O CORTIÇOAluísio AzevedoXI .
A Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo e tentou incendiar o
cortiço.
Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ela, com todo o disfarce, carregava palha e
sarrafos para o número 12 e preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as
consequências foram do mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como
aquela ao fogo, não escaparam à devastação da polícia. Algumas ficaram completamente assoladas.
E a coisa seria ainda mais feia, se não viera o providencial aguaceiro apagar também o outro
incêndio ainda pior, que, de parte a parte, lavrava nos ânimos. A polícia retirou-se sem levar nenhum
preso. “A ir um iriam todos à estação! Deus te livre! Demais, para quê? o que ela queria fazer, fez!
Estava satisfeita!”
Apesar do empenho do João Romão, ninguém conseguiu descobrir o autor da sinistra tentativa, e só
muito tarde cada qual cuidou de pregar olho, depois de reacomodar, entre plangentes lamentações, o
que se salvou do destroço. O tempo levantou de novo à meia-noite. Ao romper da aurora já muita
gente estava de pé e o vendeiro passava uma revista minuciosa no pátio, avaliando e carpindo,
inconsolável e furioso, o seu prejuízo. De vez em quando soltava uma praga. Além do que
escangalharam os urbanos dentro das casas, havia muita tina partida, muito jirau quebrado, lampiões
em fanicos, hortas e cercas arrasadas; o portão da frente e a tabuleta foram reduzidos a lenha. João
Romão meditava, para cobrir o dano, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem,
aumentando-lhes o aluguel dos cômodos e o preço dos gêneros. Viu-se numa dobadoura durante o
dia inteiro; desde pela manhã dera logo as providências para que tudo voltasse aos seus eixos o mais
depressa possível: mandou buscar novas tinas; fabricar novos jiraus e consertar os quebrados; pôs
gente a remendar o portão e a tabuleta. Ao meio-dia teve de comparecer à presença do subdelegado
na secretaria da polícia. Foi mesmo em mangas de camisa e sem meias; muitos do cortiço o
acompanharam, quer por espírito de camaradagem, quer por simples curiosidade.
Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! Parecia uma romaria; algumas mulheres levaram os
seus pequenitos ao colo; um magote de italianos ia à frente, macarroneando, a fumar cachimbo;
alguns cantavam. Ninguém tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande
troça, comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção
das ruas por onde desfilava a ruidosa farândola.
A sala da polícia encheu-se.
O interrogatório, exclusivamente dirigido a João Romão, era respondido por todos a um só tempo, a
despeito dos protestos e das ameaças da autoridade, que se viu tonta. Nenhum deles nada esclarecia e
todos se queixavam da polícia, exagerando as perdas recebidas na véspera.
A respeito de como se travara o conflito e quem o provocara, o taverneiro declarou que nada podia
saber ao certo, porque na ocasião se achava ausente da estalagem. De que tinha certeza era de que as
praças lhe invadiram a propriedade e puseram em cacos tudo o que encontraram, como se aquilo lá
fosse roupa de francês!
- Bem feito! bradou o subdelegado. Não resistissem!
Um coro de respostas assanhadas levantou-se para justificar a resistência. “Ah! Estavam mais que
fartos de ver o que pintavam os morcegos, quando lhes não saia alguém pela frente! Esbodegavam
até à última, só pelo gostinho de fazer mal! Pois então uma criatura, porque estava a divertir-se um
bocado com os amigos, havia de ser aperreada que nem boi ladrão?... Tinha lá jeito? Os rolos era
sempre a polícia quem os levantava com as suas fúrias! Não se metesse ela na vida de quem vivia
sossegado no seu canto, e não seria tanto barulho!...” Como de costume, o espírito de coletividade,
que unia aquela gente em circulo de ferro, impediu que transpirasse o menor vislumbre de denúncia.
O subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a um por um, despachou o bando, que fez logo a sua
retirada, no meio de uma alacridade mais quente ainda que a da ida.
Lá no cortiço, de portas adentro, podiam esfaquear-se à vontade, que nenhum deles, e muito menos a
vitima, seria capaz de apontar o criminoso; tanto que o médico, que, logo depois da invasão da
polícia, desceu da casa do Miranda à estalagem, para socorrer Jerônimo, não conseguiu arrancar
deste o menor esclarecimento sobre o motivo da navalhada. “Não fora nada!... Não fora de
propósito!... Estavam a brincar e sucedera aquilo!... Ninguém tivera a menor intenção de fazer-lhe
mossa!...”
Rita mostrou-se de uma incansável solicitude para com o ferido. Foi ela quem correu a buscar os
remédios, quem serviu de ajudante ao medico e quem serviu de enfermeira ao doente. Muitos lá iam,
demorando-se um instante, para dar fé; ela, porém, desde que Jerônimo se achou operado, não lhe
abandonou a cabeceira; ao passo que Piedade, aflita e atarantada, não fazia senão chorar e arreliar-se.
A mulata, essa não chorava; mas a sua fisionomia tinha uma profunda expressão de mágoa
enternecida. Agora toda ela se sentia apegar-se àquele homem bom e forte; àquele gigante
inofensivo, àquele Hércules tranquilo que mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na sua boa-fé, se deixara navalhar pelo facínora. “E tudo por causa dela! só por ela!” Seu coração de mulher
rendia-se cativo a semelhante dedicação ensanguentada e dolorosa. E ele, o mísero, interrompia as
contrações do rosto para sorrir defronte dos olhos enamorados da baiana, feliz naquela desgraça que
lhe permitia gozar dos seus carinhos. E tomava-lhe as mãos, e cingia-lhe a cintura, resignado e
comovido, sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor silenciosa e quieta de
animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente.
Rita afagava-o, já sem a menor sombra de escrúpulo, tratando-o por tu, ameigando-lhe os cabelos
sujos de sangue com a polpa macia da sua mão feminil. E ali mesmo em presença da mulher dele só
faltava beijá-lo com a boca, que com os olhos o devorava de beijos ardentes e sequiosos.
Depois da meia-noite dada, ela e Piedade ficaram sozinhas velando o enfermo. Deliberou-se que este
iria pela manhã para a Ordem de Santo Antônio, de que era irmão. E, com efeito, no dia imediato,
enquanto o vendeiro e seu bando andavam lá às voltas com a polícia, e o resto do cortiço formigava,
tagarelando em volta do conserto das tinas e jiraus, Jerônimo, ao lado da mulher e da Rita, seguia
dentro de um carro para o hospital.
As duas só voltaram de lá à noite, caindo de fadiga. De resto, toda a estalagem estava igualmente
prostrada e morrendo pela cama, se bem que nesse dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho;
as que tinham roupa com mais pressa foram lavar fora ou arrastaram bacias de banho para debaixo
das bicas, à falta de melhor vasilha para o serviço. Discutiu-se a campanha da véspera sem variar o
assunto. Aqui era um que lembrava as suas proezas com os urbanos, descrevendo entusiasmado os
pormenores da luta; ali, outro repetia, cheio de empáfia, os desaforos que dissera depois nas
bochechas da autoridade; mais adiante trocavam-se queixas e recriminações; cada qual, mulheres e
homens, sofrera o seu prejuízo ou a sua arranhadura, e mostravam entre si, numa febre de
indignação, os objetos partidos ou a parte do corpo escoriada.
Mas às nove da noite já não havia viva alma no pátio da estalagem. A venda fechou-se um pouco
mais cedo que de costume. Bertoleza atirou-se ao colchão, estrompada; João Romão recolheu-se
junto dela, porem não conseguiu dormir: sentia calafrios e pontadas na cabeça. Chamou pela amiga,
a gemer, e pediu-lhe que lhe desse alguma coisa para suar. Supunha estar com febre.
A crioula só descansou quando, muitas horas adiante, depois de mudar-lhe a roupa, o viu pegar no
sono; e daí a pouco, às quatro da madrugada, erguia-se ela, com estalos de juntas, a bocejar,
fungando no seu estremunhamento pesadão, e pigarreando forte. Acordou o caixeiro para ir ao
mercado; gargarejou um pouco da água à torneira da cozinha e foi fazer fogo para o café dos
trabalhadores, riscando fósforos e acendendo cavacos num fogareiro, donde começaram a borbotar
grossos novelos de fumo espesso.
Lá fora clareava já, e a vida renascia no cortiço. A luta de todos os dias continuava, como se não
houvera interrupção. Principiava o burburinho. Aquela noite bem dormida punha-os a todos de bom
humor.
Pombinha, entretanto, nessa manhã acordara abatida e nervosa, sem animo de sair dos lençóis. Pediu
café à mãe, bebeu, e tornou a abraçar-se nos travesseiros, escondendo o rosto.
- Não te sentes melhor hoje, minha filha?... perguntou-lhe Dona Isabel, apalpando-lhe a testa. Febre
não tens.
- Ainda sinto o corpo mole... mas não é nada... isto passa!...
- Foi de tanto gelo, que tomaste em casa de madama!... Não te dizia?... Agora, o melhor é dar-te um
escalda-pés!...
- Não, não, por amor de Deus! Daqui a pouco estou em pé!
Às oito horas, com efeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o alinho da cabeça, defronte do seu
modesto lavatório de ferro. Dir-se-ia sem forças para a menor coisa; toda ela transpirava uma
contemplativa melancolia de convalescente; havia uma doce expressão dolorosa na limpidez
cristalina de seus olhos de moça enferma; um pobre sorriso pálido a entreabrir-lhe as pétalas da boca,
sem lhe alegrar os lábios, que pareciam ressequidos à mingua de beijos de amor; assim delicada
planta murcha, languesce e morre, se carinhosa borboleta não vai sacudir sobre ela as asas prenhes
de fecundo e dourado pólen.
O passeio à casa de Léonie fizera-lhe muito mal. Trouxe de lá impressões de íntimos vexames, que
nunca mais se apagariam por toda a sua vida.
A cocote recebeu-a de braços abertos, radiante com apanhá-la junto de si, naqueles divãs fofos e
traidores, entre todo aquele luxo extravagante e requintado próprio para os vícios grandes. Ordenou à
criada que não deixasse entrar ninguém, ninguém, nem mesmo o Bebê, e assentou-se ao lado da
menina, bem juntinho uma da outra, tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade de perguntas,
e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados.
Dona Isabel suspirava também, mas de outro modo: na sua parva compreensão do conforto, aqueles
impertinentes espelhos, aqueles móveis casquilhos e aquelas cortinas escandalosas arrancavam-lhe
saudosas recordações do bom tempo e avivavam a sua impaciência por melhor futuro.
Ai! assim Deus quisesse ajudá-la!...
Às duas da tarde, Léonie, por sua própria mão serviu às visitas um pequeno lanche de foie-gras,
presunto e queijo, acompanhado de champanha, gelo e água de Seltz; e, sem se descuidar um
instante da rapariga, tinha para ela extremas solicitudes de namorado; levava-lhe a comida à boca,
bebia do seu copo, apertava-lhe os dedos por debaixo da mesa.
Depois da refeição, Dona Isabel, que não estava habituada a tomar vinho, sentiu vontade de
descansar o corpo; Léonie franqueou-lhe um bom quarto, com boa cama, e, mal percebeu que a velha
dormia, fechou a porta pelo lado de fora, para melhor ficar em liberdade com a pequena.
Bem! Agora estavam perfeitamente a sós!
- Vem cá, minha flor!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair sobre um divã. Sabes? Eu
te quero cada vez mais!... Estou louca por ti!
E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a menina, enchendo-a de
espanto e de um instintivo temor, cuja origem a pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber
qual era.
A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a mão.
- Descansemos nós também um pouco... propôs, arrastando-a para a alcova.
Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda perplexa, com vontade de afastar-se, mas sem animo de protestar, por acanhamento, tentou reatar o fio da conversa, que elas
sustentavam um pouco antes, à mesa, em presença de Dona Isabel. Léonie fingia prestar-lhe atenção
e nada mais fazia do que afagar-lhe a cintura, as coxas e o colo. Depois, como que distraidamente,
começou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.
- Não! Para quê!... Não quero despir-me...
- Mas faz tanto calor... Põe-te a gosto...
- Estou bem assim. Não quero!
- Que tolice a tua...! Não vês que sou mulher, tolinha?... De que tens medo?... Olha! Vou dar
exemplo!
E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha.
A menina, vendo-se descomposta, cruzou os braços sobre o seio, vermelha de pudor.
- Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila trêmula.
E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta, e
precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo bico do
peito.
- Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se em cócegas, e deixando ver
preciosidades de nudez fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta.
- Que mal faz?... Estamos brincando...
- Não! Não! balbuciou a vitima, repelindo-a.
- Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo em
contato com o dela todo o seu corpo nu.
Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre seu
mesquinho peito de donzela impúbere e o rogar vertiginoso daqueles cabelos ásperos e crespos nas
estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do sangue,
desertando-lhe a razão ao rebate dos sentidos.
Continua página 71...
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Leia também:
O Cortiço - XI: A Bruxa
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.