domingo, 7 de agosto de 2022

histórias davóinha: becos sem saída (II) 13bs - os tempos eram assim

becos sem saída


(II) o descolocado
13bs – os tempos eram assim...

baitasar


as crianças da memória sentem falta das crianças do vizinho, Um vizinho descolocado, Um elemento inútil propenso à escravidão, Não diz assim, Virgílio, Se não tem emprego é preguiçoso e frouxo... como se diz? Indolente, vagabundo sem inteligência, Tu andou bebendo, Não... mas se bebi, e daí? Ninguém tem nada com isso, Que merda, Virgílio, Cuidado com essa boca linguaruda desbocada, não vem dá faniquitinho, se dou um pulinho no bar, bastou, cansada, sem medo, sente uma profunda sonolência, uma desistência torta, incômoda, esfrega as vistas, as brasas dos olhos quase extintas, Ora tu defende o vizinho ora tu acusa o homem de pouco trabalhador e vadio, Vai ver eu tenho duas caras, a língua enrolada do virgílio parecia com gosto de erva de véspera, dormida na cuia do chimarrão, Isso eu já sei, tem a cara que bebe e a cara que não bebe, Não tem café nesta casa, Café tem... o que não tem é fogo, Como assim, Não tem fogo porque não tem gás, Por que não disse logo, fica dando volta com conversa fiada, Então, sai e vai buscar, Eu vou mesmo, Tem dinheiro, O Seu Ivo coloca no caderno, Fica feio pedir fiado, Não é fiado, é um adiantamento. Fiado é coisa pra desempregado preguiçoso, até pode não ter culpa, mas fica feio e ruim pras vistas dos miúdos e das pessoas de bem da Villa, memória esboçou um discreto muxoxo tolerante, subiu um calorão despropositado, sem suor, ia e vinha, a paciência esgotada, Tem vez que eu acho que tu queria branquear essa pela preta, Um pouco mais claro, talvez, e com dinheiro, sou capaz de passar por branco, o calorão subindo, a umidade da beirada do rio, a carapinha sem franja, não lembra se já fez franja, os cantos da boca espumando, já viveu tanta mentira, traição e morte, um beco sem saída, a goeleta do miúdo que vomita carne, o bodum azedo e espurento da bebida no virgílio

delirante

da áfrica foram arrancadas fornadas e fornadas de pretos e pretas de todos os tipos e tamanhos, de várias tribos e nações, os sudaneses: Iorubás; Nagôs, Ijexás, Egbas e Ketus; os daomeanos do grupo Jejê, os Minas, Krumans, Egbas, Agnis e Zenas; os Islamitas, Penhls, Haussás, Tapas, Bornus, Gurunsis, Malinkes, Wolofs e Bambaras. os Banto, de Angola, do Congo, Benguelas, Ambundas e Cassangues. os Bangalas, Imbagalas, Dembos e Cabindas. os Zulus, Umbundus e Quimbundus, aos milhares acorrentados nos pés e mãos, nus, confundidos entre vivos, mortos e moribundos, cambaleantes, doentes, sem comida, sedentos, a pele ressequida, chegavam de viagem - da estrada da morte ao inferno - com piolhos, sarnas, coceiras, jogados nas ruas, chegados de todos os cantos da África, dos portos de Cabinda e Luanda em Angola; da costa da MIna, do cabo Mozurar e do cabo Gonçalves; da Guiné, de Uidá, Apá, Onin e Badagris. chegavam de Madagascar, Moçambique ou Cabo Verde, de São Tomé e do Congo, não tem com passar uma borracha e fazer de conta que não teve e continua, mas com outras caras e jeitos

Pra passar por branco precisa estudar, aprender a ler e escrever, entrar na forma que molda o melhor jeito de ser útil, Eu já tenho utilidade, Só se é jogando bolinha de gude... porque com essa cara feia, olhando enviesado, desembestado, todo misturado com cachaça, não tem utilidade pra mim, tonto não tem serviço, Eu sou substituto da ferrovia, Maria, Um substituto que não existe, o ferroviário tampão levantou a cabeça para mostrar seu olhar desaprovador, O que foi? Eu tô mentindo? Tu nem tem nome nesta lista escondida de substituto. Isso não existe, é coisa do capataz. Tu não existe. Ninguém sabe e nunca vai saber, Pra fazer o que eu faço não precisa ler nem escrever. Tem muito branco metido que não faz nem a metade, E não quer aprender a fazer porque não precisa fazer, não quer esse serviço que não existe, o silêncio é quebrado pela voz abafada e cansada da memória, Serviço sem pagamento fixo, sem assinar carteira, sem envelope com nome, é ocupação pra preto sem escola, sem instrução.

memória tem um homem primoroso – o único desvio é a cachaça –, apalavrado em três lugares diferentes, um dispositivo biscateiro que não reconhece os infortúnios da vida, suas doenças, nem oferece o justo valor, Agradeço todo santo dia que tu não virou bandido escondido no beco, Eu agradeço a ferrovia que me ensinou colocar e retirar dormentes, Pena que não aprendeu a ser maquinista, Nesse tempo, maquinista era coisa de branco, pelo menos, era o dito pelo mister, memória lembrou de perguntar o que nunca perguntou, Começou fazendo o quê, Varrendo vagões, fui varredor, Interessante, aqui em casa não ajuda com a vassoura, Aquilo era trabalho, mas coisa de guri, Aham... e aqui em casa, é o quê, virgílio fez o que sempre faz com as provocações da memória, segue do seu jeito, Pagavam pouco, Parece que não mudou muito essa coisa de pagar pouco, Tem coisa que não muda, Maria.

um jogo de truques para sobreviver, serviço temporário de segunda ou terceira qualidade, trabalho árduo, sem contrato, sem compensação, sem qualquer vínculo ou ligação, apenas para consertar a fome das crianças da casa e da maria memória

Tenho uns vinte anos ou mais de biscates na ferrovia, ajudante de pedreiro e vigilante noturno. Sei que não sou reservista regulamentado, sou um quebra-galho voluntário, Já puxei carrinho com osso, papelão, garrafa vazia,  ferro-velho. Conheço a Villa com a palma da mão, mas essa andança toda não é mais pra mim, ando cansado, E sonho, Virgílio? As pessoas se engalfinham por flores de plástico, anjos de mistério, água benta, milagres, descarregos contra nervosismo e feitiçaria, falsidades, dízimos, gente chifrando gente, medo de polícia, gado desembestado, o chamego da bunda que mexe e remexe, tu tem algum sonho carnudo, Meu sonho sempre foi ser maquinista, mas não cheguei nem a ser fornecedor de locomotiva, O que é isso, É o serviço de botar carvão e lenha nas máquinas, o ajudante do foguista, o calorão da memória se arrepiou, ela gemeu, Cruzes, devia ser uma tortura, Já fui carvoeiro, uma vez só. Fuligem, carvão e uma pá de dez quilos. Botava sem parar carvão na fornalha, um inferno! Um serviço que enfraquecia o pulmão. Não bebia, Não acredito, Eu me cuidava muito. Nunca fui elogiado, mas era sempre chamado quando o serviço apertava e os doentes da ferrovia aumentavam. Uma pena que nunca deu pra comprar na cooperativa. Não era efetivo.

na ferrovia, virgílio trabalhava consertando e colocando dormentes, colocado para substituir substituto doente, nada oficial, nunca foi fornecedor ou carvoeiro, nunca foi assim, isso nunca existiu, é tudo invencionice, não se tem registro, sem boletim, sem contrato, apenas mais um dormente em alguma vala comum, sem identificação, com um bilhete, Venha...

Maria, O que foi, Virgílio, Dizem, na boca pequena, nada esclarecido ou registrado, que continua desaparecendo ferroviário, No troco do quê, Confusão do sindicato com os milicos, Não te mete, Virgílio! Pelo amor do Menino Deus! Não te mete!

os tempos eram assim...

_________________


Leia também:

becos sem saída (I) 01bs - as águas que vêm e vão
becos sem saída (I) 02bs - histórias desamarradas e borradas
becos sem saída (I) 03bs - sobre nós e histórias borradas
becos sem saída (I) 04bs - cacete pra todo lado!
becos sem saída (I) 05bs - as mãos amarradas
becos sem saída (I) 06bs - o vazio da botina
becos sem saída (I) 07bs - maria futuro
becos sem saída (I) 08bs - um lugar para voltar
becos sem saída (I) 09bs - e adianta saber?
becos sem saída (II) 10bs - sem emprego, sem utilidade
becos sem saída (II) 11bs - notícia ruim
becos sem saída (II) 12bs - fome é fome
becos sem saída (II) 13bs - os tempos eram assim...
becos sem saída (II) 14bs - um marido eficiente

Nenhum comentário:

Postar um comentário