quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Pai e um Filho (IV)

Stendhal - O Vermelho e o Negro



Livro I

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo IV

UM PAI E UM FILHO


E sarà mia colpa se cosi è?
MAQUIAVEL 





REALMENTE MINHA MULHER tem muito tino! dizia-se, no dia seguinte às seis horas da manhã, o prefeito de Verrières, ao descer até a serraria do velho Sorel. Embora tenha dito a ela, para conservar a superioridade que me cabe, eu não havia pensado que, se não tomo esse padre​zinho Sorel que, dizem, sabe o latim como um anjo, o di​retor do asilo, essa alma sem repouso, poderia perfeitamente ter a mesma ideia e arrebatá-lo de mim. Com que tom de suficiência ele falaria do preceptor de seus filhos!... Esse preceptor, uma vez sendo meu, vestirá batina?

O sr. de Rênal estava absorto nessa dúvida quando viu ao longe um aldeão, homem de cerca de 1,80 metros de altura, que, já de manhãzinha, parecia muito ocupado em medir peças de madeira depositadas ao longo do Doubs, no caminho da sirga. O aldeão não pareceu muito satisfeito de ver aproximar-se o sr. prefeito, pois suas peças de madeira obstruíam o caminho e era contravenção depositá-las ali.

O velho Sorel, pois era ele, ficou muito surpreso e ainda mais contente com a singular proposta que o sr. de Rênal lhe fazia para o seu filho Julien. Mesmo assim, escutou-o com aquele ar de descontentamento e desinteresse que a sagacidade dos habitantes dessas montanhas sabe empregar tão bem. Escravos do tempo da dominação espanhola, eles conservam ainda esse traço de fisionomia do felá egípcio.

A resposta de Sorel não foi a princípio senão a longa recitação de todas as fórmulas de respeito que sabia de cor. Enquanto repetia essas vãs palavras, com um sorriso canhestro que aumentava o ar de falsidade e quase de patifaria natural à sua fisionomia, o espírito ativo do velho aldeão buscava descobrir que razão podia levar um homem tão considerável a levar para sua casa o malandro do seu filho. Ele estava mui​to descontente com Julien, e era por ele que o sr. de Rênal lhe oferecia o pagamento inesperado de 300 francos por ano, com comida e mesmo vestuário. Essa última pretensão, que o velho Sorel tivera o gênio de lançar na hora, também fora concedida pelo sr. de Rênal.

Esse pedido perturbou o prefeito. Se Sorel não está encantado e satisfeito com minha proposta, como naturalmente deveria estar, não há dúvida, pensou, que lhe fizeram ofertas de outro lado; e de quem podem vir, senão de Valenod? Em vão o sr. de Rênal instou Sorel a con​cordar ali mesmo: a astúcia do velho aldeão recusou-se teimosamente a isso; ele dizia querer consultar o filho, como se, na província, um pai rico consultasse um filho que nada possui, apenas por formalidade.

Uma serraria movida a água compõe-se de um galpão à beira de um riacho. O telhado é sustentado por uma armação apoiada sobre quatro grossos pilares de madeira. A uma elevação de 2,5 ou 3 metros, vê-se uma serra que sobe e desce, enquanto um mecanismo muito simples empurra contra a serra um toro de madeira. Uma roda posta em movimento pelo riacho é que faz funcionar esse duplo mecanismo: o da serra que sobe e desce, e o que empurra suavemente a madeira em direção à serra, que a divide em tábuas.

Aproximando-se de sua oficina, o velho Sorel chamou Julien com seu vozeirão; ninguém respondeu. Viu apenas seus filhos mais velhos, espécie de gigantes que, armados de grandes machados, cortavam os troncos de pinheiro que levariam para serrar. Muito ocupados em seguir a marca preta traçada sobre a peça de madeira, a cada golpe de machado separavam lascas enormes. Eles não ouviram a voz do pai. Este dirigiu-se para o galpão; ali entrando, procurou em vão Julien no lugar que deveria ocupar, ao lado da serra. Avistou-o mais acima, a cavalo sobre uma das vigas do teto. Em vez de vi​giar atentamente a ação do mecanismo, Julien lia. Nada mais antipático ao velho Sorel; ele talvez perdoasse a Julien seu porte franzino, não muito apto aos trabalhos pesados, e tão diferente do de seus filhos mais velhos; mas essa mania de leitura lhe era odiosa, ele próprio não sabia ler.

Em vão chamou Julien duas ou três vezes. A atenção que o jovem dava a seu livro, bem mais do que o ruído da serra, o impediu de ouvir a voz terrível do pai. Enfim, apesar da idade, este saltou agilmente sobre o tronco submetido à ação da serra, e dali até a viga transversal que sustinha o telhado. Um golpe violento fez voar até o riacho o livro que Julian segurava; um segundo golpe igual​mente violento, na cabeça, o fez perder o equilíbrio. Ia cair de uma altura de 3 a 4 metros, sobre as alavancas da máquina em ação, que o teria estraçalhado, mas o pai o reteve com a mão esquerda no momento em que caía:

– Seu preguiçoso! Então continuas lendo teus malditos livros quando estás de guarda à serra? Lê à noite, quando vais perder teu tempo na casa do cura, melhor assim!

Julien, embora aturdido pela força do golpe, e sangrando, aproximou-se de seu posto oficial, ao lado da serra. Tinha lágrimas nos olhos, menos por causa da dor física que pela perda do livro que adorava.

“Desce, animal, quero falar contigo.” O ruído da máquina impediu ainda Julien de ouvir essa ordem. O pai, que havia descido, não querendo dar-se o trabalho de tornar a subir no mecanismo, foi buscar uma vara comprida de derrubar nozes, e com ela bateu-lhe no ombro. Assim que Julien pisou o chão, o velho Sorel pôs-se a empurrá-lo rudemente para diante, em direção à casa. Sabe Deus o que ele irá fazer comigo!, pensava o jovem. De passagem, olhou tristemente o riacho onde caíra o livro; de to​dos, era o que ele mais gostava, o Memorial de Santa Helena.

Estava com as faces vermelhas e de olhos baixos. Era um jovem de dezoito a dezenove anos, de aparência frágil, com traços irregulares mas delicados, e um nariz aquilino. Seus grandes olhos negros, que nos momentos tranquilos anunciavam reflexão e calor, possuíam neste instante a expressão do ódio mais feroz. Cabelos castanho-escuros, plantados muito baixo, davam-lhe uma testa pequena e, nos momentos de cólera, um ar de maldade. Entre as inúmeras variedades da fisionomia humana, talvez nenhuma outra se distinguisse por uma especialidade mais impressionante. Um porte esbelto e elegante anunciava mais leveza que vigor. Desde muito jovem, seu ar extremamente pensativo e sua grande palidez haviam dado ao pai a ideia de que não viveria, ou que viveria para ser um fardo à família. Objeto do desprezo de todos em casa, ele odiava o pai e os irmãos; nos jogos do domingo, em praça pública, era sempre batido.

Já fazia um ano que seu rosto bonito começava a atrair-lhe vozes amigas entre as moças. Desprezado por todos como um sujeito fraco, Julien havia adorado aquele velho cirurgião-mor que um dia ousou falar dos plátanos ao prefeito.

Esse cirurgião às vezes pagava ao velho Sorel a jornada de trabalho do filho e ensinava-lhe o latim e a história, isto é, o que ele sabia de história, a campanha de 1796 na Itália. Ao morrer, legara-lhe sua cruz da Legião de Honra, os atrasados de seu meio soldo e trinta ou quarenta volumes, dos quais o mais precioso acabava de mergulhar no riacho público, desviado por conta do sr. prefeito.

Assim que entrou em casa, Julien sentiu o ombro detido pela poderosa mão do pai; ele tremia, à espera de alguns golpes.

– Responde-me sem mentir, gritou-lhe aos ouvidos a dura voz do velho aldeão, enquanto sua mão o fazia girar como a mão de uma criança faz girar um soldado de chumbo. Os grandes olhos negros e cheios de lágrimas de Julien viram-se diante dos olhinhos cinzentos e maldosos do velho carpinteiro, que parecia querer ler até o fundo de sua alma.




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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.



O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também: 

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma pequena cidade (I)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Prefeito (II)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Bem dos Pobres (III)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Pai e um Filho (IV) 

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