domingo, 2 de agosto de 2020

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (2b.) Tais visitas não são atribuição minha.

O Idiota


Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


2b.


- Tais visitas não são atribuição minha. A senhora generala recebe em diferentes ocasiões, de acordo com o que elas sejam. A costureira é admitida às onze em ponto. Gavríl Ardaiiónovitch é admitido mesmo antes de qualquer outra pessoa, às vezes até antes do almoço. 

- Os cômodos aqui são mantidos em uma temperatura melhor do que no estrangeiro observou Míchkin.

- Mas lá, o ar, fora de casa, é menos gélido do que aqui. Um russo, se não estiver acostumado, dificilmente poderá viver nas casas de lá, durante o inverno.

- Eles as aquecem?

- Não. E as casas são de construção diferente, isto é, as janelas e os fogões são de outro feitio.

- Hum... O senhor esteve por lá muito tempo?

- Quatro anos. Mas, quase sempre no mesmo lugar, sempre fora de grandes cidades.

- De modo que se desacostumou dos nossos hábitos!

- Sim, de certo modo. E acredite que até estou surpreendido de não ter esquecido o russo. Enquanto falo com o senhor, fico pensando: “Ora, não é que estou falando lindamente o russo?!” Talvez até, quem sabe se não é por isso que estou falando tanto? Desde ontem que estou abusando, falando russo sem parar.

- Hum!... Ah! O senhor antes viveu em Petersburgo?

Apesar de seus esforços, o lacaio não pode resistir e enveredou por uma conversa polida e afável.

- Em Petersburgo? Eu? Raramente estive aqui. Só de passagem para outros lugares. Antes não conhecia nada da cidade, agora, segundo ouvi, há muitas coisas novas, de modo que mesmo quem a conhecia ainda tem muita coisa fresca para ver. Fala-se muito do novo Palácio da Justiça.

- Há! O Palácio da Justiça. Sim, realmente há um Palácio da Justiça. E lá pelo estrangeiro, como é? Há por lá muitas cortes de justiça? São como as nossas?

- Não saberia lhe responder. Ouvi gabarem muito as nossas daqui. Conforme o senhor sabe, nós não temos, por exemplo, a pena capital.

- Então, lá, eles executam gente?

- Sim. Uma vez eu vi, na França, em Lião. O Dr. Schneider me levou.

- Enforcam, não é?

- Não. Em França eles cortam fora as cabeças.

- Gritam?

- Como poderiam? Aquilo é feito em um instante. Fazem o homem ficar deitado e então uma grande faca desce, pelo próprio peso. Uma máquina poderosa, chamada guilhotina. A cabeça pula fora antes que a pessoa pisque! Os preparativos são horríveis. Mal acabam de ler a sentença, aprontam o homem, atam-no, levam-no para o cadafalso - e isso é que é terrível! Juntam-se multidões, até mulheres, embora não gostem que as mulheres assistam.

- Não é coisa para elas!

- Naturalmente que não. Naturalmente Uma coisa assim, tão hedionda! O criminoso era um homem inteligente, de meia-idade, forte, corajoso, chamado Legros. Mas lhe garanto que quando subiu para o cadafalso estava chorando, e mais branco do que uma folha de papel. Não é incrível? Não é hediondo? Quem pode chorar de medo? Nunca me passou pela cabeça que um homem já feito não uma criança, mas um homem que nunca chorou, um homem de quarenta e cinco anos, pudesse chorar de medo! O que não deve estar se passando na sua alma, nesse momento!? A que angústia não deve ela estar sendo levada!? É um ultraje para uma alma, eis que é! Está escrito: “Não matarás!” E então, porque ele matou, o matam? Não. Isso está errado! Já faz um mês que assisti a isso, mas me parece estar ainda vendo com os meus olhos. Já tenho sonhado uma meia dúzia de vezes.

Míchkin, enquanto falava, estava completamente mudado; uma ligeira coloração subira ao seu rosto pálido, muito embora a sua voz continuasse gentil. O lacaio seguia-o com simpático interesse, tanto que o desagradou ter o príncipe se calado. Ele, decerto, também era um homem de imaginação e de sensibilidade, cujo pensamento trabalhava.

- Ainda é uma boa coisa que, pelo menos, não haja muito sofrimento quando a cabeça cai.

- Quer saber de uma coisa? O senhor fez justamente uma observação que já ouvi de muitas outras pessoas – prosseguiu o príncipe, acalorando-se - e a guilhotina foi inventada com esse fim. Mas, naquela ocasião, me ocorreu o pensamento de que talvez isso fosse pior. Pode lhe parecer absurda e bárbara esta minha ideia, mas, quando se tem imaginação, se chega, como eu, a supor isso. Pense! Se houvesse tortura, se, por exemplo, houvesse sofrimento, um ferimento que desse agonia corporal, e tudo o mais, isso pelo menos distrairia o espírito, desviando-o do sofrimento moral, de maneira que só se seria torturado pela dor física até que se morresse. Mas a principal e pior pena não está no sofrimento corporal e sim em se saber com segurança matemática que, em uma hora, depois em dez minutos, a seguir em meio minuto, e, depois, já, bem agora mesmo, neste segundo, a alma deve deixar o corpo, e se vai cessar de ser homem; e que isso tem de acontecer!... O pior de tudo isso está em que é certo. Quando o senhor deita a sua cabeça lá, debaixo da lâmina, e a ouve escorregar vindo para a sua cabeça, este quarto de segundo é o mais terrível de todos. O senhor note que isso não é imaginação da minha parte. Muita gente tem dito o mesmo. Vamos a ver se consigo lhe dizer cabalmente o que sinto. Matar, por causa de um assassinato, é uma punição incomparavelmente pior do que o próprio crime cometido. O assassinato por sentença judicial é incomensuravelmente pior do que assassinato cometido por bandidos. Quem quer que seja assassinado por bandidos, e, cuja garganta tenha sido cortada, em um bosque, à noite, ou qualquer coisa assim, naturalmente que espera escapar até o último momento. Tem havido casos de uma pessoa ainda esperar escapar, correndo, ou suplicando misericórdia, e já depois da garganta ter sido cortada! Mas no outro caso, a que nos estamos referindo, toda esta última esperança, que faz morrer dez vezes, como é fácil compreender, está suprimida. pois se sabe que é certo, Há uma sentença; e toda a medonha tortura jaz no fato de que não há, certamente, meios de escapar. E não há, no mundo, tortura maior do que esta. Podem-se comandar soldados, mandar que um deles se coloque diante de um canhão, em batalha, e ele saber que vão dispará-lo sobre ele: ainda assim, terá uma esperança. Mas leia o senhor uma dada sentença de morte a esse mesmo soldado e ele ou enlouquecerá, ou cairá em lágrimas. Quem já afirmou que a natureza está capacitada para suportar isso, sem loucura? Para que e por que essa revoltante, inútil e desnecessária atrocidade? Talvez, por aí haja algum homem que já tenha sido exposto a tal tortura e a quem tenha sido dito: “Vai-te embora. Estás perdoado!” Tal homem decerto, nos pode dizer que foi dessa tortura e dessa agonia que Cristo falou, também. Não, não se pode tratar assim uma criatura humana!

Muito embora o lacaio não estivesse em condições de se exprimir como Míchkin, compreendeu muito, se não tudo, dessa conversa. Isso estava patenteado na expressão atônita do seu rosto.

- Já que o senhor está tão desejoso de fumar - observou ele - acho que terá tempo, talvez. Mas, apresse-se, pois Sua Excelência pode muito bem perguntar de repente quem estava.., e o senhor ainda estar lá fumando. Está vendo aquela porta, no vão da escada? Vá até lá, abra-a. Encontrará uma saleta, à direita. Pode fumar lá; mas seria bom abrir a janela, pois é contra as regras...

Míchkin, porém, não teve tempo para se informar melhor, nem muito menos para fumar. Entrou na sala um jovem com papéis embaixo do braço, que o olhou de esguelha. O lacaio ajudou-o a tirar o casaco de pele.

- Aqui este cavalheiro - começou o lacaio, em uma espécie de confidência quase familiar - se anuncia como Príncipe Míchkin e como parente da senhora generala. Acaba de chegar do estrangeiro, apenas com esse embrulho debaixo do braço...

O príncipe não percebeu o resto. Enquanto o lacaio cochichava, Gavríl Ardaliónovitch o escutava com muita atenção, olhando para o príncipe. Cessando afinal de ouvir, aproximou-se pressuroso:

- O senhor é o Príncipe Míchkin? - perguntou com extrema polidez e cordialidade.

Era um jovem de boa aparência, louro, de cerca de uns vinte e oito anos, também de estatura média, com bonito penteado, uma barba à Napoleão III, o rosto vivo e simpático. Só o seu sorriso, todo afabilidade, era um pouco esquisito. Ostentava dentes que pareciam pérolas. A despeito da jovialidade e da aparente maneira natural, havia alguma coisa nele que era demasiado intencional, principalmente no modo dos seus olhos perquirirem. Míchkin sentiu que, quando sozinho, esse homem devia parecer bem outro, talvez até não rindo nunca. Explicou-se o mais breve que pôde, repetindo parte do que já expusera ao camareiro e a Rogójin. Enquanto isso, parecia que qualquer recordação se ia avivando no espírito de Gavríl Ardaliónovitch.

- Não foi o senhor que mandou uma carta a Lizavéta Prokoievna, há um ano, mais ou menos, da Suíça?

- Sim.

- Então estão a par de tudo, a seu respeito, e certamente se recordarão do senhor. Deseja ver Sua Excelência? Vou anunciá-lo. imediatamente. Sua Excelência deve ficar livre já. Somente... seria melhor se o senhor passasse para a sala de espera... Por que está aqui este senhor? - perguntou ao criado, arrogantemente.

- Digo-lhe já: não houve meios de o convencer a...

Bem neste momento a porta do escritório se abriu e um militar com uma pasta debaixo do braço, se inclinou ao sair, falando alto. E uma voz exclamou lá de dentro do gabinete:

- Você já está aí, Gánia? Venha cá.

Gavril Ardaliónovitch fez sinal a Míchkin que esperasse, e entrou apressadamente para o escritório. Nem dois minutos depois, a porta se reabria e a voz musical e afável de Gavril Ardaliónovitch se fazia ouvir.

- Príncipe, faça o favor de entrar.

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