terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

histórias de avoinha: o tempo da justiça vai chegá

mulheres descalças


o tempo da justiça vai chegá

Ensaio 114B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



o aguadêro passô pelos quatro qui palestrava, lá e cá, num ergueu as vista do chão, num é tempo de rebeldia quando ocê tá sem tê um plano de fuga, e, no fim das conta, ele num precisava da rebeldia de oiá pra sabê das conversa, bastava um tanto a mais de lentidão e ficá atentado nas palavra solta pelos dono das palavra

ele apanhava água nas meió fonte pra abastecê as casa da villa. um mulato grande e forte qui puxava duas barrica sentada no eixo das duas roda, Água fresca pra afrôxá a sede! Água limpinha e pura pru uso na cozinha!

o trajeto feito começava na parte alta do beco do fanha, lugá onde uma enorme fonte tava feita pelas água qui aparecia entre as rocha; ali, ele juntava a água qui brotava, depois descia inté a praça do pelôinho e voltava colina acima pra abastecê as barrica com mais água. o seu dia se cumpria subindo inté a fonte e descendo pra distribuí a água das barrica ou as barrica toda, dependia das necessidade da freguesia

num descia inté a doca das fruta, um lugá de muntu movimento e menó ganho com as água carregada. ele num chegava pruqui num queria. os ganho com as água era maió nas casa. era como se todo dia chegava nas casa com o batismo das água, Minha água num é da Várzea nem do Beco do Poço, ela brota das pedra! É apanhada das mão de Deus.

a vida pru aguadêro num corria suave nem linda, se fosse pra enfeitá de alguma coloração num ia tê rosa. a vida num é cô de rosa pru mulato, apesá de sê muntu bem visto pelos rabo de saia da mesma cô, uma figura repetida e firme nas rua da villa

o aguadêro parô no meio da praça, nas costa da liberata, oiô prus lado, pra cima da colina, pra baixo, ele tinha uma vida abarrotada com os chamado e os pedido de água do povoado risonho qui virô villa, mais continuô risonha prus qui aceita os dono de tudo sê os dono de tudo

o mulato aguadêro tinha nome, mais já faiz muntu tempo qui na villa só escutava o chamado, Aguadeiro! Aqui, mulato, O siô qué um ou dois barriu, Hoje, vou precisar de um barril, É cinco vintém, O que é isso, Aguadeiro, Num é água do Guaíba nem do Riacho, siô. Vem direto das mão de Deus, E quem me garante isso, Eu! Só trago água cristalina! Dá inté pra batizá os muriquinhu.

ele já vive muntu, mais nem passa nas ideia sê chamado de véio. já num faiz tantas ida e vinda com as barrica da água, fica parado mais pra conversá duqui era seu costume, mais uqui ninguém pode duvidá é da água do mulato, ele da garantia qui num tem chêro, num tem gosto e num tem cô, Umeu curação continua valente e sincero, abicu, Eu sei, Salvador, Mais num vô nunca acostumá com as maldade do mesmo jeito qui a Villa acostumô com as casa do tijolo, pedra e das cobertura com as têia redonda, Essas telhas redondas e avermelhadas é só o começo das novidades, Salvador. A maldade não são as telhas, Isso inté eu sei, abicu. As maldade num tá nas têia, mais nas coisa qui as pessoa faiz pra tê as têia, O depois sempre tem sido a continuação com maldade do que teve antes, Num entendi, abicu, Entender é fácil, Salvador. Mas compreender e dar um sentido para as vidas já vividas não é fácil, E onde as maldade entra? O abicu num escutô? Num vai dá resposta? Eu sei qui escutô, mais parece qui num qué diz a resposta, É só uma história, nem sei se é boa ou ruim, os dois parô se oiando, eles tava no meio da praça, Desembucha, abicu, O melhor lugar para aprender da vida é na vida, Só isso, abicu, Eu sei que parece bobo, mas é isso. As maldades nunca acabam. Hoje, é bonito e requintado ter as telhas arredondadas e avermelhadas. Amanhã, não sei. E lembre que elas cobrem somente algumas casas, custa muito trazer de tão longe. Muitas pessoas acabam vivendo suas vidas para conseguirem as telhas redondas e avermelhadas. E, finalmente, conseguem. Toda Villa com telhas redondas e avermelhadas, ou quase toda, algumas das novas casas estarão usando outras telhas que custam muito mais. É isso, as novidades são bonitas, resistentes, muito caras e para poucas casas. E uma nova correria tem início: a corrida por telhas quadradas, Então... as maldade de querê tê mais e mais nunca acaba, Isso mesmo, não acaba. Pelo menos, enquanto a vontade de querer ter mais é o fingimento da alegria, Se eu entendi certo, lutá num é só com os otro, O primeiro desacordo com essa vida de ter mais é com você mesmo, depois é preciso tentar convencer os outros que a vida pode ser melhor se for repartida com alegria, sem fingimentos, sem ganância, Abicu, cruis e credo, isso é luta pra todo dia, qui dura todos os dia. Num dá pra fechá os óio, do mesmo jeito qui a Praça da Quitanda num fecha, Isso mesmo, lá tá os pretu carregando e descarregando os fardo, dia e noite, eles faz o serviço dos cavalo, boi e mula, Igual eu, Isso mesmo, Salvador, Abicu, tem veiz quia vida é um paredão.

o nascido e o num nascido oiô pras vista um dotro, num tinha só tristeza, mais sangue e sonho, frio e esperança, mágoa e batuque, dô e cantoria, A falação tá boa, mais preciso chegá inté na Quitanda, Ué, Salvador, aumentando a freguesia? O Aguadeiro nunca passa daqui, o mulato se riu com a confusão do abicu, Num vô fazê entrega da água, tô inté vazio. Quero dá um cumprimento no pretu Bento. O abicu conhece?

num conhecia, mais se num conhecia ia ficá conhecendo, Não conheço, mas acho que ocê vai me apresentar, O Bento é um pretu com umas 60 polegadas de tamanho, soltêro, qui vende pinhão e couve na Rua da Praia, bem na quitanda, E ocê vai buscar couve e pinhão, Pedido da muié pra enchê a barriga dos muriquinhu, Entendi, O Bento já teve carta de alforria concedida, mais com a condição do pretu substituí o fiu do seu dono na Guarda Nacional da Villa. Ele num foi aceito e a liberdade concedida num foi considerada. Voltô sê escravo, Quem ele sustenta com seu trabalho, Ele mesmo, Mas se ele voltou a ser escravo, o salvadô fingiu perdê a paciência com um dos nosso, Ocêis, abicu, num tem munta ideia como os pretu nascido se vira, Pode ser, mas se explique melhor, Ele comprô a alforria com dois contos de réis, Isso é muito ou pouco, É pôco pelas vista dum e muntu pelas vista dotro, E como ele juntou o dinheiro para esse fim? Já sei, ocê não vai me dizer, o mulato se riu sozinho, Comércio de quitanda entre os pretu: compra e venda de galinha, ovos, fruta, verdura. Abicu, as veiz, a vida pode sê um paredão com rachadura, o mulato se parô da conversa e puruguntô pru abicu, O abicu vem, Não posso. Hoje, não posso. Amanhã, talvez, Inté.

voltei pra perto dos quatro qui palestrava. eles já tava na frente da igreja em construção, junto tava os pretu, os bode, as cabra, a cachorrada, a gurizada infernizando os pretu véio sentado nos canto, mula, cavalo. toda essa gente e bicho apinhava a via pública. um lugá do mundo sem fim onde se construia uma casa a cada dia. dali, dava pra vê, no caso de sabê uqui oiá, uma coluna encimada com um grobo, qui indicava sê a villa cabeça de comarca da justiça qui a pulícia servia. o estrangêro é qui tava com as palavra

Acredito que cheguei em boa hora, apesar da Villa de vosmecês me receber com os cascos negros de mais um fujão.

Concordo, exclamô o juca, a mim também parece que vosmecê chegou em boa hora.

Eu diria que o amigo chega com atraso, declarô sem muntu entusiasmo o joca dos lampião

E vosmecê... o que tem para dizer, puruguntô o noviço estrangêro pru maneco coxa qui num pareceu abalado com a inquisição. esperô passá o bando dos cão do beco do brito qui num se dava com os cão da ponta da pedra, qui, na sua veiz, num suportava o bando da arsenal, onde vivia os muntu pobre, fedido e sarnento. no encontro dos bando a gritaria dos bicho subia mais altura qui a poêrada qui a lutava levantava, era mais grito qui mordida, mais sempre tinha ferido, era só esperá a poêrada abaixá pra vê os golpeado lambê os pedaço rasgado ou os naco qui faltava

as rua da villa era tomada pela cachorrada mais vira-lata e briguenta do mundo todo. era fato comum os siô mais puído do tempo usá bengala na saída pra rua, eles caminhava espantando a cachorrada e resmungando, Não sei o que é pior, a cachorrada briguenta ou essa negrada feia e fedida.

Calma, Juca.

depois qui o último do bando passô, o maneco coxa respondeu a purugunta do estrangêro

Eu espero que a cachorrada, a política, a polícia e a religião do padre se entendam, andem juntas pelo bom cidadão. Queremos uma boa vida. E vosmecês querem o quê?

os trêis feiz silêncio, eles num sabia uqui respondê, num sabia se tinha uqui dizê. esses assunto num costumava dá boa conversa

Finalmente, esse novo serviço é um progresso para a nossa Villa, no meu jeito de ver. Isso é um alento.

o maneco coxa num pareceu tê se incomodado com o novo rumo dado pelas palavra do juca, atravessando sua resposta ao noviço delegado dus pretu, pareceu tá mais ocupado com um bando de piá vindo da quitanda, as calça arregaçada pra cima dos joêio, armados de fundas e atiradêras, Com certeza, pensô o maneco coxa, os guris se vão aos banhados da Várzea atrás de matar as marrecas e um ou outro quero-quero. Duvido que saia de alguma funda a pedra com alguma pontaria certeira.

Eu, em minhas viagens pelo pampa, faço uso das leis no meu modo e necessidade. Em outras palavras, sinhô Domingos Jorge, resolvo o que precisa ter solução, os trêis se oiô, mais só o recém-chegado pareceu tê entendido a clareza do recado, o maneco continuô sem o menó abalo, é simples assim. O amigo discorda?

a liberata e seu tabulêro tava dez passo mais pra baixo dos quatro conversadô, mais os passo qui corria pra lá e cá, no encalço do pretu, num parava de chacoaiá o tabulêro de pano estendido no chão de pedra e terra, Então, mãinha... posso chamar?

a preta subiu a vista seca inté o abicu qui lhe acompanha, ele parecia tá mais pra cima, num tinha asa, mais parecia tê. oiô mntu séria, tinha tumbém munta tristeza, tava medindo as palavra qui devia usá, inté qui se resolveu puruguntá, Fumaça! Responde sem enfeite.

Mãinha prurugunta e eu respondo.

Fumaça... chamá Cavalaria vai mudá a desgraça d’algum pretu?

ela tava no corre pra cima, reza, corre pra baixo, reza, chamacavalaria, num chama cavalaria. num sabia se dava ou num dava a ordem de chamá cavalaria

o piquinino abicu num se dava como dispensado, ele num era sensato nem tem qui sê. nóis, os abicu, usqui num foi nascido, só parecemô tê sentido nas urgência dos pretu pelo respeito ancestral, sem creditá nos antigo ascendente num vai respeitá a vida qui num nasceu pruqui nem vida foi ou vai sê, Mãinha Liberata, é preciso chamá Cavalaria pra balança equilibrá.

foi quando o ôio seco da preta tumbém se derramô junto da áfrica, nas povoação modesta. as vista moiada derramava as beleza, as gravura, o retrato imaginativo de todo pretu escravizado: ficá solto das corrente, brilhá radioso e vivê sem temô na cidade ou nas mata

Cadê Xangô! Cadê Xangô!

o curação piquininino e a dô enorme e aflita derramando as duas vista, o piano descontrolado sofrendo com a desafinação dos grito da cachorrada, dos bando de piá e os eco da feira da quitanda

Fumaça me perdoa, me perdoa... abicu, abicu, abicu... chama Cavalaria!

o piquinino deu dois pulo e subiu na pedra da vergonha, e lá, misturado com o sangue, água benta, suô e a chibatada, deixô as lágrima descê. nunca antes se disse qui abicu chorava, chorando feiz o chamamento

“Amarra teu pão

constroe tua morada
luta, mesmo que fracassar.
Preto quando apanha
chora e canta
fazendo do chicote
sua reza
um toque
de libertação.
Bate asas, manto negro
o mago é Exu Morcego.”

Chama Cavalaria, Fumaça!

“Pelo poder de Barravento
Vamos lutar com valentia
Já desceu todo alojamento
Vamos tocar Cavalaria.”

Chama São Bento, abicu!

Vai ter jogo de capoeira
Vai ter luta contra a tirania
Vem chegando Cavalaria...

o tempo da justiça vai chegá, usqui deve vai pagá, usqui num deve tem pra recebê, é no tempo daqui qui a justiça vai chegá




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