domingo, 3 de março de 2013

A mão daquele desvergonhado embaixo do vestido


Ensaio 28
baitasar
Têm vezes que só queremos ficar curtindo a autoestima e os carinhos da alucinação, jeito de iluminação, mas vulneráveis pela anarquia do nosso cosmo rebelde. Entre voltas e revoltas, bares e sarjetas, nada, absolutamente nada, basta aos rebeldes deslumbrados. Nem o errado nem o certo servem, Bixo, que história é essa de certo e errado, aprenda a jogar o awalé.
Na maioria das vezes, outros nem tão velhos nem tão jovens, calam-se, rendem-se ao silêncio, acolhidos ou pau mandado pelo álcool e comprimidos. A tarja preta legal que paga os impostos. Pensamentos de ficção e realidade, inspiração que só os etiquetados pelo próprio descaso conhecem. Uma mistura de sensações: gosto, calor, arrepios e gozo, dentro da mão ou do copo, e isto, já não basta, é preciso um bode expiatório, aquele enfiado no meio da sala enquanto a febre da minha cobiça pelos mapas da geografia adormece os dedos
—           Adoro ficar dentro da minha mão.
A iluminação não se parece com nenhuma outra sensação, ela conversa de verdade, se explica e mostra que está em todos os pensamentos como uma doidice sem a tarja preta, anônima, ilegal, quase um milagre
—           Quero ajudar procurar a avó...
—           Meu amigo, fica sentado... acende outro, esconde dentro da mão. Essa história não é tua, é a história da tua ama de leite.
—           Onde tem fogo?
—           Procura... ou lasca uma pedra na outra.
—           Fumaça, você também escuta?
—           O quê?
—           As vozes...
meu amor, não são os gritos que abafam o amor, mas o silêncio. Nada é pior do que não dizer nada, às vezes, o apaixonamento arrefece com tantos distanciamentos. A paixão deve ser alimentada cotidianamente
O escritista deitou no assoalho de tábuas e alargou-se. Ria alto, colou o ouvido na madeira assoalho, não sabia de onde vinham os vozeares da Adelaide
—           Estou mijando...
—           Eu também.
Estavam num vácuo.
foge, vem me ver
—           Não consigo, não consigo...
covarde
—           Adelaide. Adelaide.
foge, vem me ver, eu me contento em te olhar. vem me entorpecer devagarinho, quero abotoar na memória as tuas mãos me tirando do ar. é uma delícia acordar com esse encantamento, querendo mais. o teu abraço apertado é o melhor lugar para ficar com os olhos fechados, escutando tua respiração, sentindo as batidas do nosso coração
—           Espera, espera... me espera.
diz para esperar, mas sou ansiosa, atrevida, saudosista, impaciente, inquieta, desassossegada, alvoroçada. tenho consciência da escolha que fiz, mas não tenho como evitar a saudade. sinto teu cheiro chegando, mas nunca chegas, e o terrível desejo precisa das mãos, como eu queria que fossem as tuas mãos, minha loucura. tanto silêncio, não aguento tua distância
—           E agora?
—           Agora? Estamos mijados igual guri malcriado.
—           Eu quero Adelaide.
—           Eu quero achar a avó... não posso dormir, se me encontra com a calça melada, nem sei, ganho o corretivo que entorta o pepino.
também sinto que estou com saudades súbitas de ser acarinhada... esquece
—           Onde vamos primeiro, Tigão?
—           No quarto da avó!
Saímos do porão pra dentro da casa, até o quarto da avó. Paramos, que nenhum era atrevido o suficiente pra se intrometer sem se anunciar e receber admissão de passagem
—           Avó!
A voz do Tigão saiu adocicada, coisa de filho-neto que só outro desgarrado pode entender. Tinha o branco dos olhos cheio de ocupação com o antecipatório da vistoria do quarto. Ficamos ali, esperando resposta que não vinha. A respiração nem lembro se era feita, tudo em silêncio pra modo de escuta alguma resposta de aviso. Um pedido de amamentar do neto sem mãe, um neinho chorão e impertinente. Ela com os peitos murchos, sem uso de abrasamento, tinha zelo pra não ciumá o espírito do avô com cisma de querer outro homem. Houve vez, que escutei resmungo da avó no rezamento pra Santa dos seus favorecimentos
—           Ó minha Santa, tenho saudade de sentir a mão daquele desvergonhado embaixo do vestido, toda sem vergonha. A minha Santa há de entender, se já foi mulher antes de virar santidade. Perdoa meu atrevimento, mas tem vez que o aborrecimento da saudade não se desfia no rosário, nem com as cantorias dos hinos, benzeduras, encantação, a ebulição faz arreganhar qualquer conciliatório, nem água com flor de laranjeira, é preciso a mão desvergonhada.
Fiquei parado, no esconderijo, com a boca aberta, fazendo minha cerebração daquele enredo: a avó foi uma mulher desvestida sem vergonha... não podia consentir na minha cabeça a avó arrancando as roupas e toda enrolada nos braços do avô. Têm coisas que os filhos não sabem dos velhos, é melhor que nem saibam, já não é pouco dar conta da própria imaginação
—           Avó!
A lembrança da voz do Tigão me trouxe de volta, a missão de precedência era encontrar a avó e a erva, o bixo da seda que tinha virado de palha, bixo da perdição. Os meninos têm tamanhos diferentes, mas a idade é a mesma, correndo, saltando, jogando bolita no gude, taco, as calças caindo, o nariz escorrendo, os pulmões de um vulcão, a desconfiança com as meninas, as birras, os calções e o jogo de bola na rua, mas alguma coisa me dizia que o Tigão não era mais menino. Tinha provado algum gosto dos animais selvagens, não era mais um menino doméstico. Trocou o estilingue e o canivete enferrujado no bolso por uma baioneta estragada na cintura. Queria mais importância e autoridade que lhe queriam fazer confiança. Não ria dos livros sem figura da escola, esses livros não tinham serventia pra ele, mas me aconselhava que tinham um bom uso pra mim. Foi precoce em tudo, até nos sonhos. Um inventador de sonhos com gravatas, casacos e botas de couro, barbeiros, meninas, perdia sempre a hora de dormir. Não tinha tempo pra voltar à noite, chegava na hora da escola, me dava um abraço, um cafuné nas mola e ia anoitecer até o meio do dia, não conseguiu os sonhos que perseguiu enquanto lhe perseguiam, não saiu do chinelo de borracha enfiado nos dedo
—           Avó!
Nenhuma resposta, nem que tava nem que não tava. O mano me olhava e mirava na porta
—           Avó! To abrindo...
O Tigão abriu a porta do quarto da avó, arregalou os olhos e enfiou a cara, depois recuou e me olhou de frente, Se tava ali e não resmungou, não tava acordada, se não tava acordada tombou pelo fogo amigo do neinho
—           Besteira, Tigão.
Preocupação desnecessária se eu não tivesse metido a preguiça e as pernas da professora da geografia na frente das minhas obrigações com a avó. Quando ocorrem tragédias queremos encontrar o culpado, o vilão em quem poderemos enfiar perguntas. Queremos as respostas para justificar a negligência, soberba, egoísmo, incompetência, ganância. Eu já me via às voltas com o juiz e o puliça, dando as devidas explicações
—           Seu puliça, foi tudo um grande engano, o senhor vê, essas tragédias são obras da imaginação egoística dos pequenos detalhamentos, eu queria leva a geografia pra cama, a avó queria fumo de corda, o mano deixo a bermuda em casa, a avó não lavo a bermuda, que fico jogada por lá, no quarto. Parece um sonho que não é de verdade. O sol tava um queixume de quentura, o caminho até o bar do Beto Suco não tem uma sombra de alívio, é a reforma urbanística do seu prefeito. O senhor vê com clareza, isso tudo, seu puliça? Se o prefeito não tivesse arrancado aquelas árvore toda, haveria sombra, se tivesse sombra eu ia buscar o fumo de corda da avó.
O seu puliça não tava muito satisfeito, disse que precisava me leva até o porão, com os outros pretos. Foi quando comecei o jeito de preocupação, senti vontade de virar a página
—           A verdade é essa, seu puliça, a mais pura verdade, mas o senhor pode não acredita.
Só tinha um jeito de mostrar a verdade: encontrar o corpo da avó, pra tirar aquele sorriso cruel da boca do seu puliça.

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