sábado, 30 de março de 2013

A morte tava viva na avó


Ensaio 32
baitasar

Os bolinho frito da avó era uma gostosura. O jeito de fazer os bolinho da avó foi junto com o desaparecimento da avó. As tias bem que tentaram, mas não ficava do mesmo jeito que nas lembrança, faltava a avó com a cantoria enquanto fritava os bolinho, Essa é do Cartola, essa outra é do Noel, esse moleque branco tinha a boquinha torta, desaparecido com 26, cuspindo sangue, um herói da Vila, viveu misturado com os preto... e as preta, acho que o moleque tinha uma caixinha de música.
A avó soltou um suspiro seguido do seu sorriso desdentado e recomeçô a cantoria, E eu pergunto: com que roupa? Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou?
—     ...
Agora eu não ando mais fagueira
Pois o dinheiro não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo uma cabra trapaceira
Não consigo nem ter pra gastar
—     ...
O casarão da nêga Laetitia tinha sua Clementina, forte, inabalável, vigorosa, a nação dos preto, mais numerosa, mais amorosa, cantava suas harmonia, dançava suas memória, o batuque com o zunzunzum da avó, a regra dos orixás da Criação, Meu neinho, presta a devida atenção em tudo, mas não perde a vista da memória, o nosso povo não tem herói escrito nos livro da professora, e o que não tem escrito fica desaparecido se não tem quem conta a história.
Foi a avó que ensinou os neto com as história dos preto, mas enfiava aviso de cuidado, Pra não tê desfavô na escola dos branco, havia de aprendê também a contação do jeito da professora, o outro jeito fica no peito. Os neinho escolhe a justeza do lugar de uma e da outra, as história tem cor, é melhó guarda a contação da avó pra contá quando achá que pode
—     Se a avó quer assim, as história vai ficar criando raiz por dentro dos neinho.
Ocê vai tê que perdoá sua avó, tenho muito repetimento das história na cabeça, os miolo nem sempre ajuda, a avó aprendeu de ouvi contá, não tem nada escrito, muita coisa tá escondida no esquecimento, alguma coisa ficô guardada no espírito, melhor desse jeito, o peito da avó não congela nem endurece o modo de olhá os outro
—     ...
Os velho quando fica velho tem que tê uns remedinho pra tomá, as sementinha da saúde. Gente nova precisa fazê o plantio e o manejo da plantinha do amô, ela faz cura das tristeza quando fica florescida, mas há de defunta se não recebe cuidado de carinho, não pode ficá misturada com as erva daninha, essa nasce sozinha, não precisa semeação, cresce rápido feito maldade e segura a tristeza dentro do peito. O neinho precisa cultivá com capricho as sementinha do amô. Já pensô na paciência da galinha? Ela cisca, cata, come grão por grão, laboriosa, delicada, mas tem ginga, ela ensina com o exemplo. Não esquece que quem espera é porque tem esperança, só precisa escutá com a fundura do peito
—     A avó fica linda com essa cantoria toda...
Quê nada, neinho, a avó é aprisionada num corpo velho, se a minha Santinha escutá a reza do coração e intercedê com jeitinho, a avó faz a travessia pra África com a carne menos usada. Aqui, nesse casarão, to parecendo uma bailarina guardada na caixinha das música... esperando
—     A avó tá esperando o quê?
Ela soltou um suspiro que apareceu da maior lonjura, dum lugar que não existe, mas que a avó queria que tivesse existido, a cisma duma coisa que ela queria o feito que não foi feito, a largura do arrependimento
—     Cuida dos bolinho, a avó já volta...
Fiquei fritando os bolinho enquanto a avó não vinha. Fritei os bolinho, um a um. A avó não veio. Larguei os bolinho quentinho na mesa e fui chamar a avó. Entrei no quarto e fiz barulho de anúncio, O café e os bolinho já tão pronto. A luz amarelada na cabeceira da cama tava bem fraquinha. A avó ficava deitada com um caixinha ao seu lado. Ela tava diferente, os vinco do rosto cansado tava alisando, os crespo do cabelo acinzentava
—     Neinho, olha pra isso...
Mostrava a caixinha deitada do lado, nunca tinha visto nas mão da avó aquela caixinha toda brilhosa, parecia novinha em folha, acabada de ser recebida
—     ... isso é uma caixinha da música. Já viu alguma? Foi presente do avô...
Ela abriu a caixinha e uma bailarina girava pra lá e pra cá sobre um picadeiro de espelho, a música que nunca ouvi me fez ficar parado, como se a professora da geografia tivesse dito, Sim!, e não pudesse me mexer pra matar o desejo, imobilizado pela leveza do encanto, o inesperado. Não sabia que o avô tinha feito cerimônia de presente tão chique. A avó viu minha desconfiança, voltou a dizer que foi presente do avô, Mas não foi, insisti com os olhos dentro da avó, até que ela deu liberdade no suspiro que devia tá muito tempo guardado e queria sair aliviado, tinha vontade de ser contado
—     Foi presente do fogo que queima, um fogo que lava e perfuma a alma da avó, Muito delícia... o fogo repetia, vendo a avó de bailarina. A boca era pura paixão. Gostava dos mimos do avô, mas isso é como tê um colo de conforto. Queria o fogo que deixava a avó acordada, com medo de dormi, não havia jeito de esquecê a marca que ficava na avó, ferro em brasa que marcava por dentro. Não queria corrê o risco do esquecimento, então não deslembrava. Vinha no quarto e escutava o fogo
Fez pausa de silêncio, parecia se desculpando com o avô
—     Sei que atrapalho o descanso do teu avô com os espírito, fiquei metida nesse alvoroço da vontade perdida, por muitos anos, uns por descuido, outros por ausência da coragem.
A luz amarelada desviava do brilho da avó, é a avó que sempre ilumina o casarão, cuidô do avô, e não teve cuidado de atenção com ela mesma, por isso, não vai parar de existir... até aprendê. A avó vai voltá, não sei como, mas a avó vai voltá. A avó tem mais fantasma que pode carregá, é o acompanhamento de resultância da tristura
—     O moleque não sabe porque ainda é moleque, mas vai sabê que tem coisa que se faz ou se deixa de fazê, e o pagamento é a alegria ou a tristura. A bailarina da caixinha só tá alegre dançando.
A morte tava viva na avó
—     O neinho sabe pra onde o amô carrega a gente?
Não sabia responder pra avó, mas desconfiava que a avó passava o tempo escondida dentro dos pensamento até descobrir
—     Pra ausências, neinho. A vida não dá tempo, quando a morte chega, não quer tristeza, inté acho que a vida pode tá feliz realizando o desejo de sê a bailarina. Não luto mais com o fogo que queima, vivi uma vida de ausência e acabô, mas pra nêga Laetitia é apenas o começo.
A morte ficou viva dentro do neinho.

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Leia também:

Ensaio 31 - E o quê a avó acendia com os pensamento? 
Ensaio 33 - A avó é um pedaço do seu acontecido

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