domingo, 26 de julho de 2020

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)

Diante da Dor dos Outros





para David




… aux vaincus!
Baudelaire




A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson







2.

continuando...



Desde quando as câmeras foram inventadas, em 1839, a fotografia flertou com a morte. Como uma imagem produzida por uma câmera é, literalmente, um vestígio de algo trazido para diante da lente, as fotos superavam qualquer pintura como lembrança do passado desaparecido e dos entes queridos que se foram. Capturar a morte em curso era uma outra questão: o alcance da câmera permaneceu limitado enquanto ela tinha de ser carregada com esforço, montada, fixada. Mas depois que a câmera se emancipou do tripé, tornou-se de fato portátil e foi equipada com telêmetro e com uma modalidade de lentes que permitiam inéditas proezas de observação detalhada a partir de um ponto de vista distante, a fotografia adquiriu um imediatismo e uma autoridade maiores do que qualquer relato verbal para transmitir os horrores da produção da morte em massa. Se houve um ano em que o poder da fotografia para caracterizar, e não meramente registrar, as realidades mais abomináveis suplantou todas as narrativas complexas, com certeza foi 1945, com as fotos tiradas em abril e no início de maio em Bergen-Belsen, Buchenwald e Dachau, nos primeiros dias após a libertação dos campos de concentração, e com as fotos tiradas por testemunhas japonesas, como Yosuke Yamahata, nos dias seguintes à incineração da população de Hiroshima e de Nagasaki, no início de agosto. 

A era do choque — para a Europa — teve início três décadas antes, em 1914. No decorrer do ano que antecedeu a Grande Guerra, como foi chamada por algum tempo, muito daquilo que se considerava seguro e garantido passou a ser visto como frágil e até indefensável. O pesadelo de um envolvimento militar suicida do qual os países em guerra foram incapazes de se desembaraçar — acima de tudo, o massacre diário nas trincheiras da frente ocidental — parecia, para muitos, haver superado a capacidade das palavras para descrevê-lo.* Em 1915, ninguém menos do que o venerável mestre do intricado ofício de tecer um casulo de palavras em torno da realidade, o mago da verbosidade , Henry James, declarou a The New York Times: “Em meio a tudo isso, é tão difícil fazer uso das palavras como suportar os pensamentos. A guerra esgotou as palavras; elas se enfraqueceram, deterioraram-se [...]”. E Walter Lippmann escreveu em 1922: “As fotos têm hoje o tipo de autoridade sobre a imaginação que a palavra impressa tinha no passado e que, antes dela, a palavra falada tivera. Parecem absolutamente reais”.

As fotos tinham a vantagem de unir dois atributos contraditórios. Suas credenciais de objetividade estavam embutidas. Contudo sempre tiveram, forçosamente, um ponto de vista. Eram um registro do real — incontroverso como nenhum relato verbal poderia ser, por mais imparcial que fosse —, uma vez que a máquina fazia o registro. E as fotos davam testemunho do real — uma vez que alguém havia estado lá para tirá-las.

Fotos, sustenta Woolf, “não são um argumento; são simplesmente a crua constatação de um fato, dirigida ao olho”. A verdade é que elas não são “simplesmente” coisa alguma e, sem dúvida, não são apenas encaradas como fatos, nem por Woolf nem por quem quer que seja. Pois, como ela acrescenta logo em seguida, “o olho está ligado ao cérebro; o cérebro, ao sistema nervoso. Esse sistema envia suas mensagens na velocidade de um raio através de toda a memória do passado e do sentimento do presente”. Esse truque de ilusionista permite que as fotos sejam um registro objetivo e também um testemunho pessoal, tanto uma cópia ou uma transcrição fiel de um momento da realidade como uma interpretação dessa realidade — um feito a que a literatura aspirou por muito tempo mas que nunca conseguiu alcançar, nesse sentido literal.

Aqueles que sublinham a contundência comprobatória atribuída à criação de imagens por câmeras precisam usar de evasivas ao lidar com a questão da subjetividade do criador de imagens. Na fotografia de atrocidades, as pessoas querem o peso do testemunho sem a nódoa do talento artístico, tido como equivalente à insinceridade ou à mera trapaça. Fotos de acontecimentos infernais parecem mais autênticas quando não dão a impressão de terem sido “corretamente” iluminadas e compostas porque o fotógrafo era um amador ou — o que é igualmente aproveitável — adotou um dos diversos estilos sabidamente antiartísticos. Ao voarem baixo, em termos artísticos, essas fotos são julgadas menos manipuladoras — hoje, todas as imagens de sofrimento amplamente divulgadas estão sob essa suspeita — e menos aptas a suscitar compaixão ou identificação enganosas.

As fotos menos elaboradas não são apenas bem recebidas como portadoras de um tipo especial de autenticidade. Algumas delas podem até rivalizar com as melhores fotos, tão permissivos são os critérios para considerar uma foto memorável e eloquente. Isso ficou demonstrado em uma exposição exemplar de fotos que documentavam a destruição do World Trade Center, montada num espaço de frente para a rua no SoHo em Manhattan, no fim de setembro de 2001. Os organizadores de Aqui é Nova York, como a exposição foi retumbantemente intitulada, haviam convocado todos — amadores ou profissionais — que tivessem imagens do atentado ou de suas consequências a trazê-las. Vieram mais de mil respostas nas primeiras semanas, e, de cada pessoa, pelo menos uma das fotos apresentadas foi aceita para a exposição. Sem autoria e sem legenda, foram todas expostas, em duas salas estreitas ou em uma série de slides projetados num dos monitores de computador (e no site da exposição na internet), e postas à venda, na forma de cópias feitas por uma impressora de jato de tinta de alta qualidade, todas pela mesma quantia módica, 25 dólares (a renda foi para um fundo de amparo aos filhos dos que morreram no dia 11 de setembro). Após a compra, o cliente poderia saber se havia adquirido uma foto de Gilles Peress (um dos organizadores da exposição), de James Nachtwey, ou de uma professora aposentada que, debruçada na janela do quarto do seu apartamento alugado por um preço tabelado pelo governo, em Greenwich Village, flagrara com sua câmera automática a torre norte no momento da queda. “Uma democracia fotográfica”, subtítulo da exposição, passava a ideia de existirem obras de amadores tão boas quanto a dos profissionais experientes que participaram do evento. E de fato havia — o que prova algo a respeito da fotografia, ainda que não necessariamente a respeito da democracia cultural. A fotografia é a única arte importante em que um aprendizado profissional e anos de experiência não conferem uma vantagem insuperável sobre os inexperientes e os não preparados — isso ocorre por muitas razões, entre elas o grande peso do acaso (ou da sorte) no ato de fotografar, além da preferência pelo espontâneo, pelo tosco, pelo imperfeito. (Não existe nenhum termo de comparação no terreno da literatura, onde quase nada se deve ao acaso ou à sorte e onde o requinte de linguagem, em geral, não constitui objeto de punição; nem nas artes cênicas, onde o êxito autêntico é inatingível sem um aprendizado exaustivo e sem exercícios diários; ou no cinema, que não é guiado num grau relevante pelos preconceitos antiartísticos presentes em grande parte da fotografia de arte contemporânea.)





continua pág 77...


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Leia também:

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (3)




"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."



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"... conversar me dá a chance de saber o que penso..."





Resenha: 
Diante da dor dos outros, 
Susan Sontag





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