domingo, 30 de agosto de 2015

Teatro Pedagógico: a poesia da sobrevivência

Parábolas de uma Professora



a poesia da sobrevivência


baitasar e paulo e marko



já se passaram seis horas de algumas tentativas solitárias e muitas frustrações. o sinal já espalhou de maneira impressionante sua voz estridente, desatou pequenos e alegres passos pelo portão, outros passantes se dirigem resignados à geladeira, cafeteira, lixeira, quadro de avisos. parecemos perdidos. olho o relógio pela quinta vez em trinta minutos. o tempo se arrasta ou é arrastado. a vida a reboque do portão para dentro. sinto-me insuportavelmente vazia. mais uma terça-feira. mais uma reunião me espera. antes, cafezinhos, chás, bolos e chimarrão. procuro o olhar que nasce deste mesmo parto de querer mudar. o olhar da esperança de fazer diferente em uma única vez. desaninhar da indiferença

passo pelo pequeno briquitar do corredor em cima da fórmica verde. o templo dos tamancos e bolsas. vou fumar. acendo um cigarro. dou uma espiada ao nada, apenas as fatias de interesses para muita conversa. as palavras doces e vazias pulam e repenicam, não se fazem na discussão, não se alimentam, não têm fome. futebol ou bonecas. sigo perdida entre a bola e o verniz. duas mortes. tragédia

continuo o que fui. não quero desistir, às vezes, penso em desistir

minha vontade é reencontrar o olhar que parece soltar um grito ferido, além do caminho coberto pelo apertado das compras, um lugar alheio às confidências perdidas, esforço estéril de falar e ninguém escutar além das queixas descontentes. conversamos sobre livros, trocamos ideias e olhares, as coisas da vida, os alunos. viajo em suas palavras tentando vislumbrar segredos, penetrar no seu mundo escondido, uma caverna de sonhos ou medos, quem sabe apesar dos pesares um buraco de paixões

não o encontro

termino meu cigarro e entro no abrigo. queixumes, silêncios, folhinhas (quase sempre as mesmas) bancárias. encontro o marko, sua voz vem de longe, envolve meus pensamentos, desacata certezas acomodadas. ele se lança pacientemente na tentativa de discutir o mundo. não consigo me colocar na discussão, fico alheia. tenho mais de vinte anos pensando educação a partir de diferentes espaços: sala de aula, sindicato, partido político, diretório acadêmico e dirigente institucional, certamente, poderia contribuir, como muitas vezes o faço, mas me sinto insuportavelmente vazia, insurgentemente trágica. pronto, repeti esse sentimento de tragédia

saio para refumar. novamente refumo

finalmente, o vejo. abraço seu sorriso, o repertório da sua ternura, suas reticências. o chamam um recluso casmurro. senta em uma pedra e me oferece um chimarrão, agradeço

A qual destino deveria me entregar, Anita?

não respondo, não quero responder, quero ser o alimento, a comida, a sede, bebida aos goles por essas mãos em minhas coxas lisas, me salvando de toda essa confusão que é viver consertando à vida. quero a recordação das mãos, boca, cheiro, tudo nosso

Minha tentação é fugir, escapar de fininho.

respondo que a fuga é uma chance fugaz, um apetite morno que é possível resistir. resisto ao desejo de ficar pendurada em seu pescoço. quero a infinitude do abraço manso e descansado. mudo o rumo da minha voz para impor silêncio, decretar uma distância razoável, depois pergunto

Como será que os alunos e alunas me veem? Patrão ou João? Senhoria ou Maria?

Com benevolência. me responde

outro sorriso, outro chimarrão

a benevolência, clemência e compaixão situam a nossa tristeza humana, mas não bastam. termino meu cigarro. não, ele é que termina comigo. censuro-me. cedo às obrigações do cotidiano que me abraça e sufoca. termino o chimarrão, Já volto.

e entro no abrigo. o confidente do chimarrão é o meu desejo da alma, a negação do meu estado de viver só, magoada por não viver inteira. precisei sair. ia não pedir para fugir dali. para sempre. um resto de vida inteira, agora

encontro a camilla, cabelos curtos e cacheados, ás vezes, loira, outras nem tanto, quando esquece a tintura e o branco na raiz aparece fingindo que é branco, o rosto magro, o olhar suave e alegre, a esperança conformada com o tempo que passa

Não concorda, Anita?

Com o quê?

Vivemos no país das bolsas e das cotas, fazem filhos e depois querem uma ajudinha. Não pensam, não se planejam, têm mais é que se danarem!

não tenho tempo para responder, mas a ofélia não se constrange de continuar com o tiroteio, atira em nossas caras

Os pais deveriam voltar a sofrer na fila das matrículas, as palavras brotam enérgicas da sua raiva, só assim para valorizarem a chance do filho estudar.

Ofélia, pensa assim: pelo menos na fila não estão fazendo filhos.

essa é acemira, mais conhecida entre os subalternos da corporação, como “bruxa, mas gostosa”. é desenhada na maioria das teias imaginárias, faz a personagem da mulher invisível e nua. não consegui abrir a boca, não quis. elas ficarão pelo caminho com sua sordidez e preconceitos. não desistiremos da luta pelo preconceito e dignidade humana

Acho que poderíamos fazer uma campanha séria sobre o tema: A Paternidade e a Maternidade com Responsabilidade, escutamos em silêncio, a camilla é do bem, mas não tem força, e o bem que não tem coragem fica apenas na teoria, olha em torno de si, tem a intenção, mas falha no entusiasmo para avançar sem a aprovação explícita do baixo clero, não luta de lança firme na mão

Não é mais fácil esterilizar?

a acemira consegue com poucas e más palavras provocar a ira e o sorriso, mas jamais a indiferença, Filha da puta! pelo silêncio no abrigo e os olhos fixados em mim, o pensamento saltou da garganta

Acemira, isso é a solução final. — a inócua camilla, abelha pequenina, permite que lhe tirem impunemente o mel, o cheiro fétido das fossas escondidas espalha-se, sufoca. peço socorro ao marko, o pai da educação socialista que não sabemos e nem temos, não está no abrigo, sinto falta da sua calma indestrutível

Querida, nascem nessas vilas de papelão e lata só para sobreviver... não tem solução amorosa. E o desfecho é o nosso colo, com café, almoço e muita bagunça. Isso aqui não é restaurante. A pobreza precisa controle, a imbecil da ofélia não quer respostas, tem a convicção do diagnóstico e a receita é servida com indiferença

Não acredito no que estou ouvindo, a embasbacada camilla balança a cabeça como se fosse preciso mostrar que não concorda, a única saída para os pobres é a morte?

Camilla, essa gentinha brota como musgo na pedra, a iníqua acemira continua batendo, a adversária cambaleia nas cordas, o nocaute está iminente. ela está pronta ter o seu braço erguido como a absoluta vitoriosa daquela discussão tola e cruel, mas que marca os espaços do imobilismo daquele cotidiano amarrado nos punhos e pés. sinto pena por reconhecer a minha indiferença como uma fuga amornada da vontade de brigar

Mas não são apenas as meninas pobres que estão engravidando...

isso foi dito por mim, mas acemira não se intimida

Tudo bem, mas essas meninas têm pais que dão um jeito.

Fazem a filha abortar?

a camilla voltou à discussão

Claro que não!

a doente de imbecilidade ofélia acredita que tem muito mais para dizer em nome de algum deus brigalhão, Criam todos juntos.

eu não consigo enxergar as coisas assim, como as ofélias. como se o destino das pessoas já estivesse traçado e não restasse outra coisa que vivê-lo

Pensar em esterilizar mulher pobre parece campanha do canil da cidade. Para vocês a pobreza atrapalha a escola, estorva as ruas, atravanca os cinemas, perturba a cama, restaurantes se desembaraçam dos restos e os lixos ficam revirados...

Qual a solução, pergunta a desafiadora acemira, ela deixa escapar um tênue sorriso, imperfeito, quase invisível, como uma cilada na espreita

Não tem uma solução apenas, mas uma delas passa aqui, por todos, a dormideira camilla avança, quer subir no cavalo encilhado, mas tem medo do bicho xucro, fica com as frases prontas da retórica sem veemência, panfletária, precisamos discutir o inchaço das cidades pela concentração da posse e uso das terras, por exemplo.

Isso é ingenuidade! todos se voltam para o samuel, O futuro na vida das pessoas é hoje, não se aposta no amanhã, não podemos, colhemos o que for possível pelo caminho sem freios ou arreios.

a poesia na vila, na beirada do córrego com os mosquitos, as moscas, doenças, cheiros do desamor, cedeu seu lugar à sobrevivência
 



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