quarta-feira, 16 de julho de 2025

Cinema: Trem Noturno para Lisboa

Trem Noturno para Lisboa 

(2013) 

· Dublado Português


"O professor suíço Raimund Gregorius abandona suas palestras e sua vida abotoada para embarcar em uma aventura emocionante que o levará numa viagem ao fundo de seu coração."





"Tudo começa numa manhã chuvosa. Raimund Gregorius, um professor de literatura clássica, caminha em direção ao seu trabalho em Berna, Suíça, quando se depara com uma jovem angustiada que se encontra no alto da ponte e ele evita que ela se precipite nas águas do rio."


Direção: Bille August

Elenco: 
Jeremy Irons - Raimund
Mélanie Laurent - Estefânia
Lena Olin - Estefânia
Jack Huston - Amadeu
August Diehl - Jorge
Bruno Ganz - Jorge
Tom Courtenay - João
Marco d'Almeida - João
Beatriz Batarda - Adriana
Charlotte Rampling - Adriana
Martina Gedeck - Mariana
Christopher Lee - Bartolomeu
Dominique Devenport - Natalie
Adriano Luz - Mendes
Sarah Spale - Catarina Mendes

Gênero: Mistério, Romance, Thriller
Título original: Night Train To Lisbon


O LivroNachtzug nach Lissabon (Comboio Noturno para Lisboa, em Portugal; Trem Noturno para Lisboa, no Brasil) é um romance filosófico de Pascal Mercier (pseudónimo de Peter Bieri) publicado em 2004. Narra a viagem em busca de si mesmo que Raimund Gregorius, um professor suíço de literatura clássica, faz para Lisboa depois de ler o instigante livro Um Ourives das Palavras, de Amadeo de Ameida Prado, médico português que viveu durante o período ditatorial do Estado Novo de António de Oliveira Salazar. Prado é um pensador cuja mente ativa se torna evidente numa série de reflexões coligidas e lidas por Gregorius.

Data da primeira publicação: 2004
Autor: Peter Bieri
Gêneros: Romance, Romance psicológico
Idioma original: Alemão
Adaptações: Trem Noturno para Lisboa (2013)


"Se só podemos vier uma parte do que está dentro de nós... o que acontece com o resto?"

Trem Noturno para Lisboa

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal (c)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal 
.

continuando...


     Foi essa a sutil exposição de Naphta. Fez-se silêncio no pequeno grupo. Os jovens olhavam o Sr. Settembrini, como se fosse ele quem devesse reagir dessa ou daquela forma. 

– É pasmoso – disse o italiano. – Francamente, confesso que estou emocionado. Eu não teria esperado por essa. Roma locuta. E como falou! Diante dos nossos olhos executou um salto mortal hierático, e a contradição que porventura houvesse nesse adjetivo foi “ab-rogada temporariamente”. Sim, senhor! Repito: é pasmoso! O senhor admite a possibilidade de objeções, meu caro professor? Falo de objeções feitas exclusivamente sobre o fundamento da lógica. O senhor acaba de esforçar-se por nos fazer compreender um individualismo cristão, baseado na dualidade de Deus e do mundo e por demonstrar a sua primazia sobre toda mobilidade determinada pela política. Poucos minutos depois levou o socialismo até a ditadura e o terror. Como consegue o senhor reconciliar essas duas coisas? 
– As contradições – replicou Naphta – podem reconciliar-se. Somente o meio-termo, e a mediocridade são irreconciliáveis. Como já me permiti observar, o seu individualismo é deficiente, é apenas um compromisso. Corrige a sua ética paga por meio de um pouco de cristianismo, um pouco de direito do indivíduo e um pouco de pretensa liberdade. Isso é tudo. Um individualismo, porém, que parte da importância cósmica, da importância astrológica da alma individual, um individualismo não social, mas religioso, que concebe a humanidade não como o antagonismo entre o eu e a sociedade, mas como o conflito entre o eu e Deus, entre a carne e o espírito – tal individualismo genuíno se harmoniza muito bem com a comunidade mais intensamente coercitiva... 
– É anônimo e coletivo – disse Hans Castorp.

     Settembrini mirou-o com os olhos arregalados. 

– Cale-se, engenheiro! – ordenou com uma severidade que se devia atribuir ao seu nervosismo e à tensão do seu espírito. – Instrua-se, mas deixe de externar suas opiniões!... Recebi uma resposta – prosseguiu, voltando-se novamente para Naphta. – Ela pouco me consola, mas, ao menos, é uma resposta. Encaremos todas as consequências que provêm dela... Com a indústria, o comunismo cristão rejeita a técnica, a máquina, o progresso. Com aquilo que o senhor qualificou de camada de comerciantes, com o dinheiro e os negócios lucrativos, que a Antiguidade colocava muito acima da agricultura e do artesanato, reprova a liberdade. É evidente, salta aos olhos que dessa forma – tal como aconteceu na Idade Média – todas as relações particulares e públicas ficam presas ao solo. E o mesmo se dá – custa-me dizê-lo – com a personalidade. Se o solo é o único que alimenta, é também o único que pode outorgar a liberdade. Artífices e camponeses, por mais alto que seja o conceito de que gozam, se não possuem terras, são servos de quem as possuí. Com efeito, até uma fase muito adiantada da Idade Média, as grandes massas, inclusive nas cidades, compunham se de servos. No curso da nossa palestra, o senhor mencionou de vez em quando a dignidade humana. Não obstante, defende uma moral econômica à qual são inerentes a servidão e o aviltamento da personalidade do homem. 
– Sobre a dignidade e o aviltamento – disse Naphta – pode-se discutir. Por enquanto, eu ficaria muito satisfeito se essa associação o fizesse ver na liberdade menos um belo gesto do que um problema. O senhor observa que a moral econômica cristã, com toda a sua beleza e mentalidade humana, cria servos. Eu oponho a isso que a causa da liberdade ou das cidades, como se poderia dizer de uma forma mais concreta —, que essa causa, por elevada e ética que seja, acha-se historicamente ligada à mais desumana degeneração da moral econômica, a todas as atrocidades do espírito moderno de comerciantes e especuladores, à dominação diabólica do dinheiro e dos negócios. 
– Faço questão de que o senhor não se esquive por meio de antinomias e de ambiguidades, mas professe clara e inequivocamente ser partidário da mais negra das reações. 
– O primeiro passo em direção à verdadeira liberdade e humanidade seria abandonar esse medo covarde da ideia de reação. 
– Agora basta! – disse o Sr. Settembrini numa voz levemente trêmula, enquanto afastava de si a xícara e o prato, que já estavam vazios. Levantou-se do sofá forrado de seda. – Por hoje chega, é suficiente para um só dia, segundo me parece. Professor, obrigado pelo saboroso lanche e pela conversa sumamente espirituosa. Os deveres do regime reclamam os meus amigos do Berghof, e eu gostaria, antes de irem, de mostrar-lhes o meu cubículo lá em cima. Vamos, cavalheiros! Addio, padre!

     Desta vez até chamou Naphta de “padre”. Hans Castorp, com as sobrancelhas franzidas, tomou nota do apelido. Os primos deixaram que Settembrini organizasse a partida, dispondo deles e nem sequer perguntando se Naphta queria ou não unir-se a eles. Os jovens despediram-se também, agradecendo, e foram convidados a voltar em breve. Acompanharam o italiano, Hans Castorp levando emprestada a obra De misria humanae conditionis, um volume cartonado, em precário estado de conservação. Lukacek, com a sua barba, melancólica, continuava sentado à mesa, trabalhando no vestido com mangas, destinado àquela velha, quando passaram pela sua porta, para ganhar a íngreme escada que conduzia à água-furtada. No fundo não se tratava de mais um andar, senão simplesmente do vão do sótão, com o madeiramento despido abaixo das telhas e com a atmosfera estival de um depósito, cheirando a madeira quente. Mas o sótão abrigava dois compartimentos que o capitalista republicano habitava. Serviam de gabinete de estudo e de dormitório ao colaborador beletrista da Sociologia dos males. Mostrou-se alegremente aos jovens amigos. Qualificou a habitação de isolada e íntima, a fim de lhes sugerir os epítetos adequados de que poderiam servir-se para elogiá-la, o que de fato fizeram unanimemente. Era encantadora – acharam ambos —, tão isolada e tão íntima, exatamente como dissera o Sr. Settembrini. Lançaram um olhar ao pequeno dormitório, onde, à frente do estreito leito, se estendia um pequeno tapete de retalhos, e depois voltaram ao gabinete de trabalho, mobiliado de modo não menos despojado, mas que mostrava, ao mesmo tempo, uma ordem um tanto espalhafatosa e até fria. Cadeiras toscas e antiquadas em número de quatro, com assentos de palha, achavam-se colocadas simetricamente dos lados das portas, e também o sofá estava encostado à parede, de modo que o centro da peça pertencia somente a uma solitária mesa redonda, coberta com uma toalha verde, na qual se via, para fins de adorno ou de refresco, uma sóbria garrafa de água com um copo enfiado sobre o gargalo. Livros encadernados e brochuras encontravam-se apoiados obliquamente uns nos outros sobre uma pequena estante, e junto à janelinha erguia-se sobre pernas altas uma papeleira leve, diante da qual havia um pedacinho de feltro espesso, de tamanho apenas suficiente para que se pudesse ficar de pé em cima dele. Durante um momento, Hans Castorp, a título de experiência, pôs-se no lugar onde o Sr. Settembrini costumava trabalhar, estudando, para fins enciclopédicos, as belas-letras sob o ponto de vista do sofrimento humano. Fincando os cotovelos na tábua inclinada, o jovem declarou que ali se podia viver de um modo isolado e íntimo. Nessa mesma posição – opinou – devia o pai de Lodovico, com seu nariz fino e comprido, ter ficado diante da sua escrivaninha, em Pádua. E Hans Castorp inteirou-se de que realmente essa era a papeleira do saudoso sábio; também as cadeiras de palhinha, a mesa e a própria garrafa de água haviam pertencido a ele. E mais ainda: as cadeiras provinham do avô, o carbonário; haviam feito parte da mobília do seu escritório em Milão. Isso era impressionante. A fisionomia das cadeiras tomava aos olhos dos jovens ares de insubmissão política. Joachim levantou-se daquela em que se instalara inocentemente, com as pernas cruzadas, e olhou-a desconfiado, sem voltar a sentar-se. Hans Castorp, porém, de pé diante da papeleira de Settembrini-pai, pensava no filho que agora trabalhava nela, associando a política do avô e o humanismo do genitor, com o fim de criar obras beletrísticas. Pouco depois saíram todos os três. O escritor ofereceu-se a acompanhar os primos pelo caminho de regresso.
     Caminharam um bom pedaço sem falar, mas o seu silêncio estava relacionado com Naphta, e Hans Castorp não tinha pressa. Estava certo de que o Sr. Settembrini não deixaria de mencionar o vizinho, e que só os acompanhara na intenção de fazê-lo. Não se enganou. Depois de um suspiro dado para tomar impulso, o italiano começou dizendo:

– Senhores, eu desejaria adverti-los.

     Como Settembrini fizesse uma pausa, Hans Castorp indagou com fingida surpresa: – Contra o quê? – Poderia ter perguntado: “Contra quem?” Mas preferiu a forma impessoal, para documentar a extensão da sua inocência, ainda que o próprio Joachim soubesse muito bem de que se tratava. 

– Contra a personalidade que acabamos de visitar – respondeu Settembrini – e que eu tive de apresentar-lhes contra a minha vontade. Os senhores sabem que isso aconteceu por mero acaso e não houve jeito de evitá-lo. Mas a responsabilidade me cabe e pesa sobre mim penosamente. É minha obrigação expor à juventude, da qual os senhores fazem parte, os perigos espirituais que acarreta o contato com esse homem. Devo pedir-lhes que mantenham em limites seguros as relações com ele. Sua forma é lógica, mas sua natureza é confusão.

     Hans Castorp replicou que, realmente, não se sentia à vontade com Naphta. Suas palavras deixavam-no às vezes com uma sensação esquisita. Podia-se pensar em alguns momentos que ele pretendia afirmar seriamente que o Sol girava em torno da Terra. Mas, como poderiam eles, os primos, ter imaginado que fosse inconveniente travar relações sociais com um amigo do Sr. Settembrini? Não acabava ele próprio de dizer que haviam conhecido Naphta por seu intermédio? Tinham-no encontrado em sua companhia; o homem passeava com ele, que tomava o chá na sua casa, assim sem cerimônia, e tudo isso demonstrava, afinal... 

– Sem dúvida, meu caro engenheiro, sem dúvida! – a voz do Sr. Settembrini soava suave, resignada, e contudo levemente trêmula. – São objeções que se impõem, e por isso o senhor tem razão de fazê-las. Muito bem, estou disposto a defender-me. Vivo sob o mesmo teto com esse senhor. Frequentes encontros são inevitáveis. Uma palavra traz a outra. A gente trava conhecimento. O Sr. Naphta é homem inteligente, o que é coisa rara. Tem um temperamento discursivo, assim como eu. Que me condene quem quiser, mas aproveito a oportunidade de cruzar as lanças da ideia com um adversário de qualidade até certo ponto igual. Não tenho mais ninguém, nem perto nem longe... Numa palavra, não nego que o visito e que ele me visita. Também passeamos juntos. E discutimos. Discutimos encarniçadamente, quase todos os dias. Mas confesso que a oposição e a hostilidade da sua maneira de pensar representa para mim precisamente um atrativo a mais para me encontrar com ele. Tenho necessidade do atrito. As convicções não vivem, a não ser que tenham ocasião de lutar, e eu, por minha parte, tenho sólidas convicções. Mas como poderiam os senhores afirmar o mesmo das suas próprias pessoas? O senhor, tenente, ou o senhor, engenheiro? Não estão armados para se defender contra miragens intelectuais. Correm o perigo de que essas sutilezas meio fanáticas, meio maliciosas, lhes prejudiquem o espírito e a alma.

     Hans Castorp admitiu tudo isso. Seu primo e ele próprio eram, provavelmente, naturezas um tanto expostas. A velha história dos filhos enfermiços da vida; claro! Mas a ela podia-se opor Petrarca com a sua divisa, que o Sr. Settembrini conhecia. Em todo caso era digno de ser ouvido o que Naphta explanava. Que não fossem injustos: aquilo que ele dissera sobre o tempo comunista, por cujo transcurso ninguém deveria receber um prêmio, era mesmo notável. E também eram muito interessantes as suas ideias sobre a pedagogia, coisas que ele, Hans Castorp, nunca teria chegado a saber sem Naphta...
     Settembrini cerrou os lábios, e Hans Castorp apressou-se a acrescentar que, naturalmente, ele se abstinha de tomar partido e de formar uma opinião. Simplesmente achara dignos de serem ouvidos os argumentos de Naphta sobre os desejos da juventude. – Explique-me o senhor uma coisa – continuou. – Esse Sr. Naphta (digo “esse senhor” para indicar que não simpatizo com ele irrestritamente; pelo contrário, observo com relação a ele uma rigorosa reserva mental...)

– E o senhor faz muito bem! – exclamou Settembrini, cheio de gratidão. 
– ...ele acaba de dizer horrores contra o dinheiro, a alma do Estado, segundo se expressava, e contra a propriedade particular, que tachava de roubo; numa palavra, atacou a riqueza capitalista, da qual, se não me engano, afirmou que era o combustível das chamas do inferno. Parece-me que se serviu dessa expressão. Em altos brados elogiou a condenação medieval do anatocismo. E apesar de tudo isso ele próprio faz... O senhor me desculpe, mas ele deve... É uma verdadeira surpresa quando se entra na casa dele. Toda aquela seda... 
– Pois é – sorriu Settembrini. – A tendência dos seus gostos é característica. 
– ...e os belos móveis antigos – prosseguiu Hans Castorp nas suas reminiscências —, a Pietà do século XIV... o lustre veneziano... o criadinho de libré... e bolo de chocolate em abundância... É preciso que ele pessoalmente... 
– O Sr. Naphta, pela sua pessoa – explicou Settembrini —, é tão pouco capitalista quanto eu. 
– Mas... – perguntou Hans Castorp. – As suas palavras escondem um “mas”, Sr. Settembrini. 
– Bem, essa gente não deixa nenhum dos seus na miséria. 
– Quem é “essa gente”? 
– Aqueles padres. 
– Padres? Que padres? 
– Ora, engenheiro, eu falo dos jesuítas. 

     Fez-se um momento de silêncio. Os primos mostraram sinais da mais viva consternação. Hans Castorp exclamou: 

– Não é possível!... Cruzes! O homem é um jesuíta? 
– O senhor adivinhou – respondeu o Sr. Settembrini cerimoniosamente. 
– Não, nunca na vida teria eu... Como poderia pensar? É por isso que o senhor o chamou de “padre”. 
– Foi um pequeno excesso de cortesia – tornou Settembrini. – O Sr. Naphta não é padre. Se por enquanto ainda não atingiu esse grau, a culpa é da enfermidade. Mas ele passou pelo noviciado e fez os primeiros votos. A doença forçou-o a interromper os estudos teológicos. Depois, teve ainda alguns anos de serviço como prefeito num instituto da ordem, isto é, como preceptor ou mentor de jovens alunos. Isso vinha ao encontro das suas inclinações pedagógicas. E aqui pode continuar a satisfazê-las, ensinando latim no Fredericianum. Vive em Davos faz cinco anos. Não se pode dizer ao certo quando será capaz de partir, se é que um dia o será. Mas Naphta pertence à ordem, e mesmo que os laços que o ligam a ela fossem mais frouxos, nunca lhe faltaria nada. Eu já expliquei aos senhores que ele, pessoalmente, é pobre, quer dizer, não possui bens. Claro, é a regra! A ordem, por sua vez, dispõe de imensas riquezas e cuida dos seus, como os senhores podem ver. 
– Barba...ridade! – murmurou Hans Castorp. – E eu nem sabia ou pensava que uma coisa dessas pudesse existir realmente! Um jesuíta! Sim, senhor!... Mas diga-me mais uma coisa: se ele está bem provido e amparado por aquela gente, por que cargas d'água vive então... Absolutamente não quero criticar a sua habitação, Sr. Settembrini O senhor está muito bem instalado na casa de Lukacek, de um modo agradavelmente isolado e sobretudo tão íntimo... Mas sou de opinião que esse Naphta, uma vez que anda tão cheio da nota, para usar esse termo vulgar... Por que não aluga uma moradia mais vistosa, com uma entrada elegante e peças grandes, numa casa distinta? Há mesmo qualquer coisa de misterioso e aventureiro nesse jeito de morar num quartinho desses, com todas aquelas sedas...

     Settembrini deu de ombros.     

– Devem ser razões de tato e de gosto que determinaram a escolha – disse então. – Acho que sua consciência anticapitalista se sente melhor quando ele habita o quarto de homem pobre e compensa isso pela maneira como o habita. Talvez haja também questões de discrição metidas nisso. Não se deve ostentar a todo mundo que se é abastecido pelo Diabo. Adota-se uma fachada pouco impressionante, atrás da qual se dá livre curso ao gosto sacerdotal pela seda... 
– É esquisito! – disse Hans Castorp. – É completamente novo e emocionante para mim, como confesso com toda a franqueza. Não, de fato estamos muito gratos, Sr. Settembrini, porque nos apresentou esse homem. Creia-me que frequentemente voltaremos a visitá-lo. Isso ficou combinado. Relações assim ampliam o horizonte de maneira inesperada e permitem olhar para um mundo cuja existência a gente absolutamente ignorava. Um autêntico jesuíta! Quando digo “autêntico” estou dando margem àquilo que me preocupa, e que não posso deixar de observar. Eu pergunto: é ele realmente um jesuíta como os outros? Sei muito bem que o senhor pensa que não pode haver norma, quando se trata de pessoas que o Diabo abastece. Mas o que eu gostaria de saber é outra coisa, que se pode resumir na pergunta: “É ele autêntico como jesuíta?” É isso que me interessa. Naphta acaba de dizer uma porção de coisas – o senhor sabe a que me refiro – sobre o comunismo moderno e o zelo piedoso do proletariado, que não deve impedir as suas mãos de derramarem sangue. Numa palavra, ele disse coisas que não quero comentar; comparado com esse homem, o seu avô, com sua lança do cidadão, era um cordeirinho inocente; não me leve a mal essa expressão! E ele pode fazer isso? Tem a aprovação dos seus superiores? É compatível com a doutrina romana, uma vez que dizem que a ordem intriga o mundo inteiro em prol dela? Não é tudo isso – como se diz? – herético, anormal, incorreto? Essas ideias me ocorrem a respeito de Naphta, e eu gostaria muito de saber o que o senhor pensa.

     Settembrini sorriu. 

– É muito simples. O Sr. Naphta é, realmente e antes de mais nada, um jesuíta genuíno e completo. Mas em segundo lugar é um homem de espírito – do contrário eu não procuraria a companhia dele – e como tal empenha-se em encontrar novas combinações, adaptações e associações, ainda em busca de variações modernas. Os senhores me viram surpreendido diante das suas teorias. Comigo, ele nunca se revelara até esse ponto. Servi-me do estímulo que a presença dos senhores evidentemente exercia sobre ele para provocá-lo, a fim de que dissesse, em certo sentido, a última palavra. E essa palavra foi bastante excêntrica e bastante monstruosa...
– Sim... E por que não chegou a ser padre? Acho que ele tem a idade necessária. 
– Eu já lhe disse que a doença o impediu, temporariamente... 
– Hum... Mas, se Naphta é em primeiro lugar um jesuíta, e em segundo, um homem de espírito que anda em busca de combinações, não acredita o senhor que esse outro elemento, o acessório, provém da enfermidade? 
– Que quer dizer com isso? 
– Olhe, Sr. Settembrini, parece-me o seguinte: ele tem uma mancha úmida que o impede de ser padre. Mas aquelas suas combinações também o teriam impedido, e sob esse aspecto pode se dizer que as combinações e a mancha úmida pertencem à mesma categoria. Ele é, à sua maneira, uma espécie de filho enfermiço da vida, um joli jésuite com uma petite tache humide

     Haviam chegado ao sanatório. No terraço em frente ao edifício detiveram-se ainda um instante, antes de se separarem. Formaram um pequeno grupo, enquanto outros pensionistas, que andavam ociosos nas proximidades do portão, observavam a sua palestra. O Sr. Settembrini disse:

– Mais uma vez, meus jovens amigos, advirto-os. Não posso proibir-lhes a continuação das relações uma vez estabelecidas, desde que se sintam impelidos pela curiosidade. Mas criem em torno do coração e do cérebro uma couraça de desconfiança. Nunca deixem de opor uma resistência crítica. Eu definirei esse homem numa única palavra: é um voluptuoso.

     Os primos fizeram uma careta. A seguir perguntou Hans Castorp: 

– Um quê? Ora veja! Mas ele pertence a uma ordem. Pelo que sei, existem ali alguns votos que devem ser feitos, e além disso Naphta é tão minguado e tão débil... 
– O senhor fala muito ingenuamente, engenheiro – retrucou o Sr. Settembrini. – Aquilo nada tem que ver com a debilidade, e quanto aos votos há certas reservas. Porém, eu falei num sentido mais lato e mais espiritual, na esperança de encontrar alguma compreensão da sua parte. Lembra-se ainda do dia em que o visitei no seu quarto – já faz muito, muitíssimo tempo –, o senhor passava pelo período de acamamento obrigatório, logo depois da sua admissão como paciente... 
– Como não! O senhor entrou na hora do crepúsculo e acendeu a luz. Recordo-me como se fosse hoje... 
– Bem, naquele dia o curso da palestra, como graças a Deus acontece frequentemente, levou-nos a certos assuntos elevados. Creio que falamos até da vida e da morte, da natureza digna da morte, contanto que seja uma condição e um complemento da vida, e do caráter de bicho papão que ela assume quando o espírito comete o pavoroso erro de isolá-la como princípio. Senhores – prosseguiu o Sr. Settembrini, aproximando-se muito dos dois jovens e estendendo lhes o polegar e o dedo médio da mão esquerda à maneira de uma forquilha, como para apanhar lhes a atenção, enquanto erguia o indicador da direita em sinal de admoestação... –, gravem na sua memória que o espírito é soberano, que sua vontade é livre, que determina o mundo moral. Porém, se dualisticamente isola a morte, esta se converte, real e virtualmente, graças à vontade do espírito, numa potência própria, oposta à vida, num princípio antagônico, na grande sedução; e seu império é o da voluptuosidade. Os senhores perguntam: “Por que da voluptuosidade?” E eu respondo: porque a morte dissolve e redime, porque traz a redenção, mas não a redenção do mal, e sim a redenção pelo mal. Dissolve a ética e a moralidade, redime da disciplina e da moderação, liberta para a volúpia. Se os advirto contra o homem que os senhores, malgrado meu, conheceram por meu intermédio, se os exorto a que blindem os corações com a tríplice couraça da crítica, no contato e nas discussões com ele, é porque todos os seus pensamentos têm caráter voluptuoso, pois estão colocados sob a proteção da morte, que é uma potência sumamente licenciosa, como eu já lhe disse, engenheiro, naquela ocasião – lembro-me bem da expressão que usei; sempre guardo na memória as expressões precisas e incisivas que tive oportunidade de formular –, é uma potência dirigida contra a civilização, o progresso, o trabalho e a vida. E o mais nobre dever do educador é pôr as almas dos jovens ao abrigo das suas emanações mefíticas.  

     Seria impossível falar de forma mais clara e mais elegante do que o Sr. Settembrini acabava de fazer. Hans Castorp e Joachim Ziemssen agradeceram-lhe todos os conselhos, despediram-se e subiram até o portal do Berghof, ao passo que o Sr. Settembrini regressava à sua papeleira de humanista, um andar acima da cela forrada de seda do Sr. Naphta.
     A visita dos primos à casa de Naphta, que acabamos de descrever, foi a primeira que lhe fizeram. Seguiram-se a ela duas ou três outras, uma até na ausência do Sr. Settembrini, e todas elas forneciam ao jovem Hans Castorp material para as suas reflexões, quando se deixava estar no seu retiro florido de azul e “reinava”, enquanto pairava ante seus olhos interiores aquela forma sublime que se chama Homo Dei.

continua pág 268...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal (c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Dois minutos antes)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Dois minutos antes, eu teria ficado estupefato se me dissessem que a Sra. de Guermantes ia me pedir para visitá-la, e ainda mais que lá fosse jantar. Por mais que soubesse que o salão Guermantes não podia apresentar as particularidades que eu havia extraído desse nome, o fato de que me fora proibido nele penetrar, obrigando-me a dar-lhe o mesmo gênero de existência dos salões cuja descrição lemos num romance ou vimos num sonho, fazia-me imaginá-lo bem diferente, mesmo quando estivesse seguro de que era igual a todos os outros; entre ele e mim havia a barreira onde termina o real. Jantar em casa dos Guermantes era como empreender uma viagem desejada há muito tempo, fazer passar um desejo de minha cabeça diante dos olhos e tomar conhecimento de um sonho. Pelo menos deveria acreditar que se tratasse de um desses jantares aos quais o dono da casa convida alguém, dizendo:  

"Venha, não haverá absolutamente ninguém, a não ser nós", fingindo atribuir ao pária o receio, que sentem, de vê-lo misturado a seus amigos, e procurando até mesmo transformar em um invejável privilégio reservado somente aos íntimos a quarentena do excluído, não obstante selvagem e favorecido. Senti, ao contrário, que a Sra. de Guermantes desejava me fazer desfrutar do que possuía de mais agradável quando me disse, pondo, por outro lado, diante de meus olhos, como que a beleza violácea de uma chegada à casa da tia de Fabrice e o milagre de uma apresentação ao conde Mosca: 

- Sexta-feira o senhor não estaria livre para uma pequena reunião seria ótimo. Estará presente a princesa de Parma, que é encantadora; antes de tudo, não o convidaria se não fosse para se encontrar com pessoas agradáveis.  

     Abandonada nos meios mundanos intermediários que entrara a um movimento perpétuo de ascensão, a família, ao contrário, dele desempenha um papel importante nos meios extremos, como a pequena burguesia e a aristocracia principesca, que não pode procurar elevar-se, visto que, acima dela, no seu ponto de vista especial, não existe nada. A amizade que me testemunhavam "a tia Villeparisis" e Robert fizera de mim, talvez, para a Sra. de Guermantes e seus amigos, que viviam sempre encerrados em si mesmos e numa mesma confraria, objeto de uma atenção da qual eu nem sequer suspeitava.
     A Sra. de Guermantes possuía desses parentes um conhecimento familiar, cotidiano, comum e bem diferente daquele que imaginávamos e no qual, se somos compreendidos, longe de nossos atos serem expelidos como um grão de poeira do olho ou a gota d'água da traqueia, podem ficar gravados, ser comentados, contados ainda durante anos depois de nós mesmos os temos esquecido, no palácio em que ficamos estarrecidos por reencontrá-los como uma carta nossa em uma preciosa coleção de autógrafos.
     Uns meros elegantes podem proibir o acesso à sua porta excessivamente invadida. Mas a dos Guermantes não o era. Um estranho quase nunca teria ocasião de passar diante dela. Uma vez que lhe indicassem algum, a duquesa não pensava em preocupar-se com o valor mundano que ele traria, já que era coisa que ela conferia e não podia receber. Ela só pensava em suas qualidades reais. A Sra. de Villeparisis e Saint-Loup lhe haviam dito que eu as possuía. E, sem dúvida, ela não acreditaria neles se não tivesse notado que eles jamais poderiam fazer com que eu viesse quando não o desejassem, e que eu, portanto, não dava importância à sociedade, o que para a duquesa parecia sinal de que um estranho fazia parte das "pessoas agradáveis". Era de ver, quando falava de mulheres de que não gostava, como logo mudava de fisionomia se nomeavam, a propósito de alguma, por exemplo a cunhada. 

- Oh, ela é encantadora - dizia, com ar de certeza e finura. A única razão que dava, para tal, era que essa dama se recusara a ser apresentada à marquesa de Chaussegros e à princesa de Silistrie. Não acrescentava que essa dama recusara ser apresentada a ela própria, duquesa de Guermantes. Entretanto, isto ocorrera, e desde esse dia o espírito da duquesa trabalhava para saber o que podia se passar na casa dessa dama tão difícil de conhecer. Morria de vontade de ser recebida em sua casa. As pessoas mundanas têm de tal modo arraigado o hábito de serem procuradas que aquele que se lhes esquiva lhes parece uma fênix e monopoliza a sua atenção.
 
     O verdadeiro motivo de me fazer um convite seria por acaso, no espírito da Sra. de Guermantes (desde que já não a amava), o fato de que eu não procurava seus parentes, embora por eles fosse procurado? Não sei. Em todo caso, tendo se decidido a me convidar, queria fazer me as honras do que possuía de melhor em sua casa, e afastar aqueles de seus amigos que poderiam impedir-me de voltar, aqueles que sabia serem tediosos. Eu não soubera a que atribuir a mudança de itinerário da duquesa quando a vira desviar-se de seu caminho estrelar, vir sentar se a meu lado e convidar-me para jantar, efeito de causas ignoradas. Por falta de um sentido especial que nos informe a respeito, afiguramo-nos as pessoas que mal conhecemos como eu à duquesa como se pensassem em nós unicamente nos raros momentos em que nos veem. Ora, esse olvido ideal em que julgamos que eles nos mantêm é totalmente arbitrário. De modo que, enquanto no silêncio da solidão, semelhante ao de uma noite linda, imaginamos as diferentes rainhas da sociedade a prosseguir o seu caminho no céu a uma distância infinita, não podemos evitar um sobressalto de mal-estar ou de prazer se nos cai lá de cima, como um aerólito que tivesse gravado o nosso nome, o qual julgávamos desconhecido em Vênus ou Cassiopeia, um convite para jantar ou um falatório maldoso. Às vezes, quem sabe, quando, à imitação dos príncipes persas que, segundo o Livro de Ester, mandavam ler os registros em que estavam inscritos os nomes daqueles dentre seus súditos que lhes haviam testemunhado zelo, a Sra. de Guermantes, consultando a lista das pessoas bem-intencionadas, dissera consigo a meu respeito:

"Um a quem havemos de convidar."

     Mas outros pensamentos a tinham distraído (De zelos tumultuosos um príncipe cercado é para novos assuntos sem cessar arrastado.) até o momento em que me enxergara sozinho como Mardoqueu à porta do palácio; e, tendo-lhe refrescado a memória o ver-me ali, queria, como Assuero, acumular-me com seus dons. 
     Entretanto, devo dizer que uma surpresa de gênero oposto se seguiu à que eu tivera no momento em que a Sra. de Guermantes me havia convidado. Esta primeira surpresa, como eu achara mais modesto de minha parte, e mais agradecido, não a dissimular e, ao contrário, exprimir com exagero o que tinha de alegre, a Sra. de Guermantes, que se dispunha a partir para um último sarau, acabava de me dizer, quase como uma justificação, e com receio de que eu não soubesse bem quem ela era, por causa do ar tão espantado que eu fazia por ter sido convidado para sua casa: 
 
- O senhor sabe, sou tia de Robert de Saint-Loup, que o estima muito, e afinal já nos vimos aqui.

     Respondendo que sabia disso, acrescentei que conhecia também o Sr. de Charlus, o qual "fora muito bom comigo em Balbec e em Paris". A Sra. de Guermantes estacou de espanto, e seus olhos pareceram se reportar, como para uma verificação, a uma página já mais antiga do livro interior. 

- Como! Então conhece Palamede? - 

     Este prenome assumia na boca da Sra. de Guermantes uma grande doçura devido à simplicidade involuntária com que falava de um homem tão brilhante, mas que para ela não passava do seu cunhado, do seu primo, e com que fora criada. E, no cinzento confuso que era para mim a vida da duquesa de Guermantes, esse nome de Palamede punha como que a claridade dos dias longos de verão em que brincara com ele no jardim, em Guermantes, quando menina. Aliás, naquela porção há muito passada de suas vidas, Oriane de Guermantes e seu primo Palamede tinham sido bem diferentes do que se tornaram desde então; o Sr. de Charlus, principalmente, todo entregue a seus gostos pela arte, de tal modo os reprimira mais tarde que fiquei espantado ao saber que o imenso leque de íris amarelos e negros, que a duquesa desdobrava naquele momento, fora pintado por ele. Poderia igualmente mostrar-me uma pequena sonatina que o barão havia composto para ela outrora. Eu ignorava totalmente que o barão possuísse todos esses talentos, dos quais nunca falava. Digamos de passagem que o Sr. de Charlus não gostava que a família o chamasse de Palamede. Quanto a Mémé, ainda se poderia compreender que não gostasse. Essas estúpidas abreviaturas são um sinal da incompreensão que a aristocracia tem da própria poesia (aliás, o mesmo se dá entre os judeus, pois um sobrinho de Lady Israels, chamado Moïse, era normalmente chamado na sociedade de "Momo"), e, ao mesmo tempo, da sua preocupação em não parecer dar importância ao que é aristocrático. Ora, o Sr. de Charlus tinha, a tal respeito, mais imaginação poética e mais manifesto orgulho. Mas o motivo por que se agradava tão pouco de "Mémé" não era este, visto que se estendia também ao prenome de Palamede. A verdade é que, julgando-se e sabendo pertencer a uma família principesca, desejaria que o irmão e a cunhada o tratassem por "Charlus", como a rainha Maria Amélia ou o duque de Orléans podiam dizer de seus filhos, netos, sobrinhos e irmãos:

"Joinville, Nemours, Chartres, Paris." 

- Como é misterioso esse Mémé - exclamou a duquesa. - Falamos-lhe longamente do senhor, disse-nos que ficaria muito feliz em conhecê-lo, perfeitamente. como se nunca o tivesse visto. Confesse que é engraçado! E às vezes o que não é nada amável de minha parte dizer de um cunhado a quem adoro e cujo raro valor admiro meio louco. 

     Fiquei chocado com esse qualificativo aplicado ao Sr. de Charlus e doeu comigo que essa meia-loucura explicava talvez algumas coisas, por exemplo, que ele parecesse tão encantado com o projeto de solicitar a Bloch que batesse na própria mãe. Percebi que, não só pelas coisas que dizia, mas pelo modo como as dizia, o Sr. de Charlus era um tanto louco. Da primeira vez que se ouve um advogado ou um ator, surpreendemo-nos com o tom bem diferente de sua conversação. Mas como a gente se dá conta de que todos acham isso natural, nada dizemos aos outros, e nada a nós mesmos, contentamo-nos em apreciar o grau de talento. Quando muito, pensamos num ator do Théâtre-Français:

"Por que, em vez de deixar recair o seu braço erguido, ele o fez abaixar-se por meio de pequenas sacudidelas interrompidas por pausas, durante pelo menos dez minutos?" ou num Labori: "Por que, desde que abriu a boca, emitiu ele esses sons trágicos, inesperados, para dizer as coisas mais simples?" Mas, como todo mundo admite isto a priori, a gente não fica chocado. Da mesma forma, refletindo no caso, dizia-se que o Sr. de Charlus falava de si com ênfase, num tom que absolutamente não era o de ordinário. Parecia que se deveria a todo instante dizer-lhe: "Mas por que o senhor grita tão alto? Por que é tão insolente?" Apenas, todos pareciam ter admitido tacitamente que era assim mesmo. E entravam na roda que o festejava enquanto ele estava perorando. Mas, evidentemente em certos momentos, um estranho julgaria estar ouvindo um demente a berrar.

- Mas - retomou a duquesa, com a ligeira impertinência que nela se enxertava à simplicidade - está o senhor bem certo de que não se confunde, que fala mesmo do meu cunhado Palamede? Por mais que ele ame os mistérios, este me parece demais!  

     Respondi que estava absolutamente certo e que talvez o Sr. de Charlus tivesse ouvido mal o meu nome.

- Muito bem, vou deixá-lo disse a duquesa como que lamentando. - Preciso ir a um segundo sarau na casa da princesa de Ligne. Não vai até lá? Não, o senhor não gosta da sociedade? Tem muita razão, é aborrecido. Se eu não fosse obrigada! Mas é minha prima, não seria gentil faltar. Lamento egoistamente, por mim, porque poderia levá-lo e até trazê-lo de volta. Então, despeço-me e felicito-me pela quarta-feira.

     Que o Sr. de Charlus tivesse enrubescido por minha causa dias antes do Sr. de Argencourt, ainda passa. Mas, para a própria cunhada, que fazia uma ideia tão alta dele, que negasse conhecer-me fato tão natural, pois eu conhecia a um tempo a sua tia e o seu sobrinho -, era algo que eu absolutamente não podia compreender. Terminarei isto, dizendo que, de um certo ponto de vista, havia uma verdadeira grandeza na Sra. de Guermantes, grandeza que consistia em apagar completamente tudo o que outros teriam só parcialmente esgotado. Mesmo que nunca me tivesse encontrado a espioná-la, a assediá-la, a segui-la em seu caminho naqueles passeios matinais, mesmo que nunca tivesse respondido à minha saudação cotidiana com impaciência e irritação, mesmo que não houvesse mandado Saint-Loup embora, quando ele lhe suplicara que me convidasse, não poderia ter comigo maneiras mais nobremente, naturalmente amáveis. Não só não perdia tempo em explicações retrospectivas, em meias palavras, em sorrisos ambíguos, em subentendidos, não só mostrava em sua afabilidade atual, sem retrocessos, sem reticências, algo de tão altivamente retilíneo como sua majestosa estatura, mas os agravos que pudesse ter sentido contra alguém no passado estavam tão inteiramente reduzidos a cinzas, e essas mesmas cinzas eram lançadas tão longe de sua memória ou, pelo menos, de sua maneira de ser, que, ao ver o seu rosto de cada vez que ela precisava tratar com a mais bela das simplificações, o que em tantos outros teria sido pretexto para uns restos de frieza, para recriminações, tinha-se a ideia de uma espécie de purificação. Mas, se eu estava surpreso com a modificação que nela se operara a meu respeito, como o era ainda mais por descobrir em mim uma mudança bem maior a respeito dela! Não houvera um só instante em que eu não retomasse vida e alento se não buscasse, tramando sempre novos projetos, alguém que me fizesse ser recebido por ela e, após essa primeira ventura, não buscasse ainda outras mais para o meu coração cada vez mais exigente! A impossibilidade de encontrar algo nesse sentido é que me fizera partir para Doncieres, a fim de ver Robert de Saint-Loup. E agora, era exatamente devido a uma carta sua que eu estava agitado, mas por causa da Sra. de Stermaria, e não da Sra. de Guermantes.
     Acrescentemos, para acabar com esta noitada, que ali se passou um fato, desmentido alguns dias depois, o qual não deixou de me assombrar, fez-me zangar por algum tempo com Bloch e que constitui em si uma dessas curiosas contradições cuja explicação iremos encontrar em Sodoma. Pois bem, Bloch, na casa da Sra. de Villeparisis, não cessou de me elogiar o ar de amabilidade do Sr. de Charlus, o qual, quando o encontrava na rua, o olhava nos olhos como se o conhecesse, tinha vontade de conhecê-lo, sabia muito bem quem ele era. Primeiro, sorri daquilo, visto que Bloch se expressara com tamanha violência, em Balbec, a respeito do mesmo Sr. de Charlus. E pensei simplesmente que Bloch, a exemplo de seu pai quanto a Bergotte, conhecia o barão "sem conhecê-lo". E aquilo que tomava por um olhar amável era um olhar distraído. Mas enfim Bloch chegou a tantas minúcias e pareceu tão seguro de que, em duas ou três ocasiões, o barão viera abordá-lo, que, lembrando-me de haver falado de meu colega ao Sr. de Charlus, o qual, de volta de uma visita à casa da Sra. de Villeparisis, fizera várias perguntas, formei a suposição de que Bloch não mentia, que o Sr. de Charlus soubera o seu nome, que ele era meu amigo, etc.. Assim, pouco depois, no teatro, pedi ao Sr. de Charlus para lhe apresentar Bloch e, com sua aquiescência, fui procurá-lo. Mas, logo que o Sr. de Charlus o viu, um espanto rapidamente reprimido se desenhou em seu rosto, onde foi substituído por um cintilante furor. Não só não estendeu a mão a Bloch, mas cada vez que este lhe dirigia a palavra respondia-lhe com o ar mais insolente, com uma voz cortante e irritada. De modo que Bloch, que, pelo que dizia, não recebera do barão senão sorrisos, julgou que eu não o tinha recomendado e sim desservido, durante a curta conversa em que, sabendo do gosto do Sr. de Charlus pelos protocolos, lhe falara do meu camarada antes de conduzi-lo até ele. Bloch nos deixou, extenuado como quem tenta montar num cavalo prestes, o tempo todo, a tomar o freio nos dentes ou a nadar contra as ondas que o repeliam sem cessar sobre as pedras, e não voltou a falar comigo durante seis meses.
     Os dias que precederam meu jantar com a Sra. de Stermaria não foram deliciosos, mas insuportáveis. É que, em geral, quanto mais curto o tempo que nos separa daquilo a que nos propusemos, mais longo parece, pois a ele aplicamos medidas mais breves ou simplesmente porquê imaginamos medi-lo. O papado, dizem, conta por séculos, e talvez mesmo nem pense em contar, pois seu objetivo está no infinito. Estando o meu apenas à distância de três dias, eu contava por segundos, entregava-me a essas fantasias que são começos de carícias, carícias que nos enraivece não poder fazer com que as termine a própria mulher (precisamente essas carícias, à exclusão de todas as outras). E em suma, se é certo que em geral a dificuldade de atingir o objeto de um desejo contribui para aumentá-lo a dificuldade, não a impossibilidade, pois esta última o suprime, no entanto, para um desejo puramente físico, a certeza de que será realizado num momento próximo e determinado não é menos estimulante que a incerteza; quase tanto como a dúvida ansiosa, a ausência de dúvida é intolerável a espera do prazer infalível porque faz dessa espera uma realização inumerável e, devido à frequência das representações antecipadas divide o tempo em fatias tão miúdas que provocam angústia.
     O que me faltava era possuir a Sra. de Stermaria: há vários com uma atividade incessante, meus desejos tinham preparado isso na minha imaginação, e somente ele; um outro (o prazer com uma mulher) não teria motivo, visto que o prazer não passa da realização de vontade prévia, que não é sempre a mesma, que muda de acordo com as combinações da fantasia, os acasos das recordações, o estado do temperamento, a ordem da disponibilidade dos desejos, dos quais os últimos saciados descansam até que tenha sido um tanto esquecida a decepção de seu cumprimento; eu já deixara a grande estrada dos desejos genéricos e caminhava pela trilha de um desejo mais particular; seria preciso, para desejar outro encontro, voltar de muito longe para retomar a grande estrada e seguir por outro atalho. Possuir a Sra. de Stermaria na ilha do Bois de Boulogne, para onde a convidara para jantar, tal era o prazer que eu fantasiava a todo instante. Prazer que teria sido destruído caso eu jantasse nessa ilha sem a Sra. de Stermaria; mas talvez também bastante diminuído se jantasse, embora com ela, em outro local. De resto, as atitudes conforme as quais se imagina um prazer são anteriores à mulher, ao tipo de mulheres que lhe convêm.
     São essas atitudes que o governam, e até mesmo o lugar; e, devido a isso, fazem retornar alternativamente, ao nosso pensamento caprichoso, tal mulher, tal lugar, tal quarto, que em outras semanas teríamos desdenhado. Filhas da atitude, tais mulheres não se dão bem sem a cama grande, onde encontramos paz a seu lado, e outras, para serem acariciadas com intenção mais secreta, necessitam de folhas ao vento, de águas na noite, são leves e fugidias como umas e outras.
     Decerto, já bem antes de ter recebido a carta de Saint-Loup e quando ainda não se tratava da Sra. de Stermaria, a ilha do Bois me havia parecido apropriada para o prazer, pois me acontecera ter estado ali a fim de degustar a tristeza de não ter nenhum prazer para abrigar naquelas paragens. É pelas margens do lago que conduzem a essa ilha e ao longo das quais, nas últimas semanas de verão, costumam passear as parisienses que ainda não se despediram, que, não sabendo mais onde encontrá-la e nem mesmo se já deixou Paris, perambulamos na esperança de ver passar a moça por quem nos apaixonamos no último baile do ano e que não poderemos mais encontrar em nenhuma recepção antes da primavera seguinte. Sentindo-se nas vésperas ou talvez no dia seguinte à partida do ente querido, a gente segue, à beira da água trêmula, essas belas alamedas onde uma Primeira folha rubra já desponta como uma última rosa, escruta esse horizonte em que, por um artifício inverso ao desses panoramas sob cuja rotunda os personagens de cera do primeiro plano dão à tela pintada do fundo a aparência ilusória da profundidade e do volume, nossos olhos passam sem transição do parque cultivado às alturas naturais do Meudon e do monte Valérien, não sabendo onde pôr um limite, e colocam a verdadeira campina na obra de jardinagem, cujo encanto artificial projetam muito além dela; da mesma forma, esses pássaros raros criados em liberdade num jardim botânico e que todos os dias, ao sabor de seus passeios alados, vão buscar até nos bosques limítrofes uma nota exótica. Entre a última festa do ano e o exílio do inverno, percorremos ansiosamente esse reino romanesco de encontros incertos e de melancolias amorosas, e não ficaríamos mais surpresos que ele estivesse situado fora do universo geográfico do que; em Versalhes, no alto do terraço, observatório em torno ao qual as nuvens se acumulam contra o céu azul no estilo de Van der Meulen, depois de assim nos termos elevado para fora da natureza, soubéssemos que ali onde esta na extremidade do grande canal, as aldeias que não podemos no horizonte ofuscante como o mar, se chamam Fleurus ou recomeça, distinguir, Nimegue.
     E, passado o último carro, quando sentimos com pesar que ela já não virá, vamos jantar na ilha; acima dos choupos trêmulos que recordam incessantemente os mistérios do entardecer mais do que a eles respondem, uma nuvem rósea põe uma última cor de vida no céu apaziguado. Algumas gotas de chuva caem sem rumor na água antiga, mas que, na sua divina infância, continua sendo da cor do tempo e que a todo instante esquece as imagens das nuvens e das flores. E, depois de os gerânios terem lutado inutilmente contra o crepúsculo ensombrecido, intensificando a iluminação de suas cores, uma bruma vem envolver a ilha, que adormece; passeamos na escuridão úmida ao longo das águas, onde no máximo a passagem silenciosa de um cisne nos espanta, como num leito noturno os olhos crescidos e abertos um instante e o sorriso de uma criança que não imaginávamos acordada. Então tanto mais gostaríamos de ter conosco a amada quanto mais sós nos sentimos e mais distantes nos podemos julgar estar.
     Mas a essa ilha, onde mesmo no verão era frequente o nevoeiro, como me sentiria feliz em levar a Sra. de Stermaria, agora que havia chegado a estação chuvosa, que chegara o fim do outono! Se o tempo que fazia desde domingo não deixaria acinzentadas e marítimas as regiões em que vivia a minha fantasia como outras estações as tornavam embalsamar das luminosas, italianas -, a esperança de possuir a Sra. de Stermaria dentro de poucos dias teria bastado para fazer erguer-se, vinte vezes por hora, uma cortina de bruma em minha imaginação monotonamente nostálgica. Em todo caso, o nevoeiro que desde a véspera se erguera sobre a própria Paris não só me fazia pensar incessantemente na terra natal da jovem senhora que eu acabava de convidar, mas, como era provável que, bem mais espesso ainda do que na cidade, devesse à tardinha invadir o Bois, sobretudo à beira do lago, eu pensava que, para mim, a ilha dos Cisnes representaria um pouco da ilha da Bretanha, cuja atmosfera marítima e brisa havia sempre envolvido a meus olhos, como uma vestimenta, a pálida silhueta da Sra. de Stermaria. Certamente, quando somos jovens, na idade que eu tinha em meus passeios para os lados de Méséglise, nosso desejo, nossa crença atribuem ao vestido de uma mulher uma particularidade individual, uma irredutível essência. Perseguimos a realidade. Porém, à força de deixá-la escapar, acabamos por verificar que, através de todas essas tentativas baldadas onde nos defrontamos com o Nada, subsiste algo de sólido, que é o que procurávamos. Começamos a conhecer o que amamos; tentamos obtê-lo, ainda que à custa de um artifício. Então, na falta da crença desaparecida, a roupa significa o suprimento dessa crença por meio de uma ilusão voluntária. Eu sabia que, a meia hora de casa, não ia encontrar a Bretanha. Mas, ao passear abraçado à Sra. de Stermaria pelas trevas da ilha, à beira d'água, procederia como outros que, não podendo penetrar num convento, pelo menos, antes de possuir uma mulher, vestem-na de freira.

continua na página 172...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Dois minutos antes)
Volume 4
Volume 5
Volume 7

Émile Zola - Germinal: Primeira Parte - (I) Na planície rasa

Germinal

Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

... antes da leitura algumas pistas do que você encontrará neste livro...

Resenha | Bookster




Primeira Parte

I

     Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e espessura de tinta, um homem caminhava sozinho pela estrada real que vai de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterraba. A sua frente, não enxergava nem mesmo o solo negro e somente sentia o imenso horizonte achatado através do sopro do vento de março, rajadas largas como sobre um mar, geladas por terem varrido léguas de pântanos e terras nuas. Nem sombra de árvore manchava o céu; a estrada desenrolava-se reta como um quebra-mar em meio à cerração ofuscante das trevas.
     O homem partira de Marchiennes lá pelas duas horas. Caminhava a passos largos, tiritando sob o algodão puído de sua jaqueta e da calça de veludo. Um pequeno embrulho, feito com um lenço de quadrados, incomodava-o bastante; ora o mantinha apertado debaixo de um braço, ora de outro, para poder assim enfiar no fundo dos bolsos as mãos entorpecidas que o açoite do vento leste fazia sangrar. Uma única ideia lhe ocupava o cérebro vazio de operário sem trabalho e sem teto, a esperança de que o frio se tornasse menos agudo com o romper do dia. Havia uma hora que ele caminhava assim, quando percebeu à esquerda, a dois quilômetros de Montsou, uns clarões vermelhos, três braseiros queimando ao ar livre, e como suspensos. A princípio hesitou, tomado de receio; mas logo após não pôde resistir à necessidade dolorosa de aquecer por um instante as mãos.
      Entrou por um atalho que se afundava campo adentro. Tudo desapareceu. À sua direita o homem tinha uma paliçada, um pedaço de tapume feito de pranchas grossas protegendo uma via férrea, enquanto à esquerda se elevava um talude de erva encimado por empenas confusas, visão de uma aldeia de tetos baixos e uniformes. Percorrera uma distância aproximada de duzentos passos quando, bruscamente, numa volta do caminho, os fogos reapareceram próximos dele sem que o homem chegasse a compreender como podiam elevar-se tão alto no céu morto, iguais a luas enevoadas. Mas, ao nível do solo, outro espetáculo o fazia parar. Era uma massa pesada, um amontoado de construções de onde se levantava a silhueta da chaminé de uma fábrica. Raros clarões saíam das janelas sujas, cinco ou seis lampiões tristes pendiam do lado de fora das vigas de madeira enegrecidas do edifício, alinhando vagamente perfis de cavaletes gigantescos. E, dessa aparição fantástica, engolfada na noite e na fumaça, um único ruído se elevava: o arfar grosso e prolongado de um escapamento de vapor, que não se via.
     Só então o homem se deu conta de que aquilo era uma mina e a vergonha tomou conta dele. Para que tentar? Não haveria trabalho... Em vez de se dirigir para o edifício, decidiu escalar o terreno onde ardiam os três fogos de hulha em tachos de ferro fundido que serviam para alumiar e aquecer os homens no trabalho. Os operários encarregados do desaterro certamente tinham trabalhado até tarde, ainda estavam retirando o entulho. Agora ouvia os carregadores empurrando os vagonetes sobre os trilhos montados nos cavaletes, divisava sombras que se moviam descarregando os carros ao lado das fogueiras.

 — Bom dia — disse ele aproximando-se de um dos fogos.

      Em pé, de costas para o fogo, encontrava-se o carroceiro, um velho com uma blusa de malha de lã violeta e gorro de pele de coelho; enquanto seu cavalo, um cavalo baio e gordo esperava, numa imobilidade de pedra, que esvaziassem os seis vagonetes puxados por ele. O trabalhador encarregado da descarga, um rapagão ruivo e esguio, parecia não ter pressa, e pressionava a alavanca com gestos lentos. No alto, o vento redobrava de intensidade, um sopro glacial feito de grandes golfadas regulares que cortavam como golpes de foice.

 — Bom dia — respondeu o velho.

      E de novo o silêncio. O homem, que se sentia olhado com desconfiança, disse logo o nome:

 — Eu me chamo Etienne Lantier e sou operador de máquinas. Não haverá trabalho por aqui?

     As chamas o iluminavam: devia ter vinte e um anos, bem moreno, belo homem, de aspecto vigoroso, apesar de os membros serem pouco desenvolvidos.
      Tranquilizado, o carroceiro abanou a cabeça. 

 — Trabalho para operador de máquinas, não, não há. Ainda ontem apareceram dois, mas não há nada.

     Uma rajada de vento impediu-os de falar. Mas, em seguida, Etienne, indicando o amontoado sombrio das construções ao pé do aterro, perguntou:

 — É uma mina, não é?

     Desta vez o velho não pôde responder imediatamente, um violento acesso de tosse o sufocava. Por fim escarrou, e seu escarro fez uma mancha negra no chão avermelhado.

 — É, sim, é uma mina, a Voreux. E veja, lá bem próximo está o conjunto habitacional dos mineiros.

     Por sua vez, com o braço estendido, indicava no escuro a aldeia cujos telhados o jovem já vira. Mas os seis vagonetes acabavam de ser descarregados e o homem os seguiu sem mesmo fazer estalar o chicote, as pernas rígidas pelo reumatismo, enquanto o cavalo baio partia sozinho, puxando-os a custo entre os varais, debaixo de uma nova rajada de vento que lhe eriçava os pelos.
     Agora a Voreux tornava-se realidade. Etienne, que continuava em frente ao braseiro aquecendo as pobres mãos escalavradas, olhava, começava a perceber cada uma das partes da mina, o galpão preto onde o carvão é peneirado, a torre do sino do poço, a vasta casa da máquina de extração, o torreão quadrado da bomba de esgoto. Esta mina, apertada no fundo de um buraco, com suas construções de tijolo atarracadas, de onde sobressaía uma chaminé que mais parecia um chifre ameaçador, dava-lhe a impressão de um animal voraz e feroz, agachado à espreita para devorar o mundo. Examinando-a, pensava em si, na sua existência de vagabundo que havia oito dias procurava trabalho; via-se na oficina da estrada de ferro, esbofeteando o chefe, expulso de Lille, expulso de toda parte; sábado tinha chegado a Marchiennes, onde se dizia que havia trabalho nas Forjas, e nada, nem nas Forjas nem em Sonneville: tivera de passar o domingo escondido sob as madeiras de uma fábrica de carroças, de onde o vigia acabava de expulsá-lo, às duas horas da madrugada. Nada, nem mais um tostão, nem mesmo uma côdea. Como continuar assim pelos caminhos, sem destino, não sabendo sequer onde abrigar-se do vento frio? Sim, era de fato uma mina, os raros lampiões iluminavam o pátio, uma porta subitamente aberta permitira-lhe vislumbrar as fornalhas das caldeiras das máquinas envoltas numa claridade viva. Encontrava explicação até para o escapamento da bomba, essa respiração grossa e ampla, resfolegando sem descanso, e que era como a respiração obstruída do monstro.
     O encarregado da descarga dos vagonetes, de costas curvadas, nem mesmo levantara os olhos para Etienne. No momento em que este ia apanhar seu pequeno embrulho que estava no chão, um acesso de tosse anunciou-lhe a volta do carroceiro. Lentamente ele surgiu do escuro, seguido pelo cavalo baio que puxava outros seis vagonetes cheios.

 — Há fábricas em Montsou? — perguntou o rapaz.

     O velho escarrou preto antes de responder em meio à ventania:

 — Fábricas é o que não falta. Você precisava ver há três ou quatro anos: tudo produzindo, faltava mão-de-obra, nunca se ganhou tanto. E, de repente, começa-se a apertar o cinto. Uma verdadeira desgraça cai sobre a região, o pessoal é despedido, as oficinas começam a fechar uma após outra. Talvez não seja culpa do imperador, mas que necessidade tem ele de ir lutar na América? E isso tudo sem contar os animais que morrem de cólera, como as pessoas.

     E, em frases curtas, com a respiração entrecortada, ambos continuaram a lamentar-se. Etienne falou sobre seus passos inúteis que já duravam uma semana. Então havia-se de morrer de fome? Dentro em pouco as estradas estariam cheias de mendigos. Sim, retrucava o velho, tudo isso ia terminar mal, Deus não tinha o direito de jogar tantos cristãos na desgraça.

 — Nem todo dia se tem carne. 
 — Se ao menos houvesse pão! 
 — É verdade, se ao menos houvesse pão!

     Suas vozes se perdiam, rajadas de vento transformavam as palavras num lamento melancólico.

 — Veja! — disse em voz alta o carroceiro, voltando-se para o sul. — Montsou fica para lá.

      E com a mão novamente estendida designou nas trevas pontos invisíveis, à medida que os nomeava. Lá, em Montsou, a refinaria de açúcar Fauvelle ainda trabalhava, mas a Hoton reduzira o pessoal. As únicas que ainda se aguentavam: a fábrica de moagem Dutilleul e a cordoaria Bleuze, que fazia cabos de mina. Depois, com um gesto largo, indicou, ao norte, a metade do horizonte: as oficinas de construção de Sonneville não tinham recebido nem dois terços das encomendas habituais; dos três altos-fornos das Forjas de Marchiennes, só dois estavam em serviço; e, finalmente, na fábrica de vidros Gagebois havia ameaça de greve porque se falava em redução de salário.

 — Sei, sei — repetia o rapaz a cada indicação. — De lá venho eu. 
 — Para nós aqui, as coisas até agora estão indo — continuou o carroceiro. — Contudo, as minas diminuíram a extração. E repare, em frente, na Victoire, há apenas duas baterias de fornos de coque acesas.

     Escarrou, e seguiu de novo atrás do cavalo sonolento, depois de o ter atrelado aos vagonetes vazios.
     Agora Etienne dominava toda a região. As trevas continuavam profundas, mas a mão do velho como que as povoara de grandes misérias, que o jovem, inconscientemente, sentia naquela hora à sua volta, por toda parte, na amplidão sem termo. Não era um grito de fome que rolava com o vento de março através destes campos nus? As rajadas do vento haviam aumentado e pareciam trazer consigo a morte do trabalho, uma escassez que mataria muitos homens. E, com os olhos errando de um ponto a outro, ele se esforçava por furar as sombras, atormentado pelo desejo e pelo medo de ver.
     Tudo se aniquilava no fundo desconhecido das noites obscuras; só percebia, muito ao longe, os altos-fornos e as fornalhas de coque. Estas, baterias de cem chaminés erguidas obliquamente, alinhavam rampas de chamas rubras, enquanto as duas torres, mais à esquerda, ardiam, azuis, em pleno céu, como tochas gigantescas. Era uma tristeza de incêndio, não havia no horizonte ameaçador outros astros elevando-se a não ser esses fogos noturnos dos países da hulha e do ferro.

— Você é da Bélgica, não é? — perguntou por trás de Etienne o carroceiro, que estava de volta.

     Desta vez ele trouxera apenas três vagonetes. Um acidente na gávea de extração, uma porca quebrada, iria retardar o trabalho por um bom quarto de hora, mas estes vagonetes ainda podiam ser descarregados. Ao pé do aterro reinava silêncio, os carregadores não estavam mais sacudindo os cavaletes com uma rotação prolongada. Ouvia-se apenas sair de dentro da mina o ruído longínquo de um martelo batendo o ferro.

 — Não, sou do sul — respondeu o jovem.

     O encarregado de despejar os vagonetes sentara-se no chão, feliz com o acidente. E continuava no seu mutismo selvagem, erguera apenas os grandes olhos mortiços para o carroceiro, como incomodado com toda aquela conversa. Na verdade, este último, de hábito, não falava muito. Era preciso que o rosto de um desconhecido lhe agradasse e que ele estivesse tomado por um desses desejos imperiosos de confidencias que fazem, às vezes, as pessoas idosas falarem sozinhas, em voz alta.

 — Eu — disse ele — sou de Montsou e chamo-me Boa-Morte. 
 — É apelido? — perguntou Etienne admirado.

     O velho riu com gosto e, apontando para Voreux, respondeu:

 — É, é... Retiraram-me três vezes lá de dentro, em pedaços. Uma vez com o cabelo todo chamuscado, outra com terra até o bucho e a terceira com a barriga cheia de água, como uma rã... Foi então que eles viram que eu não queria morrer mesmo e começaram a me chamar Boa-Morte, de troça.

      Sua alegria redobrou — rangido de roldana mal azeitada que degenerou num terrível ataque de tosse. O fogo iluminava-lhe agora a grande cabeça de cabelos brancos e ralos, o rosto achatado, de uma palidez cadavérica, cheio de manchas azuladas. Era baixo, pescoço enorme, a barriga da perna e os calcanhares salientes, com braços compridos e mãos quadradas que batiam nos joelhos. E, como o cavalo que permanecia imóvel em pé, sem dar mostras de estar sofrendo com o vento, ele parecia de pedra, insensível ao frio e às rajadas que assobiavam em seus ouvidos. Depois de tossir, a garganta escoriada por um rascar profundo, escarrou para o lado do fogo e a terra enegreceu.
      Etienne olhou-o para em seguida examinar a nódoa no chão.

 — Há muito tempo que você trabalha na mina? Boa-Morte abriu muito os braços: 
 — Ah! Sim... Há muito tempo. Não tinha ainda oito anos quando desci, imagine justamente na Voreux, e agora tenho cinquenta e oito. Veja bem, fiz de tudo lá dentro: primeiro como aprendiz; depois, quando tive forças para puxar, fui operador de vagonetes e, mais tarde, durante dezoito anos, britador. Em seguida, por causa destas malditas pernas, puseram-me para desaterrar, aterrar, consertar... Isso até o momento em que tiveram de me tirar lá de baixo porque o médico disse que um dia eu não voltaria mais. E faz cinco anos que sou carroceiro... Que tal? Não é bonito? Cinquenta anos de mina, sendo que quarenta e cinco no fundo!  

     Enquanto falava, pedaços de hulha incandescentes, que, a espaços, caíam do tacho, punham reflexos sangrentos em seu rosto lívido.

 — Mandam-me descansar — continuou ele. — E, como não quero, julgam que sou idiota. Faltam só dois anos para eu completar sessenta, e aí terei direito à pensão de cento e oitenta francos. Se eu lhes desse boa-noite hoje, concediam-me imediatamente a de cento e cinquenta. Esses velhacos são vivos!... De resto, tirante as pernas, sou forte. Foi a água, isso é certo, que me entrou na pele; durante a extração a gente fica todo o tempo dentro dela. Há dias em que não posso mexer um pé sem gritar.

     Outro acesso de tosse veio interrompê-lo.

 — E a tosse vem disso também? — perguntou Etienne.

     O velho respondeu que não, violentamente, com a cabeça. Depois, quando pôde falar, disse:

— Não, não. Desde o mês passado que ando resfriado. Nunca tossia, agora não consigo mais livrar-me desta tosse... E o mais engraçado é como escarro, como escarro...

     Pigarreou novamente e cuspiu negro.

 — É sangue? — Etienne ousou perguntar.

     Boa-Morte limpava lentamente a boca com as costas da mão.

 — É carvão. Tenho tanto carvão no corpo que chega para aquecer o resto dos meus dias. E já faz cinco anos que não ponho os pés lá embaixo. Tinha tudo isso armazenado, parece-me, sem saber. Melhor, até conserva!

      Houve um silêncio. Longínquo, o martelo batia regularmente na mina, e o velho era como uma queixa, como um grito de fome e de cansaço vindo das profundezas da noite. Diante das chamas enfurecidas o velho continuou, mais baixo, a remoer suas lembranças. Ah! Certo, não era de ontem que ele e os seus cavavam no veio. A família trabalhava para a companhia das minas de Montsou desde a sua criação; e isso já vinha de muito longe, cento e seis anos. Seu avô, Guillaume Maheu, na época um garoto de quinze anos, fora o descobridor da hulha em Réquillart, a primeira mina da companhia, uma velha galeria atualmente abandonada, lá longe, perto da refinaria de açúcar Fauvelle. Toda a região sabia disso, e a prova é que o veio descoberto se chamava Guillaume, do nome de batismo do seu avô. Não o conhecera, mas diziam que fora um latagão; morrera de velhice aos sessenta anos. Depois, seu pai, Nicolas Maheu, conhecido como o Ruivo, com apenas quarenta anos de idade, ficara na Voreux, que nesse tempo estava sendo aberta: um desabamento e ele ficara completamente achatado, com o sangue bebido e os ossos engolidos pelas rochas. Dois dos seus tios e seus três irmãos ali também haviam deixado a pele, mais tarde. Ele, Vincent Maheu, que conseguira sair mais ou menos inteiro, apenas com as pernas em mau estado, passava por astucioso. Mas que fazer? Era preciso trabalhar. Isso já vinha sendo feito de pai para filho, como bem podia ser outra coisa. Seu filho, Toussaint Maheu, já se matava no mesmo ofício, assim como seus netos e toda a família, que morava em frente, no conjunto habitacional. Cento e seis anos de trabalho para o mesmo patrão, as crianças após os velhos: que tal? Muitos burgueses não saberiam contar tão bem a sua história!

 — Quando ainda se pode comer... — murmurou novamente Etienne. 
 — É isso que eu digo: enquanto há pão para comer, vai-se vivendo.

     Boa-Morte calou-se, os olhos voltados para o conjunto habitacional, onde as luzes se acendiam uma a uma.
     O campanário de Montsou deu quatro horas; o frio aumentava.

 — E essa sua companhia é rica? — voltou à carga Etienne.

      O velho levantou os ombros para, em seguida, deixá-los cair, como que esmagado sob um monte de moedas.

 — Sim, sim... Talvez não tanto como sua vizinha, a Companhia d'Anzin. Mas assim mesmo tem milhões e milhões. Nem se pode contar. Dezenove galerias, sendo que treze para exploração: Voreux, Victoire, Crèvecoeur, Mirou, Saint-Thomas, Madeleine, Feutry-Cantel e outras, e seis para esgoto ou ventilação, como a Réquillart... Dez mil operários, concessões que se estendem por sessenta e sete comunas, uma extração de cinco mil toneladas por dia, uma estrada de ferro ligando todas as galerias, e oficinas, e fábricas! Se é rica! Dinheiro é o que não falta.

      Um rolar de carros sobre os cavaletes pôs em pé as orelhas do grande cavalo baio. Embaixo, o elevador já devia estar consertado, os carregadores tinham voltado ao serviço. Enquanto atrelava o animal para voltar a descer, o carroceiro falava-lhe com carinho:

— E agora não vais habituar-te a tagarelar, preguiçoso! Se o Sr. Hennebeau soubesse em que tu perdes o tempo! 

     Etienne, pensativo, contemplava a noite. Perguntou: 

 — Então, esta mina é do Sr. Hennebeau? 
 — Não — explicou o velho —, o Sr. Hennebeau é apenas o diretor geral. Ele é pago como nós. 

     O jovem mostrou com um gesto a imensidão das trevas. 

 — Então, de quem é tudo isto?

     Boa-Morte, no entanto, ficou por um instante sufocado com nova crise, de tal violência que não lhe permitia respirar. Por fim, tendo escarrado e limpado a espuma preta dos lábios, disse, em meio à ventania cada vez mais violenta:

 — O quê? De quem é tudo isso? Não se sabe. É de umas pessoas. E com a mão designou no escuro um ponto vago, um lugar ignorado e remoto, povoado por essas pessoas para quem os Maheu cavavam no veio havia mais de um século.

     Sua voz elevava-se com uma espécie de medo religioso, era como se estivesse falando a respeito de um tabernáculo inacessível onde se escondia o deus farto e acocorado, a quem todos eles davam a sua própria carne e que nunca tinham visto. 

 — Se ao menos se comesse o pão necessário para viver! — repetiu pela terceira vez Etienne, sem transição aparente. 
 — Pois é! Se a gente pudesse comer sempre pão! Mas isso é impossível. 

     O cavalo partiu e o carroceiro seguiu-o com passo arrastado, de inválido. Sempre próximo do basculante, o operário encarregado de manobrá-lo não se mexera, todo curvado, com o queixo fincado nos joelhos, os grandes olhos mortiços fixos no vácuo.
      Apesar de já ter apanhado o embrulho, Etienne permaneceu onde estava. Sentia as rajadas de vento gelando-lhe as costas, enquanto seu peito queimava, devido à fogueira. Talvez devesse tentar a mina, o velho podia não saber; e depois, estava resignado, aceitaria qualquer trabalho. Onde ir e em que transformar-se nesta região faminta devido ao desemprego? Esconder atrás de algum muro sua carcaça de cão vadio? No entanto, hesitava ainda; era medo, medo da Voreux no meio desta planície rasa, mergulhada numa noite tão profunda. A cada nova rajada o vento parecia aumentar, como se soprasse de um horizonte distendendo-se cada vez mais. Nenhum sinal de alvorada clareava o céu morto, apenas os altos-fornos e as fornalhas de coque ensanguentavam as trevas, sem alumiar seu mistério. E a Voreux, do fundo do seu buraco, com sua postura de bicho maligno parecendo cada vez mais retraído, respirava agora mais grossa e amplamente, como que sofrendo com sua dolorosa digestão de carne humana.


continua na página 13...

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Primeira Parte - (I) Na planície rasa

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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.4.6)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte I 
ANTISSEMITISMO

Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória. 
 Roger Martin du Gard

3.  Os Judeus e a Sociedade
     3.4 - O caso Dreyfus
          3.4.6 - O Indulto e Seu Significado
     Só no ato final tornou-se claro que, na verdade, o drama de Dreyfus era uma comédia. O deus ex-machina que uniu o país conturbado, que fez o Parlamento pronunciar-se a favor de novo julgamento e finalmente reconciliou os elementos díspares do povo, da extrema direita aos socialistas, foi a Exposição de Paris de 1900. O que os editoriais diários de Clemenceau, o patético de Zola, os discursos de Jaurès e o ódio popular do clero e da aristocracia não conseguiram fazer, isto é, mudar a atitude parlamentar em favor de Dreyfus, foi finalmente alterado por medo a um boicote. O mesmo Parlamento que, um ano antes, havia por unanimidade rejeitado uma revisão do julgamento, agora, com a maioria de dois terços, aprovava o voto de censura a um governo anti-Dreyfus. Em julho de 1899, o gabinete Waldeck-Rousseau subiu ao poder. O presidente Loubet indultou Dreyfus e acabou com o processo. A Exposição pôde ser inaugurada sob o mais radioso dos céus comerciais, seguindo-se-lhe uma confraternização geral: até os socialistas eram agora elegíveis para postos no governo; Millerand, o primeiro socialista a se tornar ministro da Europa, recebeu a pasta do Comércio.
     O Parlamento virou defensor de Dreyfus! Era o cúmulo. Para Clemenceau, naturalmente, era uma derrota. Até o fim, ele denunciou como ambíguo o indulto. A anistia foi mais ambígua ainda. "Tudo o que se conseguiu", escreveu Zola, "foi agrupar num mesmo perdão malcheiroso homens honrados e bandidos. Todos foram jogados na mesma panela."[97] No começo, Clemenceau permaneceu inteiramente só. Os socialistas, principalmente Jaurès, receberam de bom grado tanto o perdão como a anistia. Não encontraram por fim um lugar no governo e maior representação de seus interesses? Alguns meses depois, em maio de 1900, quando o sucesso da Exposição estava assegurado, a verdade verdadeira veio finalmente à tona. Todas essas táticas de apaziguamento iriam custar caro aos partidários de Dreyfus. A moção em favor de nova revisão do julgamento foi derrotada por 425 votos contra sessenta, e nem mesmo o próprio governo de Clemenceau em 1906 pôde mudar a situação; não ousou confiar um novo julgamento a um tribunal normal. A absolvição (ilegal) no Tribunal de Apelação foi uma solução de meio-termo. Mas a derrota de Clemenceau não significou vitória para a Igreja e para o Exército. A separação entre a Igreja e o Estado e a proibição da educação confessional acabaram com a influência política do catolicismo na França. Da mesma forma, a subordinação do serviço de espionagem ao ministro da Guerra, isto é, à autoridade que na França é civil, privou o Exército de sua influência chantagista sobre o gabinete e sobre a Câmara, e tirou-lhe qualquer justificativa para conduzir inquéritos policiais por conta própria.
     católicos e aclamado pelo povo. Agora, porém, o "maior historiador desde Fustel", segundo Jules Lemaitre, cedia lugar a Mareei Prévost, autor do algo pornográfico Demi-vierges, e o novo "imortal" recebeu os parabéns do padre jesuíta Du Lac.[98] Até mesmo a Companhia de Jesus havia acertado suas diferenças com a Terceira República. O encerramento do processo Dreyfus marcou o fim do antissemitismo clerical. A solução adotada pela Terceira República inocentava o acusado sem lhe conceder julgamento normal, enquanto restringia as atividades das organizações católicas. Enquanto Bernard Lazare havia pedido direitos iguais para ambos os lados, o Estado havia permitido uma exceção para os judeus e outra — que ameaçava a liberdade de consciência — para os católicos.[99] As partes em conflito foram colocadas praticamente fora da lei, e tanto a questão judaica quanto o catolicismo político foram banidos daí por diante da arena política.
     Assim termina o único episódio no qual as forças subterrâneas do século XIX vêm à plena luz nos registros da história. O único resultado visível foi o nascimento do movimento sionista — a única resposta política que os judeus encontraram para o antissemitismo, e a única ideologia na qual chegaram a levar a sério o comportamento hostil, o qual os impeliria para o centro dos acontecimentos mundiais.

Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.4.6)
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[97] Cf. carta de Zola de 13 de setembro de 1899, em Correspondance: lettres à Maitre Labori. Em Oeuvres completes, Paris, 1966.
[98] Cf. Herzog, op. cit., p. 97.
[99] A posição de Lazare no Caso Dreyfus é melhor descrita por Charles Péguy, "Notre jeunesse", em Cahiers de Ia Quinzaine, Paris, 1910. Encarando-o como o verdadeiro representante dos interesses judeus, Péguy assim formula as exigências de Lazare: "Ele era partidário da imparcialidade da lei. Imparcialidade da lei no processo Dreyfus, lei imparcial no caso das ordens religiosas. Isso parece pouco, mas pode ir longe. Levou-o ao isolamento na hora da morte". Lazare foi um dos primeiros dreyfusards a protestar contra a submissão das congregações ao Estado.