sábado, 2 de julho de 2016

05. A Metamorfose - Ouçam só — disse o chefe de escritório na sala contígua - Franz Kafka

Franz Kafka


Capítulo 1

05 A Metamorfose - Ouçam só — disse o chefe de escritório na sala contígua - Franz Kafka




Ouçam só — disse o chefe de escritório na sala contígua — esta dando volta na chave .

Isto foi um grande encorajamento para Gregório; mas todos deviam tê-lo animado com gritos de encorajamento, o pai e a mãe também: Não, Gregório, deviam todos ter gritado, - Continua, agarra-te bem a essa chave! E, na crença de que estavam todos a seguir atentamente os seus esforços, cerrou imprudentemente as mandíbulas na chave com todas as forças de que dispunha. À medida que a rotação da chave progredia, ele torneava a fechadura, segurando-se agora só com a boca, empurrando a chave, ou puxando-a para baixo com todo o peso do corpo, consoante era necessário. o estalido mais sonoro da fechadura, finalmente a ceder, apressou literalmente Gregório. Com um fundo suspiro de alívio, disse, de si para si: Afinal, não precisei do serralheiro, e encostou a cabeça ao puxador, para abrir completamente a porta. 


Como tinha de puxar a porta para si, manteve-se oculto, mesmo quando a porta ficou escancarada. Teve de deslizar lentamente para contornar a portada mais próxima da porta dupla, manobra que lhe exigiu grande cuidado, não fosse cair em cheio de costas, mesmo ali no limiar. Estava ainda empenhado nesta operação, sem ter tempo para observar qualquer outra coisa, quando ouviu o chefe de escritório soltar um agudo Oh!, que mais parecia um rugido do vento; foi então que o viu, de pé junto da porta, com uma mão a tremer tapando a boca aberta e recuando, como se impelido por qualquer súbita força invisível. A mãe, que apesar da presença do chefe de escritório tinha o cabelo ainda em desalinho, espetado em todas as direções, começou por retorcer as mãos e olhar para o pai, após o que deu dois passos em direção a Gregório e tombou no chão, num torvelinho de saias, o rosto escondido no peito. O pai cerrou os punhos com um ar cruel, como se quisesse obrigar Gregório a voltar para o quarto com um murro; depois, olhou perplexo em tomo da sala de estar, cobriu os olhos com as mãos e desatou a chorar, o peito vigoroso sacudido por soluços.


Gregório não entrou na sala, mantendo-se encostado à parte interior da portada fechada, deixando apenas metade do corpo à vista, a cabeça a tombar para um e outro lado, por forma a ver os demais. Entretanto, a manhã tornara-se mais límpida. Do outro lado da rua, divisava-se nitidamente uma parte do edifício cinzento-escuro, interminavelmente comprido, que era o hospital, abruptamente interrompido por uma fila de janelas iguais. Chovia ainda, mas eram apenas grandes pingos bem visíveis que caíam literalmente um a um. Sobre a mesa espalhava-se a louça do breve almoço, visto que esta era para o pai de Gregório a refeição mais importante, que prolongava durante horas percorrendo diversos jornais. Mesmo em frente de Gregório, havia uma fotografia pendurada na parede que o mostrava fardado de tenente, no tempo em que fizera o serviço militar, a mão na espada e um sorriso despreocupado na face, que impunha respeito pelo uniforme e pelo seu porte militar. A porta que dava para o vestíbulo estava aberta, vendo-se também aberta a porta de entrada, para além da qual se avistava o terraço de entrada e os primeiros degraus da escada.


— Bem — disse Gregório, perfeitamente consciente de ser o único que mantinha uma certa compostura —, vou me vestir, embalar as amostras e sair. Desde que o senhor me dê licença que saia. Como vê, não sou obstinado e tenho vontade de trabalhar. A profissão de caixeiro- viajante é dura, mas não posso viver sem ela. Para onde vai o senhor? Para o escritório? Sim? Não se importa de contar lá exatamente o que aconteceu? Uma pessoa pode estar temporariamente incapacitada, mas essa é a altura indicada para recordar os seus serviços anteriores e ter em mente que mais tarde, vencida a incapacidade, a pessoa certamente trabalhará com mais diligência e concentração. Tenho uma dívida de lealdade para com o patrão, como o senhor bem sabe. Além disso, tenho de olhar pelos meus pais e pela minha irmã. Estou a passar por uma situação difícil, mas acabarei vencendo. Não me torne as coisas mais complicadas do que elas já são. Eu bem sei que os caixeiros-viajantes não são muito bem vistos no escritório. As pessoas pensam que eles levam uma vida estupenda e ganham rios de dinheiro. Trata-se de um preconceito que nenhuma razão especial leva a reconsiderar. Mas o senhor vê as coisas profissionais de uma maneira mais compreensiva do que o resto do pessoal, isso vê, aqui para nós, deixe que lhe diga, mais compreensiva do que o próprio patrão, que, sendo o proprietário, facilmente se deixa influenciar contra qualquer dos empregados. E o senhor bem sabe que o caixeiro-viajante, que durante todo o ano raramente está no escritório, é muitas vezes vítima de injustiças, do azar e de queixas injustificadas, das quais normalmente nada sabe, a não ser quando regressa, exausto das suas deslocações, e só nessa altura sofre pessoalmente as suas funestas conseqüências; para elas, não consegue descobrir as causas originais. Peço-lhe, por favor, que não se vá embora sem uma palavra sequer que mostre que me dá razão, pelo menos em parte!


Logo às primeiras palavras de Gregório, o chefe de escritório recuara e limitava-se a fitá-lo embasbacado, retorcendo os lábios, por cima do ombro crispado. Enquanto Gregório falava, não estivera um momento quieto, procurando, sem tirar os olhos de Gregório, esgueirar-se para a porta, centímetro a centímetro, como se obedecesse a qualquer ordem secreta para abandonar a sala. Estava junto ao vestíbulo, e a maneira súbita como deu um último passo para sair da sala de estar levaria a crer que tinha posto o pé em cima duma brasa. Chegado ao vestíbulo, estendeu o braço direito para as escadas, como se qualquer poder sobrenatural ali o aguardasse para libertá-lo. 

Gregório apercebeu-se de que, se quisesse que a sua posição na firma não corresse sérios risco não podia de modo algum permitir que o chefe de escritório saísse naquele estado de espírito. Os pais não ligavam tão bem deste acontecimento; tinham-se convencido, ao longo dos anos, de que Gregório estava instalado na firma para toda a vida e, além disso, estavam tão consternados com as suas preocupações imediatas que nem lhes corria pensar no futuro. Gregório, porém, pensava. Era preciso deter, acalmar, persuadir e, por fim, conquistar o chefe de escritório. Quer o seu futuro, quer o da família, dependiam disso! Se, ao menos, a irmã ali estivesse! Era inteligente; começara a chorar quando Gregório estava ainda deitado de costas na cama. E por certo o chefe de escritório, parcial como era em relação às mulheres, acabaria se deixando levar por ela. Ela teria fechado a porta de entrada e, no vestíbulo, dissiparia o horror. Mas ela não estava e Gregório teria de enfrentar sozinho a situação. E, sem refletir que não sabia ainda de que capacidade de movimentos dispunha, sem se lembrar sequer de que havia todas as possibilidades, e até todas as probabilidades, de as suas palavras serem mais uma vez ininteligíveis, afastou-se do umbral da porta, deslizou pela abertura e começou a encaminhar-se para o chefe de escritório, que estava agarrado com ambas as mãos ao corrimão da escada para o terraço; subitamente, ao procurar apoio, Gregório tombou, com um grito débil, por sobre as inúmeras pernas. Mas, chegado a essa posição, experimentou pela primeira vez nessa manhã uma sensação de conforto físico. Tinha as pernas em terra firme; obedeciam-lhe completamente, conforme observou com alegria, e esforçavam-se até por impeli-lo em qualquer direção que pretendesse. Sentia-se tentado a pensar que estava ao seu alcance um alívio final para todo o sofrimento. No preciso momento em que se encontrou no chão, balançando-se com sofrida ânsia para mover-se, não longe da mãe, na realidade mesmo defronte dela, esta, que parecia até aí completamente aniquilada, pôs-se de pé de um salto, de braços e dedos estendidos, aos gritos: Socorro, por amor de Deus, socorro! Baixou a cabeça, como se quisesse observar melhor Gregório, mas, pelo contrário, continuou a recuar disparadamente e, esquecendo-se de que tinha atrás de, si a mesa ainda posta, sentou-se precipitadamente nela, como se tivesse perdido momentaneamente a razão, ao esbarrar contra o obstáculo imprevisto. Parecia igualmente indiferente ao acontecimento de a cafeteira que tinha ter tombado e estava derramando um fio sinuoso de café no tapete.


— Mãe, mãe — murmurou Gregório, erguendo a vista para ela.




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