terça-feira, 28 de outubro de 2014

A Queda

Albert Camus



Camus, Albert, 1913 - 1960
         A queda / Albert Camus; tradução de Valerie Rumjanek. - 6ª edição -
Rio de Janeiro; BestBolso, 2014.



Um advogado francês faz seu exame de consciência num bar de marinheiros, em Amsterdã. O narrador, autodenominado "juiz-penitente", denuncia a própria natureza humana misturada a um penoso processo de autocrítica. O homem que fala em A queda se entrega a uma confissão calculada. Mas onde começa a confissão e onde começa a acusação? Ele se isolou do mundo após presenciar o suicídio de uma mulher nas águas turvas do Sena, sem coragem de tentar salvá-la. Camus revela o homem moderno que abandona seus valores e mergulha num vazio existencial. 






'Deliciosa casa, não acha? As duas cabeças que vê lá são de escravos negros. Uma insígnia. A casa pertencia a um traficante de escravos. Ah! Não se escondia o jogo, naqueles tempos. Tinha-se audácia, dizia-se: " Aí está, faço tráfico de escravos, vendo carne negra." Já imaginou alguém, hoje em dia, trazendo ao conhecimento público que é este o seu trabalho? Que escândalo! Parece que estou ouvindo meus confrades parisienses. Como são irredutíveis nessa questão, não hesitariam em lançar dois ou três manifestos, talvez até mais! Pensando bem, eu juntaria minha assinatura às deles. A escravatura, ah, isso não, nós somos contra! Que se seja obrigado a instalá-la em sua casa ou nas fábricas, bom, é a ordem natural das coisas, mas vangloriar-se disso é o cúmulo.'
p.35







'Devo reconhecer humildemente, meu caro compatriota, que fui sempre um poço de vaidade. Eu, eu, eu, eis o refrão da minha preciosa vida, e que se ouvia em tudo quanto eu dizia. Só conseguia falar vangloriando-me, sobretudo quando o fazia com esta ruidosa discrição, cujo segredo eu possuía. É bem verdade que eu sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberado em relação a todos pela excelente razão de que me considerava sem igual. Sempre me achei mais inteligente do que todo mundo, como já lhe disse, mas também mais sensível e mais hábil, atirador de elite, incomparável ao volante e ótimo amante. Mesmo nos setores em que era fácil verificar minha inferioridade, como o tênis, por exemplo, em que eu era apenas um parceiro razoável, era-me difícil não acreditar que, se tivesse tempo para treinar, superaria os melhores. Só reconhecia em mim superioridades, o que explicava minha benevolência e minha serenidade. Quando me ocupava dos outros, era por pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia em meu favor; eu subia um degrau no amor que dedicava a mim mesmo.' p.38







'Olhe, está chovendo de novo. Quer parar embaixo desta marquise? Bem. Onde é que eu estava? Ah, sim, a honra! Pois bem, quando me voltou à lembrança essa aventura, compreendi o que ela significava. Em resumo, meu sonho não resistiria à prova dos fatos. Eu havia sonhado, isto agora ficava claro, em ser um homem completo, que se fizesse respeitar tanto em sua pessoa como em seu ofício. Meio Cerdan, meio De Gaulle, por assim dizer. Em suma, queria dominar em todas as coisas. Eis o motivo pelo qual eu me dava certos ares superiores e recorria a todos os requintes para mostrar antes minha habilidade física que meus dotes intelectuais. Mas, depois de apanhar em público sem reagir, já não me era possível acariciar essa bela imagem de mim mesmo. Se eu fosse o amigo da verdade e da inteligência que pretendia ser, que me importaria essa aventura já esquecida por aqueles que a haviam presenciado? Apenas acusaria a mim próprio de me haver irritado à toa e também, uma vez irritado, de não ter sabido enfrentar as consequências de minha raiva, por falta de presença de espírito. Em vez disso, ardia de vontade de me vingar, de bater e de vencer. Como se meu verdadeiro desejo não fosse o de ser a criatura mais inteligente ou mais generosa da face da Terra, mas apenas de bater em quem eu quisesse, de ser, enfim, o mais forte, e da maneira mais elementar. A verdade é que todo homem inteligente, como o senhor bem sabe, sonha em ser um gângster e em imperar sobre a sociedade unicamente pela violência. Uma vez que isso não é tão fácil como a leitura de romances especializados pode fazer crer, envereda-se geralmente pela política e corre-se para o partido mais cruel. Que importa, não acha, humilhar o próprio espírito, se dessa forma se consegue dominar o mundo inteiro? Eu descobria em mim agradáveis sonhos de opressão.' p.43

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