quarta-feira, 14 de março de 2012

VII - Contos Africanos


O dia em que explodiu Mabata-bata

Mia Couto


De repente, o boi explodiu. Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grãos e folhas de boi. A carne eram borboletas vermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível do vento.

O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda há um instante ele admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. O bicho pastava mais vagaroso que a preguiça. Era o maior da manada, régulo da chifraria, e estava destinado como prenda de lobolo[1] do tio Raul, dono da criação. Azarias trabalhava para ele desde que ficara órfão. Despegava antes da luz para que os bois comessem o cachimbo[2] das primeiras horas.

Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de silêncio, sombra de nada.

“Deve ser foi um relâmpago.” Pensou

Mas relâmpago não podia. O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saíra o raio? Ou foi a terra que relampejou?

Interrogou o horizonte, por cima das árvores. Talvez o ndlati, a vê do relâmpago, ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha em frente. A morada do ndlati era ali, onde se juntam os todos rios para nascerem da mesma vontade da água. O nadlati vive nas suas quatro cores escondidas e só destapa quando as nuvens rugem na rouquidão do céu. É então que o nadlati sobe aos céus, enlouquecido. Nas alturas se veste de chamas, e lança o seu vôo incendiado sobre os seres da terra. Às vezes atira-se no chão, buscando-o. Fica na cova e aí deita a sua urina.

Uma vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escavar aquele ninho e retirar os ácidos depósitos. Talvez o Mabata-bata pisara uma réstia maligna do ndlati. Mas quem podia acreditar? O tio, não. Havia de querer ver o boi falecido, ao menos ser apresentado uma prova do desastre. Já conhecia bois relampejados: ficavam corpos queimados, cinzas arrumadas a lembrar o corpo. O fogo mastiga, não engole de uma só vez, conforme sucedeu-se.

Reparou em volta: os outros bois, assustados, espalharam-se pelo mato. O medo escorregou dos olhos do pequeno pastor.

— Não apareças sem um boi, Azarias. Só digo: é melhor nem apareceres.

A ameaça do tio soprava-lhe aos ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombra mas não encontravam saída. Havia uma só solução: era fugir, tentar os caminhos onde não havia mais nada. Fugir é morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, que saudade deixava? Maus-tratos, atrás dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da escola. Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e devolvia-o ao sono quando dentro dele já não havia resto de infância. Brincar era só com os animais: nadar o rio na boleia do rabo do Mabata-bata, apostar nas brigas dos mais fortes. Em casa, o tio adivinhava-lhe o futuro:

— Este, de maneira que vive misturado com a criação há de casar com uma vaca.

E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados. Por isso, olhou sem pena para o campo que ia deixar. Calculou o dentro do seu saco: uma fisga[3], frutos do djambalau[4], um canivete enferrujado. Tão pouco não pode deixar saudade. Partiu na direção do rio. Sentia que não fugia: estava apenas a começar o seu caminho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da água. Na outra margem parou à espera nem sabia de quê.

Ao fim da tarde a avó Carolina esperava Raul à porta de casa. Quando chegou ela disparou a aflição:

— Essa horas e o Azarias ainda não chegou com os bois.

— O quê? Esse malandro vai apanhar muito bem, quando chegar.

— Não é que aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos...

— Aconteceu brincadeiras dele, mais nada.

Sentaram na esteira e jantaram. Falaram das coisas do lobolo, preparação do casamento. De repente, alguém bateu à porta. Raul levantou-se interrogando os olhos da avó Carolina. Abriu a porta: eram os soldados, três.

— Boa noite, precisam alguma coisa?

— Boa noite. Vimos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina esta tarde. Foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia daqui.

Outro soldado acrescentou:

— Queremos saber onde está o pastor dele.

— O pastor estamos à espera — respondeu Raul. E vociferou: — Malditos bandos!

— Quando chegar queremos falar com ele, saber como foi sucedido. É bom ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaram espalhar minas nesse lado.

Despediram. Raul ficou, rodando à volta das suas perguntas. Esse sacana do Azarias onde foi? E os outros bois andariam espalhados por aí?

— Avó eu não posso ficar assim. Tenho que ir ver onde está esse malandro. Deve ser talvez deixou a manda fugentar-se. É preciso juntar os bois enquanto é cedo.

— Não podes, Raul. Olha os soldados o que disseram. É perigoso.

Mas ele desouviu e meteu-se pela noite. Mato tem subúrbio? Tem: é onde o Azarias conduzia animais, Raul, rasgando-se nas micais[5], aceitou a ciência do miúdo[6]. Ninguém com ele na sabedoria da terra. Calculou que o pequeno pastor escolhera refugiar-se no vale.

Chegou ao rio e subiu às grandes pedras. A voz superior, ordenou:

— Azarias, volta. Azarias!

Só o rio respondia, desenterrando a sua voz corredeira. Nada em toda à volta. Mas ele adivinhava a presença oculta do sobrinho.

— Apareça lá, não tenhas medo. Não vou-te bater, juro.

Jurava mentiras. Não ia bater: ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de juntar os bois. No enquanto escolheu sentar, estátua de escuro. Os olhos, habituados à penumbra, desembarcaram na outra margem. De repente, escutou passos no mato. Ficou alerta.

— Azarias?

Não era. Chegou-lhe a voz de Carolina.

— Sou eu, Raul!

Maldita velha, que vinha ali fazer? Trapalhar só. Ainda pisava na mina, rebentava-se e, pior, estourava com ele também.

— Volta em casa, avó!

— O Azarias vai negar de ouvir quando chamares. A mim, há-de ouvir.

E aplicou sua confiança, chamando o pastor. Por trás das sombras, uma silhueta deu aparecimento.

— És tu, Azarias. Volta comigo, vamos para casa.

— Não quero, vou fugir.

O Raul foi descendo, gatinhoso, pronto para saltar e agarrar as goelas do sobrinho.

— Vais fugir para onde, meu filho?

— Não tenho aonde, avó.

— Esse gajo[7] vai voltar nem que eu lhe chamboqueie[8] até partir-se dos bocados — precipitou-se a voz rasteira de Raul.

— Cala-te, Raul. Na tua vida nem sabes da miséria. — E voltou-se para o pastor: — Anda meu filho, só vens comigo. Não tens culpa do boi que morreu. Anda ajudar o teu tio juntar os animais.

— Não é preciso. Os bois estão aqui, perto comigo.

Raul ergueu-se, desconfiado. O coração batucava-lhe o peito.

— Como é? Os bois estão aí?

— Sim, estão.

Enroscou-se o silêncio. O tio não estava certo da verdade do Azarias.

— Sobrinho: fizeste mesmo? Juntaste os bois?

A avó sorria pensando no fim das brigas daqueles dois. Prometeu um prémio e pediu ao miúdo que escolhesse.

— O teu tio está muito satisfeito. Escolhe. Há-de respeitar o teu pedido.

Raul achou melhor concordar com tudo, naquele momento. Depois, emendaria as ilusões do rapaz e voltariam as obrigações do serviço das pastagens.

— Fala o seu pedido.

— Tio: próximo ano posso ir na escola?

Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento:

— Vais, vais.

— É verdade, tio?

— Quantas bocas tenho, afinal?

— Posso continuar ajudar nos bois. A escola só frequentamos da parte de tarde.

— Está certo. Mas tudo isso falamos depois. Anda lá daqui.

O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. O pequeno pastor engoliu aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:

— Vens pousar quem, ndalati?

Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto vazando de ouvidos, dores e cores. Em volta tudo fechava, mesmo o rio suicidava sua água, o mundo embrulhava o chão nos fumos brancos.

— Vens pousar a avó, coitada tão boa? Ou preferes no tio, afinal das contas, arrependido e prometente como o pai verdadeiro que morreu-me?

E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraço-a na viagem da sua chama.

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Mia Couto nasceu em 1955, em Beira, Moçambique. António Emílio Leite Couto ganhou o apelido “Mia” do irmão mais novo. Adotou-o por adorar gatos – quando criança, ele acreditava ser um deles. Antes de ser escritor, Mia Couto cursou medicina e jornalismo, formando-se em biologia. Participou ativamente do processo de independência de Moçambique e foi um dos compositores do hino nacional de seu país. Tem livros publicados no Brasil e em diversos países, dentre os quais figuram os romances Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, O último voo do flamingo, Terra sonâmbula e o livro de contos O fio das missangas.
Contos africanos dos países de língua portuguesa / Albertino Bragança...[et al.]; organizadora Rita Chaves; ilustrador Apo Fousek – 1ª ed – São Paulo: Ática. 2009. il. – (Para gostar de ler: 44)





[1] Dote que o noivo paga aos familiares da noiva para casar-se com ela. Esse valor leva em conta que, a partir do casamento, a mulher entregará sua força de trabalho a outro grupo familiar. A cerimônia em que se faz a oferta também é chamada de lobolo. (N.E.)
[2] Umidade semelhante ao orvalho. Também se chama de cachimbo o período do ano em que a temperatura cai e a atmosfera fica mais úmida, o inverno. (N.E.)
[3] Bodoque, estilingue.(N.E.)
[4] Fruto de cor escura, muito utilizado para fazer uma espécie de vinho. No Brasil é conhecido como Jamelão. (N.E.)
[5] Árvore nativa da África tropical, coberta de ramos espinhosos. (N.E.)
[6] Criança, menino. (N.E.)
[7] Pessoa cujo nome não se sabe ou se quer omitir, indivíduo de reputação ruim. (N.E.)
[8] Chamboquear, usar o “chamboco”, isto é, um pedaço de madeira parecido com uma matraca, para dar uma surra. (N.E.)

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