sexta-feira, 30 de março de 2012

O espírito ficou se derramando

XXI (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres 


filho doente é uma tristeza que não para de preocupar
baitasar
Dom Juan foi até a sua camioneta e retornou com a sua filha Aryani no colo, enquanto dona Lara carregava o menino Chiado nos braços e o pequenino leporino pesava em meu colo. Pela primeira vez sofria o sofrimento de mãe — Um filho doente é uma tristeza que não para de preocupar.
A Angélyca e o Crespo caminhavam apoiados um no outro, já tinham idade e peso para andar sobre as próprias pernas. As caras não eram nada boas. Entramos na botica e ficamos em pé, não havia cadeiras, ali não era um consultório de doutor. Um balcão e prateleiras repletas de ervas, plantas e chás.
Dom Juan olhou às prateleiras e não pode desviar-se de resmungar — Em alguma delas está à cura para os meus filhos — o farmacêutico de chás e ervas enfiou os dentes na boca, eles ficavam guardados em um aquário com água verde, atrás do balcão, como enfeites para aqueles peixinhos dourados, nervosos e incansáveis. Ficou enfiando e tirando até que se ajeitaram — O diabo era achar a cura certa. — continuou pensando pela garganta, quando estava nervoso lhe era impossível pensar quieto, consigo mesmo — O segredo é saber escolher a ajuda na proteção contra o olho do mal... — o patrão levou um susto com a entrada da mulher do seu Floratil — Não diga esse nome aqui dentro. — Desculpe, dona Flora. — Não peça perdão para mim, mas pra ela. — e apontou a imagem da Mãe de todas as mães. Dom Juan se virou para a Santa imagem e ofereceu o olhar mais suplicante e sincero da sua vida — Peço perdão, minha Mãe, a Senhora por certo já ouvia falar da minha boca suja, mas as crianças não têm culpa do pai que têm, a Senhora bem sabe que o pai não se escolhe nem se enfrenta... — Dom Juan, dom Juan... — O que foi Lara? — Ela já te conhece e sabe que não foi por mal, vamos deixar o seu Floratil examinar as crianças — as mães são práticas quando os filhos adoecem ou sentem fome, os homens se perdem em culpas e lamúrias. Eles crescem para algumas coisas da vida e as elas para outros acontecimentos.

O boticário enfiou o termômetro na boca dos maiores e no sovaco dos menores, marcava no relógio que carregava pendurado num dos bolsos da calça o tempo de medir a temperatura nos seus jovens adoentados. Continuou com prudência olhando daqui e dali. Não viu nenhum inchaço no pescoço ou embaixo dos braços. Não sabia o que tinha pela frente, além de ver as crianças abatidas e curvadas até o chão como flor murcha
(Com febre todas estão, mas parece que não ta aumentando. Seria bom desenrolar as crianças das mantas.) (Qual o seu melhor palpite?) — o velho boticário ajeitou os dentes na boca, não queria ser mal compreendido
(Quebrante.) (Não me diga.) (Não têm bubão ou dores, se tivesse que apostar diria que um quebrante foi espalhado pelos filhos.) (Olho grande nas crianças... o senhor acha mesmo...) (Minha filha, é o que parece.) (E o que se faz?) (Levá-los para casa, controlar a febre com banhos e compressas de vinagre na sola dos pés, água fria na testa... várias vezes.) (Só isso?) (Amanhã, bem cedinho, trazer as crianças que a Flora faz a benzedura.) — o patrão olhou para a mulher do boticário e lhe reconheceu no ofício de aposentada da mãe
— Cuidado com as crianças... pior que a enfermidade é a parte do olho grande — as palavras da velha não saiam dos meus pensamentos silenciosos.
Quando chegamos os doentes foram para os seus quartos. Depois da acomodação das crianças, dona Lara foi para a cozinha preparar um caldo de galinha. Dom Juan mediu a febre e os gemidos de um por uma. Quem gemia mais era mais reconfortado. Calçado e Anadyr também tombaram, mas não se lamentavam. O guri com dor de barriga e a guria com cólicas. Foram esquecidos no sono.
Dom Juan mediu e anotou as medidas, junto com os horários. Usava as manias da leiteria para não perder o controle de cada vaca: la cantidad de agua de tomar, la medida de los piensos que comían y la cantidad de leche producida. Tudo foi para a caderneta. Amanhecia e os dois estavam exaustos. Ficaram se revezando nos cuidados e nas medidas durante toda à noite. Pareceu que o clarear do dia trouxe mais alento e disposição às crianças.
Cuidei de dormir com o menino Leopoldino no quarto de la Vieja
(O que la Vieja acha que acontece?) (Amanhã, todos vão estar com manchinhas pelo corpo.)
Dom Juan e dona Lara acordaram do sono que não fechou os olhos, tinham cabelos do corpo desalinhados, olhos inchados, as mãos se moviam mais lentas e desatinadas com a negação do sono, mas a manhã despertou com boas notícias — Parece que o sono que nos falta sobrou neles. — Estão melhores, acho que o susto do pior já passou. — pareceu que o clarear do dia trouxe mais alento e disposição às crianças.
Era acalmar um e outra resmungava do acordamento
(Mãe, eu não to com fome!) (Mãe, eu quero ir no banheiro!) (Dona Lara, deixa que eu levo a Aryani.) (Obrigada, Preta.) — levei um susto com aquele tratamento de agradecimento, pensei: una noche de sueño perdido con oración y sanación me puede ayudar
(E os outros, dona Lara?) (Ficam na cama.) — todos respiravam mais aliviados e acomodados com as boas notícias
(Querida, prepara um café.)
Depois do café, Dom Juan foi mundo afora, direto para a sala das vacas. No caminho chegou a desconfiar que dona Lara estava certa em não querer que ele saísse de casa. Bem, já era tarde para mudanças de planos, julgou consigo mesmo. E foi em frente.
Percebeu, mas não deu importância ao descuido — O pior já passou.
E tratou de cuidar das vacas leiteiras e dar ordens aos cholos. Como nos tempos de antes, tudo estava no seu controle. O trabalho e o tempo se encarregaram de fazer Dom Juan esquecer que tinha filhos adoentados pelo quebrante. A barriga vazia lhe fez lembrar que tinha uma casa, uma família e uma mulher, sentiu falta da sua comida pronta e quentinha — Hora do descanso!
Encontrou os filhos arriados até os pés e as preocupações retornaram — As crianças estão com febre alta e umas bolhinhas de água pelo corpo. — Vamos levar no doutor Lázaro! — enrolaram o menor. Mostrando um era como mostrar todos. Os demais ficaram recomendados de não sair da cama — Levantar só pra ir ao banheiro, entenderam?
Eu e la Vieja ficamos no cuidado dos sobreviventes — O que la Vieja acha que acontece? — Amanhã, todos vão estar com bolhinhas pelo corpo — E o que vamos fazer? — Esperar... e acalmar a febre — foi o que fizemos até que os três voltaram ao campo de guerra.
O diagnóstico do doutor Lázaro: varicela
(Não coçar as feridas que vão aparecer.) (O doutor explicou que vem por aí umas bolhinhas cheias de aguinha, depois aparece uma casquinha nas bolhas e vocês vão ter muita coceira...) (E não pode coçar, senão o remendo fica pior que o soneto.)
La Vieja me chamou para aplicar rezas de proteção — Não precisa adoecer por estar ajudando — o espírito de la Vieja ficou se derramando em mim, bastava ter olhos para ver.


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