sábado, 2 de julho de 2016

Histórias de avoinha: um mundo sem dono num precisa chefia

Ensaio 84B – 2ª edição 1ª reimpressão

um mundo sem dono num precisa chefia

baitasar




Entendi.

U qui u muriquinhu entendeu?

Entendi porque estamos aqui.

E descobriu u qui?

Avoinha veio buscar proteção e aconselhamentos. O que é bom está misturado com os coisa ruim. É assim mesmo. Na vida é assim mesmo, as pessoas chegam e partem misturadas umas nas outras. Não é preciso ter medo porque tudo parece muito embaralhado. O que se precisa saber é em qual lado estamos. O lado que quer ser dono de gente ou o lado que não quer ser dono nem de passarinho.

Hummm...

O contorno da pedra pode ser nada para muitos, mas pode ser muito para muitos outros. Olhe na nossa volta, avoinha.

U qui?

As pessoas chegam de muitos lugares, partem para muitos lugares, mais longe ou perto, não importa, elas trazem e levam muitas misturas. Nada que chega volta igual.

É só isso?

Não.

Hummm...

Nada é puro do lugar, tudo é mestiço. E se a combinação que brota tem mais da vida que da morte, vamos viver tempos de apoio, companheirismo e respeito à vida. É bom viver da mistura da vida que não manda, mas convida.

E...

Mas também, pode não ser assim. Podemos viver num lugar onde a vida vale pela riqueza acumulada, sem respeito e solidariedade à vida de todas as vidas. Em um tempo assim, a vida que gosta de ser dona da vida de muitos usa as correntes para mandar, o chicote para educar e a pistola para avisar que manda quem pode e obedece quem tem juízo. Uma vida sem mistura manda e não convida.

E u muriquinhu sabe vê a vida qui é da Villa?

Quero aprender...

U neinhu aprende muntu, mais num gosta de mostrá. Num qué se arriscá pruqui num gosta do tamanho qui tem.

Não sei nada. Mas avoinha tem sua razão, quem vai parar e escutar um anão preto?

Eu.

Avoinha não pode ser usada como exemplo.

Pru qui?

Por muitas razões óbvias, mas posso acrescentar outras, por exemplo, avoinha não ensina as rezas que sabe. Deve ser porque não confia.

Pru qui havia de ensiná?

Porque eu tenho o sangue dos pretos.

Bobice achá qui é puro alguma coisa. Puro pretu, puro branco. Nada é puro, tudo é mestiço dum lugá ou dotro. E o sangue tem a mesma cô nos branco, nus pretu e nus índio.

Mas a cor da carne avoinha não pode dizer que é igual. Eu quero aprender as rezas e as mandingas dos pretos. As rezam que cantam as carnes com as cores dores alegrias da carne preta. Minha carne de se mostrar no mundo.

Pru qui?

Saber é melhor que não saber. Avoinha precisa ensinar as rezas que sabe. Tudo acaba, avoinha também acaba. E avoinha não pode deixar as rezas acabarem junto com avoinha.

E u qui garante qui avoinha num volta e ensina? U muriquinhu tá escutando?

Sim. Eu estou escutando.

Us pássaro piquinino?

Passarinhos, avoinha? Não estamos falando dos passarinhos. Entendi, avoinha não quer ensinar.

É preciso escutá a voz qui us espritu usa pra tê voz, mesmo a voz dos piquinino. Tem pássaro piquinino qui mata cobra venenosa. É preciso sabê escutá. Precisa fechá o corpo... como nu jogo ou na briga. Vem cá. Abaixa.

Tô aqui, avoinha... abaixado.

Essa figa é madêra-de-lei, vai protegê u muriquinhu. E qui ajude tumbém u neinhu num sê da intriga qui ataranta us otro. Num esquece qui as coisa acontecida num é mais da vida, é da vida acontecida. As coisa qui vai acontecê num é ainda da vida, é da vida qui pode acontecê. A vida só é vida enquanto vai sendo vida.

A vida pode ser violenta enquanto é vida?

A fúria e a crueldade num é temperamento da vida, o abuso é das pessoa. A doçura num é da vida, a ternura é das pessoa. As coisa ruim num é da vida, é das pessoa. As coisa boa num é da vida, é das pessoa...

Adebanke...

o muriquinho ergueu a cabeça com a guia de cordão e a figa no pescoço, tava sentado na pedra imaginada e levantada do chão pela justiça dos branco. liberata tava no seu lugá de ajudá, um tanto ajoêiada na mesa do tabulêro, otro tanto sentada nas pedra, e as veiz, caminhada com o muriquinho do lado

Sim...

parecia tá saindo dum transe de conversa

E a urina cor do leite que sai do Barão?

Se acalme, Catita.

puxava o querê pru transe da conversa, o assunto num parecia tá acabado, a catita podia esperá, E u muriquinhu sabe rezá? U muriquinhu qué tá dentro do jogo, mais precisa ficá desimpedido pra proteção de São Bento.

Eu quero.

Muriquinhu, a balança da justiça dos branco num pesa do mesmo jeito pra tudo. Devia, mais num pesa. É a justiça dos branco. Foi escrita pra dá razão prus branco. E quem pode dá mais justeza pra balança é São Bento.

Coitado do São Bento, deve ter um trabalhão que não acaba. As chefias são tudo branco, avoinha.

Nesse mundo, muriquinhu... us branco dono de tudo só qué us pretu bedecendo a chefia dos branco. Um mundo sem dono num precisa chefia. Num precisa tremê de medo. Um mundo sem dono num precisa tê escravo. Viva São Bento Pequeno, protetô Nazareno!

avoinha começô dizê as reza pra tê o corpo fechado, as palavra se misturava com as umidade da pedra, o sol quase a pino num dava alívio, a pedra parecia chorá, mais num chorava. ela suava

vivê ali, num era lugá prus fraco. um qui otro pretu completava dez ano na escravidão da villa. chegava novo e morria muntu véio sem tê vivido pra ficá véio, tudo em dez ano. a fartura do frio ou o abuso dos castigo e da pistola parecia nunca tê a medida. o desconforto da escassez do pão e do pano nunca ajudô mais qui a fome. a vida num tinha alívio dum jeito ou dotro, mais piorava no tempo da chuva gelada. o pretu pendurado na pedra depois dos castigo avivava a morte. a dô e a febre quando chegava se demorava nas visita, tinha veiz qui as reza dava mais proteção qui a salmora nas carne rasgada num dava. a estrada da vida dos pretu na villa ficava mofando e gemendo, quando num ficava pendurada na forca da praça dos enforcado

inté qui chegô os alemão. eles veio pra plantá gente branca na vastidão das terra deserta. os lugá vazio, e bem mais longe, qui a villa num queria povoada com os pretu. logo, os alemão já abria o negócio de oficina e artesanato na villa, comércio de curtume nas terra mais longe, navegação fluvial, olaria, engenho de farinha e trigo. e entrava no comércio dos escravo, era difícil resistí ao privilégio de tê os pretu pra dominação e uso no próprio gosto

os colono num tinha a estima dos villêro com nascimento na villa, mais num sofria os castigo da escravidão. eles vivia separado inté nas festa, num deixava os villêro entrá nos baile. o entusiasmo pela antipatia tava crescendo nos dois lado, eles vivia nos arredó da villa se fosse preciso, parecia gostá de vivê separado, mais só parecia

os pretu tumbém queria vivê separado, mais num podia. prus pretu vivê separado precisava fugí. eles num veio pra villa, foi arrancado do seu lugá de vivê e trazido pela força pra sê escravo; os alemão veio pra sê colono e plantá gente branca nos lugá vazio de gente. os escravo num tinha querê e quando plantava os pretu era pra sê escravo, precisava cumprí a obrigação da distância das vista do dono e ficá na medida do acossamento da chibata

Reza juntu, muriquinhu. Escutô? Então, repete: Peço ajuda pra preciosa cruiz do Siô São Bento e as suas preciosa palavra qui tem podê, ajuda e merecimento. Eu, muriquinhu Fumaça, qui nasci livre, longe do tempo daqui, o tempo da escravatura, quero sê do fogo, ferro, ar, feitiço, peste e bicho peçonhento, pois tenho pra minha defesa Jesus Cristo e o Siô São Bento. Na arca de Noé me meto, com a chave de São Pedro me fecho, com os três me acompanho, Painho, Fiu e Espritu Santo. Amém.

Amém.

Agora, u muriquinhu reza um PaiNosso e uma AveMaria pru Siô São Bento.

ele rezô sentado na pedra

Adebanke! E a urina no leite?

o neinho num levantô pra terminá o qui tava começado, mais parecia caminhá na roda da pedra enquanto rezava. sabia tê na vida acontecida uma história da terra apinhada dos pé pretu e sofrimento. terra arruinada pela desumanidade qui tava do avesso, um lugá de horrô e desesperação

uma pedra alevantada acima do chão pra suportá o peso esticado dos pretu. pendurado. lugá de uso pra arrancá as umidade com a chibata: sangue, suô e mijo rosado, junto descia as lágrima do desafogo da injustiça. tudo ficô grudado e fermentando. quanto mais os pretu apanhava menos obedecia. quanto mais fugia mais apanhava. uma hedionda morada pras memória da villa. um depósito do sofrimento dos escravo qui continua fermentando

liberata voltô pras investigação do pedido daquela ajuda assustada com a cô do mijo. precisava tirá das cabeça os pensamento da conversa com o muriquinho. cuidá dos otro obriga ocê esquecê dos assunto privativo. tê atenção é dá importância, oferecê empenho

a conversa das duas virô investigação e a voz das muié baixô, só faltô escondê as boca com as mão. tem veiz qui é bão tá prevenido das esperteza. a maldade num é uma maldição qui tá nas pessoa, é uma predileção das pessoa

tê cuidado num é tê medo das pessoa qui zanga à toa, a pancadaria com as palavra é um teatro qui faz-de-conta. uma encenação qui qué fazê ocê creditá no qui num existi. e pode fazê ocê num gostá das coisa boa qui existi se o vento da palmeira deixá a maldade aplainá o ódio

o muriquinho entretido com as reza quis sabê qui as duas num queria sê escutada. recuô nos passo. sentô onde tava sentado, no monumento da justiça dos branco: a pedra com as duas argola

Preciso pruguntá...

Pois pergunte.

ali, num era uma sala pras visita, onde a penumbra pudesse escondê algum embaraço desgarrado ou desacerto desaforado; um lugá sem janela e sem vidraça, num tinha lamparina, num era uma jaula. a clareza indecente da luminária do dia mostrava inté as sombra qui se movia carregada nos ombro, puxada nas mão, encostada nas parede, sem reflexo. uma luz indecente vigiando os movimento da sombra e da prequiça. o jogo da imitação e do fingimento precisa da penumbra, num gosta de fazê purugunta purqui tem medo das resposta. num sabe sê o qui é, gostá de sê o qui num é: num é vida

A mijadêra no cabungo é grossa?

Sim, a resposta da baronesa veio rápida, ansiosa pra se mostrá, pra sê resposta. a sombra da jovem catita respondeu do jeito qui tava, sem mexê as mão, sem fazê esforço, sem estalá a língua nos dente ou revirá as vista. num tem como sabê pra onde vai a sombra depois da vida

a rezadêra tumbém num deixô sabê se tinha resposta boa ou ruim, se era coisa pra deixá vivê ou morrê. o silêncio feito pareceu durá mil dia e uma noite. nem as sombra tinha atrevimento pra se mexê. a luz do dia perdeu força pra iluminá, ficô com cô qui tem o chumbo. a clareza perdeu alegria e brilhatura, mais as duas num pareceu tê visto o sol ficá escondido, elas num reparô qui as sombra enfraqueceu

Munta mijadêra?

Muita.

a atenção duma tava estacionada notra, as sombra pareceu aproximá. é arrebatadô querê sabê as doença do otro purqui quem tá doente num fica doente duma coisa só. é bão sabê pra compará. inté as sombra gosta da tentação de se oferecê com as receita mais adequada. quase toda sombra qui conheço gosta de sê o profeta da cura purqui já passô coisa mesma ou quase mesma, o qui quase sempre é a mesma coisa

Tem espuma?

cada purugunta parecia puxá otra, cada respondida parecia num sê a resposta certa qui terminava com as purugunta. as sombra esperando. parece bão sê sombra, num tem sofrimento. num tê qui sê opinativa, num tê gozo nem fartura, num tê dô. parece bão num sabê pra onde vai depois da vida. pode sê qui tem um inferno pras sombra ruim e um céu pras boa. elas num parecia se divertí nem parecia tê tristeza. num parecia morrê e num parecia durumí, sempre pronta pra sê do dono a sua sombra

Tem.

pra sobrevivê as sombra num pode cantá, sombra num canta, mais qui parece cantá, isso parece. assim é as sombra, elas parece qui é o qui num é

O Barão tem queixume de dô?

elas baixô munto a voz. as sombra precisô se juntá com as mão e se tapá pra num escutá, mais num conseguiu num escutá. elas vigia tudo, inté o qui num qué vigiá

o muriquinho num achô gratidão vigiá a conversa. abriu as vista no largo do pelôinho

apareceu batida de tambô

reparô qui duas, depois três, mais otra e otras pessoa preta parava na volta da conversa qui as duas muié falava piquininino

apareceu mais batida de tambô. cada veiz mais os camaradinhu chegava puxado pelas batida




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