domingo, 3 de abril de 2016

Histórias de avoinha: onde ocê tá, Fumaça?


Ensaio 77B – 2ª edição 1ª reimpressão


onde ocê tá, Fumaça?


baitasar


o rocinante obedeceu o comando abalado do joão torto e o 69 fez uma curva fechada qui balançô os rebite da lata véia. assustô todo mundo qui tava pendurado e desacomodô os qui tava sentado. avoinha levô um tempinho inté voltá prus entendimento daquele empurra-empurra. oiô pru banco do cobradô. lugá de ficá do seu neinho. ele num tava. fechô e abriu os óio treis veiz pra acordá de pronto. voltô do desmaio, mais ele num tava. ela assustô e gritô, Neinho!

um grito pra acordá tudo qui já morreu. num teve resposta e repetiu repetiu, Fumaça!

nada. ela num tinha resultado com os grito. o seu neinho num tava onde tinha qui tá. a janela do rocinante tava aberta. oiô na volta. todos qui tava pendurado na barriga do rocinante tava com as costa voltada pras costa dum otro. todos sentado na barriga do rocinante tava com os óio na nuca dum otro sentado na frente, chamô com repetição, Venha duma veiz, Fumaça!

ninguém respondia nem oiava. ninguém parecia vê qui o seu neinho virô desaparição, ele num tava onde queria tá. mais no fim das conta feita, quem é qui tá no lugá qui escoieu qui qué tá? quem tem grito pra gritá qui num qué tá no lugá qui tá? quem é qui tem coragem pra voá acima do nevoêro de gente e das montanha de lamento e gemido? quem tem descaramento misturado na valentia pra insistí qui o lugá qui tá é um lugá de num tá? o qui trás pra razão quando o ódio, uma invencionice dos farsante, toma o lugá dos espritu, Onde tá perdido esse neinho?

Fumaça! Fumaça!

Tô aqui, siôinho...

Liberata!

depois dos grito, a preta entrô no quarto do dono de tudo. num tava apressada. já tava pronta dotro lado da porta, bem antes, esperando os grito, Bão dia, siôinho.

num ganhô resposta. nunca tinha resposta nem enferrujada qui fosse. num esperava tê resposta, Bom dia, Liberata, mais teve. parô assustada logo depois qui entrô. num retrucô. sempre esperava rudeza do dono de tudo. oiava pru nada, aguardava licença pras limpeza da cama e do pinico. num tava cismada de sê usada pras sem-vergonhice indecente do siôinho pedro amado. faz munto qui ela tinha perdido os atrativo da carne, os chêro do feitiço e os dente da boca. num tinha mais a frescura e a leveza da brisa. parecia tê vida, mais era só um mormaço, os pé arrastado, os garrão rachado fundo, os braço aborrecido e perdido das vontade de abraçá, as vista moída. enxergava tudo piquinino e escutava pelas esquerda meió qui pelas direita. tava esfriando, desentendida com a vida

A negra cabinda quer vencer na vida de escrava ou prefere acabar como uma enxada enferrujada? Já vem chegando o seu tempo de perder a utilidade e ficar encostada em algum canto com pouco ou nenhum uso.

num retrucô. gostava de pensá as palavra. caminhô inté uma das janela e abriu um rasgo na escuridão. o chêro do pinico tava lhe ardendo os canto dos óio, Ei ei ei, pode parar! Ainda não estou pronto para a claridade do dia, o ardume descendo no nariz e entrando na boca. podre. fechô a claridade. queria esquecê daquela vida e vivê otra. escorregô no mijo e caiu sentada. num reclamô. o siôinho se preocupô em rí, Negra cabinda, ocê é um desastre, oiava a preta cabinda caída no chão moiado com os chêro da imundíce. nem toda podridão cai pru pinico

ela levantô sem um retruque ou gemido

Calma, Liberata! Ainda não estou pronto para o dia... o penico...

a escrava se dobrô na cintura purqui se dobrá nos joêio dava munta dô. arrastô a mão pru baixo da cama inté agarrá o pinico

Diga, siôinho. Quem gosta de levá vida com bofetada, pontapé, chicote e humiação?

no fim da purugunta ela agarrô o pinico e alevantô

Espera, lhe ordenô o dono de tudo, segure.

pedro amado tava com a bexiga grávida. alevantô seu pau ferro com a mão, alisava e suspirava, Chegue mais perto.

puxô a pele inté a ponta se mostrá e descarregô-se

encheu o pinico inté derramá nas mão da liberata, A negra cabinda fala de um jeito que parece desgostosa com o tratamento recebido em minha casa.

a preta liberata num podia tê descuido pra falá, mais tinha veiz qui o atrevimento do siôinho lhe provocava as palavra do desacato e a profecia com tempestade da previsão do tempo, sabia qui a bolsa de veneno qui a cobra tem na boca é o qui faz os dente perigoso. fechava a boca, as palavra qui queria saí num podia saí

desapareceu com o cubo nas mão. equilibrava as imundície da noite e os desprezo da manhã. as mão moiada

Volte logo!

o siôinho soltava as palavra como todo branco qui se diz dono de muntu pretu ou só da metade dum pretu, parecia tê bondade e retidão nas coisa dita, parecia amistoso, mais só parecia, tava carregado com as vaidade qui num qué enxergá nada além das vista no espêio, nada mais adiante qui o fingimento sonso das própria vontade, nada qui num fosse o seu conforto. o abismo do egoísmo enferruja a vida. num dava pausa pra pensá nos vício do egoísmo e do ódio. num pode sê justo quem tem escravo. num pode sê justo quem grita e humia. num pode sê justa a alegria arrogante e ensanguentada. os dono de tudo num qué sê justo, eles qué sê servido. eles precisa qui tudo fique assim pra sempre, o falso trabáio, a falsa escola, a falsa caridade, o falso suicídio, o falso abraço. a farsa da mão estendida. a farsa da lei qui num é cega e tem lado, lei apodrecida pelo tempo de maldade qui deu importância prus instruído e esqueceu dos destruído

liberata voltô sem o pinico. carregava nas mão uma bacia com água e dois pano branco. um em cada braço. o siôinho continuava no lugá qui ficô. esperando. a preta parô de frente. largô a bacia no chão

A sinhá Esmeralda já levantou, Liberata?

num retrucô. pegô um dos pano, moiô na água da bacia e apertô. tirô os excesso das água. agarrô o pau ferro piquinino e passô o pano umedecido. merguiô o pano nas água. torceu sem munta força e continuô a limpeza do piquininino. assim durmido parecia inocente, puro e virtuoso. amistoso. puxô a pele inté a carne rosada se mostrá toda pras limpeza

Tá esperando o siôinho pru café.

voltô o pano pras água da bacia. torceu o siôinho inté ele ficá com as costa nas suas vista. agarrô o pano sem torcê e fez o trajeto abaixo inté pra cima do fosso das duas bunda

Liberata, quando ocê morrer vou sentir falta dos seus cuidados.

ela num deu retruque. deixô ele esperando a resposta. sabia qui isso destrambeiava o siôinho, mais tava em segurança, dum jeito ou dotro ela já tinha passado do tempo de sê devorada na cama ou no chicote

Ninguém gosta de levá bofetada, pontapé, chicotada ou sê humiada.

largô o pano na bacia com água. agarrô o pano seco

Não sei. Acho que isso é fácil de encontrar, negro bom não existe, ela num dava retruque. ele num queria a verdade. ela sabia qui o siôinho tinha medo da verdade. ela vencia com a razão as emoção qui deixava escondida, mas não quero falar dessas coisas ruins. Quero lhe propor um negócio.

o siôinho se afastô inté as roupa qui liberata já tinha escoido e tava no cabidêro

Ainda num lhe enxuguei.

Não precisa.

a preta cabinda secô o chão e descarregô tudo na bacia. as marca do ódio num tinha como descarregá. num tinha como apagá as veiz qui foi marcada na cama do siô dono de tudo, um ferro em brasa qui se enfiô dentro das suas raiz. num tinha como despejá a repulsa e a malquerença. ele nunca se enfiô com o desejo da muié, sempre com o apetite de mastigá as carne. lição aprendida do pai, e, mais dia menos dia, havia de ensiná prum fiu, assim a maldade continuava de pai pra fiu. pra sempre

a preta cabinda liberata sabia reconhecê a enfermidade e o inferno do siôinho pedro amado. nunca ia ficá meió. nunca ia gostá da vida. num queria favorecê a vida

Siôinho Pedro, a cachorrada já acordô, as galinha já tá ciscando, os pretu já tá na roça. E a siá Esmeralda lhe espera pru café.

o siôinho pedro amado tinha acabado de entrá nas vestimenta do dia. foi inté a janela e abriu uma e otra. tava pronto. colocô as vista pra fora. o atarracado varandado recebia a luz intensa da manhã e filtrava uma brisa amena pru casarão. era só fechá as vista e sentí o aroma verde e copudo do arvoredo. o gramado em descida inté a beirada do rumorejo das água. farejava cada gosto qui tinha perfume. um pequeno paraíso

liberata esperava em pé. parada com a bacia no chão, os pano na bacia. as mão caída no chão. as canela preta agarrada nos garrão descalço nas tábua do assoaio. o trabáio insano já tava disparado

o siôinho dono de tudo voltô as vista pra preta, ele jamais ia deixá sua alma desabrigada daquela pirataria humana de roubo e sangue e canhão, farejava os destroço. a colheita de cadáveres era abundante. num ia pará sua cobiça. num ia curá sua ceguêra. pensava em si mesmo como um hôme prático. um exploradô qui conservava a vítima viva e presa, desatarraxava as muié e cortava as orêia dos teimoso. acostumô no meio da podridão da mesquinhez, Não queres saber sobre o negócio que estou te propondo?

Negócio?

tava curiosa, morria de vontade de purunguntá, mais num queria dá retruque de interesse ou de grande entusiasmo. o siôinho franziu o sobrecenho e voltô as vista pra fora, Isso, quero te oferecer uma banca na Praça do Mercado.

Uma banca?

o siôinho continuô com as costa pra ela e as vista pra fora do casarão. levô a mão no cavanhaqui. num tinha cavanhaqui. pensô qui tava na hora de mudá alguma coisa. alisô a pele macia do queixo, Na banca, vais poder vender hortaliças, legumes e aves. Tudo daqui das terras do arroio. Tu vais te ocupar dos serviços da quitanda. O que tu achas?

ela queria vê os óio do diabo, mais ele num se mostrava. só ele sabia a razão da oferta caridosa e amistosa e num dava conhecimentos dos plano feito. num contava. podia tá querendo se aliviá das culpa, se livrá das barbaridade feita, pensô liberata

sentiu um arrepiu pelo corpo. o medo precisava ficá falando sozinho. aquilo era uma novidade e a curiosidade brotava acompanhada do medo, E pra quem havia de vendê?

o dono de tudo virô a frente pra liberata, tava esquisito. parecia facêro, caloroso. o cabelo desgrenhado. parecia uma mosca impertinente voando em voltas

Isso é fácil, Liberata.

a preta continuô desconfiada. otra armadilha, pensô. num deu retruque pra cara fingida de cuidado. o siôinho pedro amado nunca teve jeito nem gosto pru remordimento da culpa, sempre fez o qui quis. voltô pru silêncio. tava munto desconfiosa. continuava com munto mais dúvida qui certeza dos bem-feito do siôinho. num conseguia descobrí os juízo e as cisma daquela conversa. um hôme secreto. tava cansada de seguí os aviso qui escutava desde piquinina: é meió dá comida prus cachorro qui sê mordida

O siôinho num vai tomá café?

sabia dos traquejo da vida qui a meió coisa é se acautelá dos cachorro quando eles num tá latindo purqui a mordida vem vindo. tava cansada. triste. cismada. num tinha mais o qui fazê além de sofrê calada. tava em ruína, num tinha luz dentro, num tinha clarão nem viveza fora, num tinha semente germinando na sua terra, as raiz morrendo. era uma muié da solidão. as terra qui tinha num quis sua semeadura. num era a montanha, num era o rio, era só o pó da terra qui a ventania se aprontava pra espaiá inté num restá nem desconfiança qui ela viveu

o siôinho desvirô-se

Liberata, até parece que ocê é de outro mundo. Vais vender para os mercadores e carregadores africanos, pequenos lavradores, vendedores da Villa, e para os portugueses!

a mentira e o descaso parecia qui sempre tava na boca do siôinho, acostumado de usá chicote e ameaçá com a morte. nunca aclarô as vontade. talvez fosse meió ela dá um ponto de fim na vida com um balaço, mais num tinha um balaço

Num sei se quero...

de uma hora pra otra, o branco malvado do chicote desapareceu e fez aparição o catavento dum otro branco. liberata sabia qui era encenação, carregava as marca pra prová as maldade qui ele escreveu no seu corpo. o siôinho atinô qui podia lhe vencê o titubeio, ela gaguejava com aquele oferecimento de dia de trabáio longe das imundícia

Tudo que tu vender, além do que precisar me oferecer ao fim do dia... é teu. Mas cuidado, se tu gastas mais do que ganhas vais ficar escrava das dívidas. E teus ganhos nunca serão suficientes.

um trabáio decente, alguma satisfação e ganho, ia tê alguma figura de reputação: a preta da quitanda das hortaliça

Num sei... num sei... o qui posso fazê com o qui vendê além da conta?

Não sei, isso é com ocê. Pode gastar tudo no teu gosto ou economizar para comprar a tua alforria. Vou continuar dando casa, comida e roupa lavada.

foi a primêra veiz qui liberata oiô pedro amado, ôio nos ôio, um atrevimento qui precisava tê e ele precisava sentí. as carta tava na mesa. a aposta tava alta. o coração da preta pulava. ela fechô a boca pra num perdê o peito. continuava aos pulo. descontrolado

Num vai sê fácil, foi as palavra qui conseguiu soltá, e a banca tumbém pode sê comprada, perguntô com o feitio de interesse pru futuro. a primêra veiz qui pensô podê acumulá riqueza

Não pensei nisto. E ocê, o siôinho fez parada de profecia, a boca continuô aberta, não acha que está muito apressada? Não esquece: aquelas que não usam o dom de servir é poque ainda não servem para o dom de viver. Nem começamos e ocê já quer comprar a liberdade e a banca. Acho melhor começar, depois ocê pensa o que vai fazer quando ficar rica.

aquilo fazia sentido pru siôinho dum jeito, fazia sentido pra liberata dotro jeito. ela nunca teve emprego, nunca teve escola. tava enfaixada, mais num ia se matá, preferia matá um qui otro branco. a voz do siôinho tava um zumbido. ele num queria se misturá, queria continuá dominando

Mais a banca pra tê ganho e proveito precisa tê duas quitandêra.

o siôinho caminhô dois ou treis passo. parô. caminhô. voltô. sentô. levantô. brincava de assustá ou acalmá as palavra. agradeceu prus espritu qui o seu tempo de despertá no siôinho a vontade de deitá tinha passado. ele num se agitava mais de vontade. o dono das palavra tinha levantado. caminhô inté a preta cabinda. o catavento girô pra trás

empurrô liberata de costas na cama. enfiô o pau ferro sem uma palavra ou agonia. num tinha contentamento. queria prová qui ela num tinha predileção. num tinha escôia entre as coisa horrível ou pavorosa. ele era o dono de tudo: das carne de gente, bicho ou pretu. nem entre duas coisa ruim ela podia escoiê

levantô as calça pingando

Não tenho mais escravas para lhe ajudar nos ganhos da banca, mas pode levar esse anão que me foi oferecido essa manhã.

liberata sentô com as perna aberta, e, entre as pernas, debaixo da cama, saiu uma beterraba preta. usava nas vista o mesmo medo desembarcado dos tumbêro, mais parecia bem alimentado, além das necessidade e o descontrole de utilidade dos branco nos tumbêro

ela assustô. achô qui tinha parido o futuro

U qui é isso?

foi um grito, num foi uma purugunta. o siôinho sorriu, gostava de assustá

Não sei qual a razão que me fez comprar esse negrinho, mas é o único negro que vou lhe oferecer.

A metade dum pretu.

Pois ache uso, é toda ajuda que ocê vai ter, caminhô inté a janela protegida pelo alpendre do casarão. espichô as vista inté a senzala, depois respirô fundo o perfume do mato misturado com o chêro das bosta das leitêra. gostava daquela vida. o movimento dos pretu. o chiquêro. o galinhêro e as galinha cacarejando, os neinho roliço correndo e zoando feito mosca. aquela manhã tava cedo e os pretu já tava lustroso com um suó choco. o chêro do café. os óio sem brilho da siá esmeralda. os grito do capitão-do-mato. os estalo do chicote. o gorgojeio dos pássaro. o sol subindo o alarido da vida crescendo. a paciência acomodada na certeza qui nada podia mudá sem o seu consentimento

dito e feito o qui quis, virô as costa e saiu. a preta liberata voltô suas atenção pru neinho na sua frente

E essa novidade tem nome?

Fumaça.



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