quarta-feira, 29 de março de 2023

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (14) - Eu não sou espirituoso

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


14.


- Eu não sou espirituoso, Nastássia Filíppovna, e é isso que me faz falar demais – exclamou Ferdichtchénko, começando a sua história. - Se eu fosse tão ajuizado quanto Afanássii Ivánovitch ou Iván Petróvitch, deveria ter ficado quieto, refreando a minha língua, esta noite, como Afanássii Ivánovitch e Iván Petróvitch. Príncipe, permita que lhe pergunte: Que acha? Não lhe parece que haja no mundo muito mais homens ladrões do que não ladrões? E que não há no mundo um homem, por mais honesto, que nunca tenha, uma vez pelo menos, roubado qualquer coisa em sua vida? Essa é uma ideia minha, pela qual todavia não concluo que todos os homens sejam ladrões; no entanto, Deus bem sabe, muitas vezes sou tentado a isso. Que é que o senhor acha?

- Ufa! Que maneira estúpida de começar a história! - comentou a dama espalhafatosa, cujo nome era Dária Aleksiéievna. - E que bobagem! E impossível que todo o mundo haja roubado qualquer coisa. Eu nunca roubei nada.

- A senhora nunca roubou nada, Dária Aleksiéievna? Mas, que dirá o príncipe, que está ficando vermelho!?

- Acho que o que o senhor diz é verdade, apenas com bastante exagero - afirmou o príncipe que, de fato, sem motivo, estava enrubescendo.

- E o senhor, príncipe, o senhor aí, nunca roubou nada?

- Arre! Que coisa ridícula! Que confiança é essa, Ferdichtchénko? - atalhou o general.

- O senhor está mais é envergonhado de contar o que lhe concerne e por isso está tentando arrastar o príncipe para assim se desvencilhar!... - aparteou Dária Aleksiéievna.

- Ferdichtchénko, ou conte a sua história, ou feche a boca de uma vez, e não se meta com os outros. Não há paciência que o suporte - disse Nastássia Filíppovna irritadamente, de um modo agudo.

- Um minuto, apenas, Nastássia Filíppovna; mas já que o príncipe confessou, pois insisto em que o que o príncipe disse valeu por uma confissão, que diria mais alguém (para não mencionar nomes) se me desse na telha ao menos uma vez falar a verdade? Quanto a mim, senhores, não é necessário dizer mais; o caso que vou contar é simples, estúpido e imundo. Mas lhes dou minha palavra que não sou gatuno. Não sei como cheguei a furtar. Isso aconteceu no ano retrasado, certo domingo, em casa de Semión Ivánovitch Ichtchénko, que recebera artigos para o jantar. Depois do jantar os cavalheiros ficaram sentados, ainda sob o efeito do vinho. Ocorreu-me pedir à sua filha, uma senhorita chamada Maria Semiónovna, que tocasse piano. E eu fiquei perambulando em uma extremidade do salão. Sobre a mesa de trabalho de Maria Semiónovna estava uma nota de três rublos, dessas de papel verde. Devia tê-la tirado para alguma despesa. Não havia mais ninguém na sala. Peguei a nota e soquei-a no meu bolso. Para que, não saberei dizer. O que me levou a isso, não sei. Apenas vim, muito apressado, até ao salão e me sentei à mesa onde fiquei quieto, esperando alguma coisa, excitadíssimo. Continuei a tagarelar, contei anedotas, dei gargalhadas. Depois fui ter com as senhoras. Cerca de meia hora depois deram por falta da nota e começaram a interrogar a criadagem. As suspeitas caíram em uma de nome Dária. Mostrei extraordinário interesse e simpatia e recordo que, quando Dária estava totalmente zonza, me pus a persuadi-la a confessar, assegurando-lhe que a sua patroa seria generosa; e fiz isso alto, diante de todos. Todos prestavam atenção e eu sentia imenso prazer em passar uma raspança na criada. Enquanto isso a nota estava no meu bolso. Gastei aqueles três rublos em bebida, em uma tasca, aquela noite mesmo; entrei e mandei vir uma garrafa de Lafitte. Nunca tinha pedido uma garrafa como essa, está claro. É que eu queria gastar o dinheiro de uma vez. Não senti sobressaltos de consciência nem naquela ocasião, nem tempos depois. Cometeria outra vez o gesto, sem dúvida; podem acreditar, ou não, como preferirem; é-me indiferente. Ora aí está; foi tudo.

- Mas, sem dúvida essa não foi a sua pior ação - sentenciou Dária Aleksiéievna, com aversão incontida.

- Foi um caso psicológico e não uma ação - observou Tótskii. Então, sem encobrir sua repugnância, Nastássia Filíppovna perguntou:

- E a criada?

- Foi mandada embora no dia seguinte, naturalmente. A família, nesses pontos, era estrita.

- E você deixou que isso acontecesse?

- Essa é boa! Ora essa, então eu haveria de ir e contar, eu? - torceu-se todo Ferdichtchénko, apesar de vexado pela péssima atmosfera causada pela história.

- Que horror! - exclamou Nastássia Filíppovna.

- Ora essa, a senhora quis ouvir a pior ação de um homem e estava a esperar uma coisa edificante! As piores ações de um homem são sempre repugnantes, Nastássia Filíppovna! Vamos ter a sanção disso diretamente através de Iván Petróvitch. A maioria das pessoas são brilhantes pelo lado de fora e desejam parecer virtuosas só porque têm carruagem própria. Todo o mundo tem carruagem. E por que meios?...

Ferdichtchénko de fato se zangara repentinamente, a ponto de se esquecer que estava ultrapassando os limites; toda a sua cara se distorcera grotescamente. E que lá consigo esperam outro efeito da sua história. Tais erros de tato, essa especial maneira de “cartear”, como Tótskii chamava a isso, acontecia muitas vezes com ele e estava especificamente em seu caráter. Nastássia positivamente tremia de fúria, olhando sem parar para Ferdichtchénko. Ele acabou ficando deprimido e recaiu em atroz silêncio, quase gelado de desaponto. Tinha ido longe demais. 

- Não seria melhor acabarmos com isso? - perguntou Tótskii, com veemência. 

- É a minha vez, mas requeiro isenção, já que tenho direito. E deixo de contar - declarou categoricamente Ptítsin. 

- Então você não quer? 

- Não posso, Nastássia Filíppovna. E quer que lhe diga? Considero este petit jeu fora de propósito. 

- General, parece que é a sua vez - lembrou Nastássia FiLíppovna, virando- se para Epantchín. - Se o senhor recusar, nos desarticulamos todos e é pena, porque eu estava aguardando o fim para contar um incidente da minha própria vida. Mas só queria fazer isso depois de Afanássii Ivánovitch e do senhor, porque ambos me devem dar estímulo - acrescentou, rindo. 

- Já que a senhora promete isso - exclamou o general, enfaticamente - estou pronto a contar-lhe a minha vida inteira; confesso que tenho a minha história pronta para a minha vez... E basta o ar de Sua Excelência para se julgar do especial prazer com que trabalhou a sua anedotazinha - ousou observar Ferdichtchénko, com um sorriso sarcástico, apesar de ainda não estar muito à vontade. 

Nastássia Filíppovna olhou de esguelha para o general e também sorriu consigo mesma. Mas a sua depressão e irritabilidade estavam notoriamente aumentando a cada momento. Tótskii ficou mais alarmado ainda depois que ela prometeu contar também alguma coisa. 

- Já me aconteceu, amigos, como a todos nós, cometer ações em minha vida que não fossem lá muito bonitas - começou o general. -É estranho que eu ainda considere o breve incidente que vou descrever como tendo sido a mais vil ação da minha vida. Já se passaram quase trinta e cinco anos e ainda não consigo conter uma dor no coração, se é que me exprimo bem, só em recordar. Trata-se, contudo, de um caso extremamente idiota; eu era, naquele tempo, simples tenente e estava abrindo a minha carreira no Exército. Ora, todos nós sabemos o que um tenente é: sangue moço e ardoroso, mas, dinheiro mesmo, nenhum! Eu tinha um ordenança, naqueles dias, chamado Nikífor, que era terrivelmente zeloso em minha defesa. Mexia-se, costurava, lavava, fazia a limpeza, e mesmo requisitava” à direita e à esquerda com mão forte, para ajudar nossa manutenção caseira. Além de sincero, era honestíssimo. Eu era severo, mas justo. Aconteceu permanecermos certo tempo em uma cidadezinha. Tinha-me acomodado em um subúrbio, em casa da viúva de um tenente reformado. A velhotajá passava dos oitenta anos. Morava em uma pequena e antiga casa em ruínas, de madeira, e era tão pobre que nem criada possuía. E o pior é que ela em tempos tivera numerosa família e parentela. Alguns haviam morrido, outros se dispersado, e os demais a tinham esquecido. O marido morrera havia quase meio século. Durante anos uma sobrinha vivera com ela. Uma rapariga corcunda, má como uma bruxa, conforme dizia o povo. Até mordera uma vez o dedo da velha. Mas até essa falecera. De maneira que a velhinha estava lutando sozinha, havia já três anos. Eu me sentia medonhamente instalado lá e a mulher era tão obtusa que ninguém lhe podia arrancar nada de compreensível. Uma ocasião ela me roubou um galo. O caso nunca pôde ser tirado a limpo, até hoje, mas não havia mais ninguém, deve ter sido ela. Discutimos por causa do galo, mas discutimos feio e sério E aconteceu que logo que requeri fui transferido para outro quartel nos subúrbios do outro lado da cidadezinha, e me instalei na casa de um negociante, de imensas barbas e família patriarcal, lembro me bem. Nikífor e eu estávamos muito contentes com a mudança. Eu deixara a velhinha, indignado. Três dias depois, vindo eu das manobras, Nikífor me informou: “Fizemos mal, Excelência, em deixar nossa terrina em casa daquela megera. Onde é que vou pôr a sopa, agora?” Foi surpresa para mim. “Como assim?” - danei. “Como é que você esqueceu a terrina lá?” Então, muito espantado. Nikífor me relatou que, quando estava mudando os nossos cacarecos, a mulherzinha não entregara a terrina em represália a lhe termos quebrado a tigela. Ficava com a terrina em lugar da tigela, declarando que eu é que resolvera isso para indenizá-la. Tal manha naturalmente me enfureceu. Isso faria ferver o sangue de qualquer jovem oficial. Dei um pulo e me precipitei para lá. Estava fora de mim, se assim me posso exprimir, quando cheguei à casa da anciã. Dei com ela sentada na soleira, acocorada em um canto, sozinha, como a apanhar sol, o queixo apoiado na mão, o cotovelo no joelho. Desfechei-lhe uma torrente de berros, chamando-a de toda a sorte de nomes; bem sabem como é boa a gíria russa. Mas uma coisa me parecia estranha, à medida que eu a olhava: estava com a cara voltada e um pouco para mim, os olhos muito redondos e fixos, e não respondia água-vai. Olhava-me de maneira esquisita, parecia vacilar para a frente, e só acabei de descompô-la quando a minha fúria se esgotou. Encarei-a, fiz-lhe perguntas, e ela: nada! Fiquei meio sem jeito. Moscas zuniam, o sol descambava e reinava uma tranqüilidade, por ali... Completamente desconcertado, fui embora. Antes de chegar a casa compareci à presença do major que me disse que fosse à companhia; de maneira que não voltei para casa senão quando já era bem noite. E eis as primeiras palavras de Nikífor: “Pois não é. Excelência, que a nossa velhinha morreu?”. “Morreu, quando?” “Ora, esta tardinha, há cerca de uma hora e meia”. Assim, pois, mesmo na hora em que, eu a estava descompondo ela teve o seu trespasse. Isso me causou tamanha impressão que não pude suportar. O pensamento não me largava. De noite, era na certa: tinha de sonhar com isso. Não sou supersticioso, absolutamente, mas, dois dias depois, lá estava eu na igreja, no seu funeral. E na verdade. quanto mais o tempo passa, mais isso me reaparece. Não são aparições, propriamente, mas agora, como então, se me afigura vê-la ainda. E fico atordoado. Cheguei à conclusão de que o remorso consiste nisto. Em primeiro lugar, era uma mulher. Claro! Uma pobre criatura, uma criatura humana, como deram para dizer hoje em dia. Tinha vivido, vivido uma longa vida, vivido demais. Outrora tivera filhos, marido, família, parentes - tudo isso tagarelando, rindo, não é mesmo? Enfim, a vida em redor dela. E em seguida, de uma vez para sempre, completo vácuo, tudo acabara, fora deixada sozinha, como... mosca execrada desde o começo do tempo. E só depois, no fim, é que Deus a levara, ao pôr-do-sol, em uma sossegada tarde de verão, pobre da minha velhota se indo embora para sempre! Um tema para uma piedosa reflexão, não há a menor dúvida. E eis que bem nesse momento, em vez de lágrimas que a acompanhassem, não é mesmo? Um estourado de um tenenteco. espetaculosamente, com as mãos na cinta lhe faz cena reles e miserável, enquanto ela deixa a superfície da terra, com a fanfarra russa dos meus desaforos por causa de uma terrina! Naturalmente eu tinha razão para a descompor, mas, mesmo assim, com o correr dos anos, a mudança de temperamento, acabei desde há muito encarando a minha ação como a de um outro homem que não eu; e ainda tenho remorsos. Isso, pois, repito, me parece extravagante; pois, se tive de que me zangar, por que ficar assim? Que raio lhe deu na cabeça para morrer bem naquele momento? Naturalmente há apenas uma explicação: que o que eu fiz foi de certo modo mórbido. E como não conseguisse paz de espírito, quinze anos depois, ainda, tomei a meu cargo duas velhas incuráveis em um asilo, a fim de lhes suavizar os últimos dias de existência terrestre com um ambiente confortável. Penso legar-lhes uma soma de dinheiro para uma aplicação perpétua. E é tudo, a respeito. Repito que posso ter feito outras coisas más em minha vida; mas este incidente, eu escrupulosamente o considero a pior ação da minha vida. 

- Pois em vez da pior, Vossa Excelência descreveu uma de suas mais belas ações. O senhor me logrou! - comentou Ferdichtchénko. 

- Efetivamente, general, nunca imaginei que o senhor tivesse um coração tão bom, apesar de tudo. Chego a lastimar-me - disse Nastássia Filíppovna descuidadamente. 

- Lastima-se, por quê? - indagou o general com um sorriso afável: e, não sem complacência, sorveu o seu champanha. 

Mas era agora a vez de Tótskii e ele também se tinha preparado. Todo o mundo pensara que ele se recusaria como Ptítsin. Ainda assim todos, por certas razões, esperavam com curiosidade a sua confissão. E ao mesmo tempo, espiavam Nastássia Filíppovna. Com um extraordinário ar de dignidade que condizia com a sua majestosa aparência. Afanássii Ivánovitch começou com sua voz calma e polida a contar uma de suas “encantadoras anedotas”. Ele era, diga-se de passagem, um homem de fina aparência, dignificante estampa, alto, corpulento, um pouco calvo e ficando já grisalho. Tinha bochechas rosadas, flácidas e dentes postiços. Usava roupas amplas e bem cortadas e camisas de preço. Quanto às suas mãos quase redondas e brancas, dava prazer olhá-las. Usava em um dos dedos da mão direita um anel de caríssimo diamante. Enquanto esteve contando a sua história, Nastássia Filíppovna ficou contemplando sem parar a renda pregueada de sua manga. alisando-a com dois dedos da mão esquerda. Não olhou nem mesmo de relance para o locutor. 

- O que torna a minha tarefa mais fácil - começou Afanássii Ivánovitch - é a estrita obrigação de descrever a minha ação mais vil em toda a minha vida. E em tal caso não pode haver hesitação. A consciência e a manifesta voz do coração ditam logo o que se deva dizer. Confesso com amargura que, entre todas as inumeráveis e decerto frívolas e impensadas ações de minha vida, uma há cuja impressão ficou algo mais forte, vincando o meu espírito. Aconteceu aproximadamente há vinte anos. Estagiava eu no campo com Platón Ordíntsev. Ele acabara de ser nomeado marechal da nobreza e viera com sua jovem esposa, Anfíssa Aleksiéievna, para aí passar as suas férias de verão. Fora isso pouco antes do dia de seu aniversário e dois bailes tinham sido arranjados. Por aquele tempo a encantadora novela de Dumas Filho, La Dame aux Camélias, estava no ápice da moda e fazendo grande sensação na sociedade. Trata-se de uma obra que, em minha opinião, jamais envelhecerá ou desaparecerá. Nas províncias provocava êxtase em todas as damas, pelo menos nas que a tinham lido. O encanto da novela, a originalidade da situação do principal caráter, aquele mundo fascinante analisado tão sutilmente, e os admiráveis incidentes disseminados pelo livro (por exemplo o uso de buquês com camélias brancas e cor-de-rosa alternativamente) todos aqueles encantadores pormenores, com efeito, e todo o ensemble causavam uma subjugadora sensação. As camélias tornaram-se extraordinariamente em moda. Todo o mundo as queria, todo o mundo procurava obtê-las. Agora lhes pergunto eu se era Possível arranjar camélias assim, em um distrito na campanha, quando a procura é enorme, mesmo não havendo muitos, bailes? Pétia Vorkhovskói estava rompendo o coração nesse tempo, coitado, por causa de Anfíssa Aleksiéievna Realmente não sei se havia qualquer coisa entre eles, isto é, quero dizer, se ele apoiava suas esperanças com quaisquer razões. O coitado andava louco por camélias Para Anfíssa Aleksiéievna para a noite do baile. A Condessa Sótskaia, uma nobre de Petersburgo em visita à mulher do governador e Sófia Bezpálova viriam, sabiase ao certo, com buquês de camélias brancas. Anfíssa Aleksiéievna ansiava por despertar sensação com camélias rubras. O pobre Platón estava quase ficando maluco – naturalmente pois se ele era o marido! Prometera procurar as flores. Querem saber o que sucedeu? Exatamente na véspera do baile todas as camélías foram adquiridas por Ekaterína Aleksándrovna Mitíchtcheva, uma terrível rival de Anfíssa Aleksiéjevna. E rival em tudo. Só faltou puxarem punhais! Naturalmente houve ataques e chiliques, Imaginem os apuros de Platón. Está-se a ver que se Pétia fosse capaz de arranjar um buquê nesse momento crítico, suas chances melhorariam muito. A gratidão de uma mulher, em tais casos, é ilimitada. Ele voou como um louco; mas era uma empresa difícil e nem adiantava falar nisso. E eis que de repente o encontro às onze horas da noite na véspera ainda do aniversário e do baile que seria dado por Madame Zubkóva, vizinha dos Ordíntsev. Estava radiante. “Que é que há?”. “Encontrei! Eureca!” “Bem, meu caro, és formidável. Onde? Como?”. “Em Iekcháisk um lugarejo a quinze verstás daqui, fora já do nosso distrito. Mora lá um mercador como esses de antanho, riquíssimo, chamado Trepálov; ele e a mulher, em vez de filhos, criam canários E têm ambos a paixão das flores! E o homem tem camélias” “E se não for verdade? E se ele não as quiser dar?”. “Atiro-me de joelhos e me humilho a seus pés até que ceda. Não saio de lá sem elas”. “Quando vais buscálas?” “Amanhã cedo, ao clarear, às cinco da madrugada” “Bem, então sê feliz”. Palavra que me senti contente, também eu. Voltei para casa de Ordíntsev. Bateu uma hora da madrugada, e eu ainda estava pensando. Resolvi deitar-me; nisto, uma ideia muito original me veio. Embarafustei para a cozinha, acordei Savélii, o cocheiro, e lhe disse, dando-lhe quinze rublos: “Arranje-me os cavalos em meia hora”. Dito e feito. Meia hora mais tarde o trenó estavaca no portão. Tinham-me dito que Anfíssa Aleksiéievna estava com febre por causa da enxaqueca, e delirando! Entrei para o trenó e saí a toda. Antes das cinco estava eu em Jekcháisk, na estalagem. Esperei que rompesse o dia. E nada de clarear! Afinal, às sete horas, cheguei à casa de Trepálov. Falei sobre isso e aquilo, até que perguntei: “Terá o senhor camélias? Bom bátiuchka, ajude-me, salve-me! Inclino-me, arrojo-me aos seus pés!” O velho era um homenzarrão, de cabeça grisalha, severa. um velho que dava medo. “Não, não! Lá por isso, não. Que é que há de parecer?” Arrojei-me aos pés dele. Positivamente caí sobre o assoalho. “Não faça isso! Ora essa!” E ficou aparvalhado. “É que está em risco uma vida humana”, berrei-lhe. “Bem, neste caso. leve-as, em nome de Deus”. Cortei todas as camélias vermelhas. Eram maravilhosas, esquisitas. Havia uma estufa cheia assim. O velho até suspirava. Tirei uma nota de cem rublos. “O senhor está me insultando!”. “Então, pelo menos, valoroso senhor, entregue estes cem rublos ao hospital local, para mantimentos e outras despesas. “Bem”, disse o velho, “agora a coisa muda de figura; é uma obra meritória e nobre que compraz a Deus. Darei este dinheiro ao hospital, para que rezem pela sua saúde”. Aquele velho russo de boa têmpera me agradou; era um russo de cem costados, de la vraie souche! Radiante, voltei. Mas por um caminho diferente, para evitar encontrar Pétia. Mal acabei de chegar enviei o imenso ramalhete a Anfíssa Aleksiéievna, com meus cumprimentos, quando acordasse. É fácil imaginar o seu júbilo, a sua gratidão, as suas lágrimas de alegria. Pláton, que na véspera estava até sem fôlego, soluçou sobre o meu peito. Arre! Todos os maridos são a mesma coisa, desde a criação do matrimônio legal. Não quero aventurar-me a dizer mais, mas as chances de Pétia acabaram completamente, depois deste episódio. No começo calculei que ele ao descobrir o que eu fizera quisesse me matar! Tanto que me preparei para o encontro; mas chego a não acreditar no que aconteceu. Sabem o que foi? Ele teve uma síncope; passou a noite delirando e no dia seguinte estava com febre cerebral e arquejava como uma criança; teve até convulsões. Um mês mais tarde, ao entrar em convalescença, inscreveu-se como voluntário e foi para o Cáucaso. Parece romance. Acabou sendo morto na Criméia. Naquele tempo o seu irmão, Stepán Vorkhovskói, comandava um regimento; Pétia distinguiu-se na batalha. Confesso que sinto agulhadas na consciência mesmo tantos anos depois. Ora, com que fim lhe desferi eu um tal golpe? E nem se diga que eu, então, estivesse também apaixonado. Foi mera travessura oriunda de um flerte; nada mais. Se eu não lhe tivesse arrebatado aquele buquê - quem sabe? - o homem podia estar vivo ainda hoje, podia ter sido feliz, podia ter triunfado. E nunca lhe teria passado pela cabeça ir brigar com os turcos! 

Afanássii Ivánovitch acabou de falar com a mesma majestosa dignidade com que tinha começado. O grupo ali reunido notou que havia uma luz estranha nos olhos de Nastássia Filíppovna. Quando ele rematou a sua história, os lábios dela se contraíram. Todo o mundo prestava atenção em ambos, com uma curiosidade muito especial. 

- Enganaram Ferdichtchénko! Ora se enganaram! Isto realmente é que é fraude! – exclamou Ferdichtchénko, com voz lacrimosa. vendo que urgia dizer alguma coisa. 

- E de quem é a culpa, se você não soube ganhar? Então você pensa que esta gente aqui é imbecil? - quem assim lhe cortou a palavra foi Dária Aleksiéievna, antiga e sincera amiga e aliada de Tótskii. 

- Você tem razão, Afanássii Ivánovitch, o jogo é muito insípido e precisamos acabá-lo ligeiro – comentou Nastássia Filíppovna com ar descuidado. - Contarei o caso que prometi e logo os deixarei à vontade; poderão até jogar cartas. 

- Mas antes disso, a sua anedota prometida - concordou o general, calorosamente. 

Então, sem que ninguém esperasse, Nastássia Filíppovna se virou subitamente para Míchkin. 

- Príncipe, aqui os meus velhos amigos, o General Epantchín e Afanássii Ivánovitch, querem que eu me case. Diga-me, o que é que o senhor acha? Devo casar-me, ou não? O que o senhor disser, eu farei. 

Afanássii Ivánovitch tornou-se lívido. O general ficou petrificado. Todo o mundo olhou cheio de espanto e perplexidade. Gánia enterrou-se onde estava.

 - Com.., quem? - perguntou o príncipe com voz quase imperceptível. 

Firmando bem a voz, Nastássia Filíppovna pronunciou devagar: 

- Com Gavríl Ardaliónovitch Ívolguin. 

Seguiram-se alguns segundos de silencio. O príncipe parecia estar lutando para falar; e era como se um terrível peso, em seu peito, não o deixasse proferir palavra. 

- Não... não vos caseis com ele - sussurrou, por fim, e respirou angustiadamente. 

- Então, assim será! - Voltou-se imperiosamente e com ar de triunfo para Gánia: - Gavril Ardaliónovitch, escutou a decisão do príncipe? Bem, a resposta dele é a minha resposta! E esta é a solução do caso, de uma vez para sempre! 

- Nastássia Filíppovna! - ela olhou. Era Tótskii, com voz trêmula. 

- Nastássia Filíppovna! - era o general em tom persuasivo. mas agitado. 

Houve comoção geral, quase tumulto. 

- Que é que há, amigos? - prosseguiu ela, encarando os convidados, surpreendida. - Por que estão tão perplexos? Mas que fisionomias! 

- Mas... você se esqueceu, Nastássia Filíppovna - balbuciou Tótskii gaguejando -, que havia feito uma promessa, aliás voluntária, e que poderia ter poupado, em parte... Estou estupefato... é lógico, não compreendo... mas, enfim... fazer isso... diante de tanta gente... em uma hora destas, e fazer da forma por que fez, como um petit jeu!, em um caso que afeta a honra e o coração... um caso que envolve... 

- Não o compreendo, Afanássii Ivánovitch. Quer saber de uma coisa? Você nem sabe o que está dizendo. Em primeiro lugar que quer você dizer com “diante de tanta gente”? Não estamos nós diante de caros e íntimos amigos? É petit jeu, como? Por quê? Eu realmente pretendia contar a minha anedota! Pois não é que a contei? E não foi bonita? Por que há de então você dizer que isso não é sério? Então, não é sério? Você bem que me ouviu avisar o príncipe: “O que o senhor disser, eu farei”. Se ele tivesse dito: “Sim!”, eu imediatamente teria dado o meu consentimento. Mas ele disse” “Não!”, e eu recusei. Então não foi sério? Pois se toda a minha vida estava oscilando em uma balança! Mais sério do que isso?! 

- Mas o príncipe... que tem o príncipe com isso? E quem é o príncipe, afinal de contas? - murmurou o general não podendo reprimir a sua indignação ante a autoridade (que o ofendia) dada ao príncipe. 

- Ora, o que o príncipe tem com isso é que ele é o primeiro homem que encontrei em toda a minha vida, e em quem acreditei como em um sincero amigo. Ele acreditou em mim, mal me viu, e eu nele. 

- Só me resta agradecer a Nastássia Filíppovna pela extraordinária delicadeza com que.., me tratou - articulou, finalmente, em voz entrecortada mal abrindo os lábios finos, Gánia, muito pálido. - Respeito sua decisão.., naturalmente! Mas.., o príncipe... pôr o príncipe neste assunto!... 

- E por causa dos setenta e cinco mil rublos? Não é o que você quis dizer? - interrompeu-o repentinamente Nastássia Fílíppovna. - Quis você se referir a isso? Não o negue, você certamente pensou nisso. Afanássii Ivánovitch, esqueci-me de acrescentar, ficam sem efeito os setenta e cinco mil rublos que me ofereceu! E deixe-me assegurar que o desembaraço de bom grado. Basta! Já era tempo de você também ficar livre. Nove anos e três meses! Amanhã, vida nova! Mas hoje é meu dia onomástico e pela primeira vez em minha vida inteira estou fazendo o que quero. General, tome outra vez as suas pérolas; dê-as à sua mulher. Ei-las! Amanhã deixarei este apartamento, por bem, de maneira que não haverá mais recepções, amigos! Dito isso, logo se levantou, como se pretendesse ir embora. 

-Nastássia Filíppovna! Nastássia Filíppovna! - ouvia-se de todos os lados. 

Todos estavam emocionados, levantando-se e rodeando-a, tendo ouvido, boquiabertos aquelas palavras impetuosas, febris e desesperadas. Todos sentiam que havia qualquer coisa errada que não era possível explicar nem descobrir. Bem nesse momento a campainha tocou violentamente Tão violentamente como, aquela tarde, a do apartamento de Gánia. 

- Ah! É a solução! Afinal! Já são Onze e meia? – exclamou Nastássia Filíppovna 

- Peço-vos, que vos senteis. É a solução amigos. 

Dizendo isso, deu o exemplo, Sentando-se de novo. Um riso estranho lhe crispava os lábios. Ficou calada, em febre, olhando para a porta. E então, lá consigo Ptítsin adivinhou: “Sem dúvida, é Rogójin com os seus cem mil rublos!”


continua página 141...

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