domingo, 10 de abril de 2016

4.O Estrangeiro: Na pequena morgue - Albert Camus


Albert Camus


Capítulo 1


4. Na pequena morgue 




Na pequena morgue ele confiou-me que entrara no asilo como indigente. Como se sentia ainda válido, oferecera-se para o lugar de porteiro. Observei que, no fim de contas, era também um pensionista. Disse-me que não. Tinha já reparado na forma como se referia a «eles», aos «outros», e mais raramente aos «velhos», falando de pensionistas, alguns dos quais não eram mais velhos do que ele. Mas não era a mesma coisa, evidentemente. Como era porteiro tinha direitos sobre os outros, em certa medida. 

A enfermeira entrou nesta altura. A tarde caíra muito depressa. Muito depressa, a noite escurecera, por detrás da vidraça. O porteiro manejou o interruptor e eu fiquei por momentos cego pelo aparecimento súbito da luz. Convidou-me para ir jantar ao refeitório. Mas eu não tinha fome. 

Ofereceu-se, então, para me trazer uma chávena de café com leite. Como gosto muito de café com leite, aceitei, e ele voltou alguns instantes depois com uma bandeja. Bebi. Tive então vontade de fumar. Mas hesitei, porque não sabia se o podia fazer diante da mãe. Pensei, e concluí que isso não tinha importância nenhuma. Ofereci um cigarro ao porteiro e fumamos os dois. 

A certa altura, disse-me: "Não sei se sabia, mas os amigos da senhora sua mãe vêm também velar. É o costume. Tenho que ir buscar cadeiras e café." Perguntei-lhe se não se poderia apagar uma das lâmpadas. O reflexo da luz nas paredes brancas cansavame. Respondeu-me que não era possível. A instalação fora assim montada: ou tudo ou nada. A partir daí, não lhe prestei muita atenção. Saiu, voltou, arrumou as cadeiras nos seus lugares. Numa delas, empilhou as chávenas em volta de uma cafeteira. Depois sentou-se em frente de mim, do outro lado da mãe. A enfermeira estava ao fundo, de costas. Não via o que ela estava fazendo. Mas, pelo movimento dos braços, parecia-me que fazia malha. A temperatura era agradável, o café confortara-me e pela porta aberta, entrava um cheiro de noite e de flores. Creio que adormeci por alguns instantes. 

Acordei, porque alguém roçou por mim. Por ter fechado os olhos, a sala pareceu-me ainda mais branca. Na minha frente não havia uma única sombra e cada objeto, cada ângulo, todas as curvas se desenhavam com uma pureza que me fazia mal aos olhos. 

Foi nesse momento que entraram os amigos da minha mãe. Ao todo, eram uns dez, e passavam em silêncio, nesta luz tão crua. Sentaram-se sem que uma só cadeira rangesse. Eu via-os como nunca vira ninguém até então e nem um pormenor das suas caras ou dos seus fatos me escapava. Não os ouvia, no entanto, e custava-me a acreditar que tivessem realidade. Quase todas as mulheres usavam um avental e o cordão que as apertava na cintura, mais lhes realçava a barriga inchada. Nunca havia notado que as barrigas das mulheres velhas eram tão grandes. 

Os homens eram quase todos muito negros e traziam bengalas. O que me impressionava nas suas fisionomias, era que eu não lhes via os olhos, mas unicamente uma luz sem brilho no meio de um ninho de rugas. Quando se sentaram, a maioria deles olhou-me e abanou a cabeça embaraçadamente, os beiços comidos pelas bocas desdentadas, sem que tivesse percebido ao certo se me estavam a cumprimentar, ou se era apenas um tic. Julgo que me cumprimentavam. Foi nesse momento que reparei que estavam todos em frente de mim, balançando as cabeças, em volta do porteiro. Por instantes tive a impressão de que estavam ali para me julgar. 

Pouco depois, uma das mulheres começou a chorar. Estava na segunda fila, escondida pelas outras, e eu não a via muito bem. Chorava dando pequenos gritos, regularmente: parecia-me que nunca mais pararia de chorar. Dava a idéia que os outros não ouviam. Estavam encolhidos, tristes e silenciosos. Olhavam o caixão, a bengala ou qualquer coisa, e não tiravam os olhos desse único objeto. A mulher continuava a chorar. Eu estava muito admirado porque não a conhecia. Gostaria de não a ouvir mais. Não o ousava dizer, porém. O porteiro debruçou-se sobre ela, falou-lhe, mas ela sacudiu a cabeça, disse qualquer coisa, e continuou a chorar com a mesma regularidade. O porteiro veio então para o meu lado. Sentou-se ao pé de mim. 

Ao fim de um longo momento, informou-me, sem me olhar: "Era muito amiga da senhora sua mãe. Diz que era a única amiga que tinha e que agora, fica sem ninguém".





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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro


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