uso dos braços con la boca cerrada. Sin embargo, esperan otra cosa de nosotras, índias madraças.
La Vieja Amora chamava meu nome en su cuarto, deseaba renovar la memoria y los misterios de sus recuerdos. Después de que su Viejo Caracão foi embora da vida, la Vieja mandou queimar sua cama e os panos que haviam alimentado as presenças apimentadas do homem na vida de matrimônio. Passado os desejos de queimar as lembranças, deitava em sua rede, siempre aberta em seu quarto, arrependida, saudosa de suas memórias. Perdida na sua fraqueza de repassar nas memórias os gostos e os cheiros da sua juventude, confusa sem os lembretes de inspiração. Ninguém se parava mais a dar oídos, escuchar a los ancianos, que han vivido mucho. Foi desse tempo sua decisão de parar com as benzeduras: perdió el gusto. Nunca teve medo de pegar doença de benzido, mas na dúvida aprendeu rezamento pra enfraquecer a maldade de doença no próprio corpo. Quando me chamou foi a primeira reza que aprendi
(Niña Preta, benzedeira precisa força pra cumprir sua missão.) — explicava la Vieja. Em parte tinha razão, na verdade, diria a la Vieja que todos precisam de muita força para cumprir seus desígnios: las perras, los peones, los hombres y mujeres del maíz, dueña de casa; em todo casa, aprendi aquele rezamento de proteção.
Não posso revelar a reza, senão perde o efeito
(Tu vai aprender a benzer que nem la Vieja.) — tanto tempo e ainda reconheço a voz de la Vieja Amora enquanto benzia qualquer coisa: erisipela, inveja, mau-olhado, quebranto, mau-jeito, nervo rendido, vermes, cobreiro, sapinho, rendidura, impinge, míngua, sol na cabeça, feitiço e feitiçaria, dor de dente, empate, dor de ouvido.
Foi parteira, nunca perdeu uma criança — Yo era una costurera de la calidad — se gabava olhando para as mãos enrugadas e retorcidas — Todo pasa, niña Preta.
Jamais cobrou, pois agia em nome de Deus, mas adorava quando lhe davam presentes, o fumo de corda era o seu favorito.
Rezava por horas e horas. Nada a afastava do horário de la Ave María, era devota de Nuestra Señora de Guadalupe, la Virgem de Guadalupe.
Tempos duros aqueles que moldaram o caráter dos filhos e lhes deram a serventia de uso com as mãos. Apaixonada por seus filhos, sabia tudo de cada um, o que cada um gostava de comer, mas não teve como não deixar que fossem procurar a vida longe das vacas — Ser madre es tener que aceptar.
(Mi Viejo tinha uma malha branca no focinho, gabava que isso marcava a sua mistura de metade homem e metade cavalo.)
Niña Preta, mi Viejo tenía dois enormes braços cabeludos e dez pinças tortas, deformadas com a mania de apertar e puxar o úbere das suas vacas, desde seus tiempos de peão do meu velho pai Caracacão. Caminhos duros aqueles, mas que moldaram o caráter dos filhos e moldaram o uso das mãos.
Mi Viejo Caracão não possuía diplomas de formação da escola, mas sabia tirar leite de pedra como ninguém mais. Todos os nove filhos aprenderam o ofício de apertar e puxar. Quando se decidiam partir pelo mundo desconhecido levavam na bagagem o jeito de ordenhar, que lhes dava como arrumar comida, por menos que pudesse valer. Caso perguntassem a qualquer dos guris se tinham profissão, a resposta estava carregada na ponta da língua
(Ordenador de tetas!) — porque é isto que os filhos aprendiam: ordenar às tetas que soltassem o leite espumoso dos úberes, dar ordens com suavidade, paciência e amorosidade era a lição para ser aprendida.
Dom Juan foi o único dos filhos que ficou para trás, para tocar o negócio do pai quando uma das mãos del viejo endureceu. Foi desgraça de um lado só. O Caracão deitou alinhado e acordou com o lado direito deformado. Olhando enviesado, pelo canto certo, el Viejo parecia forte e cheio de vida, mas bastou desviar a atenção e o lado direito caiu em degradação. A pálpebra do olho se erguia pela metade, a boca perdera as forças e permanecia caída, cansada, repuxada para baixo. Havia perdido as energias de prontidão. A língua acompanhou a confusão e ficou pastosa, sem a espantosa sensualidade que sentia em gritar e ordenar, só assim os gritos del Viejo cessaram.
A voz poderosa se contraiu para dentro de si mesmo, junto com o braço direito. A mão e as pinças ficaram em desenho de concha, não apertavam mais os úberes. A perna direita ficou durona de não se dobrar mais, caminhar passou a ser um gesto desumano de equilíbrio e acidentes. Mi Viejo perdeu a harmonia das coisas simples, passou a usar fraldas e babeiro, perdeu durante aquele sono o fio prumo e o poder do chicote que lançava no ar e lambia levemente cada um dos filhos, sempre que algum guri se enfraquecia e parava de apertar e puxar a teta
(Por que o guri parou? A teta não se derrama sozinha!)
Foi assim que cada um dos filhos — Nove foi o total dos que vingaram até a idade de fugir para o mundo — aprendeu a começar e terminar as suas tarefas nos estábulos da vacaria. Todo dia o chicote convencia qualquer vontade em contrário e deixava as suas marcas.
Dom Juan foi o filho que lhe sobrou, um dia pegou as mãos da sua mãe em suas mãos peludas e jurou
(Mi madre, mi hijo nunca sabra el golpe de la trenza de cuero.)
La Vieja ajoelhou o filho e o benzeu — Na benzedura é preciso fé — foi benzedeira afamada, ficava desgostosa se alguém oferecia recompensa por alguma cura que porventura da Virgem Guadalupe pudesse ter alcançado. Nem agradecimentos deviam, mas para os próprios da casa não conseguia cura para o benzido e a cada filho que partiu repetiu a mesma benzedura
(Filhos que estais nesta casa,
E à Deus louvais, sejais abençoados
Se essa casa não deixais.
Que de nove fique em oito,
Que de oito fique em sete,
Que de sete fique em seis,
Que de seis fique em cinco,
Que de cinco fique em quatro,
Que de quatro fique em três,
Que de três fique em dois,
Que de dois fique em um,
Que de um não sai nenhum.)
Repetia nove vezes a benzedura com um galho verde em cruz, por três dias, a cada filho que partia. Depois da reza quebrava o galho e enterrava na porteira do estábulo, sempre antes do sol entrar, depois que entrava não podia mais. A reza vingou para o último dos filhos: Dom Juan. Os outros não tiveram fé de acreditar que precisavam ficar. Na benzedura é preciso fé. Não recomendava remédio.
El Viejo Caracão ficava quieto, não sabia o que lhe responder ou mais nada lhe podia interessar além de trocarem suas fraldas — Niña Preta, quer aprender as benzeduras? — de repente aquele anjo triste me deixava com um sorriso sem graça — No ló sé, mi Vieja.
Dona Lara chamava e me tirava do transe de ouvinte
(Volto assim que tiver uma trégua para mim.)
Minha senhora queria das manhãs o conforto séptico do silêncio, com suas águas mornas, as carícias da quietude: olhava sua nudez, orgulhosa dos apetites que provocava em Dom Juan na luz do quarto, ao menos uma vez, sumergida en las aguas tranquilas de la bañera. Gozava naquele olhar de cobiça do bicho cabeludo quando estavam descobertos de tecidos e calçados. Parecia que lhe ia devorar sem dó nem piedade. Ensinada a ser uma caça indefesa: ser comida e sobreviver se fingindo de morta.
Saia das águas e ficava parada em frente ao espelho
(Onde está minha toalha, índia madraça?)
Abria a gaveta da cômoda e lhe estendia uma toalha felpuda e macia
(Aqui, minha senhora.)
Esfregava a imagem refletida com sua toalha de pelos. Depois vestia seu uniforme de dona de casa, caminhava observando e ordenando, sem afobação
(Pra quê a pressa?)
O menino acordava de seu silêncio e chorava por atenção de fome
(Vá lá buscar o guri.) (Sim, senhora.) (Vai logo!)
Eu volvia com o leporino no colo
(Vamos, me passa o guri... e vá expurgar la bañera.)
Entrei no cuarto del baño escutando seus murmúrios
(Índia madraça...) — ¡Señora puta! — respondi entre meus dentes jovens e afiados.
Me picó ganas para entrar en la bañera. Derrubei mi ropa en el piso, continuei mis pasos a la bañera de ferro esmaltado, mergulhei um pé e después o outro naquela água silenciosa, serena e llorosa pelas bordas. Sentei en su piso e afundei mi cabeza. Estava abierta y libre, sin patrón
(Índia madraça, arreda da minha água.)
Meu susto foi meu pecado.
Experimentei el miedo do desamparo, a falta de alguém para me abrigar por trás, Dona Lara se enfureceu num grande grito de raiva. Estava ciumenta de su agua sucia
(Não te enxergas, índia madraça?)
Sí, soy como un pájaro libre, pienso... pero no declaro, não houve tiempo porque sua mão desceu forte e rápida em minhas costas, em minha cabeça, en mi vientre, en mis piernas, en mi alma. cuerpo pequeño rastejava pelo campo encharcado do miedo y dolor, no era un sueño o una pesadilla angustiosa y tenaz, não era nada e era tudo, era o peso da Montaña.
Meu massacre foi empacado por la Vieja Amora
(¿Qué pasa?) (Essa índia madraça entrou em minha banheira.) (¿Este és el disgusto?)
¡Yo viví sobreviviendo! Resistindo à saudade, cicatrizando minhas dores com a distância das horas, os dias passando e me afastando como o vento em redemoinhos, meus soluços iam adocicados por minhas lágrimas invisíveis.

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