quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (l)

Paulo Freire 




“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar 







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



4. A teoria da ação antidialógica


A TEORIA DA AÇÃO DIALÓGICA E SUAS
CARACTERÍSTICAS: A CO-LABORAÇÃO,
A UNIÃO, A ORGANIZAÇÃO E A SÍNTESE
CULTURAL

UNIR PARA A LIBERTAÇÃO



Se, na teoria antidialógica da ação, se impõe aos dominadores, necessariamente, a divisão dos oprimidos com que, mais facilmente, se mantém a opressão, na teoria dialógica, pelo contrário, a liderança se obriga ao esforço incansável da união dos oprimidos entre si, e deles com ela, para a libertação.

O problema central que se tem nesta, como em qualquer das categorias da aço dialógica, é que nenhuma delas se dá fora da práxis.

Se, para a elite dominadora, lhe é fácil, ou pelo menos, não tão difícil, a práxis opressora, já, não é o mesmo o que se verifica com a liderança revolucionária, ao tentar a práxis libertadora. ~

Enquanto a primeira conta com os instrumentos do poder, a segunda se encontra sob a força deste poder.

A primeira se organiza a si mesma livremente e, mesmo quando tenha as suas divisões acidentais e momentâneas, se unifica rapidamente em face, de qualquer ameaça a seus interesses fundamentais. A segunda, que não existe sem as massas populares, na medida em que é contradição antagônica da primeira, tem, nesta mesma condição, o primeiro óbice à sua própria organização.

Seria uma inconsequência da elite dominadora se consentisse na organização das massas populares oprimidas, pois que não existe aquela sem a união destas entre si e destas com a liderança. Enquanto que, para a elite dominadora, a sua unidade interna, que lhe re-força e organiza o poder, implica na divisão das massas populares, para a liderança revolucionária, a sua unidade só existe na unidade das massas entre si e com ela.

A primeira existe na medida de seu antagonismo com as massas; a segunda, na razão de sua comunhão com elas, que, por isto mesmo, têm de estar unidas e não divididas.

A própria situação concreta de opressão, ao dualizar o eu do oprimido, ao fazê-lo ambíguo, emocional- mente instável, temeroso da liberdade, facilita a aço divisória do dominador nas mesmas proporções em que dificulta a aço unificadora indispensável à prática libertadora.

Mais ainda, a situação objetiva de dominação é, em si mesma, uma situação divisória. Começa por dividir o eu oprimido na medida em que, mantendo-o numa posição de “aderência” à realidade, que se lhe afigura como algo todo-poderoso, esmagador, o aliena a entidades estranhas, explicadoras deste poder.

Parte de seu eu se encontra na realidade a que se acha “aderido”, parte fora, na ou nas entidades estranhas, às quais responsabiliza pela força da realidade objetiva, frente à qual nada lhe é possível fazer. Daí que seja este, igualmente, um eu dividido entre o passado e o presente iguais e o futuro sem esperança que, no fundo, não existe. Um eu que não se reconhece sendo, por isto que não pode ter, no que ainda vem, a futuridade que deve construir na união com outros.

Na medida em que seja capaz de romper a “aderência”, objetivando em termos críticos, a realidade, de que assim emerge, se vai unificando como eu, como sujeito, em face do objeto. É que, neste momento, rompendo igualmente a falsa unidade do seu ser dividido, se individua verdadeiramente.

Desta maneira, se, para dividir, é necessário manter o eu dominado “aderido” à realidade opressora, mitificando-a, para o esforço de união, o primeiro passo é a desmistificação da realidade.

Se, para manter divididos os oprimidos se faz indispensável uma ideologia da opressão, para a sua união é imprescindível uma forma de ação cultural através da qual conheçam o porquê e o como de sua “aderência” à realidade que lhes dá um conhecimento falso de si mesmos e dela. É necessário desideologizar.

Por isto é que o empenho para a união dos oprimidos não pode ser um trabalho de pura “sloganização” ideológica. É que este, distorcendo a relação autêntica entre o sujeito e a realidade objetiva, divide também o cognoscitivo do afetivo e do ativo que, no fundo, são uma totalidade indicotomizável.

O fundamental, realmente, na ação dialógico-libertadora, não é “desaderir” os oprimidos de uma realidade mitificada em que se acham divididos, para “aderi-los” a outra.

O objetivo da ação dialógica está, pelo contrário, em proporcionar que os oprimidos, reconhecendo o porquê e o como de sua “aderência”, exerçam um ato de adesão à práxis verdadeira de transformação da realidade injusta.

Significando a união dos oprimidos a relação solidária entre si, não importam os níveis reais em que se encontrem como oprimidos, implica esta união, indiscutivelmente, numa consciência de classe.

A “aderência” à realidade, contudo, em que se encontram, sobretudo os oprimidos que constituem as grandes massas camponesas da América Latina, está, a exigir que a consciência de classe oprimida, passe, senão antes, pelo menos concomitantemente, pela consciência de homem oprimido.

Propor a um camponês europeu, como um problema, a sua condição de homem, lhe parecerá, possivelmente, algo estranho.

Já, não é o mesmo fazê-lo a camponeses latino-americanos, cujo mundo, de modo geral, se “acaba” nas fronteiras do latifúndio, cujos gestos repetem, de certa maneira, os animais e as árvores e que, “imersos” no tempo, não raro se consideram iguais àqueles.

Estamos convencidos de que, para homens de tal forma “aderidos” à natureza e à figura do opressor, é indispensável que se percebam como homens proibidos de estar sendo.

A “cultura do silêncio”, que se gera na estrutura opressora, dentro da qual e sob cuja força condicionante vêm realizando sua experiência de “quase-coisas”, necessariamente os constitui desta forma.

Descobrirem-se, portanto, através de uma modalidade de ação cultural, adialógica, problematizadora de si mesmos em seu enfrentamento com o mundo, significa, num primeiro momento, que se descubram como Pedro, Antônio, com Josefa, com toda a significação profunda que tem esta descoberta. No fundo, ela implica numa percepção distinta da significação dos signos. Mundo, homens, cultura, árvore, trabalho, animal, vão assumindo a significação verdadeira que não tinham.

Reconhecem-se, agora, como seres transformadores da realidade, para eles antes algo misterioso, e transformadores por meio de seu trabalho criador.

Descobrem que, como homens, já, não podem continuar sendo “quase-coisas” possuídas e, da consciência de si como homens oprimidos, vão à consciência de classe oprimida.

Quando a tentativa de união dos camponeses se faz à base de práticas ativistas, que giram em torno de “slogans” e não penetram nestes aspectos fundamentais, o que se pode observar à sua justa posição dos indivíduos, que dá à sua ação um caráter puramente mecanicista.

A união dos oprimidos é um quefazer que se dá, no domínio do humano e não no das coisas. Verifica-se, por isto mesmo; na realidade que só estará sendo autenticamente compreendida, quando captada na dialeticidade entre a infra e supra- estrutura.

Para que os oprimidos se unam entre si, é preciso que cortem o cordão umbilical, de caráter mágico e mítico, através do qual se encontram ligados ao mundo da opressão.

A união entre eles não pode ter a mesma natureza das suas relações com esse mundo.

Esta é a razão por que, realmente indispensável ao processo revolucionário, a união dos oprimidos exige deste processo que ele seja, desde seu começo, o que deve ser: Ação cultural.

Ação cultural, cuja prática para conseguir a unidade dos oprimidos vai depender da experiência histórica e existencial que eles estejam tendo, nesta ou naquela estrutura.

Enquanto os camponeses se acham em uma realidade “fechada”, cujo centro decisório da opressão é “singular” e compacto, os oprimidos urbanos se encontram num contexto “abrindo-se”, em que o centro de comando opressor se faz plural e complexo.

No primeiro caso, os dominados se acham sob a decisão da figura dominadora que encarna, em sua pessoa, o sistema opressor mesmo; no segundo, se encontram submetidos a uma espécie de “impessoalidade opressora”.

Em ambos os casos há uma certa “invisibilidade” do poder opressor. No primeiro, pela sua proximidade aos oprimidos; no segundo, pela sua diluição.

As formas de ação cultural, em situações distintas como estas, têm, contudo, o mesmo objetivo: aclarar aos oprimidos a situação objetiva em que estão, que é mediatizadora entre eles e os opressores, visível ou não.

Somente estas formas de ação que se opõem, de um lado, aos discursos verbalistas e aos blablablás inoperantes e, de outro, ao ativismo mecanicista, podem opor-se, também, à ação divisória das elites dominadoras e dirigir-se no sentido da unidade dos oprimidos.




continua página 101...

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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetização – Métodos 2. Alfabetização – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 


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