sexta-feira, 10 de julho de 2020

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (2a.) O General Epantchín vivia em casa própria

O Idiota


Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


2a.


O General Epantchín vivia em casa própria, em uma travessa da Litéinaia, perto da igreja do Spass Preobrajénskii. Além desta magnífica residência de seis andares, cinco dos quais estavam alugados, tinha um outro enorme prédio na Rua Sadóvaia, que também lhe dava boa renda. Possuía ainda uma vasta propriedade às portas de Petersburgo e também uma fábrica próspera nos subúrbios. Em dias longínquos havia usufruído, como era sabido de todo o mundo, fortes privilégios dos monopólios do governo, tendo, atualmente, interesses e considerável influência na direção de sociedades anônimas muito firmes. Era reputado pela sua grande fortuna e imensas ligações, como homem de negócios, tendo tido sempre o dom de saber se tornar indispensável, sendo a seção governamental onde trabalhava a melhor prova disso. Todavia, era notório que Iván Fiódorovitch recebera pouca educação e era neto de soldado. Esta última condição indubitavelmente só lhe podia ser honrosa. Mas o general, embora fosse um homem inteligente, não se libertara de umas pequeninas fraquezas, aliás desculpáveis, não lhe agradando alusões a tal respeito. Tratava-se, inquestionavelmente, de um homem inteligente e hábil. 

Adotara como princípio, por exemplo, não se colocar muito em evidência, apagando-se até quando as circunstâncias o exigiam, sendo que muitos o apreciavam justamente por causa da ciência de saber se colocar em seu lugar. Mas se esses que o admiravam por isso soubessem o que, às vezes, se passava na alma de Iván Fiódorovitch, o homem que sabia qual era o seu lugar!... Embora, realmente, tivesse conhecimentos práticos e experiência própria, bem como notável habilidade, preferia aparecer carregando idéias alheias em vez das inclinações do próprio intelecto, para poder estadear como homem “desinteressadamente devotado” e - para coincidir com o espírito da época - como um coração generosamente bem russo. A tal respeito contavam-se histórias engraçadas que não desconcertavam o general, pois era reconhecidamente bafejado pela sorte, até nas cartas, jogando paradas fortes. E, longe de esconder esse seu fraco (como ele o chamava), intencionalmente o ostentava, visto que, além do lado pecuniário, lhe rendia outras vantagens. Frequentava uma sociedade muito variada, mas composta apenas de gente de categoria.

Tinha tudo diante de si; dispunha de tempo para tudo, e tudo lhe vinha a contento. E quanto à idade, também, o general estava no que se chama a flor da vida, com seus cinqüenta e seis anos, não mais; e nós bem sabemos que isso é que é a verdadeira flor da existência do homem, a idade em que realmente a vida começa.

A sua boa saúde, a sua compleição, a sua risada através de dentes bons, embora pretos, o seu ar preocupado de manhã no escritório, as suas maneiras bem-humoradas de noite nas cartas, ou em casa de Sua Alteza, a sua atraente e sólida figura, tudo contribuía para o seu triunfo presente e futuro, despetalando rosas no caminho de Sua Excelência.

O general tinha uma família, com florescentes filhas. Nem tudo, porém, eram rosas somente... Havia circunstâncias imediatas em que as fundadas esperanças e os promissores planos de Sua Excelência exigiam concentrações sérias e profundas. Afinal de contas, que há de mais grave e mais sagrado do que os planos de um pai? A que se devia um homem apegar, se não à sua família?

E a do general consistia de esposa e três filhas já crescidas. Casara-se muito cedo, quando ainda tenente, com uma moça quase de sua idade, que não se distinguia nem pela beleza nem pela educação, e que apenas lhe trouxera um dote de cinquenta almas, dote que serviu, todavia, como um degrau para a fortuna de mais tarde.

Mas, nunca, depois, se queixou desse casamento tão cedo contraído, e nunca o considerou um erro da mocidade; assim, respeitava a mulher, e a temia, às vezes tanto, que até chegava a amá-la... Ela era uma princesa Míchkina, de uma antiga embora não muito brilhante família, tendo muito apreço à sua origem. Certa pessoa de influência, um desses protetores cuja proteção nada custa, consentira em se interessar no casamento da jovem princesa, e assim abrira caminho para o jovem oficial e lhe dera mão eficaz, embora, a falar verdade, ajuda alguma fosse precisa, um mero olhar lhe tendo bastado para perceber que não seria repelido. Com raras exceções, marido e mulher passavam a vida em harmonia. No começo, a Sra. Epantchiná, como princesa nata, e a última do nome, fizera, mercê também de suas qualidades pessoais, amizades influentes nos círculos elevados, até que, ultimamente, ajudada pela fortuna e pela importância do esposo, já se considerava em casa, mesmo quando em esferas sociais mais elevadas. Fora durante esses anos que as filhas - Aleksándra, Adelaída e Agláia - tinham crescido. Assinavam-se apenas Epantchiná, é verdade, mas possuíam nobre estirpe pelo lado materno, contavam com um dote apreciável, tinham um pai que, cedo ou tarde, deveria galgar proeminentes posições, e - questão que também não se pode desprezar - eram todas as três notavelmente bonitas, inclusive a mais velha, Aleksándra, que já completara vinte e cinco anos. A segunda, Adelaída, tinha vinte e três e a mais nova, Agláia, apenas vinte. Esta é que era de fato uma beleza, começando já a atrair muita atenção na sociedade. Mas isso não era tudo. Todas as três se distinguiam pela educação, habilidade e talento. Cada qual percebera que se dava perfeitamente com as outras; sempre afinavam juntas, em tudo. Falava-se mesmo de sacrifícios feitos pelas duas mais velhas em favor da mais moça, que era o ídolo da casa. Não gostavam muito de se mostrar em sociedade e eram modestas. Ninguém as poderia censurar por altivas ou demasiado inacessíveis, apesar de se saber que eram orgulhosas e compreendiam quanto valiam. A mais velha era musicista; a segunda pintava passavelmente bem, conquanto isso não fosse do conhecimento geral, a não ser recentemente e, ainda assim, por acaso. Em uma palavra: muito se dizia em favor delas. Mas também havia críticas hostis. Falava-se com horror do número de livros que liam. Elas tinham pouca pressa em se casar; era-lhes agradável, e nada mais, pertencer a certo círculo de sociedade. Mas tudo isto era notável, pois todos conheciam a tendência, o caráter, os desejos e as propensões paternas.

Eram cerca de onze horas quando o príncipe tocou a campainha do apartamento do general, que era no primeiro andar e demasiado modesto se considerarmos a sua situação social. Um criado de libré abriu aporta e Míchkin teve dificuldade em explicar a sua aparição a esse homem que desde o começo olhava desconfiado para o seu embrulho. Por fim, ante a sua reiterada e categórica asserção de que era realmente o Príncipe Míchkin, e que precisava formalmente avistar-se com o general para um assunto importante, o criado perplexo o conduziu a uma pequena antecâmara, ao lado da sala de espera que precedia ao escritório do general; e aí o passou a outro criado, cujo dever era esperar, todas as manhãs, na ante-sala, os visitantes, indo anunciá-los ao general. Este outro criado, que usava uma casaca de compridas abas, tinha uma atitude muito empertigada para os seus quarenta anos. Era o criado grave de Sua Excelência que introduzia as visitas no escritório e só por isso se dava ares de importância.

- Passe para a sala de espera e deponha o seu embrulho aqui - disse, sentando-se em uma poltrona, com deliberada dignidade. Passando a olhar com firmeza para Míchkin que se tinha sentado em uma cadeira perto dele, com o embrulho no colo.

- Caso o senhor permita - rogou o príncipe - eu preferiria ficar aqui, com o senhor; que vou fazer lá na saleta, sozinho?

- O senhor não pode permanecer na ante-sala, pois é um visitante, em outras palavras, um hóspede momentâneo. Deseja ver o general em pessoa, ou...

Era evidente que o criado hesitava ante o pensamento de anunciar semelhante visita, razão pela qual fazia novas perguntas.

- Em pessoa, em pessoa, pois tenho um negócio a...

- Não me interessa saber o seu negócio. O meu dever é apenas anunciá-lo. Mas, como já lhe disse, na ausência do secretário, não posso fazê-lo entrar.

A desconfiança do homem crescia mais e mais, pois o príncipe não se parecia com o normal dos visitantes diários; e, mesmo que o general, em dadas horas, recebesse, às vezes, visitas da mais variada condição, especialmente em casos de negócios, o criado sentia, agora, a despeito da latitude das instruções que lhe tinham sido dadas, uma grande hesitação; e só mesmo a opinião do secretário é que lhe mostraria, de modo cabal, a atitude a tomar.

- O senhor é, realmente, de fora, do estrangeiro? - perguntou, sem querer; e logo ficou confuso. O que decerto pretendera perguntar era se ele “realmente era o Príncipe Míchkin”.

- Sim, vim de fora. Acabo de chegar da estação. Creio que o senhor ia perguntar se eu sou realmente o Príncipe Míchkin, não o tendo feito apenas por polidez.

- Hum! - fez o criado, admirado.

- Posso assegurar-lhe que não lhe disse uma mentira e que não se porá em apuros, por minha causa. E nem precisa espantar-se com a minha aparência e porque trago um embrulho. É que não estou, atualmente, em circunstâncias lá muito favoráveis.., florescentes.

- Hum! A tal respeito não tenha apreensões. O meu dever restringe-se a anunciá-lo; o secretário virá vê-lo, a menos que o senhor... Realmente, a dificuldade está em... O senhor não veio pedir nenhum auxilio ao general? Permita que avance esta pergunta!

- Oh! Não, absolutamente. Quanto a isso, fique descansado, O meu negócio é bem outro.

- Queira perdoar-me. Falei assim, por causa da impressão que o senhor me deu à primeira vista. Faça o favor de esperar; o secretário não demora! E Sua Excelência está ocupado, lá dentro, com o coronel, no presente momento. E depois, vem ainda o secretário.., da Companhia... que pediu hora.

- Bem, já que devo esperar ainda um pouco, gostaria de saber se há algum lugar por aqui, onde eu pudesse fumar. Trouxe comigo tabaco e um cachimbo.

- Fumar? - disse o criado, encarando-o com desdenhosa surpresa, como se não devesse acreditar no que ouvira. - Fumar? Não, o senhor não pode fumar aqui. O senhor devia-se envergonhar de pensar em uma coisa dessas. Eh! Eh! Que pergunta mais disparatada!

- Não quis dizer aqui nesta sala. Julguei que houvesse algum lugar que o senhor pudesse me mostrar, pois há já três horas que não fumo. Estou acostumado a fumar. Mas seja como o senhor quiser. Há um ditado, sabe o senhor, que diz: “Em Roma não se deve.., etc.”

O criado não pôde deixar de tartamudear: - Como é que vou anunciar um camarada da sua marca? O senhor (agora já ciciava) em primeiro lugar não devia estar aqui, o lugar de esperar é na sala de espera, pois o senhor é uma visita, em outras palavras, um hóspede, e vão ralhar comigo por causa disto. - Depois acrescentou, olhando de esguelha para o embrulho que evidentemente o intrigava:

- O senhor não tem a intenção de ficar aqui com a família, pois não?!

- Não! Nem penso nisso. Mesmo que fosse convidado. Vim apenas travar conhecimento com a família. E é tudo!

- Como? Travar conhecimento? - disse o criado com espanto e redobrada desconfiança e escandindo as palavras. - Mas, ora essa, o senhor no começo não disse que já os conhecia, que vinha tratar de um negócio?

- Negócio, propriamente, não. A bem dizer, sim, tenho um negócio, mas se prefere outra palavra, ei-la: vim aconselhar-me. E vim, principalmente, porque, sendo eu próprio Príncipe Míchkin, e sendo a Senhora Epantchiná uma princesa Míchkin por sua vez, a última delas aliás, não havendo, assim, pois, mais Príncipes Míchkin, exceto eu e ela...

- O senhor então é parente? - o lacaio ficava cada vez mais apalermado.

- Não sou propriamente isso. Ou melhor, para clarear um ponto, de vez, sou parente, mas tão afastado que nem tem valor contar com isso. Escrevi de lá à Senhora Epantchíná; mas não me respondeu. Apesar disso, no meu regresso, achei que devia vir conhecê-la. Estou lhe dizendo isso para o senhor se certificar a meu respeito, pois verifico que está preocupado. Basta anunciar o Príncipe Míchkin; e só este nome será razão suficiente para entenderem o motivo de minha visita. Se eu for recebido, bem; se não, tanto melhor, talvez. Mas não creio que deixem de me receber. É natural que a Sra. Epantchiná queira conhecer o último e único rebento da sua família. Ela considera sobremodo a sua família, conforme ouvi em fontes autorizadas.

A conversa do príncipe parecia bastante simples. Mas era justamente essa simplicidade que não se coadunava com o presente caso; e o criado, experimentado como era, não poderia senão sentir que o que era viável de homem para homem não o era absolutamente de uma visita para um serviçal. E, embora os criados, geralmente, sejam mais inteligentes do que os seus amos supõem, o nosso homem concluiu que havia duas explicações: ou o príncipe era uma espécie de impostor que tinha vindo pedir dinheiro ao general, ou era, simplesmente, um pouco tolo e falho de senso de dignidade, não compreendendo que não devia se sentar em uma sala nem conversar sobre negócios com um mero criado. Assim, em ambos os casos, só lhe iria dar incômodos. E então retorquiu, o mais expressivamente possível: De qualquer modo, seria melhor que o senhor fosse para a saleta de espera.

- É. Mas se eu estivesse lá não teria podido explicar ao senhor tudo isto - respondeu o príncipe, sorrindo, com bom humor. - E o senhor ainda estaria nervoso a olhar para a minha capa e o meu embrulho. Agora, decerto, o senhor já não vai precisar esperar pelo secretário e pode ir anunciar-me ao general.

- Eu não posso anunciar um visitante como o senhor sem falar antes com o secretário. Demais a mais, Sua Excelência deu ordens, agora mesmo, para não ser interrompido por ninguém enquanto estivesse com o coronel. O único a entrar, sem se fazer anunciar, só pode ser Gavríl Ardaliónovitch.

- É algum funcionário?

- Gavríl Ardaliónovitch? Não. É empregado da companhia... O senhor deve pôr o seu embrulho aqui.

- Eu estava pensando nisso também. E acho que devo tirar a capa.

- Naturalmente. Não vai entrar de capa.

O príncipe levantou-se e apressadamente se desembaraçou da capa, ficando só com o seu terno que, embora usado e com o paletó um pouco curto, era decente e de bom talho. Uma corrente de aço era visível no seu colete e preso a ela um reloginho de Genebra, de prata. Mesmo sendo o príncipe um bocado tolo - e o lacaio se tinha logo dado conta disso - não era verossímil conversar com um visitante. Mas, ainda assim, não deixava agora de sentir certo prazer, apesar dele lhe ter despertado um sentimento de grande e inevitável indignação quando ousou perguntar:

- E a Sra. Epantchiná, quando recebe ela as suas visitas? - e o príncipe voltou a sentar-se no mesmo lugar.





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Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte 1a. Em dada manhã...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte 1b. Parecia estar ainda doente...
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (2b.) Tais visitas não são atribuição minha.

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O Idiota, Episódio 3




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