Origens do Totalitarismo
Hannah Arendt
Parte III
TOTALITARISMO
Os homens normais não sabem que tudo é possível.
David Rousset
Uma Sociedade Sem Classes
2 - A Aliança Temporária Entre a Ralé e a Elite
O que perturba os espíritos lógicos mais que a incondicional lealdade dos membros dos movimentos
totalitários e o apoio popular aos regimes totalitários é a indiscutível atração que esses movimentos
exercem sobre a elite e não apenas sobre os elementos da ralé da sociedade. Seria realmente temerário
atribuir à excentricidade artística ou à ingenuidade escolástica o espantoso número de homens ilustres que
são simpatizantes, companheiros de viagem ou membros registrados dos partidos totalitários.
Essa atração da elite é um indício tão importante para a compreensão dos movimentos totalitários
(embora não se possa dizer o mesmo dos regimes totalitários) quanto a sua ligação com a ralé. Denota a
atmosfera específica, o clima geral que propicia o surgimento do totalitarismo. É preciso lembrar que a
idade dos líderes dos movimentos totalitários e dos seus simpatizantes supera a dos membros das massas
que organizam, de modo que, do ponto de vista cronológico, as massas não precisam aguardar,
impotentes, que os seus líderes surjam de uma sociedade de classes em declínio, da qual são o produto
mais importante. Aqueles que voluntariamente abandonaram a sociedade antes do colapso das classes,
juntamente com a ralé — que é o subproduto mais recente do domínio da burguesia —, estão prontos para
aclamá-los. Os atuais governantes totalitários e os líderes dos movimentos totalitários têm ainda os traços
característicos da ralé, cuja psicologia e filosofia política são bastante conhecidas; o que sucederá quando
um autêntico homem da massa assumir o comando ainda não sabemos, embora possamos supor que ele se
assemelhe mais a um Himmler, com a sua meticulosa e calculada correção, do que a um Hitler, com o seu
fanatismo histérico, e lembrará mais a teimosa obtusidade de um Molotov do que a crueldade sensual e
vingativa de um Stálin.
A esse respeito, a situação da Europa após a Segunda Guerra Mundial não foi muito diferente daquela que
sucedeu à Primeira. Do mesmo modo como, na década de 20, foram formuladas as ideologias do
fascismo, bolchevismo e nazismo, e seus respectivos movimentos foram liderados pela chamada geração
de vanguarda, por aqueles que haviam sido criados nos tempos de antes da guerra e se recordavam
perfeitamente dessa época, o clima político e intelectual do totalitarismo de pós-guerra foi determinado
por uma geração que conheceu a época anterior a 1939. Isso se aplica especialmente à França, onde o
colapso do sistema de classes ocorreu após a Segunda Guerra, e não após a Primeira. Os
movimentos totalitários, exatamente como os homens da ralé e os aventureiros da era
imperialista, têm em comum com os seus simpatizantes intelectuais o fato de que uns e outros já estavam fora do sistema de classes e nacionalidades da
respeitável sociedade europeia antes que esse sistema entrasse em colapso.
Quando a falsa respeitabilidade cedeu ao desespero da anarquia, esse colapso pareceu oferecer a primeira
grande oportunidade tanto para a elite quanto para a ralé e, obviamente, para os novos líderes das massas.
Suas carreiras lembram as dos primeiros
líderes da ralé: fracasso na vida profissional e social, perversão e
desastre na vida privada. O fato de que as suas vidas, antes do seu ingresso na carreira política, haviam
sido um fracasso — ingenuamente apontado em seu detrimento pelos líderes mais respeitáveis dos velhos
partidos — era o ponto alto da sua atração para as massas. Parecia demonstrar que, individualmente, eles
encarnavam o destino da massa do seu tempo, e que o desejo de tudo sacrificarem pelo movimento, a
devoção por aqueles que haviam sofrido alguma catástrofe, a determinação de jamais cederem à tentação
da segurança da vida normal e o desprezo pela respeitabilidade eram perfeitamente sinceros e não apenas
inspirados por ambições passageiras.
Por outro lado, a elite do pós-guerra era apenas ligeiramente mais jovem que aquela geração que se
deixara usar e abusar pelo imperialismo como jogadores, espiões e aventureiros, cavaleiros de armadura
polida e matadores-de-dragões, por amor a carreiras gloriosas longe da respeitabilidade. Compartilhavam
com Lawrence da Arábia o anseio de "perderem o seu eu" e sentiam violenta repulsa por todos os padrões
existentes e por toda autoridade constituída. Se ainda não tinham esquecido a "idade de ouro da
segurança", lembravam melhor ainda o quanto a haviam odiado e como se haviam entusiasmado com a
deflagração da Primeira Guerra Mundial. Não foi somente Hitler nem somente os fracassados que
agradeceram a Deus, de joelhos, quando, em 1914, a mobilização varreu a Europa.[44] Nem ao menos
precisaram censurar-se por terem sido presa fácil da propaganda chauvinista ou das explicações
mentirosas a respeito do caráter puramente defensivo da guerra. A elite partiu para a guerra na exultante
esperança de que tudo o que conhecia, toda a cultura e textura da vida desmoronaria em "tempestades de
aço" (Ernst Jünger). Nas palavras cuidadosamente escolhidas de Thomas Mann, a guerra era "castigo" e
"purificação"; "a guerra em si, e não as vitórias, é que inspirava o poeta". Ou, nas palavras de um
estudante da época, "o que importa não é o objeto pelo qual se faz o sacrifício, mas a eterna disposição de
fazê-lo"; ou ainda, nas palavras de um jovem trabalhador, "não importa que a gente viva ou não alguns
anos a mais. A gente quer ter alguma coisa que possa dizer que fez na vida".[45] E, muito antes que um dos simpatizantes intelectuais do nazismo dissesse "quando ouço a palavra
cultura, puxo o revólver", os poetas já haviam proclamado a sua repulsa pela "cultura de lixo" e
poeticamente invocavam os "bárbaros, citas, negros e indianos para esmagá-la".[46]
Tachar simplesmente de acesso de niilismo esta violenta insatisfação com a era que precedeu a
guerra e as subsequentes tentativas de restaurá-la (de Nietzsche e Sorel a Pareto, de Rimbaud e
T. E. Lawrence a Jünger, Brecht e Malraux, de Bakúnin e Nechayev a Alexander Blok) seria
ignorar quão justificada pode ser a repulsa numa sociedade inteiramente impregnada com a
atitude ideológica e os padrões morais da burguesia. Contudo, também é verdade que a "geração
de vanguarda", em agudo contraste com os pais espirituais que ela mesma havia escolhido,
estava completamente absorvida pelo desejo de ver a ruína de todo este mundo de segurança
falsa, cultura falsa e vida falsa. Esse desejo era tão forte que o seu impacto e eloquência eram
maiores que os de todas as tentativas anteriores de "transformação de valores", como a de
Nietzsche, ou de reorganização da vida política, como indica a obra de Sorel, ou de restauração
da autenticidade humana, como em Bakúnin, ou de apaixonado amor pela vida, na pureza das
aventuras exóticas de Rimbaud. A destruição sem piedade, o caos e a ruína assumiam a
dignidade de valores supremos.[47]
Quão genuínos eram esses sentimentos prova o fato de que muito poucos dessa geração
perderam o seu entusiasmo pela guerra ao experimentarem pessoalmente os seus horrores. Os
sobreviventes das trincheiras não se tornaram pacifistas. Conservaram carinhosamente aquela
experiência que, segundo pensavam, podia separá-los definitivamente do odiado mundo da
respeitabilidade. Apegaram-se às lembranças de quatro anos de vida nas trincheiras como se
fossem um critério objetivo para a criação de uma «nova elite. Nem cederam à tentação de
idealizar esse passado; pelo contrário, os adoradores da guerra eram os primeiros a admitir que,
na era da máquina, a guerra certamente não podia gerar virtudes como o cavalheirismo, a
coragem, a honra e a hombridade,[48] mas apenas impunha ao homem a experiência da destruição
pura e simples, juntamente com a humilhação de serem apenas peças da grande máquina da
carnificina.
Essa geração recordava a guerra como o grande prelúdio do colapso das classes e da sua
transformação em massas. A guerra, com a sua arbitrariedade constante e assassina, tornou-se o símbolo da morte, a "grande niveladora"[49] e, portanto, a mãe
da nova ordem mundial. A ânsia de igualdade e justiça, o desejo de transcender os estreitos e
inexpressivos limites de classes, de abandonar privilégios e preconceitos estúpidos, pareciam
encontrar na guerra um modo de fugir às velhas atitudes condescendentes de piedade pelos
oprimidos e deserdados. Em épocas de crescente miséria e desamparo individual, é tão difícil
resistir à piedade, quando ela se transforma em paixão, como deixar de condenar a sua própria
universalidade, que parece matar a dignidade humana mais definitivamente que a própria
miséria.
Nos primeiros anos de sua carreira, quando a restauração do status quo europeu ainda constituía
a mais séria ameaça às ambições da ralé,[50] Hitler apelou quase exclusivamente para esses
sentimentos da geração de peculiar desprendimento do homem da massa que parecia
corresponder ao desejo de anonimato, ao desejo de ser apenas um número e funcionar apenas
como uma peça, para que se pudesse apagar a sua falsa identificação com tipos específicos ou
funções predeterminadas na sociedade. A guerra havia sido sentida como "aquela "ação coletiva
mais poderosa de todas" que obliterava as diferenças individuais, de sorte que até mesmo o
sofrimento, que tradicionalmente distinguia os indivíduos com destinos próprios não
intercambiáveis, podia agora ser interpretado como "instrumento de progresso histórico".[51] A
elite do pós-guerra desejava incorporar-se a qualquer massa, sem distinções nacionais. Um tanto
paradoxalmente, a Primeira Guerra Mundial havia quase liquidado os sentimentos nacionais da
Europa, onde, entre as duas guerras, era muito mais importante haver pertencido à geração das
trincheiras, não importa de que lado, do que ser alemão ou francês.[52] Os nazistas basearam toda
a sua propaganda nessa camaradagem indistinta, nessa "comunidade de destino", e conquistaram
grande número de organizações de veteranos de guerra em todos os países europeus,
demonstrando assim quão inexpressivos se haviam tornado os slogans nacionais, mesmo entre
os escalões da chamada ala direita, que os empregavam em virtude da sua conotação de
violência e não pelo que continham de especificamente nacional.
Nenhum dos elementos era muito novo nesse clima intelectual geral do pós-guerra europeu.
Bakúnin já havia confessado que "não quero ser eu, quero ser nós",[53] e Nechayev já havia pregado o evangelho do "homem condenado", que não tem
"quaisquer interesses pessoais, quaisquer afazeres, sentimentos, ligações, propriedades, nem
mesmo um nome que possa chamar de seu".[54] Os instintos anti-humanistas, antiliberais,
antiindividualistas e anticulturais da geração de vanguarda, o seu brilhante e espirituoso louvor
da violência, do poder da crueldade haviam sido precedidos pelas pomposas e desajeitadas
demonstrações "científicas" da elite imperialista de que a lei do universo é a luta de todos contra
todos, de que a expansão é uma necessidade psicológica antes de ser mecanismo político, e de
que o homem deve conduzir-se de acordo com essas leis universais.[55] O elemento novo nas
obras da geração de vanguarda era o seu alto nível literário e a grande profundidade da sua
paixão. Os escritores do pós-guerra já não tinham necessidade das demonstrações científicas da
genética, e de pouco ou nada lhes serviam as obras completas de Gobineau ou de Houston
Stewart Chamberlain, que já pertenciam ao cabedal cultural dos filisteus. Liam não Darwin, mas
o marquês de Sade.[56] Se acreditavam em leis universais, certamente não estavam muito ansiosos
em segui-las. Para eles, a violência, o poder e a crueldade eram as supremas aptidões do homem
que havia perdido definitivamente o seu lugar no universo e era demasiado orgulhoso para
desejar uma teoria de força que o trouxesse de volta e o reintegrasse no mundo. Contentava-se
em participar cegamente de qualquer coisa que a sociedade respeitável houvesse banido,
independentemente de teoria e conteúdo, e promovia a crueldade à categoria de virtude maior
porque contradizia a hipocrisia humanitária e liberal da sociedade.
Comparados aos ideólogos do século XIX, cujas teorias parecem às vezes compartilhar tanto, os
homens dessa geração diferem principalmente por sua maior paixão e autenticidade. A miséria
havia-os tocado mais fundo, as perplexidades os inquietavam mais e a hipocrisia os feria mais mortalmente do que a todos os
apóstolos da boa vontade e da irmandade humana. E já não podiam fugir para terras exóticas, já
não podiam dar-se ao luxo de serem matadores de dragões entre povos estranhos e
apaixonantes. Não havia meio de fugir à rotina diária de miséria, humildade, frustração e
ressentimentos, embelezada por uma falsa cultura de fala educada; nenhum conformismo aos
costumes desses países de faz-de-conta podia salvá-los da crescente náusea que essa
combinação inspirava continuamente.
Essa impossibilidade de fugir pelo mundo afora, esse sentimento de cair repetidamente nas
armadilhas da sociedade — tão diferente das circunstâncias que haviam formado o caráter
imperialista — acrescentavam à velha paixão do anonimato e da perda de si mesmos uma tensão
constante e um desejo de violência. Sem a possibilidade de mudança radical de papel e de
caráter, o mergulho voluntário nas forças sobre-humanas da destruição parecia salvá-los da identificação automática com as funções preestabelecidas da sociedade e sua completa
banalidade, ao mesmo tempo em que parecia ajudar a destruir o próprio funcionamento. Esses
homens sentiam-se atraídos pelo pronunciado ativismo dos movimentos totalitários, pela
curiosa e aparentemente contraditória insistência no primado simultâneo da ação pura e da força
irresistível da necessidade. Era uma mistura que correspondia exatamente à experiência de
guerra da "geração de vanguarda", à experiência da atividade constante dentro da estrutura da
fatalidade inelutável.
Além disso, o ativismo parecia fornecer novas respostas à velha e incômoda pergunta "quem
sou eu?", que ocorre com redobrada persistência em tempos de crise. Se a sociedade insistia em
"és o que pareces ser", o ativismo do pós-guerra respondia "és o que fizeste" — por exemplo, o
homem que pela primeira vez atravessou o Atlântico num aeroplano (como em Der Flüg der
Lind-berghs —, resposta que, após a Segunda Guerra Mundial, foi repetida com uma pequena
variação por Sartre: "és a tua vida" (em Huis cios). A pertinência dessas respostas estava menos
na sua validez como redefinições da identidade pessoal do que na sua utilidade para eventual
fuga da identificação social, da multiplicidade de papéis e funções intercambiáveis que a
sociedade havia imposto. A questão era fazer algo, fosse heroico ou criminoso, que nenhuma
outra pessoa pudesse prever ou determinar.
O pronunciado ativismo dos movimentos totalitários, sua preferência pelo terrorismo em relação
a qualquer outra forma de atividade política, atraíram da mesma forma a elite de intelectuais e a
ralé, precisamente porque esse terrorismo era tão diferente daquele das antigas sociedades
revolucionárias^ Já não era uma questão de política calculada, que via em atos terroristas o
único meio de eliminar certas personalidades importantes que se haviam tornado símbolos de
opressão. O que era tão atraente é que o terrorismo se havia tornado uma espécie de filosofia
através da qual era possível exprimir frustração, ressentimento e ódio cego, uma espécie de
expressionismo político que tinha bombas por linguagem, que observava com prazer a
publicidade dada a seus feitos estrondosos e que estava absolutamente disposto a pagar com a
vida o fato de conseguir impingir às camadas normais da sociedade o reconhecimento da existência de alguém. Foi esse
mesmo espírito e esse mesmo jogo que levaram Goebbels, muito antes da derrota final da Alemanha
nazista, a anunciar, com óbvio deleite, que os nazistas, em caso de derrota, saberiam fechar a porta atrás
de si de modo a não serem esquecidos durante séculos.
Contudo, se existe um critério válido para distinguir a elite da ralé na atmosfera pré-totalitária, é aqui que
podemos encontrá-lo: o que buscava a ralé e o que Goebbels expressou de modo tão preciso era o acesso
à história, mesmo ao preço da destruição. A sincera convicção de Goebbels de que "a maior felicidade
que um homem pode experimentar hoje" é ser um gênio ou servir a um gênio[57] era típica da ralé, mas não
da massa nem da elite simpatizante. Esta última, pelo contrário, levava muito a sério o anonimato, ao
ponto de negar seriamente a existência do gênio; todas as teorias da arte dos anos 20 tentaram
desesperadamente provar que a excelência resulta da habilidade, do artesanato, da lógica e da realização
das potencialidades do material.[58] A ralé, e não a elite, sentia-se fascinada pelo "radiante poder da fama"
(Stefan Zweig) e aceitava entusiasticamente a idolatria do gênio que caracterizara o extinto mundo
burguês. Nisso, a ralé do século XX seguiu fielmente o padrão dos antigos par-venus, que também
haviam descoberto que a sociedade burguesa abria mais facilmente as portas ao fascinante "anormal" —
ou seja, ao gênio, ao homossexual ou ao judeu — do que ao simples mérito. O desprezo que a elite nutria
pelo gênio e o seu desejo de anonimato ainda revelavam um espírito que nem as massas nem a ralé
estavam em posição de compreender, e que, nas palavras de Robespierre, tentava afirmar a grandeza do
homem contra a pequenez dos grandes.
A despeito dessa diferença entre a elite e a ralé, não há dúvida de que a elite se deleitava sempre que o
submundo forçava a sociedade respeitável, através do terror, a aceitá-lo em pé de igualdade. Os membros
da elite concordavam em pagar o preço, que era a destruição da civilização, pelo prazer de ver como
aqueles que dela haviam sido excluídos injustamente, no passado, agora penetravam nela à força. Não se
ofendiam* muito com as monstruosas contrafações da história, perpetradas por todos os regimes
totalitários e claramente perceptíveis na propaganda totalitária. Estavam convencidos de que a
historiografia tradicional era, de qualquer forma, uma fraude, pois havia excluído da memória da
humanidade os subprivilegiados e os oprimidos. Aqueles a quem a sua própria época rejeitava eram
geralmente esquecidos pela história — e o insulto, aliado ao crime, sempre perturbou todas as
consciências sensíveis desde que desapareceu a fé num mundo em que os últimos seriam os primeiros. As
injustiças do passado e do presente tornaram-se intoleráveis quando evaporou-se a esperança de que a
balança da justiça jamais viesse a endireitar-se. A tentativa de Marx de reescrever a história do mundo em
termos de luta de classes fascinou até mesmo aqueles que não acreditavam na correção da sua tese, dada a intenção original de
encontrar um meio de introduzir à força na lembrança da posteridade os destinos daqueles que haviam
sido excluídos da história.
A trégua temporária entre a elite e a ralé baseava-se, em grande parte, nesse prazer genuíno com que a
primeira assistia à destruição da respeitabilidade pela segunda, o que aconteceu, por exemplo, quando os
barões do acopla Alemanha foram forçados a receber socialmente a Hitler, o pintor de paredes e fracassado confesso; ou quando os movimentos totalitários cometeram fraudes grosseiras e vulgares em
todos os campos da vida intelectual, reunindo todos os elementos subterrâneos e espúrios da história
europeia num conjunto que parecia fazer sentido. Desse ponto de vista, era sem dúvida agradável ver o
bolchevismo e o nazismo passarem a repudiar até mesmo aquelas fontes de suas ideologias que já haviam
conquistado algum reconhecimento em círculos acadêmicos e outros círculos oficiais. O que inspirava os
manejadores da história não \ era o materialismo dialético de Marx, mas a conspiração das trezentas
famílias; não o pomposo cientificismo de Gobineau e de Chamberlain, mas os "Protocolos dos sábios do
Sião"; não a demonstrável influência da Igreja Católica e o papel do anticlericalismo nos países latinos,
mas a literatura clandestina sobre jesuítas e maçons. A finalidade das mais variadas e variáveis
interpretações era sempre denunciar a história oficial como uma fraude, expor uma esfera de in^ fluências
secretas das quais a realidade histórica visível, demonstrável e conhecida era apenas uma fachada externa
construída com o fim expresso de enganar o povo.
A essa aversão da elite de intelectuais pela historiografia oficial, à sua convicção de que nada impedia que
a história, fraudulenta como era, fosse usada como brinquedo por alguns malucos, deve acrescentar-se o
terrível fascínio exercido pela possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades
viessem a transformar-se em fatos incontestes, de que o homem pudesse ter a liberdade de mudar à
vontade o seu passado, e de que a diferença. entre a verdade e a mentira pudesse deixar de ser objetiva e
passasse a ser apenas uma questão de poder e de esperteza, de pressão e de repetição infinita. O que os
fascinava não era a habilidade com que Hitler e Stálin mentiam, mas o fato de que pudessem organizar as
massas numa unidade coletiva para dar às suas mentiras uma pompa impressionante. O que era simples
fraude do ponto de vista factual e intelectual parecia receber a bênção da própria história quando toda a
realidade dinâmica dos movimentos passou a sustentar a mentira, fingindo tirar dela o entusiasmo
necessário para a ação.
É desconcertante a atração que os movimentos totalitários exerceram sobre a elite, enquanto e onde não
houvessem tomado o poder, porque as doutrinas patentemente vulgares, arbitrárias e dogmáticas do
totalitarismo são mais visíveis para o espectador que está de fora^ Essas doutrinas discrepavam tanto dos
padrões intelectuais, culturais e morais geralmente aceitos que se podia concluir que somente um defeito
básico, inerente do caráter do intelectual, Ia trahison des clercs (Julien Benda), ou um doentio ódio do
espírito contra si mesmo, explicava o prazer com que a elite aceitava as "ideias" da ralé. O que os porta-vozes do humanismo e do liberalismo geralmente esquecem, no seu amargo desapontamento e
no seu desconhecimento das experiências mais gerais da época, é que, numa atmosfera em que todos os
valores e proposições tradicionais se haviam evaporado — e no século XIX as ideologias se haviam
refutado umas às outras e esgotado o seu apelo vital —, era de certa forma mais fácil aceitar proposições
patentemente absurdas do que as antigas verdades que haviam virado banalidades, exatamente porque não
se esperava que ninguém levasse a sério os absurdos. A vulgaridade, com o seu cínico repúdio dos
padrões respeitados e das teorias aceitas, trazia em si um franco reconhecimento do que havia de pior e
um desprezo por toda simulação que facilmente passava por bravura e novo estilo de vida. No crescente
triunfo das atitudes e convicções da ralé,— que não eram mais que as atitudes e convicções da burguesia
despidas de fingimento — aqueles que tradicionalmente odiavam a burguesia e tinham voluntariamente
abandonado a sociedade respeitável viam apenas a falta de hipocrisia e de respeitabilidade, não o seu
conteúdo.[59]
Desde que a burguesia afirmava ser a guardiã das tradições ocidentais e confundia todas as questões
morais exibindo em público virtudes que não só não incorporava na vida privada e nos negócios, mas que
realmente desprezava, parecia revolucionário admitir a crueldade, o descaso pelos valores humanos e a
amoralidade geral, porque isso pelo menos destruía a duplicidade sobre a qual a sociedade existente
parecia repousar. Como era tentador assumir atitudes extremas na meia-luz hipócrita dos duplos padrões
de moral, colocar publicamente no rosto a máscara da crueldade quando todos fingiam ser bondosos e
ostentar a maldade num mundo que nem sequer era de maldade, mas de mesquinhez! A elite intelectual
dos anos 20, que pouto sabia da antiga relação entre a ralé e a burguesia, estava convencida de que o
velho jogo de épater le bour-geois podia ser jogado com perfeição, se o primeiro lance fosse chocar a
sociedade com a caricatura irônica da sua própria conduta.
Naquela época, ninguém podia imaginar que a verdadeira vítima dessa ironia seria a elite e não a
burguesia. A avant-garde ignorava que estava investindo não contra paredes, mas contra portas abertas; o
sucesso unânime desmentiria a sua pretensão de ser uma minoria revolucionária, e demonstraria que ela
buscava apenas exprimir um novo espírito de massa, que era o espírito do seu tempo. A este respeito, foi
particularmente significativa a acolhida que a Dreigroschenoper de Brecht teve na Alemanha de antes de
Hitler. A peça mostrava bandidos como respeitáveis negociantes e respeitáveis negociantes como
bandidos. A ironia não atingiu o alvo, pois os respeitáveis negociantes da plateia enxergaram naquilo uma
visão profunda das coisas do mundo, e a ralé tomou a peça como a aprovação artística do banditismo. O tema musical da peça, Erst koíhmt das Fressen, dann
kommt die Moral [Antes vem a comida, depois vem a moral], recebeu o aplauso delirante de todos,
embora de cada um por motivos diferentes. A ralé aplaudiu porque levou a sério a afirmação; a burguesia
aplaudiu porque fora lograda durante tanto tempo por sua própria hipocrisia que se cansara do esforço e
via profunda sabedoria na expressão da banalidade da sua vida; a elite aplaudia porque desmascarar a
hipocrisia era um elevado e maravilhoso divertimento. O efeito da obra foi exatamente o oposto do que
Brecht pretendia. A burguesia já não se chocava com coisa alguma; acolhia com prazer a denúncia da sua
filosofia, cuja popularidade provava que sempre estivera certa, de sorte que o único resultado político da
"revolução" de Brecht foi encorajar todo o mundo a arrancar a máscara incômoda da hipocrisia e.. aceitar
abertamente os padrões da ralé.
Cerca de dez anos mais tarde, na França, o Bagatelles pour un massacre, no qual Céline propunha que se
massacrassem todos os judeus, provocou reação igualmente ambígua. André Gide expressou
publicamente o seu deleite nas páginas àa\Nouvelle RevueFrançaise, naturalmente não porque quisesse
matar os judeus da França, mas porque exultava com a brutal confissão desse desejo e com a fascinante
contradição entre a grosseria de Céline e a polidez hipócrita que cercava a questão judaica em todos os
círculos respeitáveis. O desejo da elite de desmascarar a hipocrisia era tão irresistível que nem mesmo a
perseguição muito real que Hitler promoveu contra os judeus chegou a prejudicar essa exultação — e a
perseguição já estava em pleno andamento quando Céline escreveu o livro. A aversão contra o filo
semitismo dos liberais tinha muito mais a ver com essa reação do que o ódio aos judeus. ^jalo, notável
de que as conhecidas opiniões de Hitler e de Stálin sobre arte, e a perseguição que ambos moveram contra
os artistas modernos, nunca eliminaram a atração que os movimentos totalitários exerciam sobre os
artistas da avant-garde pode ser explicado por um estado de espírito semelhante — o que demonstra a
falta de senso de realidade da elite e o seu pervertido desprendimento, muito afins do mundo fictício em
que viviam e da falta de interesses das massas por si mesmas. A grande oportunidade dos movimentos
totalitários, e o motivo pelo qual uma aliança temporária entre a elite intelectual e a ralé pôde ocorrer, foi
que, de certo modo elementar e indistinto, os seus problemas se tornavam os mesmos e prefiguravam os
problemas e a mentalidade das massas.
O irresistível apelo da falsa pretensão dos movimentos totalitários de haverem abolido a separação entre a
vida pública e a vida privada e de haverem restaurado no homem uma totalidade misteriosa e irracional
tinha muito a ver com a atração que a elite sentia pela ausência de hipocrisia da ralé e pela ausência de
interesse das massas por si mesmas. Desde que Balzac revelou _as vidas privadas de figuras públicas da
sociedade francesa e desde que a dramatização de Ibsen dos "pilares da sociedade" conquistou o teatro da
Europa, a questão da dupla moralidade tem sido um dos principais tópicos de tragédias e romances. A
dupla moralidade praticada pela burguesia tornou-se o principal sinal do esprit de sérieux, sempre
pomposo e nunca sincero. Essa divisão entre a vida privada e a vida pública ou social nada tinha a ver com a justa separação entre as esferas
pessoal e pública, mas era antes o reflexo psicológico da luta do século XIX entre bourgeois e
citoyens, entre os burgueses que usavam e julgavam todas as instituições públicas pela medida
dos seus interesses privados e os cidadãos responsáveis que se preocupavam com as coisas
públicas do interesse de todos. Nesse particular, a filosofia política dos liberais segundo a qual a
mera soma dos interesses individuais constitui o milagre do bem comum, parecia apenas uma
racionalização da temeridade com que se atendia aos interesses privados sem se atentar para o
bem comum.
Contra o espírito de classe dos partidos europeus, que sempre confessaram representar certos
interesses e contra o "oportunismo" resultante da sua concepção de si mesmos como simples
partes de um todo, os movimentos totalitários afirmavam a sua "superioridade" pelo fato de
conterem uma Weltan-schauung através da qual tomariam posse do homem como um todo.[60] Nessa pretensão de totalidade, os líderes da ralé dos movimentos totalitários formulavam a sua
ideologia invertendo apenas a própria filosofia política da burguesia. A classe burguesa, tendo
aberto caminho para si por meio da pressão social e, frequentemente, através de chantagem
econômica contra instituições políticas, sempre acreditara que os órgãos públicos oficiais do
poder fossem dirigidos por seus próprios interesses e influxos secretos. Nesse sentido, a
filosofia política da burguesia era sempre "totalitária"; supunha sempre que política, economia e
sociedade fossem uma coisa só, na qual as instituições políticas serviam apenas de fachada para
os interesses privados. O duplo padrão da burguesia, sua distinção entre a vida pública e a vida
pessoal, era uma concessão ao Estado nacional que havia desesperadamente tentado manter
separadas as
duas esferas.
O que atraía a elite era o radicalismo em si. As esperançosas previsões de Marx de que o Estado
feneceria e surgiria uma sociedade sem classes não eram suficientemente radicais nem
messiânicas. Se Berdyaev tem razão quando afirma que "os revolucionários russos (...) sempre
foram totalitários", então a atração que a Rússia soviética exerceu sobre os simpatizantes
intelectuais do nazismo e do comunismo residia precisamente no fato de que, na Rússia, "a
revolução era uma religião e uma filosofia, e não um simples conflito interessado no lado social
e político da vida".[61] A verdade é que a transformação das classes em massas e o colapso do
prestígio e da autoridade das instituições políticas haviam provocado, nos países da Europa
ocidental, condições semelhantes às que existiam na Rússia, de modo que não foi por acaso que
os seus revolucionários adquiriram o fanatismo revolucionário tipicamente russo que não
esperava mudar as condições sociais ou políticas, mas destruir completamente todos os credos, valores e instituições existentes. A ralé apenas aproveitou-se desse novo
estado de ânimo e provocou uma efêmera aliança entre revolucionários e criminosos, aliança
esta que também havia ocorrido em muitas facções revolucionárias da Rússia czarista, mas que
sempre estivera ausente do cenário europeu.
A perturbadora aliança entre a ralé e a elite e a curiosa coincidência das suas aspirações
originam-se do fato de que essas duas camadas haviam sido as primeiras a serem eliminadas da
estrutura do Estado-nação e da estrutura da sociedade de classes. Se uma encontrou a outra com
tanta facilidade, embora temporariamente, é porque ambas percebiam que representavam o
destino da época, que seriam seguidas por massas sem fim, que mais cedo ou mais tarde a
maioria dos povos europeus estaria com elas — prontos a fazerem a sua revolução, segundo
pensavam.
Ambas estavam enganadas, como se viu depois. A ralé — submundo da classe burguesa —
esperava que as massas impotentes a ajudassem a galgar o poder, a apoiassem quando tentasse
promover os seus interesses privados, e que poderia simplesmente substituir as camadas mais
antigas da sociedade burguesa, instilando nela o espírito mais dinâmico do submundo. Mas, uma
vez no poder, o totalitarismo logo aprendeu que não eram só as camadas da ralé que tinham
espírito de iniciativa e que, de qualquer forma, essa iniciativa só podia ameaçar o domínio total
do homem. Por outro lado, a falta de escrúpulos também não era privilégio da ralé e, se
necessário, podia ser ensinada em tempo relativamente curto. Para a máquina impiedosa do
domínio e do extermínio, as massas coordenadas da burguesia constituíam material capaz de
crimes ainda piores que os cometidos pelos chamados criminosos profissionais, contanto que
esses crimes fossem bem organizados e assumissem a aparência de tarefas rotineiras.
Não foi por acaso, portanto, que os poucos protestos contra as atrocidades em massa dos
nazistas contra os judeus e os povos da Europa oriental partiram não dos militares nem de
qualquer outro setor das massas coordenadas compostas por homens respeitáveis, mas
precisamente daqueles primeiros camaradas de Hitler que eram típicos representantes da ralé.[62]
E Himmler, de 1936 o homem mais poderoso da Alemanha, não era um daqueles "boêmios armados"
(Heiden) cujas características eram penosamente semelhantes às da elite intelectual. Himmler
era ."mais normal", isto é, mais filisteu do que qualquer outro dos primeiros líderes do
movimento nazista.[63] Não era um boêmio como Goebbels, nem criminoso sexual como
Streicher, nem louco como Rosen-berg, nem fanático como Hitler, nem aventureiro como
Gõring. Demonstrou sua suprema capacidade de organizar as massas sob o domínio total,
partindo do pressuposto de que a maioria dos homens não são boêmios, fanáticos, aventureiros,
maníacos sexuais, loucos nem fracassados, mas, acima e antes de tudo, empregados eficazes e
bons chefes de família.
O isolamento desses filisteus na vida privada e sua sincera devoção a questões de família e de
carreira pessoal, era o último e já degenerado produto da crença do burguês na suma
importância do interesse privado. O filisteu é o burguês isolado da sua própria classe, o
indivíduo atomizado produzido pelo colapso da própria classe burguesa. O homem da massa, a
quem Himmler organizou para os maiores crimes de massa jamais cometidos na história, tinha
os traços do filisteu e não da ralé, e era o burguês que, em meio às ruínas do seu mundo, cuidava
mais da própria segurança, estava pronto a sacrificar tudo a qualquer momento — crença, honra,
dignidade. Nada foi tão fácil de destruir quanto a privacidade e a moralidade pessoal de homens
que só pensavam em salvaguardar as suas vidas privadas. Em poucos anos de poder e de
coordenação sistemática, os nazistas podiam anunciar com razão: "A única pessoa que ainda é
um indivíduo privado na Alemanha é alguém que esteja dormindo".[64]
Por outro lado, para fazer justiça àqueles elementos da elite que vez por outra se deixavam
seduzir pelos movimentos totalitários e que, devido à sua capacidade intelectual, são às vezes
acusados de haver inspirado o totalitarismo, é preciso dizer que nada do que esses homens
desesperados do século XX fizeram ou deixaram de fazer teve qualquer influência sobre o
totalitarismo, embora tivesse muito a ver com as primeiras e bem-sucedidas tentativas dos
movimentos de fazerem o mundo exterior levar a sério as suas doutrinas. Sempre que os movimentos
totalitários tomavam o poder, todo esse grupo de simpatizantes era descartado antes mesmo que
o regime passasse a cometer os seus piores crimes. A iniciativa intelectual, espiritual e artística
é tão perigosa para o totalitarismo como a iniciativa de banditismo da ralé, e ambos são mais
perigosos que a simples oposição política. A uniforme perseguição movida contra qualquer forma de atividade intelectual pelos novos líderes da massa deve-se a algo mais que o seu natural
ressentimento contra tudo o que não podem compreender. O domínio total não permite a livre
iniciativa em qualquer campo de ação, nem qualquer atividade que não seja inteiramente
previsível. O totalitarismo no poder invariavelmente substitui todo talento, quaisquer que sejam
as suas simpatias, pelos loucos e insensatos cuja falta de inteligência e criatividade é ainda a melhor garantia de lealdade.[65].
continua página 376...
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Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 2 - A Aliança Temporária Entre a Ralé e a Elite)
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[44] Ver a descrição que Hitler faz de suas reações ao eclodir a Primeira Guerra Mundial (Mein Kampf, livro 1, cap.
V).
[45] Ver a coleção de artigos sobre a "crônica interna da Primeira Guerra Mundial" por Hanna Hafkesbrink,
Unknown Germany, New Haven, 1948, pp. 43, 45 e 81, respectivamente. Trata-se de trabalho de profundo valor, que
nos revela os fatores imponderáveis da atmosfera histórica, e que torna deplorável a ausência de estudos semelhantes
para a França, Inglaterra e Itália.
[46] Ibid.,pp.20-1.
[47] Tudo começava com uma sensação de completo alheamento em relação à vida normal. Escreveu Rodolf
Binding, por exemplo: "Cada vez mais fazemos parte dos mortos, dos alienados — porque a grandeza do que ocorre
nos aliena e separa — e não dos banidos, cuja volta é possível" (ibid., p. 160). Uma curiosa reminiscência da
pretensão da elite da geração das trincheiras pode ainda ser encontrada no relato de Himmler sobre a "forma de
seleção" para a reorganização da SS: "(...) o processo de seleção mais severo é proporcionado pela guerra, pela luta
de vida e morte. Nesse processo, o valor do sangue se manifesta pela realização. (...) Mas a guerra é uma
circunstância excepcional, e era preciso encontrar uma forma de seleção contínua também em tempos de paz"
(op.cit.).
[48] Ver, por exemplo, Ernst Jünger, The storm ofsteel, Londres, 1929.
[49] Hafkesbrink, op. cit., p. 156.
[50] Heiden, op. cit., mostra a consistência com que Hitler preferia a catástrofe nos primeiros dias do movimento,
como receava uma possível recuperação da Alemanha. "Uma meia dúzia de vezes [durante o Ruhrputsch], com
palavras diferentes, declarou às suas tropas de choque que a Alemanha estava afundando. 'Nossa tarefa é assegurar o
sucesso do nosso movimento'" — (p. 167) — sucesso que, naquele instante, dependia do colapso da luta no Ruhr.
[51] Hafkesbrink, op. cit., pp. 156-7.
[52] Esse sentimento já era generalizado durante a guerra, quando Rudolf Binding escte-veu: "Esta guerra não deve
ser comparada a uma campanha. Pois, numa campanha, a vontade de um líder, se confronta com a de outro. Mas
nesta guerra ambos os adversários jazem por terra, e somente a Guerra impõe a sua vontade" (ibid., p. 67).
[53] Bakúnin, numa carta escrita a 7 de fevereiro de 1870. Ver Max Nomad, Apostles of Revolution, Boston, 1939, p. 180.
[54] O "Catecismo da Revolução" não foi escrito nem pelo próprio Bakúnin nem por seu discípulo Nechayev. Quanto à questão da
autoria e tradução do texto completo, ver Nomad, op. cit., pp. 227 ss. De qualquer forma, o "sistema de completo descaso por
quaisquer dogmas de simples decência e integridade na atitude [do revolucionário] em relação aos outros seres humanos (...) ficou
na história da revolução russa com o nome de 'Nechayevshtchina" (ibid., p. 224).
[55] Ernest Seillière, Mysticisme et domination: essais de critique impérialiste, 1913, é um dos principais teóricos políticos do
imperialismo. Ver também Cargill Sprietsma, We imperialists: notes on Ernest Seillières philosophy ofimperialism, Nova York,
1931; G. Monod em La Revue Historique, janeiro de 1912; e Louis Esteve, Une nouvelle psychologie de Vimpérialisme: Ernest
Seillière, 1913.
[56] Na França, desde 1930, o marquês de Sade tornou-se um dos autores favoritos da avant-garde literária. Jean Paulhan, em sua
introdução a uma nova edição de Les infortunes de Ia vertu, de Sade, Paris, 1946, observa: "Quando vejo hoje tantos escritores
tentando conscientemente negar o artifício e o jogo literário em benefício do inexprimível [un événement indicible] (...),
ansiosamente buscando o sublime no infame, o grande no subversivo (...), pergunto-me (...) se a nossa literatura moderna, naqueles
setores que nos parecem mais vitais — ou, pelo menos, mais agressivos — não se voltou inteiramente para o passado, e se a causa
disso não foi precisamente Sade". Ver também Georges Batailte, "Le secret de Sade", em La critique, tomo III, n?s 15-6, 17, 1947.
[57] Goebbels, op. cit., p. 139.
[58] As teorias da arte de Bauhaus eram características nesse particular. Ver também as observações de Bertolt
Brecht sobre o teatro em Gesammelte Werke, Londres, 1938.
[59] O seguinte trecho, de autoria de Ròhm, é típico do sentimento de quase toda a geração mais jovem, e não apenas
de uma elite: "a hipocrisia e o domínio do fariseu são as mais notáveis características da sociedade de hoje. (...) Nada
podia ser mais falso do que a chamada moral da sociedade. Os moços estão perdidos no mundo filisteu da dupla
moral burguesa, e já não sabem como distinguir entre a verdade e o erro" (Die Geschichte eines Hochverràters, pp.
267 e 269). A homossexualidade que reinava nesses círculos era também, pelo menos em parte, uma expressão do seu
protesto contra a sociedade.
[60] O papel da Weltanschauung na formação do movimento nazista foi acentuado muitas vezes pelo próprio Hitler.
É interessante notar que em Mein Kampf ele alega ter compreendido a necessidade de basear um partido numa
Weltanschauung em virtude da superioridade dos partidos marxistas (livro II, cap. I: "Weltanschauung e o Partido").
[61] NicolaiBerdyaev, Theorigin of Russian Communism, 1937, pp. 124-5.
[62] Houve, por exemplo, a curiosa intervenção de Welhelm Kube, comissário-geral em Minsk e um dos mais antigos
membros do partido, que, em 1941, ou seja, no começo do assassínio em massa, escreveu a seu chefe: "Não há dúvida
de que desejo cooperar com a solução da questão judaica, mas aqueles que foram criados em nossa cultura são, afinal
de contas, diferentes das hordas bestiais locais. Devemos designar para a tarefa de matá-los os lituanos e letões que
são desprezados até mesmo pela população local? Não poderia fazê-lo. Solicito que me sejam dadas instruções claras
para tratar do assunto do modo mais humano possível, em benefício do prestígio do nosso Reich e do nosso Partido".
Essa carta foi publicada em Hitler 'sprofessors, de Max Weinreich, Nova York, 1946, pp. 153-4. A intervenção de
Kube foi prontamente rejeitada, mas uma tentativa quase idêntica de salvar a vida de judeus dinamarqueses, feita por
W. Best, plenipotenciário do Reich na Dinamarca e conhecido nazista, foi melhor sucedida. Ver Nazi conspiracy, V,
2.
Da mesma forma, Alfred Rosenberg, que havia pregado a inferioridade dos povos eslavos, obviamente nunca
imaginara que as suas teorias seriam um dia usadas para liquidá-los. Encarregado da administração da Ucrânia, escreveu relatórios indignados sobre as condições que lá prevaleciam no outono de 1942,
depois de haver tentado obter a intervenção direta do próprio Hitler. Ver Nazi conspiracy, III, 83 ss., e IV, 62.
Há, naturalmente, certas exceções a esta regra. O homem que salvou Paris da destruição foi o general Von Choltitz, que, no entanto,
ainda "temia ser destituído do comando por não haver cumprido as ordens", embora soubesse que "a guerra estava perdida havia
anos". Parece duvidoso que ele houvesse tido a coragem de resistir às ordens de "transformar Paris num monte de ruínas" sem o
enérgico apoio de um velho nazista, Otto Abetz, embaixador alemão na França, segundo o seu próprio testemunho durante o
julgamento de Abetz em Paris.
[63] Um inglês, Stephen H. Roberts, The house that Hitler built, Londres, 1939, descreve Himmler como "um homem de fina
cortesia e ainda interessado nas coisas simples da vida. Não tem aquela pose dos nazistas que agem como se fossem semideuses. (...)
Nenhum homem aparenta menos o cargo que exerce do que esse ditador da polícia alemã, e estou convencido de que ninguém que
eu tenha encontrado na Alemanha é mais normal (...)" (pp. 89-90). Isso nos faz lembrar, de modo curioso, a observação da mãe de
Stálin que, segundo a propaganda bolchevista, disse dele: "Um filho exemplar. Quisera que todos fossem como ele" (Souvarine, op.
cit., p. 656).
[64] Quem fez essa observação foi Robert Ley. Ver Kohn-Bramstedt, op. cit., p. 178.
[65] A política bolchevista, que, nesse particular, é surpreendentemente coerente, é bem conhecida e dispensa maiores comentários.
Picasso, para citar o exemplo mais famoso, não é apreciado na Rússia, embora se tenha tornado comunista. É possível que a súbita
mudança de atitude de André Gide, depois que viu a realidade bolchevique na Rússia soviética (Retour de IVRSS) em 1936, tenha
definitivamente convencido Stálin da inutilidade dos artistas criativos, mesmo como simpatizantes. A política nazista diferia das
medidas bolchevistas apenas no fato de que não matava os seus talentos.
Valeria a pena estudar em detalhe a carreira dos eruditos alemães, comparativamente poucos, que foram além da mera cooperação e
ofereceram os seus serviços por serem nazistas convictos. (Weihreich, op. cit., não distingue entre os professores que adotaram o
credo nazista e os que deviam sua carreira exclusivamente ao regime, omite as carreiras anteriores dos eruditos que se preocupavam
com a situação, e coloca assim, indiscriminadamente, conhecidos homens de grandes méritos na mesma categoria de fanáticos.)
Interessantíssimo é o exemplo do jurista Carl Schmitt, cujas engenhosas teorias acerca do fim da democracia e do governo legal
ainda constituem leitura impressionante; já em meados da década de 30, foi substituído pelo tipo nazista de teóricos políticos como
Hans Frank, que mais tarde foi governador da Polônia ocupada, Gottfried Neesse, e Reinhard Hoehn. O último a cair em desgraça
foi Walter Frank, que havia sido antissemita convicto e membro do partido nazista antes da tomada do poder e que, em 1933, foi
diretor do recém-fundado Reichsinstitut für Geschichte des Neuen Deutschlands [Instituto do Reich para a História da Nova
Alemanha] com o seu famoso Forschungsabteilung Judenfrage [Seção de Pesquisas para a Questão Judaica], e editor da volumosa
(nove tomos!) obra Forschungen zur Judenfrage (1937-44). Em co-meços da década de 40, Frank teve de ceder a sua posição e
influência a Alfred Rosenberg, cujo Der Mythos des 20. Jahrhunderts [O mito do século XX] certamente não constitui nenhum
exemplo de "erudição". O motivo pelo qual Frank não merecia a confiança dos nazistas era, obviamente, o fato de não ser charlatão.
O que nem a elite nem a ralé que "abraçava" o nacional-socialismo com tanto fervor podia compreender era que "não se pode
abraçar esta Ordem (...) por acaso. Além e acima do desejo de servir, está a implacável necessidade da seleção, que não reconhece
nem circunstâncias atenuantes nem clemência" (Der Weg der SS [O caminho da SS], emitido pela SS Hauptamt-Schulungsamt, sem
data, p. 4). Em outras palavras, no tocante à seleção dos que desejavam unir-se a eles, os nazistas tomavam sua própria decisão,
independentemente do "acidente" das opiniões. O mesmo parece aplicar-se à seleção de bolchevistas para a polícia secreta. F. Beck
e W. Godin contam em Russian purge and the extraction of confessions, 1951, p. 160, que os membros da NKVD eram
arregimentados dentre membros do partido que não tinham tido a menor oportunidade de se oferecerem para essa "carreira".