domingo, 10 de março de 2013

Neinho, o seu puliça é gente decente


Ensaio 29
baitasar
Desculpe ter metido o senhor, seu puliça, nesta história sem pé nem cabeça. O seu puliça é gente decente, bom coração, cumpridor do seu dever de vigilante da imbecilidade, mas todo mundo que não é preto finge que não sabe, o seu puliça desembesta pro lado dos preto mais fácil que pro lado dos branco. E isso vem do berço dos branco. Uma chave de cadeia que fica na cinta do seu puliça. E os preto tinha que lambe o beiço, dar graças à deus, que a cinta não saia da cintura do seu puliça. Mente quem diz que os branco tem tanta chance com os arreios da vida como os preto. Desculpa esse meu atrevimento, outra vez, mas isso é conversa de gente que não quer tirar os arreio dos preto.
Os preto passa a vida se distraindo da própria vida pra servir o conforto dos branco que parece sempre em falta e com vontade de ter mais. Não quero embranquece a carapinha, quero acinzenta. Houve tempo que o caminho mais rápido pra riqueza era ter um preto pro seu conforto nos serviços da limpeza do chão, faze uso das mãos do preto na plantação, serviço de servidão feito pelo arroz, milho, feijão, mocotó e a rede na senzala que o branco atirava no chão. Essa gente de bem é apaixonada por coisa material, um desejo incontrolado de ter um preto de servidão, acorrentado no tornozelo. Quanto mais acumulação dos preto e uso de cama das preta... mais abundância de prosperidade, progresso, riqueza, poderio, mando, e a abafante dominação do seu puliça que fica no serviço de quem lhe paga. O seu puliça também é preto, devia sabe disso.
A avó contava que nunca foi fácil de fazer sobra, mas de falta não precisava nenhum descuido. Costurou muitos anos pros Almeida, Se eu fosse outra tonta, tinha passado muito trabalho, mas tinha tudo controladinho, bem certinho. O avô não se envolvia com nada em casa, todo dinheirinho dele era pra família. O teu avô tinha umas besteira que eu e o tempo acabamo, gastava com a bebida e o fumo de corda, às veiz, com o carteado no 44.

Tudo que a avó fez era bem feito. Quando saia de passeio longo, não foram muitas vezes, deixava um vasinho com rosas e pedia que a santinha cuidasse da casa e avisava, Neinho, o seu puliça é gente decente, se precisa pede socorro
—        Não tenho pena, esses pretos – não são todos, mas são muitos – não querem trabalhar, só querem roubar!
Mas seu puliça não faz injustiça de julgamento. O estudo é tudo, já viu onde os preto estuda? Os moço e moça branca vão pra longe estuda, os que não querem ir pra longe, não se contentam com os jesuíta ou as freira, que tem uns lugar de ensina quem manda, precisam de outra escola, o cursinho do gringo, o preparatório do exame pra doutor, vão em escola que ensina tudo de novo, junto com os jesuíta e as freira. E não é que são burro, mas a competição entre os branco é quase como virar santo de devoção. O seu puliça já contou quantos preto tem no colégio dos jesuíta e das freira? Tem mais preto na puliça, né?
—        E o caminhão do lixo?
Seu puliça, até no caminhão do lixo o motorista é dos branco, os preto corre atrás. Aqui, nesta terra de lanceiros, desde sempre foi assim. Por isso, quando um pequeno rabanete preto chega, bate na porta, e entra pelas portas da escola de doutor pra se doutor, é como chegar nas Américas, junto com o seu Colombo, depois de 500 anos. Já penso seu puliça... doutô jornalista.
O movimento do Tigão me tirou os pensamentos do seu puliça
—        Avó, to entrando...
O Tigão que não se metia de medroso com ninguém, tava com o branco do olho enfezado, continuava com a mão no ferrolho da porta, no maior cuidado. Foi empurrando a porta com o ombro, até fazer serviço de procura com o seu olho de vigiamento
—        E a avó? — perguntei impaciente
—        Ta muito escuro, e preto no escuro fica difícil de procura...
—        Deixa de dize bobagem...
—        Eu também quero espiar, quero ajudar o descobrimento da avó.
Fiz um muxoxo de impaciência com o doutor jornalista chapado, o escritista não se contentava em escuta a história, queria se intrometer, dar opinião de conhecimento. Já disse pra não se meter que essa história é dos preto. O escritista já tá encrencado com essa tal de Adelaide, não desata nem reata, se quiser ensino simpatia que a avó instruía pra domação da afeição pelo cupido
—        Fumaça, eu não acredito nessas bobagens.
Bem coisa de branco, fingir que não acredita. O amigo fique sabendo que a tia Vanda foi a que mais se aproveitou das simpatias da avó. Depois que botava o olho no pretendente, rezava baixinho, quase não mexia com a boca, nunca fazia reza de queixume, era murmúrio de pedidos e oferecimentos. Esperava que o pedido subisse até onde precisava subi, então, a tanajura subia nos tamanco e dançava, pra lá e pra cá, até o animal fica selvagem, depois era encilha e monta
—        Bobagem... toma, estica esse bracinho...
Branco é tudo igual, gasta a vida acumulando opulência, abastança, desafogo da pobreza, correndo nas estradas com o carrão, até que tem a iluminação que não estava aprendendo a morrer, já tinha morrido. Adiou a vida com amorosidade pra depois da morte. Tá cheio do dinheiro e fodido de saudade da vida que não teve.
Puxei fundo a frouxeza do bixo da seda, até me pareceu que o seu puliça tava junto nessa, cheguei estende o braço – costume de boa educação – mas foi só uma aparição de mau gosto, receio de assombração. Nem o danado desse bixo ajuda com os medos que são enfiados na cabeça dos pretos. É como ficar caminhando de um lado pro outro, vamos e voltamos, não saímos do mesmo lugar, espalhados na poeira
—        To com fome.
Isso é uma boa lembrança
—        To com vontade de torcer, levar a Adelaide no jogo.
Seja bem-vindo, meu amigo. Essa moça que não lhe sai do especulativo merece mais da sua atenção. Chega de lamúria, o seu jeito com a moça parece elegância de charlatão. Não promete, mas também não cumpre.
Fechei os olhos pra deixar as lembranças em movimento se aquietarem, procurava razões pra lembrar, queria terminar com aquela história
—        A avó não tá!
—        E agora, Tigão?
—        Continua a perseguição... em algum lugar, ela tá.
A avó tinha todo o casarão na sua disposição.
A tia Ana vivia de ambulante, conforme o capricho do novo ajuntado, esse outro tio agregado deixo ela enfiada mais pra dentro da vila, levou junto tudo que se mexe: os filho, as filha, os bicho. A avó rezava com simpatia e benzedura pra que a latência do agregado tivesse tempo de acostuma com a tia Ana, Meu neinho, escuta a avó, se ele acostuma, ele fica.
A tia Vanda tava no serviço de limpeza na casa da professora do Chico, irmão do Samuel. Ainda não contei dele? O Samuca é meu primo, filho da tia Ana. Não ta interessado? Preciso para com os enleios? O rapaz fica quieto e escuta. O passado sempre nos alcança mais uma vez. Acho que encontrar o escritista faz parte do jeito de me encontra, me acha comigo mesmo. Essas lembranças são ocorrências de muitos anos, naqueles instantes não tive dúvidas que nunca ia esquece. Até que esqueci. O Samuca, um dos primeiros filhos da tia Ana, que foi pra escola, foi atrás do professor porque uns piá tavam brigando, Encontrei o sôr no cafezinho batendo língua com a sôrinha do andar de baixo, ficô zangado comigo e mandô que eu desse volta já pro meu lugá, voltei, mas ele demorô mais um tempão pra voltá pro dele. Mas voltô, e precisô dá muito grito, tava tudo muito enfezado, na maió bagunça, lápis, papel, caderno no chão, giz esmagado, quadro todo riscado, uma das cortina ficô rasgada. E o sôr exigia com berro que todo mundo ia pagá, ‘Uma ova’, eu disse que não tinha culpa e que não tinha estoque de riqueza pra apagá o errado dos outro, o sôr gritô que queria meu pai na escola, no dia seguinte, ‘Meu pai já morreu’, ‘Então, quero a mãe, amanhã’, ‘Minha mãe morreu’, ‘Você não entra mais na minha aula sem os pais’, gritô dessa maneira.  Fiquei pensando comigo mesmo, ‘Como vô fazê o pai e a mãe não chegá na escola’, depois, me chamô na sala duma sôra com conversa mole, repetiu as mesmas coisa do sôr, no final de tudo isso, disse que eu havia faltado o respeito ao sôr e que ia ficar uns dia em casa, pra pensá em melhorá a atitude. O primo Samuca resolveu não volta mais, achava que era o sôr que tinha atitude pra melhorá, ‘As minha não tavam errada’, e assim aconteceu o primeiro tropeço escolar dos filho da tia Ana, ‘Fumaça’, ‘O que foi Samuca’, ‘Pra mim, escola passô a sê um casarão mal-assombrado miúdo’.
O tio Manoel tinha hora de larga do quartel, mas não tinha hora de solta as calcinha. Repetia que só tinha ambição na vida de arranca calcinha com os dente. O tio Jorge dormia até a hora de treina com as carta. Tinha mãos macias e dedo ágil, se tivesse insistido com os estudo, seria um bom professor de matemática. Contava as carta do baralho e sabia de cabeça as contas da jogatina, na mão e na mesa. O tio Batata pra não pará em casa arrumou mais uma rota. Nem bem terminava uma e já saia com outro caminhão... depois, ficava na reunião do sindicato. A avó derramava a garganta com ele, anotava do pensamento que desse jeito o filho não arrancava compromisso de nenhuma moça séria, ‘Meu filho, que moça vai querer um homem que não para em casa’, ‘Uma muié lutadora’, era a resposta do tio.
E o escritista vai querer ou não a simpatia pra atrair a sua Adelaide
—        Que benefício isso pode trazer?
Isso só o amigo pode responder, mas se deixar cair suas escamas dos olhos, vai poder ver que a moça lhe faz mais falta que o amigo tem coragem pra concordar.

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Ensaio 28 - A mão daquele desvergonhado embaixo do vestido 
Ensaio 30 - Tigão, vamô joga awalé?


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