domingo, 1 de junho de 2014

Lendas Indígenas Brasileiras - 01

A Grande Chuva




Walmir Ayala



A culpa foi do quero-quero.

Quero-quero é um passarinho que tem lá no sul, engraçado, de perna fina e alta, cinzento, e cuida de casa feito cachorro. Pois o quero-quero gritou tanto noite a dentro, fez tanto barulho na casa do gaúcho, que assustou o dia. O dia resmungou:

- Não entro mais no mundo...

E se meteu com o Sol e o céu azul lá longe atrás da luz, numa colônia de férias com o Negrinho do Pastoreio e Nossa Senhora sua madrinha. Então a noite ficou suspensa, furiosa e profunda:

- Este quero-quero me paga.

Passou-se o tempo. E a noite era tão escura que os olhos de todos os animais foram crescendo e eram como faróis no escuro, e ninguém dormia nem falava nem cantava. Todos esperavam o dia que vinha.

O quero-quero teve que fugir, pois todos os animais da floresta queriam castigá-lo. Andou noite e noite, escuro e escuro, no sem-fim da treva até que um dia entrou numa toca pensando:

- O fogo mora numa caverna, vou encontrá-lo e inventar um sol, e o dia será meu escravo.

Acontece que o quero-quero entrou foi na cova da Boiguaçu, cobra grande comedora de fogo, que dormia há mais de dois mil anos. Entrou e gritou Quero-Quero! Quero-Quero! A Boiguaçu acordou rugindo:

- Quero luz, quero luz...

O quero-quero fugiu espavorido, dando-se conta do que fizera. E a grande serpente grossa como um jacarandá deslizou pela floresta comendo os grandes olhos de todos os animais. Foi um pânico enorme na floresta.

Em cima de uma desgraça outra. Tudo por culpa do quero-quero que continuou fugindo, sem destino e sem sossego. Até que um dia, cansado e triste viu na beira de um lago o casco verdoso de uma velha tartaruga. As tartarugas eram sábias, viviam pacientes vendo e ouvindo tudo, sem falar, apenas aprendendo. O quero-quero contou sua desdita e a tartaruga aconselhou:

- Vamos falar com a chuva, tenho uma ideia.

O quero-quero subiu no casco da tartaruga e nadaram lago a dentro. Bem no centro do lago havia uma escada de cristal, e lá no fundo um jardim de algas, no meio do jardim um esguicho de água. A tartaruga falou:

- Aquela é a chuva.

O quero-quero chegou para a chuva e contou sua desdita, toda a desgraça que, sem querer trouxera ao mundo. A chuva ouviu tudo depois falou com voz fininha:

- E o que queres agora?

- Falar com o dia para que ele volte.

- Posso te levar lá, mas o mundo sofrerá muito ainda com minhas águas, e tu não poderás voltar.

- Concordo em não voltar. Precisamos acabar com a noite e com o boiguaçu.

- Então vamos.

Disse assim a chuva e começou a engrossar aquele esguicho. Logo era uma cachoeira, um jorro forte que se elevava e inundava tudo. E o quero-quero ia carregado por aquela força, para o alto, sempre mais para o alto. A inundação no mundo foi terrível, morreu a metade do reino animal.

Mas o quero-quero queria falar com o dia. E chegou do outro lado da Lua, e viu o dia repousando sobre nuvens de todas as cores. E pediu ao dia:

- Dia volte ao mundo.

- Como ousas vir aqui, pássaro importuno?

- O dia está perdido se tu não voltares, ó dia!

- Quem não vai voltar serás tu, quero-quero. Qualquer ser vivente que atravessar para o outro lado da Lua nunca mais regressa.

- Eu sabia, a chuva me contou.

- Mesmo assim, vieste?

- Eu preciso salvar o mundo que se perdeu por minha causa.

O dia olhou com simpatia para o pequeno quero-quero e disse:

- Isso merece atenção. Teu sacrifício não pode ficar perdido. Voltarei.

No mesmo momento fez um sinal, e as estrelinhas arrumaram duzentas malas do dia, com luz de diversas qualidades, e mais o crepúsculo e a aurora, e toda a corte do dia pôs-se em movimento... 

A chuva já havia voltado. O dia fez caminhar sua luminosa caravana em direção à Terra. Quando os primeiros raios de luz aclamaram o mundo a chuva secou, os animais agradeceram a Deus, e a boiguaçu voltou para sua furna, farta e fatigada, para mais mil anos de sono. Tudo resolvido... 

O quero-quero ficou do outro lado da Lua, e contam que foi muito feliz. De nuvem em nuvem cantou seu quero-quero! Até que o Negrinho do Pastoreio o levou para o seu campo celeste onde tudo pode ser como é, e a felicidade e o próprio ar que se respira para sempre.


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Ayala, Walmir
            Moça lua e Outras lendas – Lendas indígenas brasileiras
                        Ediouro, Grupo Coquetel – Coleção Edijovem

O Rio Grande do Sul, que enriquece o folclore brasileiro, tendo como carro-chefe de suas lendas a do Negrinho do Pastoreio, foi encontrar na cultura indígena a evocação de mitos que revelam a mensagem singela, tenra e pura da imaginação primitiva, como o prova esta coletânea organizada por Walmir Ayala, um dos nossos mais festejados escritores da atualidade.


Walmir Ayala

Nasceu em Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, em 4 de janeiro de 1933. Faleceu no Rio de Janeiro, em 28 de agosto de 1991. Publicou seu primeiro livro em 1955, ainda em Porto Alegre, viajando no ano seguinte para o Rio de Janeiro. Autor de setenta livros, nos gêneros de poesia, literatura infantil, romance, diário, ensaio de arte, contos, teatro e tradução. Seu romance de maior sucesso, À beira do corpo (1964), conquistou o público e a crítica ao longo dos anos. 

A Beira do Corpo







Moça Lua e Outras Lendas






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