quinta-feira, 5 de junho de 2014

histórias davóinha: Guia de cego 12cp

casarão canela preta


Guia de cego
Ensaio 12cp – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



não deixava de reparar na elegância de avoinha. não tava com aparência de morta, doente ou desmemoriada. acho que tem espírito que não deixa o corpo envelhecer nem ficar se arrastando pelos caminhos, Neinho... avoinha parecia entrada dentro do meu pensamento, falava sem abrir a boca

To lhe escutando, agora, parecia que eu tava lhe caçoando, como é que eu podia lhe escutar se avoinha não falava pela boca

A avó vai ficá no cantinho, não respondi. conhecendo avoinha como conheci ela não tinha acabado de avisar o aviso todo. era só esperar. a roleta tava parada, o rocinante quase sem forças ia pela estrada calmamente

Vai chovê e num tô mais na idade de moiá, virei as vistas para trás e não vi sinal da chuva anunciada, Acho que avoinha se enganou nos avisos que recebeu. Não vai chover, avoinha, respondi com jeito de sabedoria da mocidade ajuntado com os conhecimentos das aulas da geografia

Então, ocê sabe uqui avoinha num sabe... tinha zombaria nos olhos de avoinha. eu sabia que era preciso ter cuidado, mas não queria deixar ela montar na sela, E como avoinha sabe que vai chover se não tem sinal de chuva no céu? Não pode ser assim, de repente tomar a decisão que vai chover. Precisa ter aviso de antecedência, ela continuava no seu cantinho, sentada embaixo da minha mesinha de cobrador. as tranças enfeitadas com contas coloridas e o perfume de água, um cheiro que ninguém escuta

Tenho muntu jeito de sabê, mais dô confiança nas reclamação das perna. Essa qui avisa se o causo é só chuvinha, a otra aconselha se o acontecido vai sê com chuvarada.

passei meus olhos nas pessoas, Parece que ninguém escutou recomendação de uso do guarda-chuva, ela estalou os lábios e bateu as duas mãos nas pernas, fazia fingimento de brabeza, Escutá siná dos rastro qui vem antes, aonde?

Na rádio, avoinha, bateu outra vez e mais forte as pernas nas mãos

E ocê credita, eu tenho mais gosto de creditá nas dô das perna, nessa gente... num sei, dô mais gosto de desconfiá.

É só um aviso, avoinha.

ergueu a voz que não fazia aparição da garganta. parecia inquietude, não aparentava tá de divertimento, Num aprendeu desconfiá qui essa gente tem uqui falá, mais num tem pensamento. Eles é só mensageiro, tem patrão... como ocê. Eles aprende como prendê ocê com besteira. Depois leva o seu bocado da cabeça, tudo trocado pelos bocado qui são deles... E tem aquele qui dos pió é o mais pió, fala mais enganadô qui patrão. O sonho desse mais pió é serví patrão, como se patrão ele fosse.


Se os pensamentos não são deles quem pensa por eles?

ela sorriu da sua tristeza , Os bocado qui interessa é do patrão. As burrice é invencionice da cabeça do mensageiro. Prefiro creditá no siná da descida do dia, o cheiro do vento. A vida tem o seu jeito de vivê, é só sabê entendê a sua belezura. Num tem sentido ocê sabê cheirá, escutá e num sabê entendê os arrepiu e os barulho da vida qui vive.

eu tava sorrindo da minha tristeza, Avoinha fala, fala, fala, mas não diz que é cismada com as invenção que não entende.

levantou com salto do salto e pousou sentada no meu balcão de negócios. endureceu o dedo indicador e apontou no meu nariz, Abre usóio, as venta e ouvido, essa gente enfiada na caixinha faladora não é gente da confiança prus pobre. Elas inventa té fazê ocê creditá qui ocê num sabe uqui sabe, eles é qui sabe. É gente qui tem patrão, gente assim precisa agradá patrão, tirei meu nariz da ponta do dedo de avoinha

Avoinha só sabe descobrir o lado da chuva, não sabe explicar porque chove!

eu já tava com vontade de choro. isso é coisa de criança, não sou mais a criança da avoinha, Quem precisá sabê... qui vá aprendê.

fechei os olhos. queria que a aparição fizesse desaparição. pensei, Nem metade do caminho. O trânsito lento. E avoinha cheia da vontade de conversar.

A rua tá andando, neinho. Nóis é qui tamô parado.

Avó, fica quietinha. O seu neto precisa colocar atenção no troco.

Vai chovê, eu conhecia avoinha mais que conhecia a mim mesmo, ela não sai daqui por nada, até dizer o que tem decidido dizer. e não fala antes de estar pronta para falar. precisa ter muito mais que paciência, acho que melhorei muito. 
nunca tive paciência com avoinha

Aposto que não vai.

Vai chovê de alagá tudo.

olhei avoinha nos olhos e sorri, E o Josino, avoinha? 


queria desviar sua atenção da temática. não gosto da chuva. a água das torneiras é muito bem-vinda, mas tenho problemas de desconfiança com trovoadas, chuvaradas e faíscas; vento, trovões, relâmpagos são combinações que me apavoram. é melhor mudar do assunto

— Num prestô tenção na tempestade qui se aproximô. Assim como ocê num dá escutação séria nas palavra da sua tia, pronto, avoinha chegou no que tem decidido que veio dizer

A tiazinha Vanda só tem no pensamento me fazer desistir do emprego de cobrador, ficou de cócoras. as pernas abertas que dava para ver o fim que se junta com o outro fim, Avoinha podia fechar as pernas?

Tá lhe incomodando? Óia pru lado, ela não queria me deixar pensar sem perturbação. Usava tudo que era arma que sabia usar. Não era decente o neto ver as intimidades da avó, nem era decente essa avó não deixar o neto fazer da vida a própria vida, Sua tia lhe arrumô serviço mais talhado pro seu tamanho.

arregalei os olhos. não acreditava que avoinha disse a merda que disse, Guia de cego?

Isso mesmo!

avoinha e tiazinha tavam de brincadeira.

os passageiros começaram um murmúrio de insatisfação. procurei no redor o que acontecia. a professora me olhou e disse, Rapaz, está se armando um temporal.

o pavor que sentia por dentro subiu, se mostrou nos meus olhos. quando tem temporal forte, trovão e clarão um depois do outro, mais outro, e outro, caminho pelo canela preta cobrindo espelhos. aprendi com davô que os espelhos atraem os raios. uso os panos que encontro pelo caminho. essa fúria da natureza me desassossega. parece que desce para caçar duendes, pigmeus e anões. não deveríamos estar por aqui, entre os humanos normais. cubro os espelhos para não me enxergar, Calma, neinho. É só a chuva qui a avó avisô, não consigo me acalmar, Não consigo... Não consigo!

avoinha voou atrás de mim, primeiro como vaga-lume colocou as mãos em meus olhos; depois, como uma cigarra assoprou a sua reza preferida e um beija-flor beijou os meus lábios e plantou o grão do nascimento, o gergelim

Tudo bem, rapaz?

Tudo bem, professora, eu consegui responder à professora, Obrigado, avoinha.

a professora voltou para o seu lugar. em pé. a bolsa aberta

Neinho, ocê qué escutá a história do Josino?

prefiro qualquer assunto de conversa e não ter atenção nos acontecimentos fora do rocinante, Se avoinha quer muito contar...

Vô contá pra ocê fica entretido... O preto Josino foi enforquilhado numa das árvore da praça. Onde, num dia qui tá pra chegá, vão colocá um tambô gigante, maió qui tamanho de gente.

Já vem avoinha com adivinhação. Vão colocar um tambor, por quê?

Pra num deixá deslembrá as dô dos pretu, tempo qui pretu num era gente, era coisa com dono.

Avoinha, nenhum tambor é tão grande que vai fazer ouvir quem não quer escutar.

Ninguém nasce envenenado... odiá é coisa qui se aprendi, neinho. Tem carecimento de ensiná o amô, fazê os odiento minguá. É lição qui embeleza a vida.





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