domingo, 25 de fevereiro de 2018

Gente Pobre - 24. Que indecente galanteador! - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


24.




3 de agosto



Bárbara Alexeievna, meu anjo: 


Apresso-me a comunicar-lhe que estão a renascer em mim as esperanças. Antes, porém, permita-me que lhe pergunte se de fato entende que não devo contrair um empréstimo de dinheiro. Na verdade, sou obrigado a recorrer a este meio, meu amor. A minha vida encontra-se desorganizada e, além disso, de um momento para o outro, vocês podem necessitar também de qualquer coisa. A Bárbara não goza de muito boa saúde, por isso julgo imprescindível o empréstimo.

Antes de mais nada, deixe-me dizer-lhe que o meu lugar na repartição é ao lado de Emelia Ivanovitch. Este não é o Emelia de que já lhe tenho falado, é, como eu, um funcionário público. Somos os mais antigos da repartição, os veteranos, como costumam chamar-nos. É um homem extremamente bondoso, nada egoísta, mas fala muito pouco. E veja o que são as coisas: quem o vir, julga-o um perfeito urso. Trata só do seu trabalho, tem uma boa letra inglesa e, para dizer a verdade, não escreve pior do que eu. Além disso, é um homem de uma honradez a toda a prova. Nunca houve entre nós verdadeira intimidade, limitando-nos à troca de saudações: «Bom dia!» e «Até amanhã!» Mas se eu, por exemplo, preciso, às vezes, de um apara-penas, digo-lhe: «Caro Ivanovitch, faz o favor de me emprestar o seu apara-penas por um momentinho?» Quer dizer, nunca tivemos uma verdadeira conversa; apenas trocamos essas palavras que é costume dizerem-se entre empregados da mesma secção. Pois hoje, esse tal Emelia disse-me: «Makar Alexeievitch, porque está tão pensativo?» Notei que me falava com a melhor das intenções e... confessei-me a ele, abri-lhe o meu coração e contei-lhe tudo, isto é, tudo não, Deus me livre! Coisas há na minha vida que nunca as confiarei a ninguém; não teria coragem de o fazer. Contei-lhe apenas parte ou, melhor dizendo, confessei-lhe que estava com dificuldades financeiras, etc., etc. Ele então disse-me que me dirigisse, por exemplo, a Pedro Petrovitch e lhe pedisse dinheiro emprestado, a juros. Contou-me que já recorrera a ele com o mesmo fim e garantiu-me que o juro não era exagerado.

Pois bem; ao ouvi-lo, o meu coração até pulou de alegria... Batia com tanta força! Pensava e tornava a pensar e pedia a Deus que inspirasse a Pedro Petrovitch a ideia de me emprestar dinheiro! Em seguida, pus-me a fazer contas, para ver a forma como poderia pagar à patroa e ajudá-la também a si, e renovar o meu vestuário a fim de readquirir o aspecto de homem, pois já sinto tal vergonha de andar neste estado, que até me custa estar aqui no meio dos meus colegas — sem falar nos motejos com que me mimoseiam os próprios contínuos... Deus lhes perdoe! De mais a mais, sua excelência passa às vezes junto da nossa mesa de trabalho, e se lhe dá para me dirigir um olhar e reparar no meu fato, Deus me livre! É que para ele a boa apresentação e a ordem são o que há de mais importante no mundo. Talvez não dissesse nada; mas eu, querida Bárbara, creio que cairia logo morto de vergonha... É o que lhe digo. Por isso, apelei para toda a minha coragem, pus de parte o receio e, por um lado, cheio de esperança, e por outro um pouco inquieto, resolvi-me a ir ter com Pedro Petrovitch. Pois bem, meu amor, foi tudo em vão. Encontrava-se muito entretido a conversar com Fadosi Ivanovitch. Aproximei-me dele e toquei-lhe muito discretamente no braço, como quem lhe queria falar. Ele voltou-se para mim e então eu disse-lhe pouco mais ou menos o seguinte: «Encontro-me numa situação deveras aflitiva e desejava que me emprestasse trinta rublos...» A princípio, pareceu não me ter compreendido; mas eu expliquei-lhe outra vez a minha pretensão e ele desatou a rir, sem me dizer palavra. Comecei de novo a falar-lhe na minha necessidade, após o que ele me perguntou: «Pode dar-me alguma garantia?» Em seguida, mergulhou de novo nos seus papéis e continuou a escrever, sem sequer me dirigir um olhar. Fiquei um tanto enleado e disse-lhe: «Não, Pedro Petrovitch, não posso dar-lhe qualquer garantia, mas mal receba o ordenado deste mês, aparecerei logo aqui para cumprir a minha obrigação.» Naquele momento chamaram-no e ele abalou do escritório e eu fiquei à sua espera. Não demorou muito a estar de volta. Sentou-se, aguçou a pena, tendo feito tudo isto sem reparar na minha presença. Eu, porém, voltei à carga, dizendo-lhe: «Quer então dizer, Pedro Petrovitch, que não se pode arranjar nada?»

Ele continuava calado, como se não ouvisse, e eu, ali de pé, pensei: «Vou fazer mais uma tentativa, a última». E puxei-lhe outra vez pela manga. Pedro Petrovitch, porém, não proferiu palavra; tirou da pena um fiapo e continuou a escrever. Então, retirei-me.

Olhe, minha amiga, estes tipos talvez sejam muito honrados, não o contesto; mas orgulhosos, lá isso são, e muito... São verdadeiramente inacessíveis. Contei-lhe este episódio para que fique a saber o que é essa gente.

Entretanto Emelia Ivanovitch animou-me muito. Aquele, de facto, é uma bondosa criatura. Prometeu recomendar-me a um individuo que mora em Viborskaia e que também empresta dinheiro, e garante-me que serei servido, sem falta. Por isso, amanhã vou ter com o sujeito em questão. Que lhe parece? Sem dinheiro nada feito.

A minha patroa já me ameaçou de me pôr na rua e não me quer fornecer mais refeições. Trago as botas em estado lastimoso, minha querida, falta-me uma grande quantidade de botões e uma infinidade de coisas mais! E se algum dos meus superiores se lembra de reparar em mim... Horrível, minha amiga, simplesmente horrível!



Makar Dievuchkin











4 de agosto




Querido Makar Alexeievitch:



Por amor de Deus, Makar Alexeievitch, veja se arranja algum dinheiro o mais depressa possível! Eu não pediria, de modo algum, o seu auxílio para as dificuldades com que presentemente me debato; mas se o meu amigo soubesse a situação em que me encontro... Não posso continuar nesta casa, tenho de me mudar! Sofri aqui os mais horríveis desgostos, e o senhor não pode imaginar como me sinto inquieta e desanimada!


Hoje de manhã, calcule, apareceu-me cá em casa, inesperadamente, um desconhecido, um homem de certa idade, quase um velho, com uma condecoração ao peito. Fiquei muito surpreendida, sem compreender o que desejava. Como Fédora tinha saído a fazer umas compras, perguntei-lhe o que pretendia. Então o visitante quis saber como é que eu vivia, em que me ocupava, e depois, sem esperar resposta, informou-me que era tio daquele oficial de que o senhor falou e que o procedimento incorreto do seu sobrinho o desgostara muito, sobretudo por ter posto em cheque a minha boa reputação. Acrescentou que o rapaz era um estouvado, sem juízo algum; por isso, ele, na qualidade de tio, achava-se na obrigação de reparar os seus erros e tomar-me sob a sua proteção. Aconselhou-me ainda a não dar ouvidos aos rapazes; ele sentia por mim uma compaixão de pai e um amor paternal e estava pronto a auxiliar-me em tudo o que lhe fosse possível.

Ao ouvir isto, fiquei tão envergonhada que nem sabia o que responder-lhe, pois, como deve calcular, a minha perturbação não me permitia qualquer pensamento. Pegou-me na mão contra vontade e não a queria largar; eu procurei libertar-me, e ele deu-me umas palmadinhas nas faces, dizendo que eu era muito bonita e que gostava muito de mim, encantando-o, sobretudo, as covinhas do rosto, só Deus sabe com que sentido! Continuou a falar pelos cotovelos e, por fim, fez menção de me dar um beijo. «Como sou um velho!» — dizia. Que indecente galanteador! Naquele momento chegou a Fédora. Então o presumido perdeu um pouco o entusiasmo; repetiu que tinha em grande apreço sobretudo a minha modéstia e virtude, acrescentando que veria com gosto a minha confiança nele. Depois chamou Fédora de lado e quis meter-lhe dinheiro na mão, não sei com que pretexto. Fédora, claro, não aceitou.

Então ele despediu-se, reiterando os seus oferecimentos e prometendo fazer-me em breve outra visita, trazendo-me nessa altura uns brincos de presente. Além disso, aconselhou-me a mudar de casa, recomendando-me uma que é muito bonita e não me custaria um tostão. Repetiu-me que lhe inspirara um afeto muito especial, por ser uma moça honrada e de juízo, e advertiu-me mais uma vez que tivesse muito cuidado com os rapazes libertinos. Por fim, declarou que conhecia Ana Fedorovna, a qual o encarregara de me dizer que muito em breve me faria uma visita.

Então, compreendi tudo! Não sei explicar o que se passou em mim. Nunca experimentara tal sensação, e também era a primeira vez que me encontrava em situação igual. Estava fora de mim! Verberei asperamente o seu procedimento, secundada por Fédora, quase o pusemos fora da porta. Tudo isto é, sem dúvida, obra de Ana Fedorovna... De outro modo, como poderia ele conseguir saber tantas coisas a nosso respeito?

É por isso que agora recorro a si, Makar Alexeievitch, e lhe peço o seu auxílio. Ajude-me e, por amor de Deus, não me abandone em tão aflitiva situação. Arranje-nos, por favor, algum dinheiro, nem que seja pouco, pois não temos a que deitar a mão para as despesas da mudança e não podemos, de modo nenhum, continuar a viver aqui. Fédora é da mesma opinião. Precisamos, pelo menos, de vinte e cinco rublos, que lhe pagarei com o produto do trabalho que Fédora arranjou e que começarei dentro de dias. Se lhe pedirem juros muito elevados, não se importe, aceite todas as condições, que eu reembolsá-lo-ei de tudo; mas, por amor de Deus, não me abandone nesta conjuntura! Custa-me imenso fazer-lhe este pedido nas atuais circunstâncias, mas não tenho mais a quem recorrer; o senhor é o meu único amparo, a minha única esperança!

Adeus, Makar Alexeievitch. Pense em mim e Deus queira que seja bem sucedido.



B. D.







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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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