domingo, 29 de junho de 2014

As mãos

Ensaio 05AB

baitasar

Naquela cama tem um menino, sobre o menino um moço, sobre o moço uma mulher. Helga acaricia o moço deitado em sua cama. Molhado. Desliza em seu corpo estendido uma tolha umedecendo com as águas de Sèzar. Suave e delicadamente. Beija os pés, depois os joelhos. As coxas. Sente pequenas sacudidelas da carne que ressuscita. Sorri. Os galhos daquela grande árvore balançam contra o vento. Agitam-se para resistir, gritam os descuidados. Blasfêmia. É o antegozo da calmaria, a dor antemão da espera. Os ajustes que provocam nas profundezas as raízes. O aviso de que seja o que estiver por vir, elas estão cravadas firmes em nossas entranhas. A ventania só as fará balançarem. Irá fazer voarem as folhas que precisam tombar para o nascimento dos brotos. Quando as ventanias se aproximam antevejo além da morte o aparecimento de outra vida na mesma vida.

Ela continua secando os galhos daquele moço de águas paradas e raízes fundas, esperando contagioso e aborrecido a ventania. Pede para que se vire. Ele obedece. Escorrega as mãos nas costas do moço. As unhas rasgam as resistências e a ventania agita os galhos mais tenros. Em uma das mãos a toalha desliza de sacanagem uma grande aventura. Uma toalha que obedece a mão engalfinhada naquela luta de atração e retração e retensão. A outra mão não para. Continua rasgando as costas do moço. Coitado, parece que foi açoitado. Cicatrizes sublimes. Profundos e invisíveis riscos em Sèzar. Inclina-se e beija-lhe a nuca. Um beijo molhado e perfumado como as águas da mulher. A árvore se agita. Os ventos circulam. A mulher sente quando a raiz se desinquieta e se enfia na terra procurando o alimento para os brotos.

Pede para que se revire. Ele volta.

Ela está erguida sobre o homem. Os joelhos dobrados. Um em cada lado do bosque. Olham-se. Sorriem. O moço não está mais assustado. Está sendo transformado. Um bom trabalho, diz e sorri para si mesma, quem sabe o começo de uma obra-prima. Quer encantar o menino com pequenos movimentos, enxotar a dor do moço. Oferecer o seu pequeno feitiço, sem decoro ou decência.

Ela lustra o próprio corpo. Os joelhos dobrados. A toalha raspando a pele. A alegria no coração. Não quer educar. Não quer ensinar. Quer ser a cura. Quer desejar. Não quer adoecer pela indiferença do não-desejo. Escolhe o arrombamento da quietude morta. Tem medo da prostração indiferente que se esconde em fazer da agitação o não desejo da paixão. Escolhe a dor de desejar. E se mostra.

O moço não lhe tira os olhos. Não fecha os olhos, tem medo da ausência. A ausência é a dor que não suporta. Desde menino foi ensinado não desejar, não querer muito. Aprendeu a ficar indiferente a dor. O inimigo está fora, nunca estará dentro dele. Enquanto conseguir manter uma distância confortável das paixões e das fantasias imagináticas a realidade será apenas realidade, se nublada ou ensolarada, tanto faz, não depende dele. Um menino conformista. Deseducado para o mundo que talvez não acabe.

Queria um pai para conversar. Pedir ajuda. Bobagem, um pai não fala dos seus romances clássicos nem dos enredos obscenos das suas novelas, talvez lhe indicasse livros. A educação dos livros. Ansiava as palavras, chegam mais rápido e mais perto do seu coração. Mas, ele mesmo, é um analfabeto radiouvinte. Não aprendeu a escutar as maravilhas e os decibéis da paixão desejosa. Os engasgos e a rouquidão das confissões. Conseguiu fugir do ódio, mas não escapou da dor na prostração indiferente. Tem muitos livros explicando o vaivém, simplificando a ereção. A mão. O objeto que está longe. A ejaculação. E a culpa.

Livros não esclarecem coisas mais simples, por exemplo, o que Sèzar faz com as mãos? Ele está estendido entre os joelhos dobrados da mulher. Sente o pequeno monte, os pelos crespos roçam o bojo da sua cavidade abdominal, um rochedo. Está grávido. Tem a vida dentro de si. Sente orgulho da cinta larga dos seus músculos. O envaidecimento da sua juventude. A prontidão espontânea. E não sabe o que fazer com as mãos. Nem sabe quando usar as mãos. Tem medo de usar as mãos com medo e se mostrar todo: das mãos aos pés um garotinho em cima da cama. Que também já esteve embaixo da cama. Os adultos fazem tantas coisas escondidas. Coisas secretas. Sussurram silêncios solitários. E em uma dessas coincidências da vida, no único dia que deveriam espionar embaixo da cama, esqueceram. E o menino está ali


Quer me tocar? pergunta num sussurro

Quero, responde de imediato, mas prefiro esperar. Escolheu a dor que faz esperar. Demorar.

Entra pela janela a vivacidade e o divertimento de contar as estrelas. Foi assim que aprendeu a contar


Eu contava as estrelas, confessa outro segredo.

Depois aprendeu as leituras com as estrelas, cada uma com um nome conhecido. No início dessa aventura de batizar cada uma das estrelas, pensou nos amigos. Uma estrela, um amigo. Não tinha tantos amigos. Não tinha nenhum amigo. Não iria funcionar

Por que o mocinho não me toca?

Ele não responde. Mas ela sabe que ele não iria desistir. Ficava horas deitado na escuridão do seu quarto observando as estrelas, procurando formas, fazendo contornos. Apontava o dedo para uma das estrelas e ligava os pontos, um a um. Desenhava cadeiras, mesas, quadros, bolas, mas o que mais admirava eram os seios que brilhavam pendurados no céu de estrelas. Muitos seios. Muitos. Tamanhos e formas infinitas. Um infindo da eternidade. Sinuosos, curvos, maiores, menores. O coração. Dois seios são um coração

O prazer precisa da dor para existir, esperar é um bom exercício de disciplina, ele tenta lhe explicar suas teorias

Ela para a toalha. É tão prática. Olha para o moço entre suas pernas. Está séria, querendo entender. Ele está sério, tentando adivinhar as letras que consegue desenhar. Não são tantas letras para tantas estrelas. Decide que precisa juntar as estrelas para usar todas. E assim, foi juntando estrelas até ter o seu nome entre as estrelas. Os exercícios da caligrafia com a ponta dos dedos na Via Láctea o atraiam bem mais que os exercícios com a ponta do lápis no papel.

Desvia o olhar do quadro de estrelas, tenta ensinar

Não é dor física, Helga. É a dor de tomar uma decisão.

A mulher lhe sorri. Disfarça que o compreende, elogia sua coragem para resistir àquele ataque de sacrifícios. Menino ou moço, não são muito diferentes, gostam de serem elogiados por sua coragem e estupidez 


Meu Deus, eu amo como ele respira, e depois?

Não foi feita para ficar esperando o sono chegar, ser dominada pela desistência, se for domada que seja pela exaustão do esforço para entender o moço. Não gosta der engabelada

Sèzar... você é feliz com essas suas teorias?

Ele não responde. Ela continua. Ela não para.

É contra sua vontade estar nessa cama?

Ele não responde. Quer as estrelas. Não quer palavras, prefere o palavreado das mãos, pelo menos por enquanto prefere o palavreado das mãos. A fantasia das mãos

Me dê as suas mãos.

Ele reponde... obedecendo.

Ela examina as mãos do menino

Hum... hum..., inclina-se até a sua mesinha da cabeceira. Abre a gavetinha com seus dedinhos, pega uma tesourinha


Achei.

Corta as unhas do menino. Bem curtinhas. Quase na carne.


____________________

Leia também:

As alucinações desatadas da jaula
Ensaio 04AB

Nenhum comentário:

Postar um comentário