terça-feira, 15 de outubro de 2024

Histórias da Meia-Noite: Ponto de vista (XXII)

Ponto de vista

Machado de Assis

Conto

PONTO DE VISTA

 

Capítulo XXII
D. RAQUEL A D. LUÍSA

Corte, 30 de março


     Esquecer-me de você? Está louca! Onde acharia eu melhor amiga nem tão boa? Não tenho escrito, é verdade, por mil razões, a qual mais justa, sendo a principal delas, ou antes a que as resume todas, uma razão... Não sei como lhe diga isto.
     Amor?
     Ah! Luísa, o mais puro e ardente que pode imaginar, e o mais inesperado também. Aquela devaneadora que você conhece, a que vive nas nuvens, viu lá mesmo das nuvens o esperado do seu coração, tal qual o sonhara um dia e desesperara de achar jamais.
     Não lhe posso dizer mais nada, não sei. Tudo o que eu poderia escrever aqui estaria abaixo da realidade. Mas venha, venha, e talvez leia no meu rosto a felicidade que experimento, e no dele o sinal característico daquela superioridade que eu ambicionei sempre e tão rara é na terra.
     Enfim, sou feliz!

RAQUEL

continua na página 101...
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Histórias da Meia-Noite: Ponto de vista (XXI)

Ponto de vista

Machado de Assis

Conto

PONTO DE VISTA

 

Capítulo XXI
À MESMA

Juiz de Fora, 24 de março


     Nada até hoje! Que é isso, Raquel?
     O portador da minha carta anterior mandou-me dizer que lhe havia entregue em mão própria; não estava doente; por que razão este esquecimento? Esta é a última; se me não escrever, acreditarei que outra amiga lhe merece mais, e que você esqueceu a confidente do colégio.

LUÍSA

continua na página 101...
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873 

João Ubaldo Ribeiro - Política: Sistemas Eleitorais(2)

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 


João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


13
Sistemas Eleitorais

continuando...

     A existência de distritos se presta também a muitas manipulações, pelo menos uma das quais deve ser sublinhada. Imaginemos que, num determinado país, os trabalhadores votem maciçamente no partido A e os agricultores no partido B. Vamos supor também que haja dois distritos contíguos, num dos quais o partido A ganhe por margem folgada e no outro perca por uma margem muito pequena. Se o partido A estiver no poder, ele pode manipular as coisas (dando uma das desculpas “técnicas” possíveis), trocando um pedaço do território do distrito “seguro” onde morem trabalhadores (votos certos para ele) por um pedaço do distrito “inseguro” onde morem agricultores. Basta rearranjar os limites geográficos com alguma imaginação e fazer as contas certas, que o partido A, em vez de ganhar num só distrito, como antes, passa a ganhar nos dois. No primeiro, dispensa apenas um pouco da “folga”, que não chega a ser coberta pelo ingresso dos agricultores, cuja saída de seu distrito original retira a pequena vantagem que lá possuía o distrito B, assim como, com a troca, ainda chegam mais votos para o partido A. Isto não é tão complicado quanto pode parecer e é também um dos aspectos mais interessantes do sistema majoritário por distritos.
     Na França, o presidente Charles de Gaulle promoveu, em 1958, a divisão do país em distritos, arranjados de forma tal que seu partido aumentou a votação de 4% em 1956 para 20,5% em 1958, enquanto os partidos de esquerda caíram de 56,3% em 1956 para 16,6% em 1958. Aliás, na França, pluripartidária, vigora uma variante do sistema majoritário conhecida como “de dois turnos”. Através desse sistema os candidatos precisam obter maioria absoluta (metade mais um) de todos os votos dados. Se nenhum dos candidatos obtiver essa maioria, faz-se um segundo turno, para o qual concorrem somente os dois primeiros colocados no turno anterior.
     Isto é visto como um aperfeiçoamento em relação ao sistema majoritário simples, porque não bloqueia a existência de terceiros (ou quartos, ou quintos) partidos, sendo, portanto, mais sensível ao perfil do eleitorado e mais flexível diante das alterações nas circunstâncias políticas. Contudo, não deixa de criar problemas especiais. Um deles é que, sob sua influência, os partidos políticos tendem a convergir, ideológica ou programaticamente.
     Em primeiro lugar, isto se deve a que a possibilidade de participação no segundo turno faz com que nenhum partido deseje alienar excessivamente os eleitores dos outros partidos. Afinal, os votos desses eleitores vão ser necessários, caso seus partidos não concorram ao segundo turno. Há, portanto, uma espécie de aproximação em direção ao centro, uma espécie de repúdio a posições que poderiam ser consideradas extremas ou radicais.
     Em segundo lugar — e paralelamente —, é comum que sejam necessárias concessões e alianças com os partidos que “sobraram” no primeiro turno. É como se um partido que sobrou dissesse a um dos dois que vão disputar o segundo turno: “Olhe, eu não posso mais eleger meu candidato, mas ainda tenho votos, que são muito importantes. Se você me prometer tal e tal coisa, meus votos vão para você, caso contrário vão para o outro.”
     E, por fim, a tendência centrista é efetivamente reforçada pelo sistema, como podemos ver num raciocínio simplificado, mas indicativo do que pode acontecer. Supondo que haja um partido de esquerda, um de direita e um de centro, e o de direita “sobre”, o que acontece? No segundo turno os eleitores da direita vão preferir votar no centro (para eles, o menos ruim) do que na esquerda. Se sobrar o partido da esquerda, a mesma coisa acontece, invertida. Já aí, o centro conta com duas chances contra uma. Se, por outro lado, sobrar o centro, é claro que ambas as outras correntes vão procurar aproximar-se dele (como, de certa forma, procuravam antes, só que sem a necessidade de concessões e alianças), para ganhar seus eleitores. O sistema de dois turnos introduz, assim, uma espécie de distorção embutida no processo político, um propositado favorecimento do centro, que pode ser muito útil para o Estado e para a obtenção de consensos, mas permanece, não obstante, uma distorção.
     Os problemas relacionados com a representação das minorias, que, como vimos, podem ser bastante agudos sob qualquer tipo de sistema majoritário, levaram à elaboração de novos esquemas, destinados a superá-los. Foi esta a razão, acrescida à extensão dos limites do sufrágio universal, para o surgimento da representação proporcional, sistema muito conhecido dos brasileiros, pois a eleição de deputados (federais e estaduais) e vereadores é feita através dele.
     No sistema de voto proporcional, cada partido apresenta sua relação de candidatos e os eleitores ou votam em um candidato ou simplesmente no partido de sua escolha, o chamado “voto de legenda”. Existem três tipos de voto proporcional:

a) por listas inteiramente abertas, como é o caso do Brasil, em que os eleitores votam no candidato ou no partido;
b) por listas fechadas, em que os partidos apresentam uma lista de candidatos, e o eleitor vota nesta ou naquela lista partidária. Ou seja, só existe voto de legenda; os candidatos serão eleitos por ordem de apresentação na lista, e
c) a lista sem livre, em que o eleitor pode compor sua própria lista, retirando nomes de várias listas partidárias diferentes.

     Vamos ver agora como se processa uma eleição sob o voto proporcional. Em primeiro lugar, é preciso conhecer os conceitos de quociente eleitoral e de número fixo, essenciais para o funcionamento do sistema: são expressões que designam o número necessário de votos para eleger um deputado. Por exemplo, no país X, a legislação pode fixar este número em, vamos dizer, 10 mil. Assim, se o partido A tiver 150 mil votos, elegerá 15 deputados, por ordem de votação. Este é o caminho para entendermos os tais votos de legenda. Se, por uma hipótese absurda, o candidato mais votado do partido tiver 140 mil e os restantes 10 mil forem divididos pelos outros candidatos do mesmo partido, o primeiro só vai precisar de 10 mil para sua eleição. Os votos restantes passarão para os candidatos seguintes, por ordem de votação. É por isso que se diz, no Brasil, que um candidato muito votado é um puxador de votos para a legenda.
     No entanto, o Brasil utiliza um sistema ligeiramente diferente do número fixo, que é o do quociente eleitoral, que leva em conta as variações do número de habitantes e votantes do país, em cada eleição. Para se calcular o quociente eleitoral, é indispensável, em primeiro lugar, que saibamos a quantos habitantes “equivale” um deputado. Por exemplo, a lei pode estabelecer que, para cada 100 mil habitantes, haverá um deputado. Assim, numa federação como a nossa, o estado-membro que abrigue uma população de um milhão de habitantes terá direito a eleger dez deputados — ou seja, tem dez vagas a preencher na Câmara dos Deputados.
     Procede-se então à eleição. Apurados os votos válidos (que, no caso brasileiro, são os votos dados a candidatos individuais, mais os dados só ao partido; ficam de fora brancos e nulos), divide-se esse número de votos pelo número de vagas. O resultado é o quociente eleitoral. Tantas vezes esteja o quociente eleitoral contido na votação de cada partido, tantos deputados ele elege — até o limite de vagas, é claro.
     E, por fim, para concluir os cálculos, divide-se o número de votos que cada partido obteve (valendo, é claro, os votos dados diretamente a seus candidatos e os votos dados somente à legenda) pelo quociente eleitoral. O resultado dessa operação recebe o nome de quociente partidário e vai indicar o número de deputados que o partido elegerá inicialmente, também por ordem de votação. Por exemplo, no caso imaginado, o partido teve 120 mil votos, e o quociente eleitoral foi de 3 mil votos, o quociente partidário é igual a 4 e, portanto, os quatro primeiros votados desse partido já estão eleitos.
     A mesma operação é feita em relação aos votos obtidos por cada um dos partidos que concorreram, excetuando-se, é claro, aqueles que por acaso não tenham chegado a alcançar o quociente eleitoral. Devemos, por outro lado, tornar a observar que não é necessário, para que um candidato se eleja, que sua votação individual alcance o quociente eleitoral. Na verdade, pode até ser muito inferior, a depender dos votos da legenda.
     Vamos imaginar outro exemplo exagerado: o candidato W teve 70 mil votos, o X 22 mil, o Y 2.998 e o Z apenas 2 (os tradicionais “dele e da mulher dele”). A soma é 95 mil, e Y e Z se elegem, arrastados pelos outros. Vê-se que somente W teve um número de votos superior ao quociente eleitoral, que vamos fixar hipoteticamente em 22 mil votos; as sobras passaram para os candidatos seguintes.
     Contudo, na vida real os números nunca são tão certinhos assim, e há sempre, na prática, sobras, ou seja, vagas não preenchidas e votos não usados, seja pelos partidos que não alcançaram o quociente eleitoral para eleger um deputado sequer, seja pelos partidos que conseguiram alcançar o quociente e elegeram alguns deputados. Para resolver isso, faz-se o cálculo das sobras, segundo várias fórmulas possíveis. No Brasil, a fórmula empregada chama-se “das maiores médias” e favorece um pouco os partidos majoritários, porque o que se faz é dividir o número de votos obtidos por cada legenda pelo número de cadeiras (vagas preenchidas) obtidas na primeira operação, mais um. O partido que obtiver maior resultado nessa divisão leva a próxima vaga, e assim sucessivamente, até que todas as vagas se preencham. Há outros métodos, mas para nós é suficiente que compreendamos o que foi explicado acima, porque assim ficamos sabendo o essencial sobre o funcionamento da representação proporcional.
     Existem, entretanto, alguns aspectos que devem ainda ser tocados, mesmo que rapidamente. Em primeiro lugar, como o voto proporcional foi criado tendo-se em mente facilitar a representação das minorias, isto de fato acontece. A conseqüência é a propensão para que se forme um grande número de partidos — e partidos que não apresentam aquela vocação centrista vista no sistema majoritário de dois turnos. Isto, a depender do ponto de vista que se tome, exibe facetas interessantes. Uma delas é a de que as tendências políticas básicas (vamos dizer, esquerda e direita) ficam com suas facções internas mais intransigentes, menos dispostas a fazer concessões. Se a representação proporcional, como acontece com outros sistemas, forçasse, em benefício de resultados eleitorais, a aglutinação dessas tendências num só ou em poucos partidos, as divergências permaneceriam no âmbito interno desses partidos. Como, entretanto, acontece o contrário, essas correntes divergentes tendem a originar novos partidos, pois o sistema eleitoral lhes dá uma boa chance de obter votos suficientes para eleger alguns representantes.
     Ou seja, o que acontece com a utilização do voto proporcional é que as facções e divisões das tendências básicas terminam por encontrar oportunidades concretas de constituir seus próprios partidos — o que, como se pode imaginar, torna muito complexo o panorama político, a começar pelo fato de que fica muito mais difícil que um só partido consiga uma sólida maioria parlamentar.
     Por outro lado, esta característica do voto proporcional — a de fazer proliferar partidos numerosos e independentes entre si — gera às vezes situações curiosas. No Brasil, por exemplo, depois de 64, os antigos partidos foram extintos, passando a haver somente dois, mas o sistema eleitoral não foi alterado, declarando-se de certa forma uma contradição entre o sistema eleitoral e o sistema de partidos. O sistema bipartidário casa melhor com um sistema eleitoral de escrutínio majoritário (distrital), enquanto um sistema pluripartidário casa melhor com a representação proporcional. Daí o surgimento das sublegendas, nada mais do que os antigos partidos disfarçados sob siglas abrangentes, porque forçados pelo sistema imposto. Assim, um dos primeiros passos para a redemocratização foi a volta ao sistema pluripartidário, que o Brasil adota até hoje.
     A partir de suas experiências nacionais, os vários países começaram a introduzir alterações no sistema eleitoral, com o objetivo de atenuar seus efeitos distorsivos na representação e, portanto, no próprio sistema político, adotando sistemas eleitorais derivados. As principais alterações introduzidas no sistema proporcional têm por objetivo reforçar a estabilidade das maiorias governamentais. Este processo denomina-se fabricação de maiorias. Independentemente do sistema partidário que se esteja analisando, a lei eleitoral sempre beneficia os grandes partidos.
     Uma das formas utilizadas para reforçar as maiorias diz respeito ao mecanismo de distribuição das sobras eleitorais, que passam a ser atribuídas ao partido (ou coligação) que obteve o maior número de votos. Aliás, o Brasil adotou este mecanismo até 1950. Mas a lei eleitoral votada naquele ano e repetida, neste particular, até hoje, modificou o mecanismo, passando a adotar o princípio das maiores médias.
     Uma segunda possibilidade de correção das distorções provocadas pelo sistema eleitoral é a votação mínima, também chamada de cláusula de exclusão. Exige-se que o partido tenha obtido, no mínimo, 5 ou 10% dos votos em todo o território nacional, para que sua representação seja reconhecida no Parlamento. Portanto, mais uma vez são contemplados os maiores partidos.
     A terceira possibilidade adota o sistema de lista incompleta: a lista partidária que obteve maioria simples leva 2/3 das cadeiras. O outro terço vai para a segunda lista mais votada. Esta é a forma adotada na Argentina (criando, portanto, um bipartidarismo “de fato”).
     Entre os sistemas eleitorais mistos, o mais famoso é o adotado na Alemanha, onde 50% do Bundestag (Parlamento) é eleito pelo voto distrital em colégios uninominais por maioria absoluta (portanto, em dois turnos, porque a Alemanha é pluripartidária) e os outros 50% em eleição proporcional, com listas partidárias fechadas. Portanto o eleitor vota duas vezes, uma no candidato (distrital) e a outra na lista partidária. Dependendo do número de votos obtidos na eleição proporcional, o partido conquista quocientes eleitorais para eleger um determinado número de representantes. Deduzidos aqueles eleitos nos distritos, o restante das vagas é ocupado pelos primeiros colocados na lista partidária. As sobras são distribuídas aos partidos que, nos distritos uninominais, tiveram seus candidatos eleitos.
     O número de deputados obtidos com as sobras partidárias é retirado dos lugares seguintes na lista partidária. Dessa forma, o número total de deputados do Bundestag varia ligeiramente de eleição para eleição. Além disso, os partidos têm de obter no mínimo 5% dos votos no total nacional ou eleger pelo menos três deputados distritais para poderem ter representação no Bundestag.
     Abaixo apresentamos uma pequena tabela, listando alguns países do mundo e seus sistemas eleitorais e partidários, para você ter uma ideia de quão múltiplas são as opções.

Sistemas Eleitorais e Sistemas Partidários 

Partidos

Países

Sistema eleitoral

2

Estados Unidos

majoritário

 

Reino Unido

majoritário

 

Nova Zelândia

majoritário/misto

 

Bahamas

majoritário

 

Congo

proporcional

 

Costa do Marfim

proporcional

 

3-5

Austrália

majoritário

 

Canadá

majoritário

 

Japão

majoritário/misto

 

Áustria

proporcional

 

El Salvador

proporcional

 

Honduras

proporcional

 

Indonésia

proporcional

 

Suécia

proporcional

 

Egito

misto

 

Espanha

majoritário/ proporcional

 

Alemanha

majoritário/ proporcional/misto

 

6 - 10

Costa Rica

proporcional

 

Guatemala

proporcional

 

Luxemburgo

proporcional

 

Rep. Dominicana

proporcional

 

Islândia

misto

 

Grécia

majoritário/ proporcional

 

Itália

majoritário/ proporcional/misto

 

Noruega

majoritário/ proporcional

 

França

majoritário/ proporcional

 

Suíça

majoritário/ proporcional

 

+ 10

Argentina

proporcional

 

Bolívia

proporcional

 

Chile

proporcional

 

Equador

proporcional

 

Finlândia

proporcional

 

Índia

majoritário

 

Rep. da Irlanda

proporcional

 

Bélgica

majoritário/ proporcional

 

Holanda

majoritário/ proporcional

 

Brasil

majoritário/ proporcional



1 Consiga os dados sobre a votação nas últimas eleições para deputados estaduais no seu estado (você também terá que dispor dos elementos para o cálculo do quociente eleitoral) e faça você mesmo as contas para ver quem terminou sendo eleito. Qualquer maquininha de calcular quebra o galho.

2 “O sistema da representação proporcional é bom, inclusive porque possibilita que um candidato ‘intelectual’, que não tem penetração popular, seja eleito pela força da legenda, o que beneficia o partido e o povo.” Comente.

3 Na sua opinião, qual seria a maneira mais fácil de obter um governo eficiente para um clube, um grêmio, uma associação de moradores ou semelhante (preferivelmente uma associação de que você participe ou possa participar): fazer a eleição por listas fechadas ou abertas? Pense nos “governantes” e nos “governados”, tentando assumir ambos os pontos de vista em sua análise. 

4 Que é que você acha da utilização do sistema majoritário uninominal (voto distrital) para a eleição de deputados no Brasil, em substituição ao sistema atualmente usado, que é a representação proporcional?

5 No Brasil, tanto senadores quanto deputados são eleitos pelo voto direto, mas os primeiros pelo sistema majoritário e os últimos pelo sistema proporcional. Há um número fixo de senadores por estado-membro e um número variável de deputados, de acordo com a população. Experimente comentar as implicações práticas disto, usando lógica e imaginação. 

6 Você é capaz de melhorar o sistema eleitoral brasileiro? Faça o seu projeto. 

7 Uma das consequências do sistema majoritário (distrital) é que os deputados ficam “presos” aos seus distritos. Ou seja, não adianta eles serem bem-vistos pelo resto do estado, se não ficarem bem com os eleitores de seu distrito — porque, do contrário, perdem as eleições. Isto é bom ou mau?  

8 Um deputado deve representar as pessoas ou as ideias? 

9 No Brasil ainda existem muitos currais eleitorais e muitos eleitores “de cabresto”, principalmente nas áreas rurais. Levando isto em consideração, comente as implicações da implantação de um sistema majoritário (distrital) ou mesmo misto, em comparação com a representação proporcional.

10 O sistema de número fixo é melhor que o sistema de quociente eleitoral?

11 Neste capítulo foi dito que a maneira de aproveitar as sobras, no sistema eleitoral brasileiro, favorece os partidos majoritários. Você concorda ou discorda?

12 “Este país”, diz um grande político a respeito do país dele, “é um exemplo eloquente de distorção eleitoral. Por que, em verdade vos digo, senhores, a composição do Parlamento não reflete a composição da sociedade, pois nele as verdadeiras tendências do povo não estão representadas!” Invente um contexto em que esse político tenha ou não razão. 

continua na página 107...

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Leia também:

João Ubaldo Ribeiro - Política: Sistemas Eleitorais(2)
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João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".
João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.
João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.
Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
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Equipe de Produção
Regina Marques
Leila Name
Michelle Chao
Sofia Sousa
e Silva Marcio Araujo
Revisão
Angela Nogueira Pessôa
CIP-Brasil.
Catalogação-na-fonte S
indicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Quarta expedição: III - Carga de baionetas excepcional

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



Quarta expedição 


III - 

Carga de baionetas excepcional 

     Os jagunços eram duzentos ou eram dois mil. Nunca se lhes soube, ao certo, o número. Na frente dos expedicionários o enigmático da campanha se antolhava mais uma vez, destinando-se a ficar para sempre indecifrável. Tolhendo-se-lhes deste modo o passo, só restavam decisões extremas: ou recuarem lentamente, lutando, até se subtraírem ao alcance das balas; ou contornarem o trecho inabordável, buscando um atalho mais acessível, em movimento envolvente aventuroso, de flanco, o que redundaria em desbarate inevitável; ou arremeterem em cheio com os outeiros, conquistando-os. O último alvitre era o mais heroico e o mais simples. Sugeriu-o o coronel Carlos Teles. O general Savaget adotou-o. Conforme confessa em documento oficial onde define, com lastimável desquerer, o adversário temível que o fizera parar, não podia admitir "que duas ou três centenas de bandidos sustivessem a marcha da segunda coluna por tanto tempo". E, como empenhara na ação pouco mais de um terço das tropas, esta circunstância salvou-o, tornando factível uma manobra arrojada, certo irrealizável se todos os batalhões, num arremesso único se tivessem embaralhado desde o começo às duas entradas do desfiladeiro.  
     Planeou-a: "A 5.ª Brigada, que se mantinha desde o princípio nas suas posições por entre as caatingas, devia carregar pelo flanco esquerdo e pelo leito do rio, a fim de desalojar o inimigo dos cerros centrais e outeiros, que ficam desse lado, e a 4.ª pelo flanco direito devendo, antes, desenvolver-se em linha, ao sair da estrada para a várzea."
     O esquadrão de lanceiros, entre ambas, carregaria pelo centro. A 6.ª Brigada não compartiria o combate, permanecendo à retaguarda em reforço, e garantindo os comboios.
     Assim os cinco batalhões destinados à investida se dispunham na ordem perpendicular reforçada numa das alas, a da esquerda, onde os corpos avançados do coronel Serra Martins formavam em colunas sucessivas, enquanto, quatrocentos metros atrás e para a direita, se desdobrava, em linha, a Brigada Teles, tendo no flanco esquerdo o esquadrão de lanceiros.
     O conjunto da formatura projetava-se na superfície do nível da várzea com a forma exata de um desmedido martelo.
     E a carga, que logo depois se executou — episódio culminante da refrega — , semelhou, de fato, uma percussão, uma pancada única de 1.600 baionetas de encontro a uma montanha.
     Os assaltantes avançaram todos a um tempo: os pelotões da frente embatendo com os morros e enfiando pela bocaina da passagem esquerda, enquanto a 4.ª Brigada, a marche-marche, de armas suspensas e sem atirar, vencia velozmente a distancia que a separava do inimigo. Tomara-lhe a frente o coronel Carlos Teles. Este oficial notável — recordando Osório na postura e Turenne no arrojo cavalheiresco — sem desembainhar a espada, hábito que conservou em toda a campanha, atravessou com a sua gente todo o trecho do campo varejado de balas.
     No sopé da serrania, à esquerda, se abria o desfiladeiro da direita, por onde se meteu atrevidamente, em disparada, o esquadrão de cavalaria. A 4.ª Brigada, porém, evitou-o. Investiu com as encostas. Os jagunços não haviam contado com este movimento temerário, visando diretamente, a despeito dos obstáculos de uma ascensão difícil, as posições que ocupavam. Pela primeira vez se deixaram surpreender por inesperada combinação tática, que os desnorteava, obrigando-os a deslocarem para outros pontos os lutadores de antemão destinados a trancarem as duas passagens estreitas, por onde acreditavam investiria toda a tropa. A 4.ª Brigada, realizando a mais original das cargas de baionetas, por uma ladeira íngreme e crespa de tropeços acima, ia decidir do pleito.
     Foi um lance admirável. A princípio avançou corretíssima. Uma linha luminosa de centenares de metros se estirou, fulgurando. Ondulou à base dos cerros. Abarcou-os; e começou a subir. Depois inflectiu em vários pontos; envesgou, torcida, pelas encostas; e, a pouco e pouco, desarticulada, fragmentou-se. Os sertanejos, entocaiados a cavaleiro, golpeavam-na; partiam-na, por sua vez, as anfractuosidades do solo. A linha do assalto, rota em todos os pontos, subdividida em pelotões estonteadamente avançando, espelhou-se, revolta, nos pendores da serra...
     O coronel Teles, guiando-a pelo flanco direito do 31.° de Infantaria, perdeu nessa ocasião o cavalo que montava, atravessado por uma bala junto à espenda da sela. Substituiu-o. Reuniu as frações dispersas de combatentes, em que já se misturavam soldados dos seus dois corpos. Animou-os. Arrojou-os valentemente sobre as trincheiras mais próximas. Encontraram-nas vazias, tendo cada uma, ao fundo, dezenas de cartuchos detonados e ainda mornos. Consoante à tática costumeira, os jagunços deslizavam-lhes adiante, recuando, negaceando, apoiando-se em todos os acidentes, deslocando a área do combate, impondo todas as fadigas de uma perseguição improfícua. A breve trecho, porém, dominadas as primeiras posições, viu-se, sobre as vertentes que apertam o desfiladeiro naquele ponto, a 4 a Brigada, escalando-as. Dali tombavam os mortos e os feridos, alguns até ao fundo da garganta, embaixo, por onde tinham entrado os sessenta homens do esquadrão de lanceiros e a divisão de artilharia, quebrando-se, ambos, de encontro a forte trincheira posta de uma e outra margem do rio, na bifurcação das duas bocainas, feito uma represa. Nas vertentes da esquerda, a 5.ª Brigada, perdida igualmente a formatura primitiva, lutava do mesmo modo tumultuário.
     A ação tornou-se formidável. Cinco batalhões debatiam-se entre morros, sem vantagem sensível, depois de quatro horas de luta. Aumentara grandemente o número de feridos repulsados do alvoroto das cargas, titubeantes, caindo ou arrimando-se às espingardas, errantes pelas faldas, descendo-as, entre os mortos por ali jacentes, a esmo.
     Embaixo, no vale estreito, viam-se, sem dono, disparados em todos os sentidos, relinchando de pavor, os cavalos do esquadrão de lanceiros, que arrebentara arrojadamente sobre a forte trincheira do rio...


A travessia

     Nesta enorme confusão alguns pelotões do 31.° de Infantaria galgaram, afinal, num ímpeto incomparável de valor, as trincheiras mais altas da vertente da direita. E cortadas, deste modo, as guarnições das que se sucediam a espaços pela linha de cumeadas, abandonaram-nas inesperadamente. Não era o recuo temeroso habitual; era a fuga. Os adversários foram ali, vistos de relance, pela primeira vez: dispersos pelos altos, correndo e sobraçando as armas, rolando e resvalando pelos declives, desaparecendo. Os soldados encalçaram-nos; e, revigorada logo em todos os pontos, a investida, num movimento único para frente, propagou-se até às alas da extrema esquerda. Era a vitória. Minutos depois as duas brigadas, num imenso alvoroto de batalhões a marche-marche, adensavam-se, confundidas, na última e única passagem do desfiladeiro.
     Os jagunços em desordem, contudo, depois do primeiro arranco da fuga, volveram ainda ao mesmo resistir inexplicável. Abandonando as posições e franqueando a travessia perigosa, recebiam, de longe, os triunfadores, a tiros longamente espaçados.
     O general Savaget foi atingido e desmontado juntamente com um ajudante de ordens e parte do piquete quando, à retaguarda da coluna, penetrava a garganta da direita e já se ouviam, ao longe, as aclamações triunfais dos combatentes da vanguarda. Como sempre, os sertanejos tornavam incompleto o sucesso, ressurgindo inexplicavelmente dentre os estragos de um combate perdido. Batidos, não se deixaram esmagar. Desalojados de todos os pontos, abroquelavam-se noutros, vencidos e ameaçadores, fugindo e trucidando, como os partas.
     Haviam, entretanto, sofrido sério revés, e a denominação, que ulteriormente deram de "batalhão talentoso" à coluna que lhe infligira, por si só o denota. Porque o combate de Cocorobó, a princípio vacilante, indeciso numa dilação de três horas de tiroteios ineficazes, e ultimando-se por uma carga de baionetas fulminante, foi, de fato, um raro golpe de audácia apenas justificável, senão p elo dispositivo das tropas que o vibraram, pela sua natureza especial. Predominava nas fileiras o soldado rio-grandense. E o gaúcho destemeroso, se é frágil ao suportar as lentas provações da guerra, não tem par no se despenhar em súbitos lances temerários.
     A infantaria do Sul é uma arma de choque. Podem suplantá-la outras tropas, na precisão e na disciplina de fogo, ou no jogo complexo das manobras. Mas nos encontros à arma branca aqueles centauros apeados arremetem com os contrários, como se copiassem a carreira dos ginetes ensofregados das pampas. E a ocasião sorrira-lhes para a empresa estupenda levada a cabo com brilho inexcedível.
     À tarde, acampadas as forças além da passagem, verificaram-se as perdas sofridas: 178 homens fora de combate, dos quais 27 mortos, em que se incluíam dois oficiais mortos e dez feridos.
     A 6.ª Brigada, que não tomara parte na ação, foi encarregada do enterramento dos últimos, e acampou à retaguarda das duas outras, que ocupavam extensa rechã sobranceira à estrada.


Macambira

     Depois disto a marcha se fez num combate contínuo. Foi lenta. Todo o dia 26 se despendeu em breve travessia até à confluência do Macambira, poucos quilômetros além de Cocorobó.
     O general Savaget comunicou, então, às tropas que no dia subsequente, 27, segundo determinara o comando-em-chefe, deviam estar na orla de Canudos, de onde, feita a convergência das seis brigadas, iriam dar, reunidas, sobre o arraial. Este devia estar mui perto. Viam-se já, esparsas, pelo teso dos outeiros, as choupanas colmadas, de disposição especial anteriormente descrita: surgindo dentre trincheiras ou fossos mascarados de touceiras de bromélias, feitas a um tempo lares e redutos.
     A 2.,ª coluna ao avançar naquele dia — nos últimos passos da jornada —, tendo à vanguarda a 6.ª Brigada, com o 33.° de Infantaria à frente, penetrava os subúrbios da tremenda cidadela. E mal percorridos dois quilômetros, quando ainda restava no acampamento o grosso dos combatentes, empenharam-se, batidos de todos os flancos, em combate sério, os batalhões do coronel Pantoja.


Nova carga de baionetas

     Foi, de pronto, adotado o expediente que na véspera tivera tão seguras efeitos. Os Batalhões 26.°, 33.° e 39.° desdobrando-se em linha, calaram as baionetas e lançaram-se impetuosamente pelos recostos das colinas. Galgaram-nas em tropel. E depararam em torno, por todos os lados, outras, sem número de outras, apontoando o terreno rugado, desatado por muitos quilômetros em roda...
     De todas elas, irrompendo dos casebres que as encimavam, convergiam descargas. O campo de combate, agora amplíssimo, estava adrede moderado às ardilezas do adversário: vencido qualquer um dos cômoros, viam-se centenares de outros a subir. Descida uma baixada, caía-se num dédalo de sangas. A investida seria um colear fatigante pelas linhas flexuosas dos declives. Poucos quilômetros adiante se lobrigava, indistinto, sob o aspecto tristonho de enorme cata abandonada, Canudos...


Fuzilaria 

     A peleja travara-se à ilharga e foi renhidíssima.
     A breve trecho os três batalhões da vanguarda viram-se impotentes para a suportarem: das choupanas atestadas de lutadores, de todas as trincheiras dispersas pelos cerros, partiam, convergentes, fuzilarias seguras, dizimando-os.
     Uma companhia do 39.º, logo no começo da ação, fora literalmente esmagada batendo um daqueles redutos selvagens. Vingara improvisamente o outeiro e no topo estacara à borda de um fosso largo, ao tempo que do casebre por este envolvido partiam dentre as rachas das paredes, batendo-a em cheio e à queima-roupa, descargas furiosas. Perdeu logo o comandante perdendo imediatamente depois, sucessivamente, dois subalternos que o substituíam, conquistando afinal a posição, depois de grandemente rarefeita, às ordens de um sargento.
     Diante desta resistência imprevista aquela brigada única. inapta para abranger a área extensíssima do combate, foi reforçada pelas duas outras. Sucessivamente os Batalhões 12.°, 31.°, 35.º e 40.º, enviados em reforço, avançaram. Eram mais de mil baionetas, quase toda a coluna, empenhadas no conflito. Os jagunços então recuaram; e recuando lentamente, de colina em colina, desalojados de um ponto para surgirem em outro, obrigando os antagonistas a um contínuo descer e subir de ladeiras, parecia desejarem arrebatá-los até ao arraial, exaustos e torturados de tiroteios. Volviam à tática invariável. O campo do combate começou a fugir debaixo dos pés aos assaltantes. As cargas de baionetas não tiveram então o brilho das de Cocorobó. Amolentava-as a retratilidade daquele recuo. Arrojados contra os cerros, os pelotões alcançavam os altos sem toparem mais um só adversário. Batidos logo na posição interjacente, enfiada pelos tiros partidos das eminências interpostas, desciam-na, em grupos, precipitadamente, buscando os ângulos mortos das baixadas — para reproduzirem, mais longe, a mesma escalada exaustiva e a mesma exposição perigosa às balas.
     Começaram a perder, além de grande número de praças, oficiais altamente graduados. O comandante do 12.º, tenente-coronel Tristão Sucupira, tombara moribundo quando seguia em esforço à vanguarda. O do 33.°, tenente-coronel Virgílio Napoleão Ramos, fora também retirado, ferido, da ação, assim como o capitão Joaquim de Aguiar, fiscal do mesmo corpo. E outros e muitos outros se sacrificaram nesse mortífero combate de Macambira, nome do sítio adjacente, porque, impropriando o terreno quaisquer combinações táticas capazes de balancearem as negaças vertiginosas do inimigo, todas as garantias de sucesso se resumiam na coragem pessoal. Alguns oficiais, como o capitão ajudante do 32.° com mais de um ferimento sério, se obstinavam no recontro, surdos à intimativa dos próprios comandantes determinando-lhes a retirada das linhas de fogo. Estas desatavam-se por três quilômetros. Deflagravam pelos outeiros, crepitavam, ressoantes, nas baixadas, e rolavam para Canudos...
     A noite fê-las parar, A expedição estava a um quarto de légua do arraial. Viam-se, fronteiras e altas, longe, branqueando no empardecer do crepúsculo, as torres da igreja nova...
     Estava enfim atingido o termo da marcha por Jeremoabo. A segunda coluna, porém, pagara-o duramente: tivera neste dia 148 homens fora de combate, entre os quais quarenta mortos, seis oficiais mortos e oito feridos. Somadas às perdas anteriores perfaziam 327 baixas, que tanto custara a travessia de menos de três léguas, de Cocorobó até àquele lugar.
     Mas tudo delatava sucesso compensador. Realizara-se pontualmente o itinerário preestabelecido: minutos depois de acampadas, as tropas do general Savaget ouviram, no flanco esquerdo, estrugindo o silêncio das noites sertanejas e reboando longamente pelos contrafortes da Favela o canhoneio àquela hora aberto pela vanguarda da 1.ª coluna.


Bombardeio

     No dia 28, tendo avançado cedo e tomado posição em pequeno platô, distante dois quilômetros do arraial, começou por sua vez a bombardeá-lo, enquanto os dois batalhões da Brigada Carlos Teles se avantajavam mais para a frente ainda, em reconhecimento rápido. Um piquete de cavalaria, dirigido por um valente, destinado a uma morte heroica, o alferes Wanderley, explorou o terreno pelo flanco esquerdo, até à Favela, onde àquela hora — oito da manhã — recrudescera, intenso, o canhoneio.
     A dois passos do comando-em-chefe, a segunda coluna estava pronta para o assalto. Chegara até ali ultimando uma travessia de setenta léguas com um combate de três dias.
     Impusera-se ao inimigo; afeiçoara-se ao caráter excepcional da luta; e o movimento irreprimível da carga que iniciara em Cocorobó e prolongara ininterruptamente até àquele ponto poderia arrebatá-la, triunfante, ao centro de Canudos, em plena praça das igrejas. Vinha, a despeito das perdas que tivera, esperançosa e robusta. A ordem do dia de 26, em que o seu comandante lhe comunicou o próximo assalto, em companhia dos companheiros da 1.ª coluna, é expressiva.


Trabubu

     Foi dada em "Trabubu", na travessia dos desfiladeiros, e diz muito no próprio laconismo. A nova, entusiasticamente recebida, deriva de poucas palavras, corteses e despretensiosas:

"Acampamento no campo de batalha de Cocorobó, 26 de junho de 1897.
Meus camaradas. Acabo de receber do sr. general comandante-em-chefe um telegrama comunicando-me que amanhã nos abraçaremos em Canudos. Não podemos, portanto, faltar ao honroso convite, que é para nós motivo de justo orgulho e de completa alegria." 

     A concentração almejada, através de um assalto convergente, far-se-ia, porém, fora do centro da campanha. 


Emissário inesperado 

     Com surpresa geral dos combatentes da 2 .ª coluna, que — olhos fitos na Favela — esperavam ver, descendo as vertentes do norte, os batalhões da 1.ª, apareceu no acampamento um sertanejo notificando-lhes, por ordem do comandante-em-chefe, as aperturas em que se achava aquela, exigindo imediato socorro. A nova era inverossímil, e pareceu, nos primeiros momentos, uma traça do adversário. O homem ficou retido até que novo emissário a confirmasse. Este, um alferes honorário, adido à comissão de engenharia, não se fez esperar muito. O general-em-chefe apelava instantemente para o concurso da outra coluna. Ante o novo reclamo, e informações que o esclareciam, o general Savaget, que a princípio imaginara enviar apenas uma brigada levando munições, ficando as demais sustentando a posição conquistada, seguiu, inflectindo para a esquerda, com toda a sua gente. Chegou, seriam onze horas, ao alto da Favela, a tempo de libertar a tropa assediada.


Destrói-se um plano de campanha

     Preposterara-se, porém, todo o plano de campanha e do mesmo passo se anulara o esforço despendido nas marchas pelo Rosário e Jeremoabo.
     Reunidas as colunas, tornou-se possível destacar um contingente para reaver o comboio retido à retaguarda. Foi cometido o encargo ao coronel Serra Martins que prontamente refluiu à reçaga da expedição intercisa, levando a 5.ª Brigada — num oscilar perigoso entre dois combates — até às Umburanas, onde chegou ainda a tempo de impedir o desbarate do 5.° de Polícia e salvar parte dos volumes de 180 cargueiros que, dispersos pelos caminhos, tinham sido grandemente danificados pelos jagunços.
     Este movimento feliz, porém, de pouco atenuou as condições estreitas da tropa. Mal paliou o transe. Firmou-se logo um regímen desesperador de contrariedades de toda a sorte.
 
continua na página 241...
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OS SERTÕES - Quarta expedição: III - Carga de baionetas excepcional  
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.