sábado, 20 de agosto de 2022

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (37)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1



1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada




Memórias de duas jovens esposas




PRIMEIRA PARTE



XL – A CONDESSA DE L’ESTORADE À BARONESA DE MACUMER


Janeiro de 1827


Meu pai foi nomeado, meu sogro morreu, e eu estou outra vez a ponto de dar à luz: tais são os acontecimentos notáveis deste fim de ano. Digo-os de imediato, para que logo se dissipe a impressão que te vai causar o meu papel tarjado.
Minha mimosa, tua carta de Roma fez-me vibrar de temor. Vocês são duas crianças. Felipe é ou um diplomata que dissimula ou um homem que te ama como amaria a uma cortesã, a quem sacrificasse sua fortuna, sabendo embora que ela o trai. Mas basta. Vocês me tomam por uma velha tonta, calo-me. Mas deixam-me dizer-te que, estudando nossos dois destinos, tiro desse estudo um princípio cruel: se queres ser amada, não ames.
Luís, minha querida, obteve a cruz da Legião de Honra ao ser nomeado membro do Conselho Geral. Ora, como breve fará três anos que ele pertence ao Conselho e que meu pai, a quem verás provavelmente em Paris, durante a sessão, pediu para o genro o grau de oficial, faze-me o favor de empregar a tua habilidade no mamamouchi, [1] para que logo se efetue essa nomeação e de te interessares por essa insignificância. Sobretudo, não te preocupes com os assuntos do meu muito honrado pai, o conde de Maucombe, que quer obter o título de marquês; guarda os teus favores para mim. Quando Luís for deputado, isto é, no próximo inverno, iremos a Paris e ali revolveremos céu e terra para colocá-lo em alguma diretoria geral, a fim de podermos economizar todas as nossas rendas, vivendo dos ordenados de um cargo. Meu pai está entre o centro e a direita e pede apenas um título; nossa família já era célebre no tempo do rei Renato, [2] e por isso o rei Carlos X não recusará um Maucombe; mas tenho meus receios de que meu pai queira solicitar algum favor para o meu irmão mais moço. Mantendo, porém, o bombom do marquesado um pouco fora do alcance de meu pai, este não poderá pensar senão em si mesmo.




15 de Janeiro


Ah!, Luísa, acabo de sair do inferno! Se tenho a coragem de te falar de meus sofrimentos, é que tu se me afiguras uma outra eu mesma. E mesmo assim não sei se jamais deixarei meus pensamentos volver a estes cinco dias fatais! Só a palavra convulsão basta para causar-me arrepios, mesmo na alma. Não foram cinco dias que acabaram de passar, mas cinco séculos de dores. Enquanto uma mãe não tiver sofrido esse martírio, ignorará o que quer dizer a palavra sofrimento. Cheguei a considerar-te feliz por não teres filhos, por aí podes imaginar o meu desnorteamento!
Na véspera do dia terrível, o tempo, que estivera pesado e quase quente, pareceu-me ter incomodado o meu pequeno Armando. Ele, tão meigo e carinhoso, estava rabugento; gritava por qualquer coisa, queria brincar e quebrava os brinquedos. É bem possível que todas as doenças, nas crianças, sejam precedidas por modificações do gênio. Atenta a essa singular maldade, eu observava em Armando vermelhidões e palidezes que atribuía à saída simultânea de quatro molares. Por isso deitei-o junto a mim, acordando a todo instante. Durante a noite, ele teve um pouco de febre que não me inquietou: eu a atribuía aos dentes. Já pela manhã ele disse: “Mamãe”, pedindo, com um gesto, para beber, mas com um tom de voz e um movimento convulsivo no gesto que me gelaram o sangue. Saltei da cama para ir preparar água açucarada. Imagina meu pavor, quando, ao lhe apresentar a xícara, não vi fazer nenhum movimento; apenas repetia: “Mamãe!” com uma voz que já não era a sua, e nem mesmo era uma voz. Tomei-lhe a mão, mas essa já não obedecia, enrijecida. Cheguei-lhe então a xícara aos lábios; o pobrezinho bebeu de um modo apavorante uns três ou quatro goles convulsivos, e a água, na sua garganta, fez um ruído singular. Afinal ele se agarrou desesperadamente a mim e vi seus olhos, repuxados por uma força interior, tornarem-se brancos, seus membros perderem a flexibilidade. Dei gritos espantosos. Luís acorreu. — Um médico! Um médico!... Ele está morrendo — gritei-lhe.
Luís desapareceu, e meu pobre Armando disse outra vez: “Mamãe! Mamãe!”, agarrando-se a mim. Foi o último momento em que ele soube que tinha uma mãe. As lindas veias de sua fronte se intumesceram e começaram as convulsões. Uma hora antes da chegada dos médicos, eu segurava em meus braços aquela criança tão viva, tão branca e rosada, aquela flor que era o meu orgulho e a minha alegria, rígido como um pedaço de pau; e que olhos! Estremeço ao lembrar-me. Negro, crispado, contraído, mudo, o meu gentil Armando era uma múmia. Um médico, dois médicos trazidos de Marselha por Luís, que ali estavam plantados como pássaros de mau agouro, faziam-me estremecer. Um falava de febre cerebral, o outro via naquilo convulsões como costumam ter as crianças. O médico do nosso cantão parecia-me o mais sensato, porque nada prescrevia. — São os dentes — dizia o segundo. — É uma febre — dizia o primeiro. Finalmente convieram em aplicar sanguessugas no pescoço e gelo na cabeça. Eu sentia-me morrer. Estar ali, ver um cadáver azul ou negro, sem um grito, sem um movimento, em lugar de uma criatura tão ruidosa e tão viva! Houve um momento em que perdi o juízo e tive um riso nervoso ao ver aquele pescocinho bonito, que tantas vezes beijara, mordido pelas sanguessugas, e aquela cabecinha encantadora sob um capacete de gelo. Para poder aplicar o gelo foi preciso, minha querida, cortar-lhe aquela linda cabeleira que tanto admirávamos e que tantas vezes acariciaste. De dez em dez minutos, como nas minhas dores de parto, voltavam as convulsões, e o pobrezinho se estorcia, ora pálido, ora roxo. Quando se chocavam, os seus membros tão flexíveis faziam um som como se fossem de pau. Aquela criatura insensível me havia sorrido, falado, e pouco antes me chamara de mãe! Ao pensar nisso, ondas de dor atravessavam-me a alma, agitando-a como os vendavais agitam os mares, e eu sentia todos os laços pelos quais uma criança está presa aos nossos corações abalados. Minha mãe que, talvez, me tivesse auxiliado, aconselhado ou consolado, está em Paris. As mães, a respeito de convulsões, sabem mais, creio eu, do que os médicos. Após quatro dias e quatro noites passadas em alternativas e temores, que quase me mataram, os médicos concordaram todos em aplicar uma horrível pomada para provocar chagas! Oh! Chagas em meu Armando, que cinco dias antes andava, brincava, sorria, e se ensaiava dizer: “Madrinha”! Recusei, desejando confiar-me à natureza. Luís ralhava comigo, pois acreditava nos médicos. Um homem é sempre homem. Mas, nessas terríveis doenças, há momentos em que elas tomam a forma da morte: e durante um desses instantes, esse remédio que eu abominava pareceu-me a salvação de Armando. A pele, minha Luísa, estava tão seca, tão rude, tão árida que o unguento não colou. Desatei, então, a chorar durante tanto tempo por sobre o leito que a cabeceira ficou molhada. Os médicos, esses, jantavam! Ao me ver só, tirei do meu filho todos os tópicos da medicina; quase louca, agarrei-o nos meus braços, apertei-o contra o peito, encostei minha fronte na dele, rogando a Deus que lhe desse vida, enquanto tentava transmitir-lhe. Mantive-o assim durante alguns instantes, querendo morrer com ele para não me separar do meu pequeno, nem na vida, nem na morte. Querida, senti os membros se afrouxarem, as convulsões cederam, o meu filho moveu-se, as horríveis e sinistras cores desapareceram! Gritei como quando adoecera, os médicos subiram e lhes mostrei Armando.

— Está salvo! — exclamou o médico mais idoso.

Oh! Que palavra! Que música! O céu se abria. Com efeito, duas horas depois, Armando renascia: mas eu estava aniquilada, foi preciso para livrar-me de alguma doença o bálsamo da alegria. Oh! Meu Deus! Com que dores prendeis o filho à mãe! Que cravos nos enterrais no coração para aí sustê-lo! Não era eu ainda suficientemente mãe, eu a quem as balbúcies e os primeiros passos dessa criança fizeram chorar de alegria! Eu que fico a observá-lo durante horas inteiras para bem cumprir os meus deveres e instruir-me no suave ofício de mãe! Era preciso causar esses terrores, oferecer essas espantosas cenas àquela que fez de seu filho o seu ídolo? No momento em que te escrevo, nosso Armando brinca, grita, ri. Busco então as causas dessa horrível doença das crianças, lembrando-me que estou grávida. Será a saída dos dentes? Será um trabalho particular que se realiza no cérebro? Terão as crianças que sofrem de convulsões alguma imperfeição no sistema nervoso? Todas essas ideias me preocupam tanto quanto ao presente como quanto ao futuro. Nosso médico rural opina por uma excitação nervosa causada pelos dentes. Eu daria todos os meus para que a dentição de Armando termine logo. Quando vejo uma dessas pérolas brancas apontar no meio da gengiva inflamada, tenho, agora, suores frios. O heroísmo com que esse querido anjo sofre mostra-me que ele terá o meu caráter: dirige-me olhares de partir o coração. A medicina não sabe grande coisa a respeito das causas dessa espécie de tétano que termina tão rapidamente como começa, que não se pode nem prevenir nem curar. Repito-te, só uma coisa é certa: ver seu filho em convulsões é o inferno para uma mãe. Com que furor eu o beijo! Oh! Como o trago durante muito tempo em meus braços, a passeá-lo! Ter passado por esse sofrimento, quando estou para dar à luz, outra vez, dentro de seis semanas, era uma horrível agravação do martírio, pelo medo que tinha quanto ao outro! Adeus, minha querida e amada Luísa; não queiras filhos, eis minha última palavra.



continua pág 333...

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[1] Mamamouchi: “alto dignitário” ou “funcionário”. (Nome forjado por Molière para designar um dignitário turco burlesco de sua invenção.)

[2] Renato: conde de Provença, rei de Sicília, conhecido pelo apelido de bom rei Renato; viveu de 1409 a 1480.

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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