domingo, 29 de junho de 2014

A Boitatá (Brasil)

Contos de Animais Fantásticos


Apresentação

A lenda da Boitatá aparece em várias versões, com pequenas variações de narrativa e no nome, por todo o território brasileiro: Baitatão, no Nordeste; boitatá, Bitatá, Batatá e baitatá, no Sul. Entretanto, a concepção é sempre a de uma entidade protetora dos campos naturais.
A presente narrativa baseia-se nas versões do Sul, mais precisamente na do Rio Grande do Sul. Foi selecionada e recriada por Mitsue Morissawa.



Isto foi há muitos anos, no tempo em que não existiam máquinas, os animais andavam livres nas matas ou nos campos e os índios eram mais numerosos que os brancos. Havia tanta terra disponível que era possível mudar de um lugar para outro sem problemas.

Uma tribo buscava um novo lugar para se estabelecer.

Foram muitos dias de andança até chegar a uma planície extensa, com árvores e água em quantidade. Uma grande alegria tomou conta de todos. As crianças corriam pelo prado atrás de preás, chamando os adultos quando viam caça grande, algum veado ou caititu.

A noite foi chegando devagarinho, enquanto as mulheres preparavam a canjica e os homens conversavam sobre o trabalho do dia seguinte. Os mais jovens preparavam os instrumentos de caça. De resto, foi tudo como em dia de mudança.

Antes de se deitar, o mais velho entre os homens disse com orgulho:

"Faremos um roçado tão grande, que, quando o queimarmos, o incêncio vai esconder o Sol."

Todos festejaram sua fala. E ele acomodou-se na rede para dormir.

Depois do tempo normal de sono, abriu os olhos, mas estava muito escuro, coisa que estranhou. Nem um feixe de luz! "Deve ser muito cedo ainda", pensou. "Acho que estou com vontade de fazer o dia amnhecer." e fechou os olhos novamente. Mas as horas passavam lentamente, sem que um fio de luz anunciasse o Sol. Um menino comentou que os grilos não cantavam, que não havia vento nem orvalho.

A escuridão e o silêncio foram deixando todos assustados. Fora o murmúrio das pessoas, só o canto do quero-quero fazia-se ouvir de vez em quando. Mas não era um canto normal, insistiam as mulheres. Trazia uma ponta de angústia, que elas sentiam como um mau presságio.

De repente, uma luz riscou o céu. Inicialmente um brilho suave, mas, depois, antes que começassem a festejar, um clarão mais forte que o de um raio, fazendo o verde do mato ficar branco feito leite e cegando por instantes os olhos de todos os viventes. Tudo despertou, de repente: lagartos, cobras, grilos, preás, pássaros, ventos, capim... mas num escarcéu de pânico e terror. Depois a luz foi diminuindo, até que se tornou possível ver que o Sol havia aparecido e a noite se fora.

Vendo que a calma voltava e que os homens juntavam suas ferramentas para o trabalho, o índio mais velho reuniu todos e advertiu:

"Aquilo que vimos antes de o Sol aparecer, era a Boitatá. Ela veio para nos avisar que não devemos fazer a queimada."

"E o que é a Boitatá?" perguntou ansioso um dos meninos.

O velho se pôs a contar a história que havia escutado de seus avós:

"Faz muito tampo, houve uma grande inindação na Terra. Todos os animais, depois de fugir para os lugares mais altos, tentando salvar-se, foram tragados. Não houve toca ou copa de árvore que escapasse. As águas cobriam tudo, como se quisessem levar o mundo. Nem a boiguaçu, a cobra grande, que hibernava, pode continaur seu sono. Mas, como era bicho tanto da água como da terra, saiu nadando tranquilamente. Quando as águas começaram a baixar, foram surgindo ilhotas, e aí se viu a mortandade. A boiguaçu começou, então, a devorar os animais mortos, mas somente os olhos deles. E quanto mais as águas baixavam, mais bichos apareciam para satisfazer sua gula. Sendo bicho sem pelo nem pena, sem escama nem casca, seu corpo foi ficando transparente e iluminado. Cada olho que ela comia era uma luzinha que se acendia dentro dela. Desse modo, depois de haver comido tantos, a boiguaçu transformou-se em uma claridade que serpenteava pelo chão. Os primeiros que a viram não a reconheceram. Deram-lhe o nome de Boitatá (cobra de fogo). Embora tivesse comido muitos olhos, eles não a alimentaram, apenas a iluminaram, de modo que acabou morrendo. Mas a luz que estava dentro dela escapu e saiu por aí, sem rumo, asustando as pessoas e perseguindo os desprevenidos. Essa luz é a Boitatá, que, por sua gula, foi condenada a vigiar para sempre os campos virgens contra os que querem incendiá-los. E ela só aparece no verão, como uma bola de fogo, correndo pelas planícies de um lado para outro, incansável, sem queimar as plantas ou as árvores, sem esquentar a água dos rios ou dos lagos. No inverno tirita de frio, mete-se numa toca e repousa."

"Então, teremos de abandonar este lugar?" perguntou um jovem.

"Não será preciso" dise o velho. "Apenas não poderemos por fogo no roçado para a limpa e o plantio. Teremos muito mais trabalho, mas obteremos bons resultados."

"E se a Boitatá aparecer de novo?" perguntou uma das crianças, para se certificar que não havia mais perigo.

"Digo a todos" respondeu o velho " aquilo que me disseram meus avós: ela só virá para nos vigiar, para ter certeza de nossas boas intenções. Quando a virem, bastará fecharem os olhos e permanecerem imóveis sem respirar, até sentirem que ela se foi. Pois, do contrário, a Boitatá os perseguirá e aturdirá até matá-los."

__________________________

Contos de Animais Fantásticos
                  Co-Edição Latino-Americana
                  1986
Editora Ática; Editorial Norma, Colômbia; Subsecretaria de Cultura, Equador; Editorial Piedra Santa, Guatemala; Promoción Editorial Inca S.A, Peru; Ediciones Huracan, Porto Rico; Editora Taller, República Dominicana; Ediciones Ekaré-Banco del Libro, Venezuela.

"Prólogo

Os animais sempre estiveram presentes na história e no desenvolvimento humanos. Algumas vezes temidos, outras venerados, os animais são parte significativa da vida do homem.

Desse estreita convivência, surge o caudal de narrações que recriam e enriquecem a visão sobre estes seres. Na literatura, os animais ganham um significado próprio; nas fábulas, por exemplo, dão lições de moral e de comportamento social. Além disso, são inúmeros os exemplos de animais nascidos da imaginação e da fantasia humanas. É frequente a presença desses animais fantásticos em lendas que falam das nossas origens, assim como é comum esses seres extraordinários estarem relacionados com experiências amorosas. Às vezes, os animais transformam-se em forças da natureza, que ajudam ou prejudicam o homem. Ou, ainda, em certas ocasiões, veem-se seres humanos transformados, momentanea oupermanentemente, em animais de grande força e poder.

Nesta recopilação de contos latino-americanos, os protagonistas são todos animais fantásticos surgidos na tradição literária popular."


_______________________

Leia também: 

Lenda de Abel e Caim
A chuva
Contos e Lendas de Amor - México

Nenhum comentário:

Postar um comentário