quinta-feira, 19 de junho de 2014

O Futebol nem é tão importante, mas a Festa

Ensaio 03AB
baitasar
No quarto há uma cama, sobre a cama um homem, sobre o homem um menino, sobre o menino o medo. Sèzar respira boca abaixo com o corpo retesado. Ensaia engolir o ar aos goles, o seu acanhado aperitivo da vida.
Pequenas bicadas. Afogando-se. Obstinado. Ele vai tentando respirar.
O telefone dispara o sinal sonoro de mais uma chamada. A terceira chamada. As duas primeiras deixou tocar até a exaustão do corneteiro. O anúncio é um toque de corneta. Gosta dos toques de corneta convocando homens para matar ou morrer. Atacar pela honra deles mesmos, seguindo a ordem da corneta. O corneteiro é anônimo. As jaquetas azuis em seus cavalos, as espadas, os fuzis, os gritos selvagens da carga de cavalaria. E a ordem para tocar
—        Atacaaaaaaaaaar!
Escolheu esse toque depois que Helga contou a história dos soldadinhos de chumbo desaparecidos. O exército perdido. O castigo do pai. A injustiça da sentença. O irmão delator. Uma memória infeliz para Helga, ele concorda. Mas não consegue evitar. Ou não quer.
Deixa o aviso anunciar o ataque uma, duas, três vezes, estende o braço do homem. O menino reconhece o número chamando. Afasta o nebulizador e atende
—        Não... não posso... Gustavo... não posso. —           desliga o telefone que fica sobre a cama. Aproxima o nebulizador — Nenhum pensamento... nenhum pensamento...
Não consegue a prudência de não pensar durante suas crises. Sente-se impuro. Ao lado do seu corpo afogado em ar puro. Os pulmões inflados. Os músculos retesados. O assovio congestionado. Não consegue se retirar dos pensamentos. Não consegue se retirar do seu corpo. Abandonar-se de raciocinar e julgar a si mesmo. Fluir na correnteza silenciosa da liberdade. Deixar os dois amigos na margem. Distantes e imóveis.
Amigos desde os tempos do colégio. Dois grandões e fortões modelados na Academia. E com anabólicos. A Academia é uma rotina de muito tempo. Os anabólicos foi um achado oportuno e rápido para aumentarem suas medidas. Cuidam das aparências. Sèzar avisou dos riscos. Desrespeitar os perigos é o modo de vida do Gustavo. Os três começaram a rotina dos treinos aos treze anos. Pesos, medidas, espelhos e dietas bombásticas. O professor desaconselhou. Deveriam esperar outras definições do corpo, como por exemplo, o crescimento. Do contrário, não ficariam do meu tamanho, é lógico, mas iriam perder alguns centímetros na corrida do tamanhão
—        O professor explicou que são muito sérias essas práticas inadequadas. Não precisamos ter pressa. — o Gustavo não queria entender, não queria ouvir. Sèzar sugeriu que votassem. Votaram. Ele perdeu por um voto. Os dois fortões venceram. Dois votos para iniciarem os treinos, imediatamente. Um voto para esperarem. Começaram. E ainda não pararam. Ele nunca começou. A cada vez que iria iniciar os treinos tinha uma crise de asma. Foi fazendo do seu jeito
—        Vou fazer do jeito dá... concordam? — os dois concordaram. Conversou com o professor na escola. Não gostava das aulas, mas gostava do papo. Fez do jeito que o professor o instruiu.
Hoje, ele não foi. Não respondeu ao chamado. A máscara dos músculos e a TOC gremista iriam esperar. Ele precisa da máscara do nebulizador.
Olha para o telefone e lembra os amigos. Sorri.
Anos antes, a intuição da sobrevivência em Sèzar aproximou os seus lamentos respiratórios ao amontoado corpóreo Daniel-Gustavo. Dois gorilas brancos, desde os tempos do colégio. Ídolos do esporte. Bons em tudo. O abismo de Sèzar era o mundo dos triunfos e vitórias dos músculos fortificados, garotas, festas, esportes e o espelho. Media-se e não tinha as aparências do nadador-salvador. Precisava de um exército inventado, se tornar atraente e decorativo para esse mundo imaginário.
Continuava morrendo de medo dos voos noturnos com festas, danças, bebidas, e lógico, definhava quando os objetos disputados eram garotas.
Precisava de um plano.
As garotas iriam esperar.
No fundo da sua escuridão desistente sempre nutriu esperanças com as garotas. Nas disputas solitárias dos cinco dedos contra um, tinha suas preferências fantásticas. Viagens entre linhas retas e curvas, más influências excitantes a quem se entregava. Vitórias breves. Queria mais. Sonhava com mais.
Precisava de um plano.
Uma coisa de cada vez. Primeiro precisava encontrar dois guarda-costas. Os dois gorilas brancos eram perfeitos. Duas montanhas que morriam de medo da matemática, física, química e biologia. Eram ótimos na educação física.
Sèzar nunca gostou de esportes. Nem mesmo quando menino. Ia aos parques infantis com o pai. Ele para ficar atento olhando as outras crianças. Recomendações severas da mãe. O pai para ficar atento olhando as outras mães. Cresceu com a convicção que as disputas de contato físico apenas reforçavam suas fraquezas. E diminuíam suas chances por alguma coisa. Qualquer coisa. Estava encarcerado e precisava de guarda-costas.
As aulas de jogar bola não ajudavam, só faziam o medo aumentar. As aulas da matemática o aproximaram do Daniel, depois foi a vez da física. Quando chegou a vez da química e da biologia, o Gustavo já fazia parte do pequeno grupo de estudos.
E chegou o dia, Sèzar ergueu-se sobre as próprias pernas e pediu para a mamãe sua primeira camisa de jogar bola. As mães sonham com pesadelos, é inevitável
—        Futebol, Sèzar? — descreveu todas as suas angústias, agonias e medos. Quatorze anos de vigílias e cuidados com o filho. Sèzar esperou silencioso o esgotamento daquele modelo de reprovação e contou a verdade pela metade. Meia verdade não chega a ser uma mentira inteira. Talvez uma meia mentira. Uma mentirinha. Temos pessoas em nossas vidas que aparentam não suportar toda à verdade. Sèzar achou melhor assim, e pronto
—        Mãe, estamos fundando a Torcida Organizada Gremista, a TOGremista!
—        O quê? — a primeira vitória, ela não disse o seu tradicional — Não! — pediu para ouvir mais, queria ouvir mais, avaliar melhor a história do filho
—        Mãe... eu e outros meninos da escola... — não podia dizer que os treinava para serem seus guarda-costas — ... estamos organizando a torcida jovem tricolor do colégio. Não serão apenas coisas do futebol, teremos encontros para estudar matemática, física, etc etc etc. É muito importante. — poderia ter acrescentado que apostava nesse projeto como o salvador da sua própria vida. A existência de um Sèzar homem crescido, forte e inventado por ele, não pelo jeito dos outros.
Assim, ele se tornou um vibrante organizador de amigos e amigas. Não precisavam ser grandões e fortões, mas com a paixão e a necessidade de sobreviver. Agora, era um deles. O líder. Com o devido tempo e treino, poderia ser transformado numa máquina de moer carne enquanto melhorava as aptidões da matemática em alguns, e da física em outros. Iriam se ajudar. Surpreender. Esse foi o começo da TOC, Torcida Organizada do Colégio. O Diretor da escola fez os rapazes tirarem o nome gremista, não queria disputas na escola  
—        Tudo bem, rapaziada. — parou para usar a bombinha salvadora — O azul tricolor será nosso reconhecimento. O farol a nos iluminar.
Funcionou todos esses anos.
Sèzar não era mais o garoto franzino. A TOC, o tempo e os amigos o fizeram um homem crescido com cabelos longos. Vermelhos. Gostava de escrever, mas escrever não era real. Então, sempre que o seu Grêmio jogava em Porto Alegre, ele e a TOC, mais velha e pesada que nos tempos de colégio, enfiavam suas camisetas tricolores, esticadas nos braços e peitorais, e iam à Geral.
Gritavam, xingavam e cantavam. Isso era anárquico. Subiam e desciam correndo as arquibancadas, isso era uma avalanche. Algumas vezes, saíram ignorando o resultado do jogo, isso era excitante. Sèzar começou a sentir que a TOC era real, ele não estava mais existindo em uma vida que parecia um acidente. Levava o futebol muito a sério
—        Futebol é uma coisa séria, mãe. Mas torcer é uma festa. — por isso, ficou animado com a ideia do presente para Helga, a camiseta tricolor e o abraço no estádio Olímpico. Não contava com o movimento da amiga. Agora, era o peão nas mãos da rainha.
A batida na porta. Chegou o dia do troco. Nebulizado. Prevenido.
É bom ter amigos que ajudam lomba acima. E ladeira abaixo, também. Caminhar no chão limpo, raso e liso é fácil, tem as suas dificuldades, mas não se compara quando você sobe a lomba das conquistas cobiçadas. Toda ajuda é bem-vinda, principalmente, se ninguém normal acredita em você. Eu quero ser escutado, mas Sèzar não, ele deseja apenas escrever
—        Helga, eu não quero ser lido somente por gente normal, polida, bem educada. E que Deus não me livre dos medíocres e pataqueiros. Você acredita em mim?
—        Não sei. Você parece o herói de si mesmo.
—        É a minha natureza não querer desagradar. Parece que se eu não agradar vou ganhar como castigo a falta de ar.
—        Por isso usa tantas máscaras. Vê se cresce.
São nos momentos em que tudo desaba e a descida se torna íngreme, resvaladiça, que a mão amiga é bem-vinda. Sèzar entendeu, mas sentiu que havia levado um tapa.
A banca ganha e paga.
Chegou o dia da banca pagar.
O ingresso para o grenal no bolso da calça. A barba por fazer, o boné preto com a aba mais larga que pode comprar. A camisa vermelha por cima da camisa preta.
Outra batida.
Lembra que precisa ter mais cuidado com suas brincadeiras e provocações.
Os óculos escuros imensos. A ideia é afundar atrás deles. Ficar imerso.
Abre a porta.
Ela está ali. Linda
—        Sèzar?
Sorri sem desfazer o disfarce. Um sorriso abstêmio. Nervoso
—        Estás pronto, Sèzar?
Novamente, não responde. Sai e fecha a porta
—        Vamos? — convida, finalmente
—        Gostei do boné e da barba. É para sempre?
Guarda a chave no bolso
—        O que é para sempre?
Ele pega Helga pelo braço. Saem para o estádio dos colorados. O Beira-Rio. Vão a pé até o Mercado Público. Ainda triste, com as cores do último incêndio. Em obras. Um lugar de histórias. Ali, no Centro Histórico da cidade pegam o ônibus dos colorados. É sua primeira vez num ônibus só com colorados. Mas parece tudo muito igual. Um exército gritando nomes mitológicos, cantando músicas de guerra. Convocatórias. Para ele é um passeio fúnebre de alguns minutos.
Descem do ônibus e caminham para o estádio. Estão perto. O boné enterrado até as orelhas. Enfiado nos olhos. Afogado na viseira escura e grande. Um véu de camuflagem. Vestia a sua burca
—        Tudo bem, Sèzar?
—        Isso não é real, não está acontecendo.
Ela pega em sua mão, ele está suando
—        Quer desistir? Tudo bem. — não se consegue massacrar até o fim, a menos que o instinto da vingança esteja reunido ao desejo da sobrevivência. Num caso deste, o melhor é não ficar por perto. Helga não quer vingança
—        Quero. Mas não vou desistir. — essa é o macho do pampa gaúcho. Morre, mas não dá um berro. É o seu jeito de ver e morrer. Um jeito egoísta.
Nos arredores do estádio cruzam com a TOC gremista, todos os amigos e amigas caminham agitados. Sem ele, desfalcados do sócio fundador. O seu líder. Sente que foi capturado, mas não pode pedir por socorro. Está amordaçado. Recorda o mesmo pavor do menino franzino e doente. Os passos gaguejam. Helga segura firme em sua mão e o beija.
O primeiro beijo.
Os rapazes passam por eles
—        Vi isso num filme. — ela diz.
Ele pergunta se o beijo foi real ou um disfarce
—        Isso foi uma avalanche.
O futebol nem é tão importante, mas a festa...
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