quinta-feira, 9 de março de 2023

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - b)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva



Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...


Prometendo a mim mesmo que Albertine estaria de volta naquela mesma noite; eu recorrera ao mais urgente e pusera o curativo de uma crença nova daquela com que vivera até então. Mas, por mais rápido que tivesse agido o instinto de conservação, fiquei por um instante sem socorro, quando Françoise falou; e, conquanto soubesse agora que Albertine estaria de volta à noite, eu sentira durante o momento em que ainda não me informara a mim sobre sua volta (o momento que se seguira às palavras: "A Senhorita Albertine pediu suas malas, a Senhorita Albertine foi-se embora"; renascia por si dentro de mim, semelhante ao que havia sido, ou seja, como se eu ignorasse o próximo regresso de Albertine. Além do mais, era necessário que ela voltasse, mas por vontade própria. Em qualquer hipótese, parecer que lhe sugeria e de, pedir que regressasse, iria ao encontro do objetivo. Certamente eu já não tinha forças para renunciar a ela como tivera no caso de Gilberte. Mais até do que Albertine, o que eu desejava era pôr fim à angústia física que meu coração fraco do que outrora, já não podia tolerar. Depois, à força de me acostumar querer, seja tratando-se do trabalho ou de outra coisa, eu me tornava mais covarde. Mas sobretudo essa angústia era incomparavelmente mais intensa por vários motivos, o principal deles não sendo talvez o fato de que eu jamais desfrutei o prazer sensual com a Sra. de Guermantes ou com Gilberte, mas sim que a vendo todos os dias, a toda hora, não tendo a possibilidade e, por conseqüência, necessidade disso, faltaria, no meu amor por elas, a força imensa do Hábito. Agora que meu coração, incapaz de querer e de suportar de bom grado o sofrimento, só achava uma solução possível, o regresso de Albertine custasse o que custasse; talvez a solução contrária (a renúncia voluntária, a resignação progressiva houvesse parecido uma solução para romance, inverossímil na vida, se eu antigamente não tivesse optado por ela quando se tratara de Gilberte. Porque sabia que esta outra solução também podia ser aceita, e pelo mesmo homem, eu continuava a ser mais ou menos o mesmo. Unicamente, o tempo representara o seu papel, o tempo que me envelhecera, o tempo que também pusera Albertine, permanentemente, a meu lado quando levávamos a nossa vida em comum. Pelo menos, sem renunciar à ela, o que me restava daquilo que sentira por Gilberte, era o orgulho de não mais querer ser para Albertine um brinquedo enfadonho ao pedir que voltasse; queria que ela voltasse sem que eu parecesse fazer questão. Levantei-me para não perder tempo, mas o sofrimento me fez parar: era a primeira vez que me levantava da cama desde que Albertine se fora. Todavia, era para vestir-me rápido para tomar informações com o seu porteiro.
 
O sofrimento, evolução de um abalo moral imposto, aspira a mudar de forma; esperamos que se desvaneça, fazendo projetos, pedindo informações; desejamos que passe por suas inumeráveis metamorfoses; isso exige menos coragem do que suportar sem disfarce o sofrimento; parece tão fria, tão dura e tão estreita essa cama, onde nos deitamos com a nossa dor! Ergui-me novamente; andei pelo quarto com infinita prudência, coloquei-me de modo a não avistar a cadeira de Albertine, a pianola sobre cujos pedais ela apoiava seus chinelos dourados, um único dos objetos que ela havia usado e que, todos, na linguagem particular que lhes tinham ensinado as minhas recordações, pareciam querer dar-me uma tradução, uma versão diferente, anunciar-me uma segunda vez a notícia de sua partida. Mas sem olhá-los, eu os via; as forças me abandonaram, caí sentado numa dessas poltronas de cetim azul cujo verniz, uma hora antes, no claro-escuro do quarto anestesiado por um raio de luz, havia-me inspirado sonhos apaixonadamente acariciados então, tão distantes agora! Ai de mim! Só me sentara ali, antes daquele minuto, quando Albertine ainda se achava presente. Assim, não pude permanecer, levantei-me; e assim, a cada instante, algum dos inúmeros e humildes "eus" que nos compõem, ignorava ainda a partida de Albertine e era preciso notificá-lo; era preciso - o que se fazia mais cruel ainda do que se eles fossem estranhos e não se utilizassem da minha sensibilidade para sofrer – anunciar a desgraça que acabava de ocorrer a todas essas criaturas, a todos esses "eus" que ainda a ignoravam; era preciso que cada qual por seu turno ouvisse pela primeira vez aquelas palavras: "Albertine pediu suas malas" aquelas malas em forma de caixão fúnebre que eu vira serem carregadas em Balbec ao lado das de minha mãe - "Albertine foi-se embora." Precisava informar a cada um a minha mágoa, a mágoa que de modo algum é conclusão pessimista livremente extraída de um conjunto de circunstâncias funestas, mas a revivescência intermitente e involuntária de uma impressão específica, vindo do exterior, e que não escolhemos. Alguns desses "eus", já não os revia desde muito. Por exemplo (não me lembrara que era o dia do barbeiro), aquele que eu era quando cortava o cabelo. Havia esquecido aquele "eu", a sua chegada me fez rebentar em soluços como, num enterro, a de um velho servidor aposentado que conheceu a falecida. Depois, lembrei-me subitamente que já fazia oito dias que eu era tomado por momentos de temores pânicos que nem a mim confessava. Nesses momentos, contudo, discutia comigo mesmo, dizendo: "Não acha que é inútil admitir a hipótese de que ela partiria bruscamente? É absurdo. Se eu submetesse tal hipótese a um homem sensato e inteligente (e assim procederia, para me tranquilizar, se o ciúme não me impedisse de fazer confidências), com certeza ele lhe responderia: 'Mas você está louco. É impossível.' E com efeito nesses últimos dias não tínhamos tido uma só discussão. Nós todos vamos embora por algum motivo. Dizemos qual é. Damos direito de resposta. Ninguém vai embora desse modo - ''Não, é uma infantilidade. É a única hipótese absurda." E, no entanto, todos os dias, encontrando-a ali de manhã, quando tocava a campainha, soltava um suspiro de alívio. E, quando Françoise me entregara a carta de Albertine, completamente tivera certeza de que se tratava da coisa que não podia ser, daquele que de certo modo adivinhara com vários dias de antecedência, apesar das lógicas para estar sossegado. Quase o confessara a mim mesmo, como se pela perspicácia, em meu desespero, como um assassino que sabe não descoberto, mas que teme e, de súbito, vê o nome de sua vítima escrito num processo diante do juiz de instrução que mandou chamá-lo.

Toda esperança era que Albertine tivesse partido para a Touraine, para a casa da tia; afinal seria bem vigiada e não poderia fazer muita coisa até que eu a trouxesse de volta. Meu maior temor era que ela permanecesse em Paris, partisse para Amsterdã, ou para Montjouvain, isto é, que ela fugisse para se dedicar à algumas intrigas preliminares que me escapassem. Mas na realidade, dizendo para mim mesmo: Paris, Amsterdã, Montjouvain, ou seja, vários lugares, pensava naqueles mais possíveis. Assim, quando o porteiro de Albertine me informou que ela partira para Touraine, essa residência que eu supunha desejar me pareceu a pior de todas, por ser real; e porque, pela primeira vez, torturado pela certeza presente e pela incerteza do futuro, eu imaginava Albertine começando uma vida nova; que ela quisera separada de mim, talvez por muito tempo, talvez para sem a qual realizaria esse desconhecido que outrora tantas vezes me perturbara, justo quando eu tinha a ventura de possuir e de acariciar aquilo que era o exterior, o suave rosto cativo e impenetrável. Era esse desconhecido que profundo do meu amor.

Diante da porta de Albertine, encontrei uma menina pobre que me olhava com olhos bem abertos e com ar tão doce que lhe perguntei se não queria vir no colo, como o teria feito a um cão de olhar fiel. Ela pareceu contente. Eu embalei-a por algum tempo sobre meus joelhos, mas em breve a sua presença, fazendo-me sentir demais a ausência de Albertine, me foi insuportável. Eu queria que ela fosse embora, depois de lhe ter dado uma nota de quinhentos francos. Todavia, logo depois, a idéia de ter uma outra menina a meu lado, e de jamais ficar sozinho, sem o apoio de uma presença inocente, foi a única fantasia que me permitiu suportar a idéia de que Albertine talvez demorasse algum tempo a regressar. Quanto à própria Albertine, ela existia em mim quase que sob a forma de seu nome o qual, a não ser alguma breve trégua ao despertar, vinha se inscrever em meu cérebro e não deixava mais de ocupá-lo. Se pensasse alto, repetiria esse nome sem cessar e meu palavreado seria tão monótono e tão limitado como se eu tivesse transformadome em pássaro, num pássaro semelhante ao da fábula, cujo canto repetia interminavelmente o nome daquela a quem havia amado, quando homem. Repetimos a nós próprios esse nome, e, quando o calamos, parece que o escrevemos em nós mesmos, que ele deixa o seu traço em nosso cérebro e que este deve estar lá como um ser; como uma parede que alguém se diverte a rabiscar, inteiramente recoberto pelo nome, mil vezes reescrito, daquela a quem amamos. Repetimo-lo o tempo todo em pensamento, quando estamos felizes, e muito mais ainda quando nos sentimos infelizes E de tanto repetir esse nome que não nos diz mais do que já sabemos, sentimos o desejo, sempre renovado, mas, com o tempo, algum cansaço. Naquele momento, eu nem pensava no prazer carnal; nem mesmo via, no meu pensamento, a imagem daquela Albertine, todavia causa de um tal transtorno em meu ser, não me apercebia de seu corpo, e, se quisesse isolar a idéia que estava ligada ao meu sofrimento pois sempre existe alguma -, seria sucessivamente, por um lado, a dúvida acerca das disposições em que ela havia partido, com ou sem espírito de regresso; por outro lado, os meios de trazê-la de volta. Talvez haja um símbolo e uma verdade no espaço ínfimo ocupado em nossa ansiedade por aquela a quem a atribuímos. É que, de fato, a própria pessoa tem pouco a ver com quase todo o processo de emoções e angústias que certos acasos nos fizeram sentir outrora a seu respeito e que o hábito ligou à sua pessoa. Isto é bem provado (mais ainda que o tédio que sentimos na felicidade) pelo quanto nos é indiferente ver ou não ver essa mesma pessoa, ser ou não estimado por ela, tê-la ou não ao nosso dispor, quando só tivermos de nos propor o problema (tão ocioso que nem sequer o proporemos) relativamente à própria pessoa já estando esquecido o processo de emoções e angústias, ao menos no que se refira a ela, pois conseguiu desenvolver-se de novo, porém transferido a outra. Antes disso, quando tal processo ainda estava ligado a ela, achávamos que nossa felicidade dependia de sua pessoa: dependia exclusivamente do fim da nossa ansiedade. Portanto, o nosso inconsciente era mais perspicaz que nós mesmos naquela ocasião, fazendo tão insignificante o rosto da mulher amada, rosto que talvez tivéssemos olvidado, que podíamos conhecer imperfeitamente e julgar medíocre, no terrível drama de onde encontrá-la para não esperá-la mais, de que poderia depender até a nossa própria vida. Proporções minúsculas do rosto da mulher, efeito lógico e necessário do modo pelo qual o amor se desenvolve, nítida alegoria da natureza subjetiva desse amor.

Sem dúvida, o estado de espírito com que Albertine partira era semelhante ao dos povos que mandam preparar com uma demonstração de seus exércitos os caminhos de sua diplomacia. Ela só deve ter partido para obter de mim melhores condições, mais liberdade, mais luxo. Nesse caso, de nós dois quem sairia vencedor era eu, se tivesse força de esperar-esperar o momento em que, vendo que não alcançava nada, ela voltasse por si mesma. Mas, se, no baralho ou na guerra, onde só e importante vencer, pode-se resistir ao blefe, as condições já não são as mesmas quando se trata do amor e do ciúme, sem falar no sofrimento. Se, para esperar, para "durar", eu deixava Albertine ficar longe de mim por vários dias, talvez várias manias, arruinaria o que tinha sido o meu objetivo por mais de um ano, não deixá-la em liberdade por uma hora sequer. Todas as minhas precauções se tornariam inúteis se lhe desse tempo e facilidades para me enganar tanto quanto quisesse se afinal ela se rendesse, eu já não poderia esquecer o tempo em que ela teria sozinha; e mesmo que no fim a vencesse, apesar de tudo, no passado, irreparavelmente, seria eu o vencido.

Quanto aos meios de trazer Albertine de volta, havia tanto maior probabilidade de êxito quanto a hipótese de que ela só fora embora na esperança de ser chamada sob melhores condições parecia mais plausível. E, sem dúvida, as pessoas que não acreditavam na sinceridade de Albertine, certamente para Françoise, por exemplo, tal hipótese o era. Mas para a minha razão, a quem a única explicação de certos movimentos de mau humor, de certas atitudes, havia parecido, antes que eu soubesse de alguma coisa, o projeto que ela formara de partir para sempre; é difícil acreditar que, agora que essa partida ocorrera, não se tratasse de uma simulação. Digo-o para a minha razão, não para mim. A hipótese da simulação tornava tanto mais necessária quanto era mais improvável e ganhava no que perdia em verossimilhança. Quando nos vemos à beira do abismo e parece que Deus nos abandonou, não vacilamos mais em esperar um milagre Dele.

Eu reconhecia que em tudo aquilo fui o mais apático, embora o mais doloroso dos mortais. Mas sua fuga não me devolvera as qualidades que o hábito de mandá-la por outras pessoas me havia roubado. Eu só pensava numa coisa: encarregar outro dessa busca. Esse outro foi SaintLoup, que concordou. A ansiedade de tantos dias, aplicada a outro, deu-me alegria e, certo do êxito, esfreguei as mãos subitamente tornadas secas como outrora, e sem mais aquele suor que as umedeciam quando Françoise me dissera: "A Senhorita Albertine foi-se embora.” Estão lembrados que, quando decidi viver com Albertine e até casar-me com ela para guardá-la, saber o que ela fazia; impedi-la de retomar seus hábitos com a Sra. Vinteuil. Foi por ocasião do atroz dilaceramento de sua revelação em Balbec, do que ela me havia dito, como coisa muito natural, e que, embora fosse o desgosto da minha vida, consegui fingir que era mesmo natural, aquilo que minhas piores suposições eu jamais teria sido tão audacioso para imaginar (É espantoso como o ciúme, que passa o tempo inteiro a fazer pequeninas soluções sobre o falso, tem tão pouca imaginação quando se trata de descobrir a verdade.) Ora, esse amor, nascido principalmente de uma necessidade de impedir que Albertine praticasse o mal, esse amor conservara a seguir o sinal de sua dor. Estar com Albertine importava-me pouco, desde que pudesse impedir "a sua fuga" de ir para cá ou para lá. Para impedi-lo, eu recorria aos olhos e à compara dos que saíam com ela, e era bastante que estes me fizessem à noite um pequeno relatório confortável para que minhas inquietudes se dissipassem em bom humor.

Tendo afirmado a mim mesmo que, fossem quais fossem meus esforços Albertine voltaria para casa naquela mesma noite, suspendi a dor que Françoise causara ao me dizer que Albertine havia partido (porque então o meu ser, pego de surpresa, imaginara por um instante que a partida era definitiva). Mas após uma interrupção, quando, por um impulso de sua vida independente, o sofrimento inicial me voltava por si mesmo, era sempre e da mesma forma atroz, porque anterior à promessa consoladora que eu me fizera de trazer Albertine de volta naquela mesma noite. Esta frase, que teria acalmado, meu sofrimento a ignorava. A fim de preparar os meios de obter essa volta, mais uma vez; não que tal atitude desse algum dia bons resultados, mas porque sempre a tomara desde que amava Albertine, estava eu condenado a proceder como se não a amasse, como se não sofresse com a sua partida, estava condenado a continuar a lhe mentir. Poderia ser tanto mais enérgico nos meios de fazê-la voltar quanto, pessoalmente, parecesse ter renunciado a ela. Propunha-me escrever a Albertine uma carta de despedida, onde consideraria sua partida como definitiva, ao passo que enviaria Saint-Loup para exercer sobre a Sra. Bontemps, e como que contra minha vontade, a mais brutal pressão para que Albertine voltasse o mais rápido possível. Sem dúvida, eu havia experimentado com Gilberte o perigo das cartas de uma indiferença que, fingida a princípio, acaba por tornar-se verdadeira. E essa experiência deveria ter me impedido de escrever a Albertine cartas do mesmo gênero das escritas antes a Gilberte. Mas aquilo a que se chama experiência não passa da revelação, a nossos próprios olhos, de um traço do nosso caráter, que reaparece naturalmente, e reaparece com tanto mais força quanto o havíamos revelado a nós mesmos uma vez, de modo que o movimento espontâneo que nos guiara da primeira vez se encontra reforçado por todas as sugestões da lembrança. O plágio humano a que os indivíduos mais dificilmente escapam (e mesmo aos povos que persistem em seus erros e os vão agravando) é o plágio de si mesmos.

continua na página 11...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - b)

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