O dia em que
explodiu Mabata-bata
Mia Couto
De repente, o boi explodiu. Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grãos e folhas de boi. A carne eram borboletas vermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível do vento.
O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda há um instante ele admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. O bicho pastava mais vagaroso que a preguiça. Era o maior da manada, régulo da chifraria, e estava destinado como prenda de lobolo[1] do tio Raul, dono da criação. Azarias trabalhava para ele desde que ficara órfão. Despegava antes da luz para que os bois comessem o cachimbo[2] das primeiras horas.
Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de silêncio, sombra de nada.
“Deve ser foi um relâmpago.” Pensou
Mas relâmpago não podia. O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saíra o raio? Ou foi a terra que relampejou?
Interrogou o horizonte, por cima das árvores. Talvez o ndlati, a vê do relâmpago, ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha em frente. A morada do ndlati era ali, onde se juntam os todos rios para nascerem da mesma vontade da água. O nadlati vive nas suas quatro cores escondidas e só destapa quando as nuvens rugem na rouquidão do céu. É então que o nadlati sobe aos céus, enlouquecido. Nas alturas se veste de chamas, e lança o seu vôo incendiado sobre os seres da terra. Às vezes atira-se no chão, buscando-o. Fica na cova e aí deita a sua urina.
Uma vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escavar aquele ninho e retirar os ácidos depósitos. Talvez o Mabata-bata pisara uma réstia maligna do ndlati. Mas quem podia acreditar? O tio, não. Havia de querer ver o boi falecido, ao menos ser apresentado uma prova do desastre. Já conhecia bois relampejados: ficavam corpos queimados, cinzas arrumadas a lembrar o corpo. O fogo mastiga, não engole de uma só vez, conforme sucedeu-se.
Reparou em volta: os outros bois, assustados, espalharam-se pelo mato. O medo escorregou dos olhos do pequeno pastor.
— Não apareças sem um boi, Azarias. Só digo: é melhor nem apareceres.
A ameaça do tio soprava-lhe aos ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombra mas não encontravam saída. Havia uma só solução: era fugir, tentar os caminhos onde não havia mais nada. Fugir é morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, que saudade deixava? Maus-tratos, atrás dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da escola. Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e devolvia-o ao sono quando dentro dele já não havia resto de infância. Brincar era só com os animais: nadar o rio na boleia do rabo do Mabata-bata, apostar nas brigas dos mais fortes. Em casa, o tio adivinhava-lhe o futuro:
— Este, de maneira que vive misturado com a criação há de casar com uma vaca.
E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados. Por isso, olhou sem pena para o campo que ia deixar. Calculou o dentro do seu saco: uma fisga[3], frutos do djambalau[4], um canivete enferrujado. Tão pouco não pode deixar saudade. Partiu na direção do rio. Sentia que não fugia: estava apenas a começar o seu caminho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da água. Na outra margem parou à espera nem sabia de quê.
Ao fim da tarde a avó Carolina esperava Raul à porta de casa. Quando chegou ela disparou a aflição:
— Essa horas e o Azarias ainda não chegou com os bois.
— O quê? Esse malandro vai apanhar muito bem, quando chegar.
— Não é que aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos...
— Aconteceu brincadeiras dele, mais nada.
Sentaram na esteira e jantaram. Falaram das coisas do lobolo, preparação do casamento. De repente, alguém bateu à porta. Raul levantou-se interrogando os olhos da avó Carolina. Abriu a porta: eram os soldados, três.
— Boa noite, precisam alguma coisa?
— Boa noite. Vimos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina esta tarde. Foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia daqui.
Outro soldado acrescentou:
— Queremos saber onde está o pastor dele.
— O pastor estamos à espera — respondeu Raul. E vociferou: — Malditos bandos!
— Quando chegar queremos falar com ele, saber como foi sucedido. É bom ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaram espalhar minas nesse lado.
Despediram. Raul ficou, rodando à volta das suas perguntas. Esse sacana do Azarias onde foi? E os outros bois andariam espalhados por aí?
— Avó eu não posso ficar assim. Tenho que ir ver onde está esse malandro. Deve ser talvez deixou a manda fugentar-se. É preciso juntar os bois enquanto é cedo.
— Não podes, Raul. Olha os soldados o que disseram. É perigoso.
Mas ele desouviu e meteu-se pela noite. Mato tem subúrbio? Tem: é onde o Azarias conduzia animais, Raul, rasgando-se nas micais[5], aceitou a ciência do miúdo[6]. Ninguém com ele na sabedoria da terra. Calculou que o pequeno pastor escolhera refugiar-se no vale.
Chegou ao rio e subiu às grandes pedras. A voz superior, ordenou:
— Azarias, volta. Azarias!
Só o rio respondia, desenterrando a sua voz corredeira. Nada em toda à volta. Mas ele adivinhava a presença oculta do sobrinho.
— Apareça lá, não tenhas medo. Não vou-te bater, juro.
Jurava mentiras. Não ia bater: ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de juntar os bois. No enquanto escolheu sentar, estátua de escuro. Os olhos, habituados à penumbra, desembarcaram na outra margem. De repente, escutou passos no mato. Ficou alerta.
— Azarias?
Não era. Chegou-lhe a voz de Carolina.
— Sou eu, Raul!
Maldita velha, que vinha ali fazer? Trapalhar só. Ainda pisava na mina, rebentava-se e, pior, estourava com ele também.
— Volta em casa, avó!
— O Azarias vai negar de ouvir quando chamares. A mim, há-de ouvir.
E aplicou sua confiança, chamando o pastor. Por trás das sombras, uma silhueta deu aparecimento.
— És tu, Azarias. Volta comigo, vamos para casa.
— Não quero, vou fugir.
O Raul foi descendo, gatinhoso, pronto para saltar e agarrar as goelas do sobrinho.
— Vais fugir para onde, meu filho?
— Não tenho aonde, avó.
— Esse gajo[7] vai voltar nem que eu lhe chamboqueie[8] até partir-se dos bocados — precipitou-se a voz rasteira de Raul.
— Cala-te, Raul. Na tua vida nem sabes da miséria. — E voltou-se para o pastor: — Anda meu filho, só vens comigo. Não tens culpa do boi que morreu. Anda ajudar o teu tio juntar os animais.
— Não é preciso. Os bois estão aqui, perto comigo.
Raul ergueu-se, desconfiado. O coração batucava-lhe o peito.
— Como é? Os bois estão aí?
— Sim, estão.
Enroscou-se o silêncio. O tio não estava certo da verdade do Azarias.
— Sobrinho: fizeste mesmo? Juntaste os bois?
A avó sorria pensando no fim das brigas daqueles dois. Prometeu um prémio e pediu ao miúdo que escolhesse.
— O teu tio está muito satisfeito. Escolhe. Há-de respeitar o teu pedido.
Raul achou melhor concordar com tudo, naquele momento. Depois, emendaria as ilusões do rapaz e voltariam as obrigações do serviço das pastagens.
— Fala o seu pedido.
— Tio: próximo ano posso ir na escola?
Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento:
— Vais, vais.
— É verdade, tio?
— Quantas bocas tenho, afinal?
— Posso continuar ajudar nos bois. A escola só frequentamos da parte de tarde.
— Está certo. Mas tudo isso falamos depois. Anda lá daqui.
O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. O pequeno pastor engoliu aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:
— Vens pousar quem, ndalati?
Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto vazando de ouvidos, dores e cores. Em volta tudo fechava, mesmo o rio suicidava sua água, o mundo embrulhava o chão nos fumos brancos.
— Vens pousar a avó, coitada tão boa? Ou preferes no tio, afinal das contas, arrependido e prometente como o pai verdadeiro que morreu-me?
E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraço-a na viagem da sua chama.
_________________
Mia
Couto nasceu em 1955, em Beira, Moçambique. António Emílio
Leite Couto ganhou o apelido “Mia” do irmão mais novo. Adotou-o por adorar
gatos – quando criança, ele acreditava ser um deles. Antes de ser escritor, Mia
Couto cursou medicina e jornalismo, formando-se em biologia. Participou
ativamente do processo de independência de Moçambique e foi um dos compositores
do hino nacional de seu país. Tem livros publicados no Brasil e em diversos
países, dentre os quais figuram os romances Um
rio chamado tempo, uma casa chamada terra, O último voo do flamingo, Terra
sonâmbula e o livro de contos O fio
das missangas.
Contos africanos dos países de língua portuguesa / Albertino Bragança...[et al.]; organizadora Rita Chaves;
ilustrador Apo Fousek – 1ª ed – São Paulo: Ática. 2009. il. – (Para gostar de
ler: 44)
[1]
Dote que o noivo paga aos familiares da noiva para casar-se com ela. Esse valor
leva em conta que, a partir do casamento, a mulher entregará sua força de
trabalho a outro grupo familiar. A cerimônia em que se faz a oferta também é
chamada de lobolo. (N.E.)
[2]
Umidade semelhante ao orvalho. Também se chama de cachimbo o período do ano em
que a temperatura cai e a atmosfera fica mais úmida, o inverno. (N.E.)
[3]
Bodoque, estilingue.(N.E.)
[4]
Fruto de cor escura, muito utilizado para fazer uma espécie de vinho. No Brasil
é conhecido como Jamelão. (N.E.)
[5]
Árvore nativa da África tropical, coberta de ramos espinhosos. (N.E.)
[6]
Criança, menino. (N.E.)
[7]
Pessoa cujo nome não se sabe ou se quer omitir, indivíduo de reputação ruim.
(N.E.)
[8] Chamboquear,
usar o “chamboco”, isto é, um pedaço de madeira parecido com uma matraca, para
dar uma surra. (N.E.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário