quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A Queda - 2

Albert Camus



Camus, Albert, 1913 - 1960
         A queda / Albert Camus; tradução de Valerie Rumjanek. - 6ª edição -
Rio de Janeiro; BestBolso, 2014.



Um advogado francês faz seu exame de consciência num bar de marinheiros, em Amsterdã. O narrador, autodenominado "juiz-penitente", denuncia a própria natureza humana misturada a um penoso processo de autocrítica. O homem que fala em A queda se entrega a uma confissão calculada. Mas onde começa a confissão e onde começa a acusação? Ele se isolou do mundo após presenciar o suicídio de uma mulher nas águas turvas do Sena, sem coragem de tentar salvá-la. Camus revela o homem moderno que abandona seus valores e mergulha num vazio existencial. 












Chegou um dia em que não aguentei mais. Minha primeira reação foi confusa. Já que era mentiroso, iria manifestá-lo e atirar minha duplicidade na cara de todos aqueles imbecis, antes mesmo que a descobrissem. Intimado pela verdade, responderia ao desafio. Para me precaver contra o riso, imaginei então lançar-me à zombaria geral. Em suma, tratava-se ainda de fugir ao julgamento. Queria colocar do meu lado os que riam ou, pelo menos, colocar-me ao lado deles. Pensava, por exemplo, em dar empurrões em cegos na rua, e, pela alegria surda e imprevista que isso me proporcionava, descobria até que ponto uma parte de minha alma os detestava: planejava furar os pneus das cadeiras dos aleijados, e gritar "Trabalha, vagabundo" debaixo dos andaimes onde estavam os operários, esbofetear bebês no metrô. Sonhava com tudo isso e nada fiz ou, se fiz alguma coisa parecida, esqueci. O certo é que a própria palavra justiça me deixava fora de mim. Eu continuava, forçosamente, a utilizá-la em minhas defesas. Mas vingava-me ao amaldiçoar publicamente o espírito de humanidade; anunciava a publicação de um manifesto denunciando a opressão que os oprimidos faziam pesar sobre os homens de bem. Certo dia em que comia lagosta no terraço de um restaurante e um mendigo me importunava, chamei o dono para expulsá-lo e aplaudi com estardalhaço as palavras desse justiceiro: "Você está incomodando", dizia ele. "Enfim, coloque-se no lugar dessas senhoras e desses senhores!" (p.70)





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