segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: XIII - As Viúvas

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa



XIII

AS VIÚVAS 

Conta Vauvenargues (9) que, nos jardins públicos, existem aleias frequentadas sobretudo pela ambição falida, pelos inventores infelizes, pelas glórias perdidas, pelos corações oprimidos, por todas as almas tumultuosas e fechadas, nas quais ainda ressoam os últimos suspiros de uma tempestade e que escapam para longe do olhar insolente dos satisfeitos e dos ociosos. Esses retiros sombrios são os pontos de encontro dos estropiados da vida.

É principalmente para esses lugares que o poeta e o filósofo gostam de dirigir as suas ávidas conjecturas. Há neles um pasto certo. É que, se um lugar existe que desdenham de visitar, como insinuei há pouco, é sobretudo a alegria dos ricos. Essa turbulência no vazio nada tem que os atraia. Sentem-se, ao contrário, irresistivelmente arrastados por tudo o que é fraco, arruinado, triste, órfão.

Uma visão experimentada jamais se engana a esse respeito. Naqueles traços rígidos ou abatidos, naqueles olhos cavos e ternos, ou com o brilho dos últimos clarões da luta, naquelas rugas profundas e numerosas, naqueles passos tão vagarosos ou tão apressados, decifram-se logo as inumeráveis legendas do amor enganado, do devotamento desconhecido, dos esforços não recompensados, da fome e do frio, humildemente, silenciosamente suportados.

Acaso já vistes viúvas nesses bancos solitários, viúvas pobres? Estejam ou não de luto, é fácil reconhecê-las. Aliás, no luto do pobre, há sempre alguma coisa que falta, uma ausência de harmonia que o torna mais pesado. O rico põe o seu sem nenhuma falha.

Que viúva é mais triste e mais entristece, a que leva pela mão uma criancinha com quem não pode partilhar seu delírio, ou a que está completamente só? Não sei... Aconteceu-me, certa vez, acompanhar durante longas horas uma velha aflita dessa espécie; empertigada, direita, debaixo de um pequeno xale usado, demonstrava em todo o seu porte uma altivez de estoica.

Estava evidentemente condenada, por uma solidão absoluta. Aos hábitos dos velhos celibatários, e o caráter masculino dos seus costumes acrescentava uma nota de mistério à sua austeridade. Não sei em que miserável café nem de que maneira almoçou. Segui-a ao gabinete de leitura, e observei-a durante todo o tempo em que, relanceando nas gazetas os olhos outrora queimados pelas lágrimas, procurava notícias de um poderoso interesse pessoal.

Por fim, à tarde, sob um céu encantador de outono, um desses céus de onde descem em profusão as saudades e as lembranças, ela sentou-se à parte num jardim, para ouvir, longe da multidão, um desses concertos com que a música dos regimentos gratifica o povo parisiense.

Foi esse, sem dúvida, o pequeno deboche daquela velha inocente (ou daquela velha purificada), o consolo bem ganho de um dos seus pesados dias sem amigo, sem palestra, sem alegria, sem confidente, que Deus deixava cair sobre ela, há tantos anos talvez! Trezentas e sessenta e cinco vezes por ano! Agora uma outra: Nunca pude deixar de volver o olhar, se não universalmente simpático, ao menos curioso, sobre a multidão de párias que se cumprimentam ao redor do recinto de um concerto público. Através a noite, a orquestra espalha canções festivas, de triunfo ou de volúpia. Destacam-se vestidos que se arrastam. Cruzam-se olhares. Os ociosos, cansados de nada terem feito, bamboleiam, fingindo degustar insolentemente a música. Tudo é, aqui, rico e feliz. Tudo respira e inspira a preocupação e a alegria de viver. Tudo, menos o aspecto daquela turba que se apoia, ao longe, no balcão externo, apanhando gratuitamente, ao sabor do vento, um farrapo de música, e contemplando o coruscante ambiente interior.

É sempre interessante esse reflexo da alegria do rico no fundo dos olhos do pobre.

Mas, naquele dia, através aquele povo vestido de algodão e de chita, eu notei um ser cuja nobreza contrastava vivamente com toda a trivialidade do meio.

Era uma mulher alta, majestosa e de feições tão nobres que não me lembro de ter visto alguma que se assemelhasse nas coleções das belezas aristocráticas do passado. Um aroma de altaneira virtude emanava de toda a sua pessoa. O rosto, triste e abatido, correspondia exatamente ao grande luto de que se revestia. Também ela, como a plebe a que se misturara e que ela não via, contemplava o mundo luminoso com um olhar profundo, e escutava, meneando de leve a cabeça.

Visão singular! Certamente, pensei, a pobreza, se pobreza existe, não deve admitir a economia sórdida; é o que me diz aquela nobre fisionomia. Porque, então, permanece ela, voluntariamente, num meio em que aparece como um foco luminoso? Aproximando-me dela com curiosidade, julgo ter descoberto o motivo. A viúva segurava pela mão uma criança igualmente vestida de preto. Por módico que fosse o preço da entrada, seria talvez o bastante para pagar uma das necessidades do pequenino ser, ou melhor ainda, o supérfluo, um brinquedo.

Assim tornará ela a entrar, a pé, meditando e sonhando, só, sempre só. Porque o filho é turbulento, egoísta, sem doçura e impaciente: não pode, como um simples animal, o cão ou o gato, servir de confidente às dores solitárias.




XIV

O VELHO SALTIMBANCO

Por toda parte se aglomerava, espalhava-se, divertia-se o povo em festa. Era uma dessas solenidades há muito tempo esperadas pelos saltimbancos, excursionistas, expositores de animais e boticários ambulantes, para compensar os maus tempos do ano.


Tenho a impressão de que nesses dias o povo esquece tudo, a dor e o trabalho, tornando-se semelhante às crianças. Para os pequenos, é um dia feriado, é o horror à escola, adiada por vinte e quatro horas. Para os grandes, é um armistício firmado com as potências maléficas da vida, uma trégua na contenção e na luta universais.

O homem vulgar e o homem ocupado com trabalhos espirituais dificilmente escapam à influência desse jubileu popular. Absorvem, sem querer, uma parte da atmosfera de despreocupação. Quanto a mim, como verdadeiro parisiense, nunca deixo passar em revistas as barracas que se armam nessas épocas solenes.

Era uma concorrência formidável: piavam, mugiam, urravam. Mistura de gritos, de detonações de cobre e de explosões de foguetes. Com o desembaraço de comediantes senhores de ofício, os queues-rouges (10) e os jocrisses (11), convulsionando os traços dos rostos tisnados, curtidos pelo vento, pela chuva e pelo sol, soltavam piadas e graçolas de uma comicidade sólida e pesada como a de Molière (12). Os Hércules (13), orgulhosos da enormidade dos seus membros, sem fronte e sem crânio, como os orangotangos, remexiam-se majestosamente sob os calções lavados na véspera para a circunstância. As dançarinas, lindas como fadas ou princesas, saltavam e cabriolavam sob o fogo das lanternas, que lhes enchiam os vestidos de centelhas.

Luz, poeira, gritos, alegria, tumulto. Uns gastavam, outros ganhavam. Uns e outros igualmente alegres. As crianças penduravam-se aos vestidos das mães para obter um pauzinho de açúcar, ou subiam aos ombros dos pais para ver melhor um escamoteador deslumbrante como um deus. E por toda parte circulava, dominando todos os perfumes, um odor de gordura que era como um incenso da festa.

No fim, bem no fim da fileira de barracas, como se, envergonhado, se tivesse exilado voluntariamente de todos esses esplendores, eu vi um pobre saltimbanco, curvado, combalido, decrépito, uma ruína de homem, encostado a uma das estacas de sua casinhola; uma casinhola mais miserável do que a do mais bruto selvagem, ainda muito bem iluminada por dois fumegantes pedaços de vela. Por toda parte, a alegria, o lucro, o deboche. Por toda parte, a certeza do pão para os dias seguintes.

Por toda parte, a explosão frenética da vitalidade. Aqui a miséria absoluta, a miséria vestida, por um cúmulo do horror, de cômicos andrajos, em que a necessidade, bem mais do que a arte, introduzira o contraste. O miserável não ria! Não chorava, não dançava, não gesticulava, não gritava. Não entoava nenhuma canção, nem alegre nem comovente.

Não implorava. Estava mudo e imóvel. Renunciara, abdicara. O seu destino estava cumprido.

Passeava o olhar profundo, inolvidável, sobre a multidão e as luzes, cuja onda movediça detinha-se a alguns passos de sua repulsiva miséria! Senti a garganta apertada pela mão terrível da histeria, e pareceu-me que o meu olhar estava ofuscado pelas lágrimas rebeldes que não querem cair.

Que fazer? Para quê perguntar ao infortunado que curiosidade, que maravilha tinha ele para mostras naquelas trevas fétidas, por detrás da cortina esfiapada? Não me atrevia; e, embora a razão da minha timidez vos faça rir, confessarei que temia humilhá-lo. Afinal, eu já me resolvera a pôr, de passagem, algum dinheiro sobre uma daquelas tábuas, esperando que ele adivinhasse a minha intenção, quando um grande refluxo de povo, provocado por não sei que desordem, arrastou-me para longe dele.

Ao regressar, perseguido por essa visão, procurei analisar minha súbita amargura, e disse comigo: — Acabo de ver a imagem do velho homem de letras que sobreviveu à geração da qual foi o brilhante recreador; do velho poeta sem amigos, sem família, sem filhos, degradado pela miséria e ingratidão pública, em cuja barraca o mundo esquecido não quer mais entrar!




XV

O BOLO

Eu viajava. A paisagem no meio da qual me achava era de uma grandeza e de uma nobreza irresistíveis. Alguma coisa se passou nesse momento em minha alma. Os meus pensamentos vagavam com uma ligeireza igual à da atmosfera. As paixões vulgares, como o ódio e o amor profano, pareciam-me, então, distantes como as nuvens que desfilavam no fundo dos abismos sob os meus pés. Minha alma parecia-me vasta e pura como a cúpula do céu que me cercava. Das coisas terrestres só me chegava ao coração a lembrança diminuída e apagada, como o ruído dos guizos de gado quase imperceptível que pastava ao longe, muito longe, na vertente de outra montanha. Sobre o pequeno lago imóvel, negro em sua imensa profundeza, passava às vezes a sombra de uma nuvem, como o reflexo do manto de um gigante aéreo que voasse pelo céu. Lembro-me de que essa sensação solene e rara, provocada por um grande movimento perfeitamente silencioso, enchia-me de um misto de alegria e de medo. Sentia-me em suma, graças à entusiasmadora beleza que me cercava, em perfeita paz comigo mesmo e com o universo. Creio até que, na minha perfeita beatitude e no meu total esquecimento de todo o mal terrestre, eu chegara ao ponto de não mais achar tão ridículos os jornais que pretendem que o homem nasceu bom. Foi quando a matéria incurável, renovando suas exigências, fez-me pensar em reparar o cansaço e aliviar o apetite causados por tão longa subida. Tirei do bolso um grande pedaço de pão, um copo de couro e um frasco de um certo elixir que os farmacêuticos da época vendiam aos excursionistas para que o misturassem com a água da neve.

Eu estava tranquilamente cortando o meu pão, quando um leve ruído me fez erguer os olhos. Diante de mim estava um pequeno ser andrajoso, desgrenhado, cujos olhos fundos, ferozes e como suplicantes, devoravam o pedaço de pão. Ouvi-o suspirar, então, com uma voz baixa e rouca, a palavra: Bolo! Não pude deixar de rir ao escutar o nome com que ele pretendia honrar o meu pão quase branco, e cortei para ele uma fatia que lhe ofereci. Ele se aproximou devagarinho, sem tirar os olhos do objeto de sua cobiça. Depois, apanhando a fatia com a mão, recuou de repente, como se receasse que a minha oferta não fosse sincera ou que eu já estivesse arrependido.

No mesmo instante, porém, foi derrubado por outro pequeno selvagem, saído não sei de onde e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se teria podido tomá-lo por um irmão gêmeo. Rolaram ambos no chão, disputando a valiosa presa, sem que nenhum quisesse sacrificar a metade pelo irmão. O primeiro, exasperado, puxou o segundo pelos cabelos; este pegou-lhe a orelha com os dentes e cuspiu-lhe uma migalha sangrenta com uma soberba praga regional. O legítimo proprietário do bolo tentou cravar as unhinhas nos olhos do usurpador; este, por sua vez, empregou toda a força para estrangular o adversário com uma das mãos, enquanto com a outra tratava de meter no bolso o prêmio do combate.

Mas, reanimado pelo desespero, o vencido endireitou-se e fez rolar o vencedor por terra, com uma cabeçada no estômago. Para quê descrever uma luta hedionda, que na verdade durou mais tempo do que pareciam permiti-lo aquelas forças infantis? O bolo viajava de mão em mão e mudava de bolso a cada instante. Mas, ai de mim! Mudava também de volume. Quando, por fim, exaustos, anelantes, ensanguentados, pararam ambos pela impossibilidade de continuar, já não havia, a dizer verdade, nenhum motivo de batalha: o pedaço de pão desaparecera, todo fragmentado em migalhas semelhantes aos grãos de areia com que se misturara.

Esse espetáculo anuviou-me a paisagem. A alegria calma em que minha alma se expandia, antes de ver aqueles pequeninos homens, desapareceu por completo. E assim fiquei por muito tempo, triste, repetindo-me sem cessar: — Há um soberbo lugar em que o pão se chama bolo, iguaria tão rara que é o suficiente para causar uma guerra perfeitamente fratricida!




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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.


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NOTAS


(9) Luc de Clapiers, marquês de VAUVENARGUES (1715-1747), moralista francês, autor de Máximas de grande elevação moral.

(10) Palhaços cuja peruca termina por um rabo amarrado com uma fita vermelha.

(11) Personagens das antigas comédias francesas, que se caracterizam por uma extrema credulidade, sendo por isso motivo de troça dos seus companheiros.

(12) Jean-Baptiste Poquelin, ou MOLIÈRE (1622-1673), autor cômico francês, verdadeiramente genial, amigo de Boileau, de Racine e de La Fontaine. Deixou uma admirável coleção de comédias e farsas, e uma galeria incomparável de personagens que, como Harpagão, Tartufo, Alceste e muitos outros, se tornaram imortais, não só nas letras francesas, como nas de todos os países.

(13) O mais célebre dos heróis da mitologia grega, filho de Júpiter e de Alcmena. Tornou-se famoso por sua extraordinária força física, tendo executado as perigosas empresas conhecidas sob o nome de Doze Trabalhos de Hércules.



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