terça-feira, 7 de julho de 2020

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Primeiros Passos (III)

Livro II 

Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo III

OS PRIMEIROS PASSOS


Este imenso vale cheio de luzes resplandecentes e de milhares de homens
ofusca minha vista. Nenhum me conhece, todos me são superiores. Minha
mente se confunde.

POEMI DELL’AV REINA




O DIA SEGUINTE BEM CEDO, Julien fazia rascunhos de cartas na biblioteca, quando a srta. Mathilde entrou por uma pequena porta de saída, muito bem dissimulada com lombadas de livros. Enquanto Julien admirava essa invenção, a srta. Mathilde parecia muito surpresa e bastante contrariada de encontrá-lo ali. Com papelotes nos cabelos, Julien achou seu aspecto duro, altivo e quase masculino. A srta. de La Mole costumava roubar livros da biblioteca do pai, sem que o percebessem. A presença de Julien tornava inútil sua incursão naquela manhã, o que a contrariou tanto mais porque vinha buscar o segundo volume da Princesa da Babilônia, de Voltaire, digno complemento de uma educação eminentemente monarquisa e religiosa, obra-prima da Congregação do Sagrado Coração! Essa pobre moça, de dezenove anos, já tinha necessidade do estímulo do espírito para interessar-se por um romance. 
O conde Norbert apareceu na biblioteca por volta das três da tarde; vinha examinar um jornal, para poder falar de política à noite, e ficou contente de encontrar Julien, cuja existência havia esquecido. Foi perfeito em relação a ele e ofereceu-lhe montar a cavalo.

– Meu pai nos dispensou até o jantar.

Julien compreendeu esse “nos” e achou-o encantador.

– Meu Deus, senhor conde, disse Julien, se fosse para derrubar uma árvore de trinta metros de altura, cortá-la e fazer tábuas, ouso dizer que me sairia muito bem, mas montar a cavalo, isso só me aconteceu seis vezes na vida.

– Pois então será a sétima, disse Norbert.

No fundo, Julien lembrava-se da entrada do rei de *** em Verrières e acreditava montar a cavalo muito bem. Mas, ao voltar do bosque de Boulogne, bem no meio da rua do Bac, caiu, ao tentar evitar bruscamente um cabriolé. Ainda bem que ele tinha dois trajes. No jantar, querendo dirigir-lhe a palavra, o marquês pediu notícias de seu passeio; Norbert apressou-se a responder em termos gerais.

– Senhor, o conde está sendo muito amável comigo, disse Julien, agradeço e reconheço o valor disso. Ele dignou-se dar-me o cavalo mais manso e bonito; mas, afinal, não podia atar-me e, sem essa precaução, caí bem no meio daquela rua comprida, perto da ponte.

A srta. Mathilde tentou em vão dissimular uma risada, a seguir sua indiscrição pediu detalhes. Julien saiu-se com muita simplicidade; sem que o soubesse, teve graça.

– Esse padrezinho vai longe, disse o marquês ao acadêmico; um provinciano simples numa situação como essa! É o que nunca se viu nem se verá; e ainda por cima conta sua infelicidade diante de senhoras!

Julieu colocou seus ouvintes tão à vontade sobre seu infortúnio que, ao final do jantar, quando a conversação geral tomou outro rumo, a srta. Mathilde fez perguntas ao irmão sobre detalhes do acidente. Como as perguntas se prolongassem, e Julien encontrasse os olhos dela várias vezes, ele ousou responder diretamente, embora não fosse interrogado, e os três acabaram rindo, como o fariam três jovens aldeões no fundo de um bosque.
No dia seguinte, Julien assistiu a duas aulas de teologia e depois voltou para transcrever umas vinte cartas. Encontrou instalado perto de seu lugar, na biblioteca, um jovem vestido com muito esmero, mas de aspecto mesquinho e com uma expressão de inveja.
O marquês entrou.

– Que faz aqui, sr. Tanbeau?, disse ao recém-chegado, num tom severo.

– Eu pensei..., disse o jovem, sorrindo servilmente.

– Não, o senhor não pensou. Isto é uma tentativa, mas infeliz.

O jovem Tanbeau levantou-se furioso e desapareceu. Era um sobrinho do acadêmico, amigo do sr. de La Mole, que se destinava às letras. O acadêmico obtivera que o marquês o tomasse como secretário. Tanbeau, que trabalhava numa peça afastada, tendo sabido do favor que Julien gozava, quis partilhá-lo, e de manhã viera estabelecer seu escritório na biblioteca.
Às quatro da tarde, Julien ousou, após um instante de hesitação, dirigir-se aos aposentos do conde Norbert. Este ia montar a cavalo e ficou embaraçado, pois era muito polido.

– Penso, disse ele a Julien, que em breve terá aulas de equitação; depois de algumas semanas, ficarei encantado de montar a cavalo com você.

– Queria ter a honra de agradecer-lhe as amabilidades que teve comigo; acredite, senhor, acrescentou Julien com um ar muito sério, sei bem o que lhe devo. Se seu cavalo não se feriu por causa de minha inabilidade de ontem, e se está livre, gostaria de montar agora.

– Então, meu caro Sorel, será por sua conta e risco. Considere que lhe fiz todas as objeções que a prudência exige; o fato é que são quatro horas, não temos tempo a perder.

Quando já estava a cavalo, Julien perguntou ao jovem conde:

– Que se deve fazer para não cair?

– Muitas coisas, respondeu Norbert, rindo às gargalhadas: por exemplo, inclinar o corpo para trás.

Julien partiu a trote largo. Estavam na praça Luís XVI.

– Ah! Jovem temerário, disse Norbert, há muitos carros, e conduzidos por imprudentes! Uma vez no chão, os tílburis passarão por cima de seu corpo; eles não se arriscarão a machucar a boca do cavalo puxando bruscamente as rédeas.

Por vinte vezes, Norbert viu Julien a ponto de cair; mas finalmente o passeio acabou sem acidente. De volta à casa, o jovem conde disse à irmã:

– Apresento-lhe um cavaleiro ousado.

No jantar, falando ao pai, de uma extremidade à outra da mesa, ele reconheceu o mérito da ousadia de Julien; era tudo o que se podia elogiar em sua maneira de montar a cavalo. De manhã, o jovem conde ouvira os homens que cuidavam dos cavalos no pátio mencionarem a queda de Julien, zombando dele de maneira ultrajante.
Apesar de tanta amabilidade, Julien logo sentiu-se perfeitamente isolado no meio dessa família. Todos os costumes pareciam-lhe singulares, e ele não se acostumava a nenhum. Seus lapsos faziam a alegria dos criados.
O abade Pirard partira para sua paróquia. Se Julien é um frágil caniço, que pereça; se é um homem de coragem, que vença as dificuldades sozinho, ele pensava.




continua página 177...
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Prazeres do Campo (I-2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (III)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-1)



O Vermelho e O Negro (Stendhal)
 | Tatiana Feltrin



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