terça-feira, 25 de março de 2025

Cinema: Oona Airola

Encontro em Satamakatu


Ykspihlaja Kino Orchestra apresenta: Encontro em Satamakatu





Ykspihlaja Cinema Orchestra apresenta: Encontro em Satamakatu
(Encontro de Belleville)
tom Benoît Charest, orador. Laura Airola
Fotografia e gravação: Antti Kokkola

Orquestra de Cinema Ykspihlaja:
Anna, Oona e Laura Airola, canções
Miia Reko, trompete e vocais
Reetta Kuisma, baixo
Miika Snåre e Tuomas Asanti, guitarras
Ilkka Tolonen, ritmos



Fogo no coração

Após a Segunda Guerra Mundial, uma jovem desafia sua família de classe alta ao se casar com um veterano de guerra ferido. Fugindo do preconceito, eles partem para um novo começo no interior do país. Anni deixa seu passado e começa a levar uma vida nas florestas de Karelia. Após um bom início, o destino esmaga os sonhos dela e seu amor por Veikko é posto à prova.





Um filme de Markku Pölönen
Nome finlandês: OMA MAA
Estreia na Finlândia: 26 de outubro de 2018. 
Produção: Solar Films Inc. e Finnish Film Industry SF

Direção
Markku Pölönen
Onde e quando assistir:

EuroChannel (acreditando na grade divulgada)

Sexta-feira, 28/3/2025 às 02h45
Sexta-feira, 28/3/2025 às 21h
Sexta-feira, 04/4/2025 às 02h45
Sexta-feira, 04/4/2025 às 21h
Sexta-feira, 11/4/2025 às 02h45
Sexta-feira, 11/4/2025 às 21h


Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Homem Poderoso (XXXVIII)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XXXVIII

UM HOMEM PODEROSO


 Mas há tantos mistérios em suas atitudes e elegância em seu porte. Quem 
 poderá ela ser?

SHILLER 


     AS PORTAS DO TORREÃO abriram-se na manhã seguinte bem cedo. Julien foi despertado num sobressalto.

– Ah! Meu Deus!, pensou, é meu pai. Que cena desagradável!

     No mesmo instante, uma mulher vestida como camponesa precipitou-se em seus braços, ele custou a reconhecê-la. Era a srta. de La Mole.

– Malvado, só por tua carta eu soube onde estavas. O que chamas teu crime, e que não é senão uma nobre vingança que me mostra todo o orgulho do coração que bate nesse peito, só o fiquei sabendo em Verrières...

      Apesar de suas prevenções contra a srta. de La Mole, que aliás ele não confessava a si mesmo muito claramente, Julien achou-a muito bela. Como não ver nessa maneira de agir e de falar um sentimento nobre, desinteressado, muito acima do que teria ousado uma alma pequena e vulgar? Ele acreditou ainda amar uma rainha e, depois de alguns instantes, foi com uma rara nobreza de elocução e de pensamento que disse a ela:

– O futuro desenhava-se a meus olhos com muita clareza. Depois de minha morte, você tornaria a casar com o sr. de Croisenois, que teria desposado uma viúva. A alma nobre mas um pouco romanesca dessa viúva encantadora, abalada e convertida ao culto da prudência vulgar por um acontecimento singular, trágico e grande para ela, teria se dignado compreender o mérito real do jovem marquês. Você teria se resignado a ser feliz com a felicidade de todo o mundo, a consideração, as riquezas, a posição social elevada... Mas sua chegada a Besançon, querida Mathilde, se for descoberta, será um golpe mortal para o sr. de La Mole, e isso jamais me perdoarei. Já causei tanto desgosto a ele! O acadêmico vai dizer que ele alimentou uma serpente em sua casa.
– Confesso que não esperava tão frias razões e tanta preocupação com o futuro, disse a srta. de La Mole, meio zangada. Minha camareira, quase tão prudente quanto você, conseguiu um passaporte para ela, e foi sob o nome de sra. Michelet que corri até a Posta.
– E a sra. Michelet pôde chegar tão facilmente até mim?
– Ah! Continuas sendo o homem superior, aquele que distingui! Primeiro, ofereci cem francos a um secretário de juiz, que dizia ser impossível minha entrada neste torreão. Mas, recebido o dinheiro, esse sujeito fez-me esperar, levantou objeções, achei que quisesse roubar-me... - ela se deteve.
– E então?, disse Julien.
– Não fique zangado, querido Julien, disse ela abraçando-o, fui obrigada a dizer meu nome a esse secretário, que me tomava por uma jovem operária de Paris apaixonada pelo belo Julien... Foram as palavras dele. Jurei que era tua mulher e terei uma permissão para te ver diariamente.

      A loucura é completa, pensou Julien, não pude impedi-la. Afinal, o sr. de La Mole é um poderoso senhor, e a opinião pública saberá encontrar uma desculpa para o jovem coronel que desposar essa encantadora viúva. Minha morte próxima apagará tudo; e ele entregou-se com delícia ao amor de Mathilde. Era loucura, grandeza de alma, tudo o que há de mais singular. Ela propôs seriamente matar-se com ele.
      Depois desses primeiros arrebatamentos, e quando ela se saciou da felicidade de ver Julien, uma curiosidade viva apoderou-se de sua alma. Examinava o amante e o julgou mais acima do que ela imaginara. Boniface de La Mole parecia-lhe ressuscitado, porém mais heroico.
     Mathilde procurou os principais advogados da região, que ela ofendeu ao oferecer-lhes dinheiro muito cruamente; mas eles acabaram aceitando.
      Ela rapidamente chegou à conclusão de que, em matéria de coisas duvidosas e de alta importância, tudo dependia em Besançon do sr. abade de Frilair.
      Sob o nome obscuro de sra. Michelet, ela encontrou primeiro insuperáveis dificuldades para chegar até o todo-poderoso dirigente da Congregação. Mas a notícia da beleza de uma jovem modista, louca de amor, e vinda de Paris a Besançon para consolar o jovem padre Julien Sorel, espalhou-se pela cidade.
      Mathilde andava a pé, sozinha, pelas ruas de Besançon; esperava não ser reconhecida. Em todo caso, não achava inútil à sua causa produzir uma grande impressão no povo. Sua loucura pensava em fazê-lo revoltar-se para salvar Julien a caminho da morte. A srta. de La Mole acreditava estar vestida com simplicidade e como convém a uma mulher que sofre, mas o fazia de modo a atrair todos os olhares.
     Estava sendo o objeto da atenção de todos em Besançon, quando, depois de oito dias de solicitações, obteve uma audiência com o sr. de Frilair.
     Qualquer que fosse sua coragem, as ideias da influência e da profunda e prudente perfídia do dirigente da Congregação estavam tão ligadas em seu espírito que ela tremeu ao bater à porta do bispado. Mal conseguiu andar quando precisou subir a escada que conduzia aos aposentos do vigário-geral. A solidão do palácio episcopal causava-lhe frio. Posso sentar-me numa poltrona e essa poltrona prender-me os braços. Se desapareço, a quem minha camareira poderá recorrer? O capitão da gendarmeria evitará agir... Estou isolada nesta grande cidade!
      Em sua primeira inspeção do apartamento, a srta. de La Mole ficou tranquilizada. Um lacaio de libré muito elegante viera abrir-lhe a porta. A sala onde a fizeram esperar ostentava um luxo fino e delicado, muito diferente da magnificência grosseira, e que em Paris só se encontra nas melhores casas. Assim que avistou o sr. de Frilair que vinha em sua direção com um ar paterno, todas as ideias de crime atroz desapareceram. Não encontrou em sua bela fisionomia nem mesmo a marca daquela virtude enérgica e um pouco selvagem, tão antipática à sociedade parisiense. O meio sorriso que animava as feições do padre que dispunha de tudo em Besançon anunciava o homem de boa companhia, o prelado instruído, o administrador hábil. Mathilde acreditou estar em Paris.
     O sr. de Frilair precisou de apenas alguns instantes para fazer Mathilde confessar-lhe ser a filha de seu poderoso adversário, o marquês de La Mole.

– De fato, não sou a sra. Michelet, disse ela, retomando toda a altivez de seu caráter, e essa confissão custa-me um pouco, pois venho consultá-lo, senhor, sobre a possibilidade de conseguir a libertação do sr. de La Vernaye. Em primeiro lugar, ele é culpado apenas de um desatino; a mulher contra a qual disparou passa bem. Em segundo lugar, para seduzir os subalternos, posso agora mesmo dispor de cinquenta mil francos e comprometer-me a pagar o dobro. Enfim, meu reconhecimento e o de minha família nada julgarão impossível para quem tiver salvo o sr. de La Vernaye.

     O sr. de Frilair parecia surpreso com esse nome. Mathilde mostrou-lhe várias cartas do ministro da guerra, endereçadas ao sr. Julien Sorel de La Vernaye.

– Está vendo, senhor, que meu pai encarregou-se da fortuna dele. Desposei-o em segredo, meu pai desejava que ele fosse oficial superior antes de anunciar esse casamento um tanto singular para um de La Mole.

     Mathilde notou que a expressão de bondade e de suave satisfação dissipava-se rapidamente à medida que o sr. de Frilair chegava a descobertas importantes. Uma sagacidade mesclada a uma falsidade profunda transparecia em seu rosto.
      O abade tinha dúvidas, relia lentamente os documentos oficiais.
     Que partido tirar dessas estranhas confidências?, ele pensava. Eis-me de repente em relação íntima com uma amiga da célebre marechala de Fervaques, sobrinha todo-poderosa do monsenhor de ***, através de quem se é bispo na França. O que eu via como remoto no futuro apresenta-se de improviso. Isso pode levar-me à meta de todos os meus desejos.
     A princípio, Mathilde ficou assustada com a mudança rápida de fisionomia desse homem tão poderoso, com quem se achava sozinha num apartamento retirado. Mas como?, disse a si mesma em seguida. O pior teria sido não causar nenhuma impressão no frio egoísmo de um padre saciado de poder e de prazeres.
     Deslumbrado com a possibilidade rápida e imprevista que se abria, para ele, de chegar ao episcopado, espantado com o gênio de Mathilde, por um instante o sr. de Frilair perdeu toda cautela. A srta. de la Mole quase o viu a seus pés, ambicioso e agitado de nervosismo.
     Tudo se esclarece, ela pensou, nada será impossível para a amiga da sra. de Fervaques. Apesar de um sentimento de ciúme ainda muito doloroso, ela teve a coragem de explicar que Julien era amigo íntimo da marechala, e encontrava quase todos os dias na casa dela o monsenhor de ***.

– Depois que sortearem quatro ou cinco vezes seguidas uma lista de trinta e seis jurados entre os notáveis desta região, disse o vigário-geral com o áspero olhar da ambição e acentuando as palavras, eu me considerarei como muito pouco felizardo se em cada lista não contar com oito ou dez amigos, e os mais inteligentes do grupo. Quase sempre terei a maioria, e mais ainda, em caso de condenação; veja, senhorita, com que facilidade posso obter a absolvição...

     O abade parou de repente, como espantado com o som de suas palavras; ele confessava coisas que nunca são ditas aos leigos.
      Mas, por sua vez, ele deixou Mathilde estupefata quando lhe informou que o que surpreendia e interessava sobretudo a sociedade de Besançon, na estranha aventura de Julien, é que ele inspirara outrora uma grande paixão à sra. de Rênal, e por muito tempo a compartilhara. O sr. de Frilair percebeu facilmente a perturbação extrema que suas palavras produziam.
      Tenho minha desforra!, ele pensou. Eis, enfim, um meio de conduzir essa pessoa tão decidida; temia não descobri-lo. O ar distinto e pouco fácil de conduzir aumentava, para ele, o encanto da rara beleza que via quase suplicante à sua frente. Recobrou todo o sangue-frio e não hesitou em enterrar o punhal no coração dela.

– Eu não ficaria surpreso, disse num tom leviano, se ficássemos sabendo que foi por ciúme que o sr. Sorel disparou dois tiros de pistola contra essa mulher outrora tão amada. Ela está longe de não ter atrativos, e há algum tempo vinha se encontrando seguidamente com um certo padre Marquinot, de Dijon, um jansenista sem caráter, como são todos.

     O sr. de Frilair torturou voluptuosamente e à vontade o coração daquela linda moça, cujo lado fraco surpreendera.
     Por que razão, dizia, e punha os olhos ardentes sobre Mathilde, o sr. Sorel teria escolhido a igreja, senão porque, precisamente naquele instante, seu rival celebrava ali a missa? Todos concordam em atribuir muita inteligência e, mais ainda, prudência ao homem feliz que a senhora protege. Que haveria de mais simples do que esconder-se no jardim do sr. de Rênal que ele conhece tão bem? E ali, com quase a certeza de não ser visto, nem descoberto, poder matar a mulher de quem tinha ciúmes?
     Esse raciocínio, aparentemente tão justo, acabou por lançar Mathilde no desespero. Essa alma altiva, mas saturada daquela prudência seca que na alta sociedade é tida como a descrição fiel do coração humano, não fora feita para compreender depressa a felicidade de zombar de toda prudência, que pode ser tão intensa para uma alma apaixonada. Nas classes elevadas da sociedade de Paris, onde Mathilde vivera, a paixão só muito raramente pode despojar-se da prudência, e é do quinto andar que as pessoas se jogam pela janela.
     Enfim, o abade de Frilair sentiu-se seguro de seu domínio. Deu a entender a Mathilde (ele certamente mentia) que podia dispor à vontade do ministério público, encarregado de fazer a acusação contra Julien. Depois que o sorteio designasse os trinta e seis jurados da sessão, ele faria um contato direto e pessoal com trinta deles, pelo menos.
     Se o sr. de Frilair não tivesse achado Mathilde tão bonita, não lhe teria falado assim tão claramente senão no quinto ou no sexto encontro.

continua página 326...

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: Um Homem Poderoso (XXXVIII)
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - h)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(h)

continuando...

      Depois do jantar, quando subia com minha avó, dizia-lhe que as coisas que nos encantavam na Sra. de Villeparisis, o tato, a finura, a discrição, o esquecimento de si mesma, talvez não devessem ter muito valor, pois as pessoas que os possuíram no mais alto grau não passaram de Molés e Loménies em compensação, se o fato de não tê-las pode tornar as relações cotidianas notáveis, ainda assim não impediu de chegar ao que foram Chateaubriand, Vigny, Balzac, vaidosos sem autocrítica, de quem era fácil zombar, como Bloch... nome de Bloch, minha avó protestava.
     Gabava a Sra. de Villeparisis. Como que é o interesse da espécie que, no amor, dirige as preferências de cada pessoa e que, para que criança seja constituída da maneira mais normal, o instinto que as mulheres magras procurem os homens gordos, e as gordas assim também eram obscuramente as exigências de minha felicidade pelo nervosismo, pela minha doentia inclinação à tristeza, ao isolamento. Dizia minha avó colocar em primeiro plano as qualidades de juízo e as próprias não só da Sra. de Villeparisis; mas de uma sociedade onde eu poderia ter sossego e distração uma sociedade semelhante àquela onde se viu o talento de um Doudan, de um Sr. de Rémusat, para não falar de uma Beau de um Joubert, de uma Sévigné, talento que proporciona mais dignidade à vida que os requintes opostos, que levaram um Baudelaire, um Poe, e um Rimbaud a sofrimentos e desconsiderações que ela não desejava ao neto. Interrompi-a para beijá-la, perguntando se havia reparado em tal ou qual frase da Sra. de Villeparisis, em que se notava a mulher que preza o seu nascimento muito mais do que diz. Desse modo, submetia minha avó as minhas impressões, pois nunca sabia o grau de estima devido a alguém senão quando ela o indicasse. Todas as noites trazia-lhe as notas que tomara durante o dia sobre todos os seres inexistentes que não fossem ela. Uma vez, disse-lhe:

- Sem ti, não poderia viver. 
- Não, isso não. - respondeu com voz perturbada. - É preciso ter um coração mais forte. Se não, o que seria de ti se eu fosse viajar? Ao contrário, espero que sejas razoável e feliz.
- Saberei ser razoável e feliz se viajasses por alguns dias, mas ficaria contando as horas.
-  Mas, se eu partisse por alguns meses... (só de pensar nisso meu coração se apertava) por muitos anos... por...

     Ficávamos calados. Não tínhamos coragem de nos olhar. No entanto, eu sofria mais pela sua angústia do que pela minha. Assim, aproximei-me da janela e lhe falei distintamente, desviando o olhar:

- Sabes como sou um sujeito de hábitos. Nos primeiros dias, em que me vejo separado das pessoas a quem amo, sinto-me infeliz. Mas depois, sem deixar de querê-las, acabo me acostumando, minha vida se torna calma, suave; e eu suportaria uma separação de meses ou anos...

     Tive de me calar e olhar pela janela. Minha avó saiu do quarto por um instante. Mas, no dia seguinte, comecei a falar de filosofia, em tom bastante indiferente, mas fazendo com que minha avó prestasse atenção às minhas palavras; disse-lhe que era curioso verificar como, depois das últimas descobertas da ciência, o materialismo parecia arruinado, e que o mais provável era que ainda houvesse a imortalidade das almas e a sua futura reunião.
     A Sra. de Villeparisis preveniu que dentro em breve já não poderia nos ver com frequência. Um jovem sobrinho, que se preparava para ingressar em Saumur, e estava de guarnição nas vizinhanças, em Doncieres, vinha passar com ela algumas semanas de licença, e a marquesa ficaria ocupada quase todo o tempo. Durante nossos passeios, havia elogiado sua profunda inteligência, sobretudo o seu bom coração; eu já imaginava que ele iria se tornar de simpatia por mim, que eu seria o seu amigo preferido e, quando um pouco antes de sua chegada, sua tia deu a entender a minha avó que ele infelizmente caíra nos braços de uma mulher má, por quem estava alucinado e que não o largaria nunca, eu, convencido que esse tipo de paixão redunda fatalmente na alienação mental, no crime e no suicídio; pensando no tempo tão curto reservado à nossa amizade, tão grande já em meu coração sem que o tivesse ainda visto, chorei por ela e pelas desgraças que a esperavam, como se chorasse por um ser querido do qual acabamos de saber que caiu gravemente doente e que seus dias estão contados.
     Numa tarde de muito calor, estava eu na sala de jantar do hotel, deixada na penumbra a fim de protegê-la dos raios do sol, baixando as cortinas que a luz marejava, e que pelos interstícios deixavam passar o azul do mar, quando vi, pelo passeio central que ia da praia à estrada, um rapaz alto, magro, de pescoço e cabeça orgulhosamente empinada, olhos penetrantes, de pele tão dourada, cabelos tão louros como se tivessem absorvido todos os raios de sol. Trajava uma calça de tecido muito fino, esbranquiçado, como jamais imaginei que um homem se vestiria e que, por sua leveza, evocava o calor e o bom tempo que fazia lá, menos que o frescor do refeitório; andava muito depressa. Seus olhos, dos quais a todo instante caía o monóculo, eram da cor do mar. Todos o olharam com curiosidade, pois sabiam que aquele jovem marquês de Saint-Loupen-Bray era célebre por sua elegância. Todos os jornais haviam descrito o traje que recentemente ao servir de testemunha, num duelo, a um jovem duque, que a qualidade tão peculiar de seus cabelos, de seus olhos, de sua pele e porte, que o teriam distinguido em meio de uma multidão como um ''precioso'' de opala brilhante e azulada, engastado em matéria grosseira, deveria ter uma vida diversa da dos outros homens. E, em consequência, quando, as relações que tanto desgostavam a Sra. de Villeparisis, as mais belas mulheres da alta sociedade o disputavam entre si, sua presença, em uma praia, por exemplo ao lado da beldade famosa a quem cortejava, não só a colocava no centro das atenções, como atraía os olhares tanto sobre ele quanto sobre ela. Devido a seu charme e a sua impertinência de jovem "leão", principalmente devido a seu grande físico, alguns lhe achavam mesmo um certo ar efeminado, mas sem censurar pois sabiam o quanto era viril e que amava apaixonadamente as mulheres; era o sobrinho da Sra. de Villeparisis de quem nos falara. Fiquei encantado ao vê-lo, ia conhecê-lo durante algumas semanas e certo de que me daria todo o seu afeto. Atravessou rapidamente o hotel em todo o comprimento, parecendo perseguir o seu monóculo que volteava a seu redor como uma borboleta. Chegava da praia, e o mar que enchia até a metade a vidraça do hall, formava-lhe um fundo sobre o qual se destacava, como em certos retratos em que os pintores pretendem, sem trair em nada a observação mais exata da vida atual, porém escolhendo para seu modelo um quadro apropriado, campo de polo ou de golfe, pista de corridas, convés; dar um equivalente moderno dessas telas em que os primitivos faziam a figura humana no primeiro plano de uma paisagem. Um carro tirado, cavalos, o esperava diante da entrada; e, enquanto o monóculo retomava brincalhão na estrada ensolarada, com a elegância e a maestria que um pianista consegue mostrar nos trechos mais simples, onde parecia não se superar um executante de segunda categoria, o sobrinho da Sra. de Villeparisis tomando as rédeas que o cocheiro lhe dera, sentou-se a seu lado e, ao mesmo tempo que abria uma carta que o gerente lhe entregara, fez partir os cavalos.
     Que decepção senti nos dias seguintes quando, cada vez que estava no hotel ou fora dele, com o pescoço erguido, equilibrando perpetuamente os movimentos dos membros ao redor do monóculo dançante e fugidio que passara a ser seu centro de gravidade-, percebi que ele não procurava aproximar-se de nós e que não nos cumprimentava, embora não pudesse ignorar que éramos amigos de sua tia!
     Recordando-me da amabilidade que me haviam testemunhado a Sra. de Villeparisis e, antes dela, o Sr. de Norpois, pensava que eles talvez fossem nobres de mentira, e que um artigo secreto das leis que governam a aristocracia deve permitir, quem sabe, às mulheres e a certos diplomatas que faltem, no seu convívio com os plebeus, e por um motivo que me escapava, a essa altivez que, ao contrário, um jovem marquês praticaria impiedosamente. Minha inteligência poderia me dizer o contrário. Mas a característica da idade ridícula que eu atravessava; idade nada ingrata, aliás muito fecunda -é que não se consulta a inteligência e que os menores atributos das criaturas parecem fazer parte indivisível de sua personalidade. Sempre cercados de monstros e deuses, a gente quase não conhece o sossego. E quase todos os gestos que fazemos por essa época, desejaríamos suprimi-los mais tarde. Mas, ao contrário, o que se deveria de fato lastimar seria não mais possuirmos aquela espontaneidade que nos inspirava. Depois, veem-se as coisas de maneira mais prática, em plena concordância com o resto da sociedade, mas a adolescência é a única época da vida em que aprendemos algo.
      Aquela insolência que eu adivinhava no Sr. de Saint-Loup, e tudo o que ela implicava de dureza natural, ficou comprovada por sua atitude cada vez que passava por nós, o corpo bem empertigado, a cabeça sempre empinada, o olhar impassível, e (não será demais dizer) tão implacável, destituído desse vago respeito que se tem pelos direitos das outras criaturas, mesmo que elas não conheçam a nossa tia, e em virtude do qual minha atitude não era absolutamente a mesma diante de uma velha dama e diante de um bico de gás. Essas maneiras glaciais também estavam bem distantes das cartas encantadoras que eu, alguns dias antes, ainda imaginava que me escrevesse para me testemunhar sua simpatia, à mesma distância em que estão as ovações da Câmara da posição medíocre e obscura de um homem imaginativo que pensa ter levantado o ânimo do povo com um discurso inesquecível e que, após ter assim sonhado em voz alta, vê-se de novo um joão-ninguém, como antes, depois de cessarem as falsas aclamações.
     Quando a Sra. de Villeparisis, sem dúvida para tentar apagar a má impressão que nos causara a aparência do sobrinho, reveladora de um temperamento orgulhoso e malvado, voltou a nos falar da inesgotável bondade do seu sobrinho-neto (era filho de uma de suas sobrinhas e um pouco mais velho que eu), admirei-me como no mundo, ao desprezo de toda a verdade, atribuem se qualidades de coração aos que o possuem tão seco, ainda que sejam amáveis com as pessoas brilhantes que fazem parte de seu ambiente social. A própria Sra. de Villeparisis acrescentou, mesmo de forma indireta, uma confirmação a esses traços essenciais do caráter de seu sobrinho, que já não me causavam dúvidas, um dia em que encontrei a ambos num caminho tão estreito que ela não teve outra alternativa senão me apresentar a ele. Pareceu não ouvir que lhe apresentavam alguém, nenhum músculo do rosto se mexeu; seus olhos; não brilhou o menor clarão de simpatia humana, mostraram simplesmente insensibilidade e inanidade do olhar, um exagero, a cuja falta nada os difere dos espelhos sem vida. Depois, fixando em mim a dureza do olhar, como para certificar-se bem de quem eu era, antes de devolver meu cumprimento; fez um movimento brusco que antes parecia efeito de um reflexo muscular do um ato voluntário, encompridou o braço em todo o seu tamanho e apresentando a mão, à distância, pondo entre ele e mim o maior intervalo possível. Quando no dia seguinte me mandou seu cartão, julguei que se tratava, no mínimo, de um duelo. Mas ele só me falou de literatura, declarando, depois de longa palestra, que muita vontade de me ver várias horas por dia. Não só dera provas, durante a conversa de um gosto muito vivo pelas coisas do espírito, como me testemunhara simpatia que combinava muito mal com a saudação da véspera. Depois, quão que saudava sempre dessa maneira quando lhe apresentavam alguém, comecei a pensar que se tratava de simples hábito mundano particular, próprio de uma parte da família, e ao qual sua mãe, que fazia questão que ele fosse admiravelmente educado, lhe acostumara o corpo; fazia tais cumprimentos sem neles pensar que em suas belas roupas, seus lindos cabelos; era algo desprovido do significado moral que eu lhe dera a princípio, uma coisa puramente aprendida, como outro hábito que tinha de fazer-se apresentar imediatamente aos pais de quem conhecia, e que se tornara tão instintivo nele que, vendo-me no dia seguinte do nosso encontro, lançou-se a mim e, sem me dar bom-dia, pediu-me que o apresentasse à minha avó que estava comigo, com a mesma rapidez febril corri para atender o pedido se devesse a um instinto defensivo, com o gesto de aparar um golpe, fechar os olhos diante de um jorro de água fervente, e que nos resguarda perigo que nos teria atingido um momento depois.
     Uma vez cumpridos os primeiros ritos de exorcismo, assim como a fada rabugenta se despoja de sua aparência inicial e se apresenta revestida de graças encantadoras, vi essa criatura desdenhosa fazer-se o mais amável e atencioso dos rapazes que já conhecera. "Bem" disse comigo, "já me equivoquei, fui vítima de uma miragem, mas só venci a primeira para cair numa outra, pois este é um grão-senhor enamorado de sua nobreza e procurando dissipar, de fato, toda a atraente educação, toda a amabilidade de Saint-Loup depois de algum tempo, deixar transparecer uma outra pessoa, mas bem daquela que eu suspeitava.
     Esse rapaz, com ares de um aristocrata e de um desportista que só estimava e se mostrava curioso pelos assuntos do espírito, sobretudo manifestações modernistas da literatura e da arte que pareciam tão ridículas para a tia; estava imbuído, por outro lado, daquilo que ela denominava declamações socialistas, e, cheio do mais profundo desprezo por sua casta, passava horas estudando Nietzsche e Proudhon. Era um desses "intelectuais", prontos para a admiração, que se encerram num livro preocupados apenas com altos pensamentos. Além disso, em Saint Loup, a expressão dessa tendência bastante abstrata e que o afastava tanto de minhas preocupações habituais, conquanto me parecesse emocionante, aborrecia-me um pouco. Posso dizer que, logo que me inteirei bem acerca de seu pai, nos dias em que acabava a leitura de umas memórias cheias de fatos relativos a esse famoso conde de Marsantes, no qual se resume a elegância tão especial de uma época já distante, e com o espírito pleno de fantasias e desejando saber detalhes sobre a vida que levara o Sr. de Marsantes; fiquei furioso ao ver que Robert de Saint-Loup, em vez de se contentar em ser o filho de seu pai; em vez de se mostrar capaz de me guiar pelo romance antiquado que fora a sua vida, se elevara à intensa admiração de Nietzehe e de Proudhon. Seu pai não teria compartilhado os meus lamentos. Era também um homem muito inteligente, que ultrapassava os limites de sua vida de homem mundano. Mal tivera tempo de conhecer o filho, mas desejara que valesse mais que ele. Creio firmemente que, ao contrário do resto da família, teria admirado o filho, alegrando-se que este abandonasse pelas meditações austeras os motivos de diversão leviana que havia tido; e, sem dizer nada, com sua modéstia de grão-senhor talentoso, teria lido às escondidas os autores prediletos do filho para avaliar o quanto Robert lhe era superior.
      Apesar disso, ocorria algo muito triste: enquanto o Sr. de Marsantes, um espírito bem aberto, teria apreciado um filho tão diferente dele, Robert de Saint-Loup, como era dessas pessoas que julgam o mérito sempre ligado a certas formas de vida e arte, guardava uma lembrança afetuosa, mas eivada de um certo desdém, do pai, que se ocupara a vida inteira em caçar e correr, bocejara ao ouvir Wagner e adorava a música de Offenbach. Saint-Loup não era inteligente o bastante para compreender que o valor intelectual nada tem a ver com a adesão a uma determinada fórmula estética, e nutria pela "intelectualidade" do Sr. de Marsantes quase o mesmo tipo de desdém que poderiam ter tido por Boieldieu ou por Labiche um filho de Boieldieu ou de Labiche que tivessem sido adeptos da literatura mais simbolista ou da música mais complicada.- Mal conheci meu pai-dizia Robert. Parece que foi um homem refinado. Seu grande mal foi a época deplorável em que viveu. Ser nascido no faubourg Saint-Germain e ter vivido na época da Belle-Hélene é uma catástrofe para uma existência. Se fosse um pequeno burguês fanático pelo Ring, talvez tivesse dado outro rumo à vida. Disseram-me que até gostava de literatura. Mas nem sabemos se isso era verdade, pois o que entendia por literatura se compunha de obras já caducas.

- Quanto a mim, se às vezes achava Robert um tanto sério demais, ele, em compensação, não entendia porque não tinha eu maior seriedade. Julgando todas as coisas apenas pela inteligência que possuem, não percebia os encantos da imaginação que me davam coisas que reputava frívolas, assombrava-se de que eu - a quem julgava muito superior a si próprio - me pudesse se interessar por elas.

     Desde os primeiros dias, Saint-Loup havia conquistado minha avó, pela incessante bondade que se empenhava em testemunhar-nos, mas pela e mentalidade que punha em todas as coisas. Ora, a naturalidade - sem dúvida porque se sente nela a natureza sob a arte humana - era a qualidade que minha avó punha acima de todas, tanto nos jardins, onde não gostava que houvesse, como Combray, canteiros muito regulares, quanto na cozinha, onde detestava as ''obras complexas" em que mal se reconhecem os alimentos que foram usados para compô-las, ou na interpretação pianística, que lhe desagradava quando era apurada ou lambida, a tal ponto que sentia uma complacência toda especial por notas ligadas, pelas notas falsas, de Rubinstein. Essa naturalidade, ela a saboreava até nas roupas de Saint-Loup, de uma elegância simples, sem artifícios ou engomações, sem goma nem armação. Apreciava ainda mais aquele rapaz rico pelo descuidado e livre que tinha de viver no luxo sem "cheirar a dinheiro", sem a ares de importância; e parecia-lhe até encantadora essa naturalidade quando se manifestava pela incapacidade-que Saint-Loup conservara e que desaparece com a infância com certas particularidades fisiológicas dessa idade de impedir que se refletisse uma emoção. Qualquer coisa que desejasse, por exemplo, algo com que não contara, mesmo sendo um cumprimento, determinava nele um prazer, brusco, tão ardente, tão volátil, tão expansivo, que lhe era impossível conter ou oculta-lo; uma expressão de contentamento assomava-lhe irresistivelmente; a pele muito fina das faces deixava transparecer um vivo rubor, seus olhos refletiam a alegria e o enlevo; e minha avó era infinitamente sensível a essa aparência de inocência e franqueza, que em Saint-Loup, aliás, ao menos na maneira, em que me liguei a ele, era bem sincera. Mas conheci outra criatura, e há muitas que como ela, qual a sinceridade fisiológica desse rubor passageiro não excluía de modo algum a duplicidade moral; muitas vezes, prova unicamente a vivacidade com que mostra o prazer, a ponto de se verem desarmadas diante dele e serem forçadas a confessa-lo aos outros, certas naturezas capazes das piores objeções. Mas, minha avó adorava mais a simplicidade de Saint-Loup, era no seu modo de ser sem rodeios, a simpatia que me devotava, e que expressava com palavras tais que ela mesma dizia consigo não saber achar mais justas e carinhosas, palavras dignas de levarem a assinatura de "Sévigné e Beausergent''; ele não se constrangia de gracejar dos meus defeitos - que desvelara com uma finura que encantara avó -, mas como ela própria o teria feito, com ternura; ao passo que exaltando minhas qualidades com um ardor e um abandono que não conhecia as reservas e a frieza, graças às quais os jovens de sua idade costumam achar que se dão importância. Mostrava, para prevenir-me o menor incômodo, para repor-me uma manta sobre as pernas sem que eu notasse, se o tempo esfriava, para arrumar uma sem nada me dizer, de ficar comigo mais tarde que de costume se me via indisposto, uma atenção vigilante que, do ponto de vista da minha saúde, chegava a achar quase excessiva, pois talvez fosse preferível menos mimos, mas que, por outro lado, tocavam-na profundamente como prova de afeição por ruim.
      E bem depressa ficou claro entre nós que éramos amigos íntimos para sempre, e ele dizia "nossa amizade" como se falasse de algo importante e delicioso que existisse fora de nós mesmos e que em breve denominou - sem contar o amor por sua amante - a maior alegria de sua vida. Tais palavras me deram uma espécie de tristeza e senti-me embaraçado para respondê-las, pois a verdade é que eu não experimentava, ao me encontrar ou conversar com ele - e sem dúvida me ocorreria o mesmo em relação aos outros - aquela felicidade que, pelo contrário, podia sentir quando estava a sós. Sozinho, sentia às vezes afluir do fundo de mim mesmo uma daquelas impressões que me proporcionavam um delicioso bem-estar. Mas, desde que estivesse em companhia de alguém, desde que falasse com um amigo, meu espírito dava meia-volta, era a esse interlocutor e não a mim mesmo que dirigia seus pensamentos. E, quando estes seguiam esse caminho oposto, não me davam qualquer prazer. Tão logo me separava de Saint-Loup, ia pondo em certa ordem, com o auxílio das palavras, os minutos confusos que passara com ele; dizia comigo que tinha uma boa amizade, que um bom amigo é uma coisa rara; mas, sentir-me cercado de objetos difíceis de adquirir causava-me uma sensação que era justamente o oposto do prazer que me era natural, o oposto do prazer de haver extraído de mim mesmo, e leva-lo à claridade, algo que em mim se ocultava na penumbra. Se passara duas ou três horas a conversar com Robert, ainda que ele tivesse admirado o que eu havia dito, eu sentia uma espécie de remorso, de cansaço, de pena, por não ter ficado sozinho e pronto enfim, para escrever. Então, retrucava a mim mesmo que ninguém é inteligente só para si, que os espíritos mais dotados apreciaram ser tidos em boa consideração, que eu não podia dar como perdidas as horas que passara a erguer uma alta ideia de mim no espírito de meu amigo, convencia-me facilmente que deveria estar feliz por isso, desejando com vivo ardor que semelhante felicidade jamais me fosse arrebatada porque não a sentira de fato. Teme-se acima de tudo a perda dos bens que existem fora de nós, pois nosso coração não chegou a se apoderar deles. Sentia-me capaz de exercer as virtudes da amizade melhor que muitos (porque poria sempre o bem de meus amigos acima de meus interesses pessoais, de que não prescindem jamais as outras pessoas, e que para mim não existiam), porém não de conhecer a alegria em um sentimento que, ao invés de aumentar as diferenças existentes entre minha alma e a dos outros-como as que existem entre todas as almas -contribuía para desfazê-las. Em compensação, às vezes meu pensamento distinguia em Saint Loup um ser geral, o "nobre", e que, como um espírito interior, movia seus membros, ordenava seus gestos e suas opiniões; então, nesses instantes, embora junto dele, achava-me sozinho, como se estivesse diante de uma paisagem cuja harmonia compreendesse. Não era mais que um objeto que meu pensamento queria aprofundar. Experimentava uma alegria, da inteligência e não da amizade, ao encontrar sempre nele esse ser secular, o aristocrata que Robert justamente aspirava a não ser. Na agilidade física que conferia tanto encanto à sua amabilidade; no desembaraço com que oferecia seu carro à minha avó e a ajudava a subir; na destreza com que saía do carro quando temia que eu estivesse com frio, para lançar o seu casaco nos meus ombros; eu não sentia apenas a maleabilidade hereditária dos grandes caçadores que, desde muitas gerações, tinham sido os antepassados desse rapaz que aspirava à intelectualidade, algo mais que o desdém para com a riqueza, que, existindo nele junto com o gosto que sentia por ela, porque desse modo podia tratar seus amigos com mais capacidade e dava-lhe condições para lhes pôr à seus pés, com ar negligente, todo o seu luxo. Via eu, sobretudo, a certeza ou a ilusão que tiveram esses grão-senhores de serem "mais que os outros", graças a que legaram a Saint Loup o desejo de mostrar que era "tanto como os outros", medo de parecer atencioso demais que, de fato, era-lhe verdadeiramente desconhecido e que desfigura com tanta mesquinhez e acanhamento a mais sincera generosidade plebeia. Censurava-me, às vezes, por ter prazer em considerar meu amigo só uma obra de arte, ou seja, encarar o maquinismo de todas as partes de sua pessoa como governado harmoniosamente por uma ideia geral a que eram afeitas, das quais ele não conhecia e, consequentemente, nada acrescentava às suas qualidades próprias, a esse valor pessoal de inteligência e de moralidade que ele tanto apreciava.

continua na página 135...
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Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - O Casebre de Gorbeau / II - Ninho de um mocho e de uma cotovia

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Quarto — O Casebre de Gorbeau

II - Ninho de um mocho e de uma cotovia
     
      Foi em frente daquele casebre de Gorbeau que Jean Valjean parou. 
      Como as aves noctívagas, tinha escolhido aquele lugar deserto para nele fazer o seu ninho. 
      Jean Valjean meteu a mão no bolso do colete, tirou uma espécie de gazua, abriu a porta, entrou, depois fechou-a com cuidado e subiu a escada ainda com Cosette ao colo.
     No cimo da escada tirou do bolso nova chave e abriu outra porta, que tornou imediatamente a fechar. O quarto para que entrou era uma espécie de sótão, bastante espaçoso, cuja mobília consistia num colchão deitado no chão, numa mesa e algumas cadeiras. A um canto ficava um fogão, que se via aceso na ocasião em que falamos.
     Toda esta pobre mansão era vagamente alumiada pelo clarão do lampião do boulevard. Ao fundo havia um gabinete com uma cama de lona, para a qual Jean Valjean levou a criança, deitando-a nela sem que Cosette acordasse.
      Depois feriu lume e acendeu uma vela; tudo isto estava preparado de antemão em cima da mesa, e, como na véspera fizera, pôs-se a contemplar Cose e com um olhar extasiado, em que a expressão da bondade e do enternecimento tocava as raias do desvairamento. A pequenina, com essa extrema confiança tranquila, adormecera sem saber com quem estava e continuava a dormir sem saber onde estava.
      Jean Valjean curvou-se então e beijou a mão da criança. Nove meses havia que ele beijara a mão da mãe, no momento também em que ela adormecera.
     O mesmo sentimento doloroso, religioso e pungente de então lhe enchia o coração.
     Após aquele beijo, Jean Valjean ajoelhou junto ao leito de Cosette.
     Era dia claro e Cose e ainda dormia. Um pálido raio do Sol de Dezembro penetrava pela janela do sótão, arrastando pelo teto compridos filamentos de sombra e luz. De repente, uma carreta de cabouqueiro, pesadamente carregada, que passava pela calçada do boulevard, abalou as paredes do casebre, como o rugir de uma tempestade, fazendo o estremecer de cima até baixo, e Cosette, acordada de chofre, gritou sobressaltada:

— Senhora! Eu já aqui vou, eu já aqui vou!

     E deitou-se abaixo da cama com as pálpebras meio fechadas pelo peso do sono, estendendo o braço para o recanto da parede.

— Ai! Jesus Senhor, que não encontro a vassoura! — disse ela.

     Porém, abrindo de todo os olhos, viu o rosto risonho de Jean Valjean e disse:

— Ai, é verdade! Muito bons dias, meu senhor.

     As crianças aceitam logo, e familiarmente, a alegria e a ventura, porque elas mesmo são ventura e alegria.
     Mal Cosette avistou a boneca aos pés da cama, pegou nela, fazendo, ao mesmo tempo que brincava, mil perguntas a Jean Valjean. Perguntou-lhe onde estava; se Paris era grande; se estava bem longe da Thenardier; se ela voltaria; etc., etc.
     De súbito, exclamou:

— Como isto aqui é bonito.

     Era uma suja pocilga, mas Cosette sentia-se livre.

— Quer que eu varra? — tornou ela por fim.
— Não, brinca — disse Jean Valjean.

     Assim se passou o decurso do dia. Cose e, sem lhe dar cuidado saber coisa nenhuma, era inexprimivelmente feliz entre aquela boneca e aquele velho.

continua na página 335...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - II - Ninho de um mocho e de uma cotovia
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (5b) - Explicação Indispensável

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
5.

continuando...

     “EXPLICAÇÃO INDISPENSÁVEL
Aprês moi le déluge!”

 “O príncipe esteve aqui ontem, de manhã. Entre outras coisas me persuadiu a que me mudasse para a sua vila. Eu tinha certeza de que ele insistiria sobre isso e falaria pelos cotovelos até me convencer que era ‘mais suportável morrer entre arvores e gente’, conforme sua expressão. Mas hoje já não disse ‘morrer’ e sim ‘viver’, o que no meu caso vem a dar no mesmo. Perguntei-lhe que queria dizer com aquelas ‘árvores’ e por que me amolava tanto com elas. E vim a saber, então, com grande surpresa para mim, que eu próprio dissera naquela tarde que seria capaz de vir para Pávlovsk só para olhar para as árvores pela última vez. Quando lhe disse que tanto se me dava morrer olhando para árvores como para os muros de tijolos que dão para a minha janela, não sendo, pois, preciso tanta bulha por causa de uns quinze dias, ele imediatamente concordou; mas o verde e o ar fresco, segundo ele, deveriam produzir, seguramente, uma mudança física em mim, até talvez aliviando a minha excitação e os meus sonhos. Redargui-lhe, a rir, que estava falando como um materialista. Como ele jamais mente, essas suas palavras devem valer alguma coisa.
Tem um belo sorriso; examinei-o agora. cuidadosamente. Não sei se gosto dele, ou não. Nem disponho de tempo para perder com isso. Devo observar, porém, que o ódio que senti por ele, durante cinco meses, começou a se desfazer este mês. Mas.., então, por que deixei o meu quarto? Um homem condenado à morte não deve deixar o seu canto. Talvez, quem sabe, tenha eu decidido ir a Pávlovsk para ver o príncipe, apenas? Se não fosse ter tomado, como tomei, a minha decisão final, deixando de me consumir aos poucos até ao último instante, nada me teria induzido a deixar o meu quarto e eu não aceitaria o seu convite para ir morar com ele, para morrer em Pávlovsk. Devo apressar-me a acabar esta “explicação” antes de amanhã, seja como for. Não terei, pois. tempo para relê-la, nem para emendá-la. Só a relerei amanhã, quando for mostrá-la ao príncipe e a duas ou três testemunhas que porventura encontre por lá.
Portanto, não deve haver por aqui uma só palavra falsa, tudo tem de ser a verdade última e solene. E já estou curioso para saber que impressão isto causará na hora e no minuto da sua leitura. Fiz mal em escrever, penso eu, que esta é a última e solene verdade; não vale a pena dizer mentiras por uns quinze dias, já que, de qualquer maneira, não vale a pena viver quinze dias. Esta é a prova evidente de que não quero senão escrever a verdade.
(N.B.: Não esquecer o pensamento: não estarei maluco neste instante, ou melhor, nestes minutos? Já me asseguraram, positivamente, que os tuberculosos, em seu último estágio, perdem a cabeça por tempos. Devo verificar isto amanhã, pela impressão que causar no meu auditório. Ora aí está um caso que tenho de verificar, do contrário, como agirei?)
Está me parecendo que escrevi algo terrivelmente estúpido; mas, como já disse, não tive tempo para corrigir.  
Além disso prometi a mim mesmo, de propósito, não emendar uma linha sequer deste manuscrito, mesmo se perceber que me contradigo em cada cinco linhas. O que desejo decidir depois, com a leitura de amanhã, é justamente se a sequência lógica de minhas ideias está correta; quero perceber os meus erros e por conseguinte se tudo quanto andei pensando aqui neste quarto é verdade ou delírio.
Se eu devesse deixar o meu quarto, há dois meses atrás, e tivesse dito adeus às paredes de Meyer, estou certo que teria ficado triste. Mas agora não sinto nada. Sei que vou deixar o meu quarto e aquela parede para sempre. Portanto, a minha convicção de que quinze dias não valem nada, e que não adianta sentir nem lastimar coisa alguma, se assenhoreou de toda a minha natureza e já pode ditar os meus sentimentos. Mas é isso certo? É verdade que a minha natureza já se deixou vencer? Se eu for torturado por alguém, agora, naturalmente que ainda darei gritos, vociferarei e não direi que é indiferente sofrer só porque tenho apenas duas semanas de vida. Mas, na verdade, só tenho mesmo duas semanas para viver, e não mais? 
Aquele dia, em Pávlovsk, eu menti.
E... não me disse nada, pois nunca me viu. Mas, há cerca de uma semana, me trouxeram um estudante chamado Kisloródov. Por suas convicções se trata de um materialista, de um ateu, de um niilista. E foi por isso que o mandei chamar. Eu precisava de um homem que me dissesse a verdade nua, isto é, sem cerimônia nem brandura. E foi o que ele fez, não só com desembaraço e sem preâmbulo, mas com satisfação óbvia (que excedeu ao que eu pensava). Provou me que eu tenho mais ou menos um mês de vida, talvez um pouco mais, caso as circunstâncias me sejam favoráveis, sendo porém mais provável que morra antes. Em sua opinião posso morrer subitamente, amanhã, por exemplo. Há casos assim, e antes de ontem, por exemplo, em Kolómna, uma jovem senhora tuberculosa, cujas condições eram idênticas às minhas, ia sair para ir ao mercado comprar seus mantimentos quando repentinamente se sentiu mal e caiu sobre um sofá; deu um suspiro e morreu. 
Tudo isso Kisloródov me disse sem rodeios e insensivelmente, como se me estivesse fazendo uma honra, ou melhor, como que dando-me a entender que me considerava, a mim também, um ser superior, igual a ele, imbuído do mesmo espírito de negação, e que, é claro, não se importa de morrer.
De qualquer modo o fato é verdadeiro: um mês, não mais. E estou perfeitamente convencido de que ele não se equivocou. 
Admirei muito ter o príncipe adivinhado que eu tinha ‘maus sonhos’. Expressou estas palavras sinceras: que em Pávlovsk a minha excitação e os meus sonhos se modificariam. E por que sonhos? Ou ele é um pouco doutor, ou excepcionalmente inteligente, e vê habilmente as coisas (mas o que ele é, depois de tudo quanto disse e fez, é um idiota; quanto a isso não pode haver dúvida). Antes dele entrar eu tive, e até parece coincidência, um lindo sonho (apesar de, a falar verdade, ter sempre milhares de sonhos como esse). Adormeci, creio que uma hora antes dele chegar, e sonhei que estava em um quarto que não era o meu, melhor mobiliado e mais claro. Havia um sofá, uma cômoda, um guarda-roupa e a minha cama que era grande e larga, coberta com uma colcha de seda verde. Mas no quarto deparei com um bicho asqueroso, uma espécie de monstro. Parecia um escorpião, mas não era um escorpião; era mais asqueroso e mais horripilante. Assim julguei porque não havia nada semelhante a ele na natureza e parecia ter vindo ali por encomenda, expressamente, havendo portanto, nisso, qualquer coisa de misterioso. Examinei o com muito cuidado. Era pardo, coberto com uma carapaça; tratava-se de um réptil com sete polegadas de comprido, dois dedos de espessura na cabeça, rematando em ponta na cauda, de forma que esta só tinha um sexto de polegada de largura. Quase duas polegadas para baixo da cabeça e em ângulo de quarenta e cinco graus com o corpo saíam duas pernas, uma de cada lado, do comprimento aproximado de quatro polegadas; de maneira que toda a criatura tinha a forma de um tridente, olhada de cima. Não pude verificar bem a cabeça. mas saíam dela dois fiapos duros, como bigodes, curtos, também marrom, lembrando duas agulhas fortes. Havia dois fios iguais àqueles na cauda e na extremidade de cada perna perfazendo oito, ao todo. O bicho corria pelo quarto, muito depressa, com a sua cauda e as suas pernas; e quando corria o corpo e as pernas rastejavam como serpente, com extraordinária desenvoltura, apesar da carapaça; e era horrível de ver-se. Eu estava com um medo terrível de ser mordido. Sabia que ele era venenoso, mas o que mais que tudo me aterrorizava era ignorar quem o teria posto no meu quarto, qual a intenção e qual o segredo. Meteu-se debaixo da cômoda; depois debaixo do guarda-roupa e trepou pelos cantos. Sentei-me em uma cadeira e ergui as pernas. O bicho andava à vontade pelo quarto e sumiu perto da minha cadeira. Procurei-o com terror e como estava sentado com as pernas erguidas calculei que não subisse por mim acima. De repente ouvi, atrás de mim, quase à altura da minha cabeça, um ruído, como de uma coisa que estivesse sendo raspada. Voltei me e vi que o réptil subia pela parede, já estando ao nível da minha cabeça e tocando o meu cabelo com a cauda que se virava e enrolava com extraordinária rapidez. Dei um pulo e o bicho desapareceu. Fiquei com medo de ir para a cama, durante a noite, pois podia ser que ele se insinuasse debaixo do travesseiro. Minha mãe entrou no quarto com um conhecido dela e tentou pegar o bicho. Eles estavam muito mais calmos do que eu poderia estar, sem medo absolutamente. E não perceberam o meu pavor. O réptil recomeçou a rastejar. O demoniozinho queria alguma coisa! E correu desta vez do quarto para a porta, rastejando de modo mais revoltante ainda. Então minha mãe abriu a porta e chamou Norma, a nossa cachorra felpuda terra-nova (que já morreu há mais de cinco anos). Arremessou-se ela para o quarto e estacou diante do réptil. O bicho parou também, mas ainda se contorcendo; e raspava o chão com as patas e a cauda. Os animais não sentem terror pelo mistério, a não ser que eu esteja enganado. Mas naquele momento me pareceu que havia um terror extraordinário em Norma. Um terror deprimente, como se a cadela também tivesse notado que ali estava algo de poderoso e estranho. Começou a recuar aos poucos, diante do réptil que deu em rastejar também vagarosamente para ela, querendo decerto pegá-la para a picar. Apesar de apavorada, Norma olhava para aquilo com fúria, embora tremendo. De repente abriu com certo jeito os dentes, mostrando as tremendas mandíbulas vermelhas, agachou-se, preparada para o salto, e subitamente pegou o bicho com os dentes. O réptil lutou para se livrar e Norma outra vez o agarrou quando já escapulia, duas vezes prendendo-o todo nas mandíbulas, parecendo engoli-lo enquanto dava safanões, moendo a carapaça entre os dentes, com as pernas e a cauda dependuradas para fora da bocarra. E como aquilo ainda assim se mexia horrípilantemente! Nisto Norma deu um grito agudo e lancinante. O animal conseguira picar-lhe a língua. Ganindo e latindo, abriu a boca, por causa da dor, e eu vi o bicho, apesar de cortado em dois, ainda mexer lá dentro, lançando do seu corpo esmagado uma porção de um fluido branco como o que sai quando se esmaga uma barata... Nisto acordei e o príncipe chegou.”  

- Senhores - disse Ippolít, interrompendo inesperadamente a leitura e parecendo envergonhado, quase -, não tive tempo de reler isto e acho que escrevi demais, muita coisa até sem necessidade. Este sonho, por exemplo...
- De pleno acordo - apressou-se Gánia em concordar. 
- Há aqui muita coisa demasiado pessoal, devo confessar. Isto é. quase que só falo de mim. 

     E dizendo isso, Ippolít fez um ar de enfado e de cansaço, limpando o suor da fronte com um lenço.
 
O Idiota: Terceira Parte (5b) - Explicação Indispensável
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