quinta-feira, 9 de março de 2023

Marcel Proust - A Prisioneira (Durante toda a viagem)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira


continuando...


Durante toda a viagem, a lembrança, a cada instante renovada, de que não apresentara suas despedidas àquela mulher, fazia subir às faces de Françoise uma vermelhidão que podia assustar. E, se recusou beber e comer até Paris, foi mais talvez porque tal lembrança lhe dava um "peso" real "no estômago" (cada classe social tem sua patologia) do que para nos punir.

Entre as razões por que mamãe me enviava todos os dias uma carta e uma carta onde nunca estava ausente alguma citação da Sra. de Sévigné- havia a recordação de minha avó. Mamãe me escrevia: "A Sra. Sazerat nos ofereceu um desses almoços de que ela possui o segredo e que, como teria dito a tua pobre avó, citando a Sra. de Sévigné, nos retiram a solidão sem nos trazer a sociedade." Em minhas primeiras respostas cometi a asneira de escrever a mamãe: "A essas citações, tua mãe te reconheceria de imediato." O que me valeu, três dias depois, este bilhete: "Meu pobre filho, se era para me falar de minha mãe, foste muito infeliz ao invocar a Sra. de Sévigné. Ela teria respondido como o fez à Sra. de Grignan: 'Então ela não era nada sua? Pensei que fossem parentes."

No entanto, eu escutava os passos de minha amiga que saía ou entrava em seu quarto. Tocava a campainha, pois era a hora em que Andrée ia chegar com o motorista, amigo de Morel e emprestado pelos Verdurin, para buscar Albertine. Tinha lhe falado da longínqua possibilidade de nos casarmos; porém jamais o fizera de modo formal; ela própria, por discrição, quando eu dissera:

"não sei, mas talvez fosse possível", sacudira a cabeça com um sorriso melancólico, dizendo:

- Não, não, não seria - o que significava: "sou pobre demais".

E então, apesar de dizer-lhe "nada é menos certo" quando se tratava de projetos para o futuro, atualmente fazia tudo para distraí-la, tornando-lhe a vida agradável, procurando talvez também, de modo inconsciente, fazê-la desse modo desejar casar comigo. Ela mesma ria de todo esse luxo.

- A mãe de Andrée é que vai fazer uma cara quando me vir transformada numa dama rica feito ela, o que ela chama uma dama que tem "cavalos, carruagens, quadros". Como? Nunca lhe contei que ela dizia isso? Oh! É uma figura! O que me espanta é que ela ergue os quadros à dignidade dos cavalos e das carruagens.

Pois veremos mais tarde que, apesar dos modos estúpidos de falar que lhe haviam ficado, Albertine se desenvolvera de forma assombrosa, o que me era de todo em todo indiferente, pois as superioridades do espírito de uma mulher me haviam sempre despertado tão diminuto interesse que, se as apontei a uma ou outra, tinha sido por pura cortesia. Somente o curioso gênio de Céleste talvez me tivesse agradado. Contra a vontade, eu sorria durante alguns momentos quando, por exemplo, sabendo que Albertine não se achava presente, ela me abordava com essas palavras:

- Divindade do céu deposta num leito!

Eu dizia:

- Ora, Céleste, por que "divindade do céu"?

- Se o senhor imagina que se parece com esses que andam em nossa terra vil, está muito enganado!

- Mas por que "deposto" num leito? Você vê muito bem que estou deitado.

- O senhor nunca está deitado. Alguma vez já se viu alguém deitado assim? O senhor veio pousar aí. Neste momento o seu pijama, todo branco, e os movimentos de seu pescoço, dão-lhe o aspecto de uma pomba.

Mesmo na ordem das coisas tolas, Albertine expressava-se de modo diverso da mocinha que era poucos anos antes em Balbec. Chegava a ponto de declarar, a propósito de um acontecimento político que reprovava:

- Acho isso formidável -, e não sei se foi por essa época que aprendeu a dizer, para indicar que achava um livro mal escrito: - É interessante, mas, por exemplo, está escrito como se o fosse por um porco.

Divertia-a bastante a proibição de entrar em meu quarto antes que eu tivesse tocado a campainha. Como adquirira o nosso hábito familiar das citações, e utilizava para tanto as das peças que havia representado no convento e que eu dissera que apreciava, comparava-me sempre a Assuero:

Et la mort est le prix de tout audacieux/ Qui sans être appelé se présente à ses yeux.
Rien ne met à /'abri de cet ordre fatal, Ni le rang, ni le sexe, et le crime est éga/.Moi même...
Je suis à cette foi comme une autre soumise, Et sans /e prevenir i/ Taut pour lui parle
Qu'il me cherche ou du moins qu'il me asse appeler

[E a morte é a recompensa de todo atrevido/ Que sem ser chamado se apresenta a seus olhos.// Nada. me livra dessa ordem fatal, / Nem a posição, nem o sexo; e o crime é igual./ / Eu mesma... / Como qualquer outra estou submetida a essa lei, / E sem preveni-lo, se lhe quero falar/ É preciso que ele venha ou me mande chamar." (Racine, Esther, ato I, cena III, v. 195-96 [Racine escreve "à leurs yeux 9, 199-200 e 201-204.) (N. do T)]

Fisicamente, ela também havia mudado. Seus longos olhos azuis mais alongados não tinham conservado a mesma forma; possuíam a mesma cor, mas pareciam ter passado ao estado líqüido. De modo que, ao fechá-los, era como quando a gente impede, com cortinas, a vista do mar. Era sem dúvida dessa parte dela mesma que eu principalmente me lembrava, ao deixá-la todas as noites. Pois, por exemplo, bem ao contrário, pelas manhãs, o crespo de seus cabelos me causou durante muito tempo a mesma surpresa, como uma coisa nova que eu jamais tivesse visto. E, no entanto, acima do olhar risonho de uma moça, o que existe de mais belo que essa coroa anelada de violetas negras? O sorriso propõe mais amizade; mas os aneizinhos envernizados dos cabelos em flor, mais parentes da carne, da qual pareciam a transposição em pequeninas ondas, captam melhor o desejo.

Mal entrava em meu quarto, ela saltava sobre a cama e às vezes definia o meu tipo de inteligência, jurava, num transporte sincero, que preferiria morrer a me deixar: eram os dias em que eu me barbeara antes de mandar chamá-la. Albertine era dessas mulheres que não sabem distinguir a razão do que sentem. O prazer que lhes causa uma pele fresca, explicam-no pelas qualidades morais daquele que lhes parece, para seu futuro, representar uma felicidade, aliás passível de diminuir e de tornar-se menos necessária à medida que se deixa crescer a barba.

Perguntava-lhe aonde pensava ir.

- Creio que Andrée quer me levar aos Buttes-Chaumont, que não conheço.

Claro que me era impossível adivinhar, entre tantas outras palavras, se por trás destas se escondia uma mentira. Aliás, eu tinha esperança de que Andrée me dissesse todos os locais a que iria com Albertine. Em Balbec, quando me sentia muito cansado de Albertine, pretendera dizer mentirosamente a Andrée:

"Minha querida Andrée, se tivesse voltado a vê-la mais cedo! Era você a quem eu teria amado. Mas agora o meu coração está preso alhures. Ainda assim, podemos ver-nos amiúde, pois meu amor por outra me causa grandes aflições e você me ajudará a consolar-me."

Ora, essas mesmas palavras mentirosas tornaram-se verdadeiras três semanas mais tarde. Talvez Andrée tivesse acreditado em Paris que se tratava de fato de uma mentira, e que eu a amava, como sem dúvida o teria acreditado em Balbec; pois a verdade muda de tal maneira para nós que aos outros custa muito reconhecerem-se nela. E, como eu sabia que ela haveria de contar-me tudo o que teriam feito, ela e Albertine, eu lhe pedira, e ela concordara, que viesse buscá-la quase todos os dias. Poderia desse modo, sem preocupações, ficar em casa. E esse prestígio de ser Andrée uma das moças do "pequeno grupo" dava-me confiança de que ela obtivesse tudo o que eu queria de Albertine. Na verdade, poderia dizer-lhe agora, com toda a sinceridade, que ela seria capaz de me tranquilizar. Por outro lado, a escolha de Andrée (que acontecia achar-se em Paris, tendo renunciado a seu projeto de voltar a Balbec) como guia de minha amiga relacionava-se ao que Albertine me contara da afeição que sua amiga sentira por mim em Balbec, num momento em que, pelo contrário, eu receava aborrecê-la, e, se eu o tivesse sabido então, seria talvez Andrée aquela a quem teria amado.

- Como, não sabia? - indagou Albertine -, e todavia gracejávamos sobre isso entre nós. - Além do mais, não reparou que ela tinha dado para imitar o seu modo de falar e raciocinar? Principalmente quando acabava de deixá-lo, era assombroso. Ela não precisava dizer se o tinha visto. Quando chegava, se tinha estado com você, isto se via no primeiro instante. Nós nos entre olhávamos e ríamos. Ela era como um carvoeiro que gostaria que acreditassem que não é carvoeiro, embora esteja preto. Um moleiro não precisa dizer que é moleiro, isto se percebe muito bem por toda a farinha que o cobre: ainda traz a marca dos sacos que carregou. No caso de Andrée era a mesma coisa, ela franzia as sobrancelhas como você, depois o longo pescoço; enfim, nem sei como explicar. Quando pego um livro que esteve em seu quarto, posso ir lê-lo lá fora; ainda assim, todos sabem que procede de você, pois conserva algo de suas horríveis fumigações. É uma coisa de nada, não sei lhe dizer, mas no fundo é um nada bastante agradável. Toda vez que alguém falava de você com simpatia, ou dava a impressão de tê-lo em alta consideração, Andrée ficava encantada.

Apesar de tudo, para evitar que houvesse algo preparado sem meu conhecimento, aconselhei-a a abandonar naquele dia o passeio aos Buttes-Chaumont e ir de preferência à Saint-Cloud, ou a outro lugar.

É certo que isso não queria dizer que eu amasse Albertine nem um pouco. O amor talvez não passe da propagação desses redemoinhos que, em seguida a uma emoção, comovem a alma. Alguns deles tinham remexido com minha alma inteira quando Albertine, em Balbec, me falara da Srta. Vinteuil, mas agora estavam parados. Eu já não amava Albertine, pois não me restava mais coisa alguma do sofrimento, agora curado, que eu tivera no trem, em Balbec, ao saber como fora a adolescência delas, talvez com visitas à Montjouvain. Pensara demais em tudo isso, estava curado. Mas, por instantes, certos modos de falar de Albertine me faziam supor - não sei porquê - que ela deveria ter recebido, em sua vida ainda tão curta, muitos galanteios e declarações, e tê-los recebido com prazer, ou seja, com sensualidade. Assim, dizia ela a propósito de qualquer coisa:

- É verdade? É verdade mesmo?

Decerto, se houvesse dito como uma Odette:

- É verdade mesmo essa grande mentira? - eu não me inquietaria, pois o próprio ridículo da fórmula era explicado por uma estúpida banalidade de espírito feminino. Mas seu ar interrogativo: - É verdade? dava, por um lado, a estranha impressão de uma criatura que não pode perceber as coisas por si mesma, que apela para o nosso testemunho, como se não possuísse as mesmas faculdades que nós (diziam-lhe: "Faz uma hora que partimos", ou "chove", e ela perguntava: "É verdade?"). Infelizmente, por outro lado, essa dificuldade de se dar conta por si mesma dos fenômenos exteriores não devia ser a verdadeira origem de "É verdade? É verdade mesmo?". Antes parecia que tais palavras teriam sido, desde sua nubilidade precoce, respostas aos: "Sabe que jamais encontrei uma criatura tão linda como você", "sabe que sinto um grande amor por você, que estou num estado de excitação terrível", afirmações às quais respondiam, com uma modéstia faceiramente aprovadora, esses "É verdade? É verdade mesmo?", os quais só serviam a Albertine, em suas relações comigo, para responder com uma pergunta a uma afirmação do tipo:

-Você dormiu mais de uma hora. - É verdade?

Sem me sentir absolutamente enamorado de Albertine, sem contar no número dos prazeres os momentos que passávamos juntos, continuara preocupado com o emprego de seu tempo; certamente, fugira eu de Balbec para estar seguro de que ela não poderia mais ver tal ou qual pessoa com quem eu receava tanto que ela se comportasse mal, rindo-se, talvez rindo de mim, que havia tentado habilmente romper de um só golpe, com minha partida, todas as suas más relações. E Albertine era dotada de uma tal força de passividade, tão grande faculdade de esquecer e de se submeter, que essas relações de fato tinham sido rompidas, curando a fobia que me atormentava. Porém esta pode se apresentar sob tantas formas quanto o mal incerto que é o seu objetivo. Enquanto meu ciúme não se reencarnava em novas criaturas, eu tivera, depois de passados os meus sofrimentos, um intervalo de calma. Mas o menor pretexto serve para fazer renascer uma doença crônica, como aliás a menor ocasião pode servir para que, após uma trégua de castidade, se exerça de novo, com criaturas diversas, o vício da pessoa que é a causa deste ciúme. Eu conseguira separar Albertine de suas cúmplices e, desse modo, exorcizar minhas alucinações; se era possível fazê-la esquecer as pessoas, tornar breves os seus relacionamentos, todavia o seu gosto pelo prazer era igualmente crônico e talvez só esperasse uma oportunidade para saciar-se. Ora, Paris fornece tantas ocasiões para isto como Balbec. Em qualquer cidade ela não precisaria procurar, pois o mal não estava em Albertine apenas, mas em outras, para as quais toda ocasião de prazer é boa. O olhar de uma, logo entendido pela outra, aproxima as duas famintas. E é fácil a uma mulher sagaz dar a impressão de não ver, e cinco minutos depois dirigir-se à pessoa que a compreendeu e a está esperando numa rua transversal, e, com duas palavras, marcar um encontro. Quem saberá jamais? E era tão simples para Albertine dizer-me, para que aquilo continuasse, que desejava rever determinado ponto de Paris que lhe agradara. Assim, bastava que ela regressasse muito tarde, que seu passeio tivesse durado um tempo inexplicável, embora talvez bem fácil de ser explicado sem a ocorrência de qualquer motivo sensual, para que meu mal renascesse, desta vez relacionado a representações que não eram de Balbec, e que eu me esforçaria, como às precedentes, para destruir, como se a destruição de uma causa efêmera pudesse carrear consigo a de um mal congênito. Eu não me dava conta de que nessas destruições, onde tinha por cúmplice, em Albertine, a sua faculdade de mudar, a sua força de esquecer, quase de odiar, o objeto recente de seu amor, causava por vezes uma dor profunda a tal ou qual das criaturas desconhecidas com quem ela sucessivamente desfrutara o prazer, e que era debalde que causava essa dor, pois essas criaturas seriam abandonadas porém substituídas; e, paralelamente ao caminho balizado por tantos abandonos que ela cometeria levianamente, outro prosseguiria implacável para mim, apenas interrompido por muito breves intervalos; de modo que, pensando bem, meu sofrimento não podia ter um fim senão comigo ou com Albertine.

Mesmo nos primeiros tempos da nossa chegada a Paris, insatisfeito com as informações que Andrée e o motorista me haviam passado sobre os passeios que faziam com minha amiga, eu sentira os arredores de Paris tão cruéis como os de Balbec e saíra em viagem por alguns dias com Albertine. Mas em toda parte a incerteza sobre o que ela fazia era a mesma; as possibilidades de que fosse o mal, igualmente numerosas, a vigilância ainda mais difícil, de forma que voltei com ela a Paris. Na verdade, ao deixar Balbec, julgara abandonar Gomorra, arrancando Albertine de lá; ai de mim, Gomorra andava espalhada pelos quatro cantos do mundo. E parte devido ao meu ciúme, parte por ignorância dessas alegrias (caso que é bastante raro), eu havia regulado, sem o saber, esse jogo de esconde-esconde em que Albertine me fugiria sempre.

Interrogava-a à queima-roupa:

- Ah, a propósito, Albertine, será que sonhei ou você me disse que conhecia Gilberte Swann?

- Sim, quer dizer, ela me falou no curso, porque possuía os cadernos de História da França, até foi muito gentil e me emprestou os cadernos, que devolvi assim que tornei a vê-la.

- Será que ela é do tipo das mulheres de quem não gosto?

-Oh, de jeito nenhum; pelo contrário.

Mas, em vez de me entregar a esse gênero de conversas inquiridoras, dedicava-me com frequência a imaginar o passeio de Albertine, as forças que não empregava em fazê-lo, e falava à minha amiga com esse ardor que os projetos irrealizados conservam inato. Expressava tamanha vontade de rever determinado vitral da Sainte-Chapelle, tamanha pena de não poder fazê-lo sozinho em sua companhia, que ela me respondia com ternura:

- Mas, meu querido, já que isso lhe agrada tanto, faça um pequeno esforço, venha conosco. Esperaremos o tempo que você quiser até que fique pronto. Além disso, se lhe agrada mais estar sozinho comigo, basta mandar embora Andrée, ela voltará em outra ocasião.

Mas esses mesmos pedidos de sair aumentavam a tranquilidade que me permitia ficar em casa.

continua na página 09...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
A Prisioneira (Durante toda a viagem)

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