sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, No entanto - n)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann

ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust

um amor de swann

III(n) 

     No entanto, parecia-lhe que aquilo cuja ausência lamentava era enfim uma atmosfera de calma, de paz, que não seria favorável ao seu amor. Quando Odette deixasse de ser para ele uma criatura sempre ausente, desejada, imaginária, quando o sentimento que ela lhe inspirava já não fosse aquela mesma misteriosa perturbação que lhe causava a frase da sonata, mas pura afeição e reconhecimento, quando se estabelecessem entre ambos relações normais que dariam fim à sua loucura e à sua tristeza, então por certo os atos da vida de Odette lhe pareceriam pouco interessantes em si mesmos — como já várias vezes o suspeitara, como, por exemplo, no dia em que lera através do envelope a carta endereçada a Forcheville. Considerando o seu mal com tanta sagacidade como se o tivesse inoculado em si mesmo para fazer-lhe o estudo, refletia que, quando estivesse curado, lhe seria indiferente o que Odette pudesse fazer. Mas do fundo de seu estado mórbido, por assim dizer, temia, como a morte, semelhante cura, que seria com efeito a morte de tudo o que ele atualmente era.
     Depois daquelas noites de calma, aplacavam-se as suspeitas de Swann: bendizia a Odette, e, logo na manhã seguinte, mandava-lhe as mais belas joias, porque as atenções dela na véspera lhe haviam despertado ou gratidão, ou o desejo de vê-las renovarem-se, ou um paroxismo de amor que tinha necessidade de expandir-se.
     Mas em outros instantes volvia-lhe o sofrimento, imaginava que Odette era amante de Forcheville e que, quando ambos o tinham visto, do fundo do landô dos Verdurin, no Bois, nas vésperas da reunião em Chatou a que não fora convidado, pedir-lhe em vão que voltasse com ele, com aquele ar de desespero que até o cocheiro observara, voltando depois sozinho e vencido, com certeza tivera Odette, para designá-lo a Forcheville e dizer-lhe: “Ele está furioso, hem!”, o melhor olhar, brilhante, malicioso, baixo e disfarçado, que no dia em que este correra com Saniette da casa dos Verdurin.
     Swann então a detestava. “Também eu sou um idiota”, pensava ele, “pagando com o meu dinheiro o prazer dos outros. Bem fará ela em conter-se e não puxar muito pela corda, pois eu poderei não lhe dar mais nada, absolutamente. Em todo caso, renunciemos provisoriamente às gentilezas suplementares! E pensar que ainda ontem mesmo, como ela dissesse que tinha vontade de assistir à temporada de Bayreuth, cometi a asneira de propor-lhe alugar para nós dois um dos castelos do rei da Baviera, nas vizinhanças![1] E aliás ela não pareceu muito encantada, ainda não disse nem sim nem não; queira Deus que não aceite! Ouvir Wagner durante quinze dias com ela, que tanto se importa com Wagner como um peixe com uma maçã! Havia de ser muito divertido!”. E como o seu ódio, tal qual o seu amor, tinha necessidade de manifestar-se e agir, comprazia-se em levar cada vez mais longe as suas venenosas imaginações, porque, graças às perfídias que atribuía a Odette, ainda mais a detestava e poderia, se fossem certas — o que procurava imaginar —, ter ensejo de puni-la e saciar nela a sua crescente cólera. Chegou até a supor que ia receber uma carta de Odette pedindo-lhe dinheiro para alugar aquele castelo perto de Bayreuth, mas prevenindo-o de que não poderia ir ali visitá-la, pois que ela prometera convidar Forcheville e os Verdurin. [2] Ah!, como desejaria que Odette tivesse tal audácia! Que alegria teria ele em recusar, em redigir a vingadora resposta, cujos termos se comprazia em escolher e enunciar em voz alta, como se de fato houvesse recebido a carta!
     Pois foi isso mesmo o que aconteceu no dia seguinte. Escreveu-lhe Odette dizendo que os Verdurin e seus amigos haviam manifestado desejos de assistir àquelas representações de Wagner e que se ele tivesse a bondade de lhe enviar aquele dinheiro, poderia ela enfim, depois de tantas vezes recebida por eles, ter o prazer de convidá-los por sua vez. Dele, Swann, nenhuma palavra; estava subentendido que a presença dos Verdurin excluía a sua.
     De modo que aquela terrível resposta que redigira palavra por palavra na véspera, sem esperança de utilizá-la, teria ele a alegria de dirigir a Odette. Ah!, bem compreendia que, com o dinheiro que ela possuía, ou que conseguiria facilmente, poderia mesmo alugar casa em Bayreuth, visto que o desejava, ela que não era capaz de distinguir entre Bach e Clapisson.[3] Em todo caso, seria obrigada a viver mais modestamente. Não teria como organizar cada noite (o que aconteceria se desta vez lhe enviasse algumas notas de mil francos) dessas finas ceias após as quais talvez tivesse a fantasia — que era bem possível ainda não lhe ocorrera — de cair nos braços de Forcheville. E ao menos aquela viagem detestada não seria ele, Swann, quem a pagaria! — Ah!, se pudesse impedi-la, se ela torcesse um pé antes de partir, se o cocheiro que a levaria à estação consentisse, não importava por que preço, em levá-la para um lugar onde ficasse por algum tempo sequestrada, aquela mulher pérfida de olhar animado por um sorriso de cumplicidade dirigido a Forcheville, que era como Swann a via nas últimas quarenta e oito horas.
     Mas essa aparência nunca durava muito; ao cabo de alguns dias aquele olhar brilhante e falso ia perdendo o fulgor e a duplicidade, aquela imagem de uma Odette execrada dizendo a Forcheville: “Como ele está furioso, hem!”, começava a empalidecer, a apagar-se. Então, progressivamente reaparecia e elevava-se docemente brilhando, a face de outra Odette, daquela que também dirigia um sorriso a Forcheville, mas um sorriso em que não havia senão ternura para Swann, quando ela dizia: “Não demore muito, pois esse senhor não gosta que eu tenha visitas quando deseja estar junto de mim. Ah!, se conhecesse essa criatura como eu a conheço!”, aquele mesmo sorriso que tinha para agradecer a Swann algum sinal da sua delicadeza que ela tanto prezava, algum conselho que lhe pedira numa das graves emergências em que só nele depositava confiança.
     Perguntava-se então como pudera escrever a essa última Odette aquela carta ultrajante de que ela até então o julgara incapaz e que deveria tê-lo feito descer do lugar elevado, único, que conquistara por sua bondade e lealdade, no coração de Odette. Ia tornar-se-lhe menos caro, pois era por essas qualidades, que não encontrava nem em Forcheville nem em nenhum outro, que Odette o amava. Era por causa dessas qualidades que Odette tantas vezes lhe demonstrava uma gentileza que ele desprezava quando enciumado, porque não era um sinal de desejo e antes denotava afeto que amor, mas cuja importância começava a sentir à medida que o espontâneo alívio das suspeitas, acentuado muitas vezes pela distração que lhe trazia uma leitura de arte ou a conversa de um amigo, que tornava a sua paixão menos exigente quanto a reciprocidades.
     Agora que, após essa oscilação, voltava naturalmente Odette ao lugar de onde a afastara por um instante o ciúme de Swann, ao ângulo de onde a achava encantadora, imaginava-a cheia de ternura, com um olhar de consentimento, e tão linda assim, que não podia deixar de avançar os lábios para ela, como se ali estivesse e a pudesse beijar; e, por aquele olhar encantador e bom, guardava-lhe tanta gratidão como se ela acabasse de lhe dirigir realmente, e não apenas a sua imaginação que o pintara naquele momento para satisfazer o seu desejo.
     Que desgosto deveria ter-lhe causado! Por certo achava razões válidas para se ressentir com Odette, mas essas razões não lhe inspirariam rancor se não a amasse tanto. Não tivera queixas igualmente graves de outras mulheres, às quais de bom grado prestaria hoje serviços, sem lhes ter ódio algum, exatamente porque as deixara de amar? Se algum dia devera encontrar-se na mesma situação de indiferença para com Odette, compreenderia que só o ciúme lhe fizera achar alguma coisa de atroz, de imperdoável, naquele desejo, tão natural no fundo, proveniente de um pouco de infantilidade e também de certa delicadeza d’alma, de poder por seu turno, já que se apresentava a ocasião, retribuir as gentilezas dos Verdurin, fazer o papel de dona de casa.
     Voltava àquele ponto de vista — contrário ao do amor e do ciúme e no qual às vezes se colocava por uma espécie de equidade intelectual e para atender às diversas probabilidades — sob o qual procurava julgar Odette como se nunca a tivesse amado, como se fosse para ele uma mulher como as outras, como se a vida de Odette, logo que ele se achava ausente, não fosse muito outra, tramada às ocultas dele, urdida contra ele.
     Por que julgava que Odette lá desfrutaria, com Forcheville ou com outros, arrebatadores prazeres que não conhecera junto dele e que eram pura invenção do ciúme? Em Bayreuth, como em Paris, se Forcheville pensasse nele só poderia ser como em alguém de grande importância na vida de Odette, a quem seria obrigado a ceder o lugar quando se encontrassem os dois em casa dela. Se Forcheville e Odette consideravam um triunfo estarem em Bayreuth contra a vontade dele, era ele próprio o culpado ao procurar em vão impedi-la de ir, ao passo que se houvesse aprovado o projeto de Odette, aliás defensável, ela pareceria lá estar a conselho seu, sentir-se-ia enviada, alojada por ele, e o prazer que teria em hospedar àquela gente que tantas vezes a hospedara, era a Swann que o devia agradecer.
     E — em vez de partir estremecida com ele, sem o rever, — se lhe enviasse aquele dinheiro, se a animasse àquela viagem e se empenhasse em lha tornar agradável, Odette acorreria, feliz, reconhecida, e ele sentiria essa alegria de a ver que não experimentava há uma semana e que nada podia substituir. Pois logo que podia imaginá-la sem horror, que revia a bondade em seu sorriso, e o ciúme não acrescentava a seu amor o desejo de arrebatá-la a qualquer outro, esse amor se tornava de novo um gosto pelas sensações que lhe dava a pessoa de Odette, pelo prazer que tinha em admirar como um espetáculo, ou interrogar como um fenômeno, o erguer-se de um de seus olhares, a formação de um de seus sorrisos, a emissão de uma entonação de sua voz. E esse prazer, diferente de todos os outros, acabara por criar em Swann uma necessidade dela que só ela podia aplacar com sua presença ou suas cartas, quase tão desinteressada, quase tão artística, tão perversa, como a outra necessidade que caracterizava aquele novo período da vida de Swann, em que, à secura dos anos anteriores, sucedera uma espécie de plenitude espiritual, sem que ele soubesse mais a que devia aquele inesperado enriquecimento de sua vida interior do que uma pessoa de saúde delicada, que a partir de certo momento se fortalece, engorda e parece encaminhar-se para uma cura definitiva; essa outra necessidade, que também se desenvolvia fora do mundo real, era a de ouvir, de conhecer música.
     Assim, pela própria química de seu mal, depois que fabricara ciúme com o seu amor, recomeçava a fabricar ternura, piedade para com Odette. De novo se tornara a Odette encantadora e boa. Sentia remorsos de ter sido duro com ela. Queria que Odette se lhe aproximasse, mas desejava proporcionar-lhe antes algum prazer, para ver a gratidão modelar o seu rosto e esboçar o seu sorriso.
     Assim, segura de o ver de volta após alguns dias, tão terno e submisso como antes, a pedir-lhe reconciliação, Odette ia tomando o hábito de não mais temer desagradar-lhe e até mesmo de o irritar, e recusava-lhe, quando lhe parecia cômodo, os prazeres de que ele mais fazia questão.
     Talvez não soubesse o quanto ele fora sincero durante a briga, ao dizer-lhe que não lhe mandaria dinheiro e procuraria fazer-lhe todo o mal possível. Talvez tampouco soubesse da sua sinceridade, se não com ela, pelo menos consigo mesmo, em outros casos em que, em prol do futuro da sua ligação, para mostrar a Odette que era capaz de passar sem ela, havendo sempre possibilidade de um rompimento, resolvia Swann passar algum tempo sem visitá-la.
     Às vezes era após alguns dias em que ela não lhe causara nenhum cuidado novo; e como sabia que das suas próximas visitas não poderia tirar nenhum grande júbilo, mas provavelmente algum desgosto que poria fim à calma em que se encontrava, escrevia-lhe que, estando muito ocupado, não poderia vê-la em nenhum dos dias que lhe prometera. Mas sucedia que uma carta dela, cruzando-se com a sua, vinha precisamente pedir-lhe que adiasse um encontro. Ele se perguntava por que, volviam-lhe as suspeitas e o sofrimento. Já não podia manter, no novo estado de agitação em que se encontrava, a decisão que tomara no estado anterior de calma relativa, e corria à casa de Odette, exigindo ser recebido em todos os dias seguintes. E mesmo que ela não lhe escrevesse em primeiro lugar, se apenas respondia, aquiescendo ao seu pedido de uma curta separação, isso bastava para que ele já não pudesse ficar sem vê-la. Pois, contrariamente aos cálculos de Swann, o consentimento de Odette transformara tudo em seu íntimo. Como todos os que possuem uma coisa, Swann, para ver o que aconteceria se deixasse um momento de possuí-la, tirara essa coisa de seu espírito, ali deixando tudo o mais no mesmo estado de quando ela ali estava. Ora, a ausência de uma coisa não é apenas isso, não é uma simples falta parcial, é um transtorno de todo o resto, é um estado novo que não se pode prever no antigo.
     Mas outras vezes pelo contrário — quando Odette estava prestes a partir em viagem — era depois de uma querela por ele pretextada que Swann resolvia não lhe escrever nem visitá-la antes de seu regresso, dando assim as aparências e as vantagens de um rompimento sério, que ela talvez julgasse definitivo, a uma separação cuja maior parte era inevitável por causa da própria viagem e que ele apenas fazia começar um pouco mais cedo. Já imaginava Odette inquieta, aflita, por não haver recebido nem visita nem carta, e essa imagem, acalmando-lhe o ciúme, lhe tornava fácil desabituar-se de vê-la. Sem dúvida, por momentos, bem no extremo de seu espírito, para onde o afastava a sua resolução, graças a todo o espaço interposto das três semanas de separação aceita, era com prazer que considerava a ideia de que veria Odette em seu regresso: mas também era com tão pouca impaciência que começava a indagar consigo se não duplicaria voluntariamente a duração de uma abstinência tão fácil. E essa ausência datava apenas de três dias, muito menos tempo do que às vezes passava sem ver Odette, e sem premeditação como agora. E, no entanto, eis que uma leve contrariedade ou mal-estar físico — levando-o a considerar o momento presente como um momento excepcional, fora da regra, em que a própria prudência aceitaria o sossego que traz um prazer e daria tréguas à vontade, até o retorno útil do esforço — suspendia a atividade desta, que deixava de exercer a sua pressão; ou ainda menos que isso, a lembrança de alguma coisa que se esquecera de perguntar a Odette, se ela escolhera a cor de que pretendia mandar pintar o seu carro, ou, tratando-se de valores da Bolsa, se queria ações comuns ou especiais (seria muito bonito mostrar-lhe que podia passar sem vê-la, mas, se depois disso fosse preciso repintar o carro ou as ações não dessem dividendo, nada teria adiantado), então, como um elástico distendido que se solta, ou como o ar que se escapa de uma máquina pneumática que se entreabre, a ideia de tornar a vê-la, das distâncias onde se mantinha, saltava para o campo do presente e das possibilidades imediatas.
     Voltava sem mais encontrar resistência, e tão irresistível que a Swann lhe doía menos ver passarem de um em um os quinze dias que tinha de ficar separado de Odette, que os dez minutos que esperava enquanto o cocheiro atrelava o carro que o levaria à casa dela e que ele passava em transportes de impaciência e de alegria, e retomava mil vezes com ternura aquela ideia de tornar a vê-la que, em tão brusca reviravolta, exatamente quando a julgava tão longe, ali de novo se achava, na sua mais próxima consciência. É que desaparecera como obstáculo o desejo de lhe resistir imediatamente, que não mais existia em Swann, desde que havia provado a si mesmo — pelo menos o supunha — que lhe era tão fácil, e não via mais nenhum inconveniente em adiar uma tentativa de separação, agora que estava certo de levá-la a efeito quando bem quisesse. Era que também essa ideia de a rever lhe voltava tocada de uma novidade, de uma sedução, dotada de uma virulência que o hábito desgastara, mas que se haviam retemperado naquela privação, não de três dias, mas de quinze (pois a duração de uma renúncia deve ser calculada antecipadamente conforme o termo fixado) e, do que até então fora um prazer previsto que facilmente se sacrifica, fizera uma felicidade inesperada a que não se tem forças de resistir. E além disso, voltava embelezada pela ignorância em que estava Swann do que poderia ter pensado ou feito Odette ao ver que não lhe dera sinal de existência, de modo que o que ele ia encontrar era a apaixonante revelação de uma Odette quase desconhecida.
     Mas Odette, da mesma forma que julgara apenas uma farsa a sua recusa em fornecer dinheiro, não via senão um pretexto no informe que Swann lhe vinha pedir sobre a pintura do carro ou a compra de títulos. Pois não sabia reconstituir as diversas fases da crise que ele atravessava e, na ideia que formava a seu respeito, olvidava incluir seu mecanismo, só acreditando naquilo que de antemão conhecia, isto é, a fatal, infalível e sempre idêntica conclusão. Ideia incompleta — e talvez tanto mais profunda — se considerada do ponto de vista de Swann, que devia julgar-se incompreendido de Odette, como um morfinômano ou um tuberculoso, persuadido o primeiro de que fora detido por um acontecimento exterior no momento em que ia livrar-se de seu inveterado hábito, e o outro por uma indisposição acidental no momento em que ia enfim restabelecer-se, se sentem incompreendidos pelo médico, que não dá a mesma importância a essas pretensas contingências, meros disfarces, segundo ele, de que se reveste o vício ou o estado mórbido para se tornarem de novo sensíveis aos enfermos, e que na realidade não cessaram de pesar incuravelmente sobre eles, enquanto se deixavam embalar em sonhos de regeneração ou de cura. E de fato, chegara o amor de Swann a esse estado em que o médico e, em certas afecções, o cirurgião mais audacioso, se perguntam se privar um doente de seu vício, ou tirar-lhe o seu mal, será ainda razoável ou mesmo possível.

continua na página 202...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, No entanto - n)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] O rei Luís II da Baviera (1845-86) mandou construir alguns castelos no vale do Reno e o teatro (Festspielhaus) em que aconteceu o primeiro festival de Bayreuth, em 1876. [N.E]
[2] As representações de Parsifal, de Wagner, em Bayreuth aconteceram em 1882. [n. e.]
[3] Clapisson (1806-66) era compositor de óperas-cômicas. [n. e.]

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (6a) - a vila de Liébediev

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

6.

     Não sendo grande, a vila de Liébediev era confortável e até bonita. A parte a ser alugada fora pintada recentemente. Pela varanda bastante larga, situada na frente da casa, tinham sido colocados grandes caixotes pintados de verde com pés de laranjeiras, limoeiros e jasmineiros, o que na opinião de Liébediev tornava a aparência ainda mais sedutora. Quando comprara a casa já encontrara algumas dessas árvores, tendo ficado tão encantado com o efeito que elas produziam, que resolveu, na primeira oportunidade, comprar mais algumas, em leilão. Depois que todas as plantas foram trazidas para a vila e colocadas nos lugares definitivos, Liébediev, todos os dias, descia uma porção de vezes os degraus da varanda para ir admirar lá da rua o efeito. E de cada vez aumentava, mentalmente, O preço que decidira pedir ao futuro locatário.
     O príncipe, alquebrado, deprimido e fisicamente incapacitado, dera-se bem com a transferência para a vila. Já no dia de sua chegada a Pávlovsk, isto é, três dias depois do ataque, parecia estar bem, embora sentisse ainda, por dentro, as consequências do mal.  
     Agradavam-lhe as fisionomias que o assistiam durante aqueles dias, distraía-se com Kólia que o não largava por preço algum, simpatizava com a família de Liébediev. (O sobrinho deste fora embora para qualquer parte.) O próprio Liébediev não lhe era intolerável; quanto ao General Ívolguin, tratam-o bem ainda em Petersburgo ao lhe receber a visita. Na noite em que chegara a Pávlovsk ficara rodeado na varanda por uma porção de visitas. O primeiro a chegar foi Gánia, e tão mudado que o príncipe quase não o reconheceu: emagreceu muito naqueles seis meses. Vieram depois Vária e Ptítsin, que também possuíam uma vila em Pávlovsk. O General Ívolguin, esse então quase não largava a casa de Liébediev e não era de estranhar que, por assim dizer, fizesse parte dos cacarecos. Liébediev tentou conservá-lo apartado da vila, isto é, no seu pavilhão, querendo com isso evitar que o velho desse em visitar a todo instante o príncipe.
     O general e o príncipe tratavam-se como amigos velhos, como se se conhecessem desde muitos anos. Mesmo antes da transferência, durante aqueles três dias na residência antiga de Liébediev, o príncipe notara que este mais o general estavam frequentemente juntos, sempre absorvidos em longa conversa, às vezes exaltavam-se aos gritos, discutindo, abordando assuntos difíceis, até mesmo científicos, o que evidentemente soerguia Liébediev ao sétimo céu. Isso até dava a impressão de que o general lhe era indispensável.
     Depois da mudança para Pávlovsk, dera Liébediev em atenazar a família tanto quanto fazia com o general. A pretexto de não incomodar o príncipe não permitia que ninguém dos seus o fosse ver. Batia com o pé, corria atrás das filhas, escorraçava-as, inclusive Vera com a criancinha; e para isso bastava desconfiar que quisessem ir para a varanda onde o príncipe estava sempre, apesar de o príncipe lhe pedir que não agisse assim. Mas ele lhe explicava categoricamente em resposta a essas advertências.

- Em primeiro lugar, se o senhor as deixar fazer o que muito bem quiserem, não haverá respeito aqui; e, em segundo lugar, aqui não é o lugar delas.
- Mas por que isso? - protestava o príncipe. - Com essas atenções e vigilâncias você acaba me aborrecendo. É estúpido estar aqui sozinho, já lhe disse muitas vezes; e você me deprime muito mais com esse negócio de andar na ponta dos pés e de viver gesticulando.

     E o príncipe percebeu que, enquanto Liébediev escorraçava com todos os de casa, a pretexto de que o doente necessitava de sossego, ele, por sua vez estava vindo demais; e sempre abria primeiro a porta, metia a cabeça pelo vão, olhava em volta, como a certificar-se de que o príncipe lá estava ou não tinha saído, e então depois, muito devagar pé ante pé, em passinhos furtivos, se aproximava da poltrona a ponto de, às vezes, até assustar o seu inquilino. Estava sempre a perguntar se queria alguma coisa; e quando o Príncipe finalmente, lhe suplicava que o deixasse só, virava-se muito obedientemente pé ante pé, sem uma palavra, demandava a porta, gesticulando muito, como a querer dizer que apenas viera dar uma olhadela, mas que não diria palavra alguma absolutamente que já estava indo embora, que não voltaria. Ainda assim, dez minutos depois, ou, no máximo um quarto de hora, reaparecia.
     O fato de Kólia ter livre acesso perante o Príncipe era a fonte da mais profunda mortificação e até mesmo de indignação para Liébediev. E Kólia descobriu e contou que Liébedíev certa vez, ficara meia hora escutando à porta a conversa do Príncipe.

- Você afinal parece que se apropriou de mim definitivamente, conservando-me sob chave de cadeado - protestou o Príncipe, um dia. - Aqui, na vila, de qualquer maneira eu não quero que isso continue; e deixe que lhe diga, verei quem muito bem eu quiser e irei aonde me aprouver ir.
- Mas nem há a menor dúvida! - afirmou Liébediev com aquelas mãos que nunca ficavam paradas.

     O Príncipe correu-lhe o olhar, da cabeça aos pés.

- Você trouxe para cá o armariozinho que estava preso à cabeceira da sua cama? 
- Não trouxe, não. 
- Então você o deixou lá? 
- Não me foi possível trazê-lo, só se estragasse a parede arrancando-o. Estava encravado com muita firmeza. 
- E não lhe faz falta? 
- Há um aqui. É muito melhor. Já o achei ao comprar a vila. 
- Há!... Quem foi que esteve à minha procura cerca de uma hora, e você não deixou que me viesse ver? 
- Foi.., foi o general. De fato não consenti; ele não deve vir vê-lo. Eu tenho um grande respeito para com esse homem, Príncipe, é um grande homem. Garanto-lhe. 
- Pois bem, queria vê-lo. 
- Em todo o caso... é melhor, ilustríssimo príncipe, não o receber. 
- Mas por quê? Permite que lhe pergunte?! E por que é que você anda na ponta dos pés e se aproxima de mim sempre assim como se viesse sussurrar-me um segredo ao ouvido? 
- Sou abjeto, abjeto!... Sei que sou - respondeu Liébediev inesperadamente, ferindo o peito com vontade. - E não seria o general incômodo para o príncipe? Demasiado hospitaleiro? 
- Como, demasiado hospitaleiro?
- Sim, não atrapalharia? Para começar lhe digo, ele pretende morar comigo e acho que não o impedirei. Mas é o homem dos exageros, imediatamente se julga um parente! Já muitas vezes me tem querido afirmar e até provar nosso parentesco; parece que estamos ligados através de uns tantos casamentos. O senhor, por exemplo, segundo ele, é seu primo, em segundo grau também, pelo lado materno; ainda ontem esteve a me explicar isso. Se o senhor é primo dele, então o senhor e eu somos parentes também, ilustríssimo príncipe. Mas, deixemo-lo; trata-se de uma fraqueza insignificante; e me garantiu, há pouco, que, em toda a sua vida, desde quando era aspirante até o dia 11 de junho do ano passado, nunca se sentava para jantar com menos de duzentas pessoas à sua mesa. E prosseguiu afirmando mais que não se levantavam nunca da mesa, a ponto de jantarem, cearem e tomarem chá quinze horas seguidas durante as vinte e quatro horas do dia, e isso durante trinta anos a fio, sem interrupção, mal havendo tempo para a troca das toalhas da mesa. Se alguém se levantava, vinha outro e se sentava; e que nos dias santos o menos que havia de gente eram umas trezentas pessoas, sendo que no milésimo aniversário da fundação da Rússia ele contara setecentas pessoas. É uma mania, quase uma paixão; e o senhor sabe muito bem que tais asserções são péssimo sintoma. Chega-se a ter medo de conservar em casa um hóspede assim. De forma que estive pensando: não seria tal indivíduo uma companhia inconveniente para o príncipe e para mim?
- Mas você está em ótimas relações com ele, segundo me parece...
- Somos como irmãos. Diverte-me infinitamente! Vá lá que sejamos até parentes, já que ele insiste tanto nisso! Mesmo porque isso é uma honra para mim, pois com toda essa história de banquetes de duzentos talheres e comemorações do milésimo aniversário da Rússia, acabei me convencendo de que ele é de fato uma personalidade notável! E olhe que não estou a fazer piada! O príncipe referiu-se ainda há pouco a segredos; isto é que estou vindo a todo instante como se tivesse algum segredo a contar... Pois olhe que acertou. Certa pessoa... muito sua conhecida, ainda agora mesmo mandou dizer que tem muito empenho em obter uma entrevista com o senhor.., mas em segredo. 
- Em segredo, por quê? De modo algum. Irei hoje mesmo ver essa pessoa, se é que você assim o quer. 
- Eu? Eu não tenho nada com isso, absolutamente! - e Liébediev abriu as mãos para os lados, protestando. - Naturalmente se essa pessoa pede segredo é porque teme alguma coisa. Mas não aquilo que o senhor pensa. Por falar nisso, quer saber de outra coisa? O monstro vem todos os dias perguntar como vai passando o senhor! 
- Deu você em falar tanto de “monstro” que já ando desconfiado. 
- Não precisa desconfiar... Não precisa absolutamente desconfiar! - disse Liébediev querendo logo desistir do assunto. - Apenas lhe quero dar a entender que essa pessoa não está com receio de ninguém e sim de uma certa coisa, o que é muito diferente, muitíssimo diferente. 
- Ora bem, de quê? Diga logo! - perguntou e exigiu o príncipe, com impaciência, olhando para os misteriosos trejeitos de Liébediev. 
- Isso agora é segredo! - e Liébediev riu. 
- Segredo? Por quê? De quem? 
- Não digo. Pois o príncipe ainda agora mesmo não zangou comigo por eu estar aparecendo aqui a cada instante com ares de quem quer contar um segredo? E não me proibiu, não me escorraçou? - e Liébediev, gozando de modo total o fato de haver conseguido excitar a curiosidade do seu ouvinte, levando-o a uma dolorosa impaciência, concluiu de repente: - A tal pessoa está com medo de Agláia Ivánovna. 

     O príncipe ficou sério e se manteve calado durante mais de um minuto, até que disse:

- Meu caro Liébediev, desisto da sua vila. Onde está Gavríl Ardaliónovitch? Onde está o casal Ptítsin? Você também os seqüesfrou? 
- Eles virão! Virão! E, além deles, o General Ívolguin, também. Vou abrir as portas e vou chamar também as minhas filhas. Todos, todos, todos, imediatamente, imediatamente! - sussurrou Liébedíev, amedrontadíssimo, agitando os braços e correndo de uma porta para outra.

     Bem nesse momento, Kólia, vindo da rua, entrou pela varanda e anunciou que alguns amigos - a Sra. Epantchiná e as suas tres filhas - vinham a caminho para visitá-lo.

- Devo deixar entrar os Ptítsin e Gavríl Ardaliónovitch, caso venham, ou não devo? E o general, faço-o entrar até aqui, ou não? - dizia Liébediev. dando pulinhos, excitadíssimo com as notícias.
- Por que não? Deixe entrar quem quiser. Devo-lhe observar. Liébediev, que você adotou uma atitude errada para comigo desde o começo. Você está se equivocando sem parar, sempre. Eu não tenho a menor razão para estar me escondendo de quem quer que seja. - e o príncipe sorriu, ante o que Liébediev achou que também devia rir. 

     Malgrado a agitação em que estava, demonstrava extrema satisfação. As notícias trazidas por Kólia eram reais. Tinha vindo apenas alguns passos na frente dos Epantchín a fim de anunciar a chegada deles; tanto assim que as visitas chegaram ao mesmo tempo, vindas de ambos os lados, os Epantchín surgindo da rua, e os Ptítsin, Gánia e o General Ívolguin lá de dentro. Os Epantchín só agora tinham sabido por Kólia que o príncipe estava doente e que se achava em Pávlovsk.
     Até então a Sra. Epantchiná se mantivera em angustiosa perplexidade. Dois dias antes o general mostrara à família o cartão deixado pelo príncipe. A vista desse cartão acordou em Lizavéta Prokófievna a firme convicção de que o príncipe não tardaria em vir visitá-los em Pávlovsk. Em vão as filhas lhe garantiram que um homem que passara seis meses sem escrever não haveria de se apressar agora e que, com certeza, não lhe faltava com que se entreter, e bastante, em Petersburgo, afora eles. Como poderiam, pois, saber dele? A generala zangou-se seriamente com tais observações e quis até apostar como o príncipe apareceria no dia seguinte, no máximo, mesmo que fosse um pouco tarde e atrasado! No dia seguinte puseram-se a esperá-lo a manhã inteira; esperaram-no para jantar, para o serão, e quando começou a escurecer Lizavéta Prokófievna desandou a implicar com tudo, a brigar com todo o mundo, não fazendo, é lógico, enquanto isso, a menor alusão ao príncipe. Tampouco no terceiro dia foi dita uma palavra sequer, a respeito dele. Quando, ao jantar, Agláia caiu na asneira de observar que mamãe estava furiosa porque o príncipe não tinha vindo, ao que o pai imediatamente redarguira não ser sua a culpa, Lizavéta Prokófievna se levantou da mesa e saiu, encolerizada.
     Por fim, lá pela noitinha, Kólia chegou e fez uma completa descrição das aventuras do príncipe, pelo menos até onde sabia. Lizavéta Prokófievna ficou triunfante, mas Kólia apanhou uma boa raspança: “Você se gruda aqui dias e dias seguidos e a gente tem de aguentá-lo, e você podia ao menos nos ter participado isso tudo, já que ele não se achava capaz de vir”. Kólia esteve a ponto de se queimar com a expressão “e a gente tem de aguentá-lo”, mas adiou isso para uma ocasião mais propícia; se a frase não tivesse sido tão ofensiva, a teria talvez desculpado inteiramente, pois ficara muito contente com a agitação e a ansiedade de Lizavéta Prokófievna ao saber da doença do príncipe.
     Começou ela a insistir sem parar na necessidade de mandar vir uma celebridade médica de Petersburgo, a cuja procura seria bom mandar logo um portador; e que fosse médico célebre deveras e que viesse logo pelo primeiro trem. Mas as filhas a dissuadiram. Não quiseram, contudo, ficar atrás de sua mãe quando esta de repente resolveu ir visitar o doente.

- Pois se ele está em seu leito de morte - dissera Lizavéta Prokófievna, toda zonza - por que estarmos com cerimônias. Trata-se de um amigo da família, ou não? 
- Mas não fica bem a gente ir correndo, sem saber direito como ele está - observara Agláia. 
- Muito bem; então não venham. E até fazem bem, pois do contrário, se Evguénii Pávlovitch chegar, não terá ninguém que o receba.

     A tais palavras, naturalmente, Agláia saiu logo com os demais. Aliás mesmo sem essas palavras, ela agiria do mesmo modo. 
     O Príncipe Chtch... que estava sentado com Adelaída, ante essa conversa logo concordou em acompanhá-las. Tinha-se interessado muito pelo príncipe, ao ouvir falar dele antes, logo que travara relações com os Epantchín. Pareceu-lhe até que o conhecia, que se tinham encontrado alhures, ultimamente, e que tinham passado uma noite Juntos em uma cidadezinha do interior, três meses antes. De fato o Príncipe Chtch... lhes contou uma porção de coisas relativas ao príncipe e se referiu muito amistosamente a ele; era, pois, com verdadeiro prazer que o ia visitar.  
     O General Epantchín não se áchava em casa essa tarde; quanto a Evguénii Pávlovitch, estava demorando um pouco.
     A vila de Liébediev não ficava a mais do que trezentos passos. Lizavéta Prokófievna ficou logo desapontada de encontrar um grupo de gente em visita ao príncipe, sem falar no fato de entre essa gente haver umas duas ou três pessoas com quem positivamente embirrava. O seu segundo desaponto foi a surpresa de encontrar um jovem com a evidente aparência de estar gozando perfeita saúde, todo janota, que lhe veio ao encontro muito risonho, em vez do doente que contara ir deparar em um leito de morte.
     Instantaneamente estacou, admirada, proporcionando intenso prazer a Kólia que bem poderia ter explicado, antes de saírem, que ninguém estava a morrer e que não se tratava de nenhum caso de leito de morte. Mas não o fizera justamente porque manhosamente antevía a raiva da Sra. Epantchiná quando, conforme ele já contava, desse com o príncipe, por quem tinha real afeição, em perfeita saúde. Queria assim lhe gozar a cólera. Kólia, de fato, só fazia disparates, tanto em falar alto as suas opiniões, como em sempre atiçar a irritação de Lizavéta Prokófievna. Estava sempre às turras com ela e, muitas vezes, de modo muito malicioso, apesar da estima que um tinha pelo outro.

- Não perde por esperar, meu amiguinho, não se precipite! Não gaste à toa o seu trunfo - avisou-o Lizavéta Prokófievna. sentando-se na poltrona que o príncipe lhe ajeitava.

O Idiota: Segunda Parte (6a) - a vila de Liébediev
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Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / VII — Napoleão de bom humor

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

VIINapoleão de bom humor
     
     O imperador, posto que doente e incomodado por um padecimento local, proveniente de andar a cavalo, nunca estivera de tão bom humor como naquele dia.
     Aquele homem impenetrável sorria desde pela manhã. Essa alma profunda, com máscara de mármore, no dia 18 de Junho de 1815, resplandecia com as suas trevas. O homem que estivera sombrio em Austerlitz, em Waterloo andava alegre. Os maiores predestinados têm destes contrassensos. As nossas alegrias são sombra; o supremo sorriso só a Deus pertence.
     Ridet Caesar, Pompeius flebit, diziam os legionários da legião Fulminatrix. Desta feita, Pompeia não tinha de chorar, mas o certo é que César ria. 
     À uma hora da noite, quando, em companhia de Bertrand, exposto à chuva e ao vento, foi a cavalo explorar as colinas que cercam Rossomme, satisfeito de ver a longa linha das fogueiras inglesas que iluminavam todo o horizonte desde Frischemonte até Braine-l’Alleud, parecera-lhe exato o destino, comparecendo no dia aprazado no campo de Waterloo, para onde o intimara; e, fazendo parar o cavalo, pôs-se a contemplar os relâmpagos, a escutar o trovão, permanecendo por algum tempo imóvel na mesma postura e lançando ao vento da noite esta frase misteriosa: «Estamos de acordo». Enganava-se Napoleão; o destino não estava de acordo.
     Cada instante daquela noite fora para ele um momento de prazer, e esses instantes reunidos não o haviam deixado dormir um só minuto As duas horas e meia, depois de ter percorrido a linha das guardas principais, julgou por um momento, ao ouvir o rumor dos passos de uma coluna em marcha, que Wellington se retirava, e disse para Bertrand:

— É a retaguarda do exército inglês que marcha em retirada. Farei prisioneiros os seis mil ingleses que há pouco chegaram a Ostende.

     A sua conversação era expansiva, animada como quando ele, após o desembarque do 1.º de Março, mostrava ao grande marechal o aldeão entusiasta do golfo Juan e exclamava:

— Então, Bertrand? Já aqui temos reforço!

     A chuva redobrava, o eco dos trovões perdia-se no cavado dos vales, e ele dizia, no meio daquele fragor, mofando de Wellington:

— Este inglesinho precisa de levar uma lição!

     Às três horas da madrugada, porém, perdeu a primeira ilusão; anunciaram-lhe os oficiais que ele mandou em reconhecimento que o inimigo não fazia movimento algum. Não se mexia nada; nem uma só fogueira do acampamento estava apagado. O exército inglês dormia. Era profundo o silêncio na terra; só no céu havia ruído. Às quatro horas, os batedores trouxeram-lhe um aldeão que servia de guia a uma brigada de cavalaria inglesa, talvez a brigada de Vivian, que ia para tomar posição na aldeia de Ohain, na extrema esquerda. Às cinco, contaram-lhe dois desertores belgas, que acabavam de deixar o seu regimento, que o exército inglês esperava pela batalha.

— Melhor! — exclamara Napoleão. — Antes quero destruí-los do que rechaçá-los.

     Pela manhã, na encosta que forma a volta do caminho de Plancenoit, apeou-se no meio da lama, mandou buscar a uma herdade uma mesa de cozinha e uma cadeira de aldeão, sentou-se, com um feixe de palha por tapete, e, desenrolando em cima da mesa o mapa do campo de batalha, disse para Soult: 

— Que bonito tabuleiro de xadrez!

     Em virtude da chuva que caíra de noite, não tinham podido chegar pela manhã os comboios de víveres, embaraçados pelo mau estado dos caminhos; os soldados não tinham dormido, estavam molhados e em jejum, mas nada disto foi motivo para que Napoleão não gritasse alegremente a Ney.

— Temos a nosso favor noventa probabilidades contra cem.

     Às oito horas, trouxeram-lhe o almoço, para o qual convidou muitos generais. 
     Durante ele, contou-se que Wellington assistira na antevéspera a um baile que se dera em Bruxelas, em casa da duquesa de Richmond, e Soult, soldado rude, com figura de arcebispo, dissera: 

— Hoje é que é o baile. 

     O imperador gracejava com Ney por ter dito: 

— Wellington não há-de ser tão simples que espere por Vossa Majestade. 

     Era este o seu costume. Napoleão gostava de gracejar, diz Fleury de Chaboulon. O fundo do seu carácter era um humor prazenteiro, diz Gougaud. Napoleão abundava em gracejos, mais extravagantes porém, do que espirituosos, diz Benjamin Constant. Vale a pena insistir nestas jovialidades de gigante. Aos seus granadeiros chamava-lhes «meus grulhas», beliscava-lhes as orelhas e puxava-lhes pelo bigode. O imperador estava-nos sempre com chascos, é a frase de um deles. Na viagem misteriosa da ilha de Elba para França, em 27 de Fevereiro, tendo o brigue francês «Zéfiro» encontrado no mar alto o brigue «Inconstante», que conduzia Napoleão, e perguntando-lhe notícias dele, o imperador que naquela ocasião ainda trazia no chapéu o laço branco e cor de amaranto, semeado de abelhas, adoptado por ele na ilha de Elba, lançou mão do porta-voz a rir e respondeu ele mesmo: 

— O imperador está bom!

     Quem deste modo ri é porque está familiarizado com os acontecimentos. 
     Napoleão teve muitos desses acessos de riso naquele almoço de Waterloo, após o qual se concentrou em profunda meditação; dali a um quarto de hora, dois generais sentaram-se em cima do feixe de palha, com uma pena na mão e uma folha de papel sobre o joelho, e o imperador ditou-lhes a ordem da batalha. 
     Às nove horas, na ocasião em que o exército francês se pôs em movimento, formado em cinco colunas, com as divisões em duas linhas, a artilharia entre as brigadas e na frente a música, tocando hinos marciais, com os quais se casava o rufar dos tambores e o clangor das trombetas, poderoso, vasto, alegre mar de capacetes, espadas e baionetas movendo-se no horizonte, o imperador exclamara duas vezes transportado:

— Magnífico! Magnífico!

     Das nove horas até às dez e meia, até parece incrível, o exército tomou todo posição, formando-se em seis linhas, que, para nos servirmos da expressão do imperador, descreviam «a figura de seis V V». Instantes depois que a vanguarda formou em ordem de batalha, no meio desse silêncio profundo do principiar de uma tempestade, que precede os combates, o imperador, ao ver desfilar as três baterias de doze, destacadas por ordem sua do corpo de Erlon, de Reille e de Lobau, e destinadas a principiar a ação, batendo o Mont-Saint-Jean no ponto onde se cruzam as estradas de Nivelles e de Genappe, disse para Haxo, batendo-lhe no ombro:  

— Que belas vinte e quatro raparigas, general!

     Certo do resultado, ao passar em frente dele a companhia de sapadores do primeiro corpo, por ele designada para se entrincheirar no Mont-Saint-Jean, apenas tomada a aldeia, animou-a com um sorriso. Aquela sua serenidade apenas fora perturbada por uma frase de orgulhosa compaixão: ao ver agruparem-se à sua esquerda, no sítio onde agora há um túmulo, esses admiráveis escoceses pardos, montados nos seus soberbos cavalos, disse: 

— É pena!

     Depois montou a cavalo e transportou-se para a dianteira de Rossomme, escolhendo para observatório um estreito cômoro de relva à direita da estrada de Genappe a Bruxelas, o qual foi a sua segunda estância, enquanto durou a batalha. A terceira estância, isto é, a que ocupou às sete horas da tarde, e que fica entre a Belle Aliance e Haie-Sainte, é temível; é um cabeço bastante elevado, que ainda existe, por trás do qual se achava agrupada a guarda num declive da planície. Em volta choviam as balas no chão da estrada, até onde estava Napoleão, a quem, como em Brienne, zuniam por cima da cabeça as balas e os biscainhos. Quase no lugar onde o cavalo dele tinha os pés, foram encontradas balas enferrujadas, lâminas de espadas velhas e projéteis informes, comidos de ferrugem. Scabra rubigine. Há poucos anos, desenterrou-se ali uma granada de calibre sessenta, ainda carregada, com a culatra partida pelo ouvido. Foi naquela estância que o imperador disse ao seu guia Lacoste, aldeão hostil, que se agarrava assustado ao selim do cavalo de um hussardo, voltando-se ao rebentar de cada granada e procurando esconder-se por trás de Napoleão:

— Isso é uma vergonha, imbecil. Ainda arranjas com que te matem pelas costas. 
 
     Quem estas linhas escreve achou no declive friável daquele cabeço, ao cavar no chão, o resto do bocal de uma bomba, desagregados pela ferrugem de quarenta e seis anos e pedaços de ferro que se lhe quebravam nos dedos como pau de sabugueiro. 
     Já não existem as ondulações das planícies, diversamente inclinadas, onde teve lugar o recontro de Napoleão com Wellington, mas ninguém ignora o que elas eram a 18 de Junho de 1815. Quiseram erigir-lhe um monumento daquele campo fúnebre e tiraram-lhe o seu relevo real, de modo que a história perturba-se e já não sabe onde está. Desfiguraram-no para o glorificar.
     Wellington, ao ver dois anos depois o campo de Waterloo, exclamou:

— Trocaram-me o meu campo de batalha.

     Onde agora está a grande pirâmide de terra coroada pelo leão, havia um alto que abaixava em declive praticável para a estrada de Nivelles, mas que pelo lado da estrada de Genappe era quase escarpado. A elevação da escarpa ainda hoje se pode medir pela altura dos cabeços das duas grandes sepulturas que bordam a estrada de Genappe a Bruxelas; à esquerda o túmulo inglês; à direita, o túmulo alemão. Túmulos franceses não os há ali; para a França é toda a planície um sepulcro. Em virtude das mil e mil carradas de terra, empregadas no cabeço, que tem cento e cinquenta pés de altura, por meia milha de circunferência, a subida para a planura do Mont-Saint-Jean é hoje a meia ladeira; no tempo em que se deu a batalha, era cortada a pique e inacessível, principalmente da parte de Haie-Sainte. Era tão inclinado o declive, que a artilharia inglesa não podia fazer fogo para a herdade situada no fundo do vale, que era o centro do combate. No dia 18 de Junho de 1815, as chuvas tinham também escavoucado aquele alcantil, a lama dificultava a subida, para a qual era necessário ir de gatas, correndo-se ainda assim o risco de se ficar atolado nela. Ao longo do alto da planura estendia-se um fosso, que um observador colocado a distância não seria capaz de dizer o que era. 
     Para que era aquele fosso? Digamo-lo. Braine-l’Alleud é uma aldeia da Bélgica; Ohain outra. Essas duas aldeias, ocultas ambas nas curvas do terreno, comunicam-se por um caminho de quase légua e meia de extensão, que atravessa uma planície de nível ondulante, e que em muitos sítios entra e se perde, como um rego, por entre as colinas, do que resulta ser em alguns pontos um verdadeiro barranco. Em 1815, do mesmo modo que agora, essa estrada cortava o alto da planura do Mont-Saint-Jean entre as duas estradas de Genappe e Nivelles, com a diferença, porém, de que então ia por baixo da planura, e hoje fica em nível com ela. Das duas escarpas formaram o plinto para o monumento. Essa estrada na maior parte da sua extensão é uma vala, cavada em sítios a doze pés de profundidade e com os lados tão escarpados, que em algumas partes desabavam, principalmente de Inverno, com as torrentes formadas pelas chuvas, o que por vezes dera lugar a lamentosos desastres. A entrada de Baine-l’Alleud era tão estreita, que uma ocasião ficou ali um homem esmagado debaixo de um carro, como o prova uma cruz de pedra erguida ao pé do cemitério, que indica o nome do morto, Monsieur Bernard Debye, negociante em Bruxelas, e a data do desastre, Fevereiro de 1637.
     Era tão profunda no alto do Mont-Saint-Jean, que em 1738 ficou ali sepultado debaixo de uma ribanceira, que desabou, um aldeão chamado Matheus Nicaise, como o provava outra cruz de pedra, cujo cimo desapareceu nas roteaduras, mas cujo pedestal ainda hoje se vê derrubado na encosta do monte, à esquerda da estrada, entre Haie-Sainte e a herdade do Mont-SaintJean. 
     Num dia de batalha, aquela quelha, que só ao pé se via, bordando o alto do Mont-SaintJean como um fosso no cimo da escarpa, como uma rodeira aberta na terra, era invisível, quer dizer terrível.

continua na página 252...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - VII — Napoleão de bom humor
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS 

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira

Poema em linha reta /

Poema em linha reta


linhas tortas
sinuosas
volumosas
nunca 
  conheci 
         quem tivesse amado sem sofrer
enganado sem mentir
sobrevivido sem fugir
machucado sem doer
talvez                               não tenha vivido
indesculpável
grotesco, 
mesquinho, 
submisso e 
arrogante,
por certo
      ridículo,
absurdo
nunca
fui um príncipe
apenas mais uma voz humana
longe de mim qualquer hora do soco
um príncipe
     sem voz humana
    nunca conheci 
tanta covardia
sem hipocrisia


Álvaro de Campos 
(Fernando Pessoa)






Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das
etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.



Osmar Prado
- novela O Clone (2002)




"Poema em linha reta" é uma composição que Fernando Pessoa assinou com o seu heterônimo Álvaro de Campos, que escreveu entre os anos de 1914 e 1935, não existindo certeza da sua data.

O poema é uma crítica às relações sociais que Campos parece observar, de fora, e a sua incapacidade de se operar pelas regras de etiqueta e conduta vigentes. O sujeito lírico aponta a falsidade e hipocrisia dessas relações.


Paulo Autran




Poema em Linha Reta





quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: A bolsa (02)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



A bolsa

     A fim de fazer compreender tudo o que essa cena podia ter de interessante e de inesperado para o pintor, devemos acrescentar que fazia apenas alguns dias que ele tinha instalado o ateliê nos altos daquela casa, situada no lugar mais obscuro e, portanto, o mais lamacento da rue de Suresnes, quase em frente à Igreja de la Madeleine, a dois passos de seu apartamento que se achava na rua dos Champs-Élysées. A celebridade que o seu talento lhe valera fizera dele um dos mais queridos artistas da França; começava a não mais sentir apertos de dinheiro e, segundo sua própria expressão, gozava das suas últimas misérias. Em vez de ir trabalhar num desses ateliês situados perto das barreiras e cujo aluguel módico estava antigamente em relação com a escassez de seus recursos, satisfizera um desejo que nele renascia diariamente, evitando ademais uma longa caminhada e a perda de tempo que para ele se tornara mais precioso do que nunca.
     Ninguém no mundo inspiraria tanto interesse como Hipólito Schinner, se consentisse em se fazer conhecer, mas não era homem que confiasse levianamente os segredos de sua vida. Era o ídolo de uma mãe pobre que o educara à custa das mais duras privações. A srta. Schinner, filha de um granjeiro alsaciano, nunca fora casada. Sua alma terna fora em outros tempos cruelmente espezinhada por um homem rico, que não se distinguia por grandes delicadezas no amor. No dia em que, moça e em todo o esplendor de sua beleza, em toda a glória de sua vida, ela sofreu, à custa de seu coração e das suas belas ilusões, esse desencanto que nos atinge tão lentamente e tão depressa, pois só queremos crer no mal o mais tarde possível, parecendo-nos chegar esse momento demasiado cedo, aquele dia foi um século de reflexões, sendo também o dia dos pensamentos religiosos e da resignação. Recusou as esmolas do homem que a traíra e renunciou à sociedade, fazendo de sua falta novo motivo de orgulho. Entregou-se toda ao amor materno, pedindo a este, em troca dos gozos sociais a que renunciava, todas as suas delícias. Viveu de seu trabalho, acumulando um tesouro em seu filho. Por isso, mais tarde, certo dia, uma hora pagou-lhe os longos e lentos sacrifícios de sua indigência. Na última exposição, seu filho recebera a cruz da Legião de Honra. Os jornais, unânimes em favor de um talento ignorado, ainda reboavam de elogios sinceros. Os próprios artistas consagravam Schinner como um mestre, e os negociantes de pintura cobriam seus quadros de ouro. Aos vinte e cinco anos, Hipólito Schinner, ao qual a mãe transmitira sua alma de mulher, tinha, melhor do que nunca, compreendido sua posição no mundo. Querendo restituir à mãe os gozos de que a sociedade a tinha privado por tanto tempo, vivia para ela esperando, à força de glória e de fortuna, vê- la um dia feliz, rica, considerada, cercada de homens célebres. Schinner escolhera, pois, seus amigos entre os homens mais honrados e mais distintos. Difícil na escolha de suas relações, ele queria elevar ainda mais a posição que seu talento já erguera tão alto. O trabalho, a que se dedicava desde a mocidade, forçando-o a permanecer na solidão, mãe dos grandes pensamentos, deixara-o nas belas crenças que ornam os primeiros dias da vida. Sua alma adolescente não desconhecia nenhum dos mil pudores que fazem de um rapaz moço um ser à parte, cujo coração abunda em felicidades, em poesias, em esperanças virgens, fracas para os embotados, mas profundas porque são simples. Fora dotado dessas maneiras meigas e polidas que sentam tão bem à alma e seduzem até mesmo aqueles que as não compreendem. Era bem-feito de corpo. Sua voz, que vinha do coração, despertava nos outros nobres sentimentos e evidenciava uma modéstia verdadeira por um certo candor na pronúncia. Vendo-o, todos se sentiam arrastados para ele, por uma dessas atrações morais que os sábios, felizmente, não sabem analisar; se o soubessem, encontrariam, talvez, algum fenômeno de galvanismo ou o efeito de não sei que fluido e formulariam nossos sentimentos por proporções de oxigênio e de eletricidade. Esses detalhes farão, talvez, compreender às pessoas ousadas por gênio e aos homens bem engravatados o motivo pelo qual, durante a ausência do porteiro, a quem tinha mandado em busca de um carro, no fim da rue de Madeleine, Hipólito Schinner não fez nenhuma pergunta à porteira a respeito das duas pessoas, cujo bom coração lhe fora patenteado. Mas, embora respondesse apenas por um sim ou por um não às perguntas, naturais em semelhante ocorrência, que lhe foram feitas por aquela mulher sobre o seu acidente e sobre a intervenção oficiosa das locatárias do quarto andar, não pôde impedi-la de obedecer ao instinto dos porteiros: ela falou-lhe das duas desconhecidas, segundo os interesses de sua política e segundo as opiniões subterrâneas do cubículo.

— Ah! — disse ela —, foram com certeza a srta. Leseigneur e a mãe, que moram aqui há quatro anos. Ainda não sabemos em que se ocupam essas senhoras; de manhã, e só até o meio-dia, vem uma velha criada, meio surda e tão calada como um muro, fazer a arrumação do apartamento; à noite, dois ou três velhos senhores, decorados como o senhor, sendo que um tem carruagem e lacaios, e que dizem ter sessenta mil libras de renda, vêm visitá-las e ficam, às vezes, até muito tarde. Aliás, são moradoras bem sossegadas, como o senhor. Ademais, são econômicas, vivem com muito pouco. Assim que chega uma conta elas pagam-na. É engraçado, senhor, a mãe tem nome diferente do da filha. Ah! Quando elas vão às Tulherias, a senhorita vai toda elegante! E não sai nem uma vez sem ser seguida por moços aos quais ela dá com a porta na cara quando entra. E faz bem. O proprietário não consentiria...

     O carro chegara, Hipólito não quis ouvir o resto e foi para casa. Sua mãe, a quem ele contou o incidente, fez um novo curativo na ferida e não consentiu que ele voltasse ao ateliê no dia seguinte. Tendo vindo um médico, fez este diversas prescrições, e Hipólito ficou três dias em casa. Durante essa reclusão, sua imaginação ociosa lembrou-lhe vivamente, e de modo fragmentado, os detalhes da cena que se seguiu ao seu desmaio. O perfil da moça contrastava fortemente com as trevas de sua visão interior: revia o semblante emurchecido da mãe, ou sentia ainda as mãos de Adelaide; tornava a ver um gesto que, a princípio, pouco o impressionara, mas cuja graça deliciosa a recordação punha em relevo; depois, uma atitude, na qual os sons de uma voz melodiosa, embelezada pela distância da memória, reapareciam de súbito, como esses objetos que, mergulhados no fundo da água, emergem à superfície. Por isso, no dia em que pôde recomeçar seu trabalho, foi cedo para o ateliê; mas a visita que incontestavelmente tinha o direito de fazer às suas vizinhas foi a causa verdadeira de sua pressa. Já se ia esquecendo dos quadros começados. No momento em que uma paixão se desfaz do seu casulo, encontram-se prazeres inexplicáveis, que os que amaram compreendem. Por isso, algumas pessoas saberão por que o pintor subiu lentamente os degraus do quarto andar e conhecerão o segredo das rápidas pulsações que agitavam seu coração no momento em que ele viu a porta escura do modesto apartamento onde a srta. Leseigneur morava. Essa moça, que não usava o nome da mãe, despertava mil simpatias no jovem pintor; ele queria ver, entre ambos, similitudes de situação e atribuía-lhe a desgraça de sua própria origem. Enquanto trabalhava, Hipólito entregou-se complacentemente a pensamentos de amor e fez bastante barulho para obrigar as duas senhoritas a se ocuparem com ele, da mesma forma que ele se ocupava com elas. Ficou até muito tarde no ateliê, aí jantando, e depois, cerca das sete horas, foi ter com as vizinhas.
     Nenhum pintor de costumes se animou, talvez por pudor, a nos iniciar na intimidade de certas existências parisienses, no segredo dessas moradias, de onde saem tão frescas, tão elegantes toilettes, mulheres tão brilhantes que, exteriormente ricas, mostram em tudo sinais de uma fortuna equívoca. Se a pintura está aqui desenhada de modo demasiado franco, se nela achardes prolixidade, não acuseis a descrição que forma, por assim dizer, corpo com a história, pois o aspecto do apartamento habitado por suas vizinhas muito influiu nos sentimentos e nas esperanças de Hipólito Schinner.
     A casa pertencia a um desses proprietários nos quais preexiste um profundo horror às reformas e aos embelezamentos, um desses homens que consideram sua posição de proprietário parisiense como um estado. Na grande cadeia das espécies morais, essa gente ocupa uma situação intermédia entre o avarento e o usurário. Otimistas por cálculo, todos eles são fiéis ao status quo da Áustria. Se falardes em deslocar um armário de parede ou uma porta, em abrir o mais indispensável dos ventiladores, seus olhos brilham, revoluciona-se-lhes a bílis, empinam-se como cavalos assustados. Quando o vento derruba algum espigão de suas chaminés, ficam doentes e se privam de ir ao Ginásio[1] ou à Porte -Saint-Martin,[2] por causa das reparações a fazer. Hipólito que, a propósito de certos embelezamentos no seu ateliê, tivera, grátis, a representação de uma cena cômica com o sr. Molineux, não se admirou dos tons negros e gordurosos, das marcas oleosas, das manchas e outros acessórios bastante desagradáveis que ornavam o forro de madeira das peças. Aliás, esses estigmas de miséria não deixam de ter certa poesia para um artista.
     A srta. Leseigneur veio ela mesma abrir a porta. Ao reconhecer o jovem pintor, cumprimentou-o; depois, ao mesmo tempo, com essa destreza parisiense e essa presença de espírito que o orgulho dá, virou-se para fechar a porta de uma divisão envidraçada, através da qual Hipólito poderia ter visto algumas peças de roupa, estendidas em cordas, por cima dos fogões econômicos, uma velha cama de campanha, brasas, carvão, ferro de passar, o filtro, a louça e todos os utensílios peculiares a uma casa modesta. Cortinas de musselina bem limpas ocultavam cuidadosamente aquele cafarnaum, termo usado para designar familiarmente essas espécies de laboratórios, aliás mal iluminados por pequenas aberturas que dão para os pátios vizinhos. Com o rápido olhar dos artistas, Hipólito viu a destinação, os móveis, o conjunto e o estado dessa primeira peça dividida em duas. A parte decorosa, que servia ao mesmo tempo de antecâmara e de sala de jantar, estava forrada com um velho papel cor de aurora, com margens aveludadas, fabricadas com certeza por Réveillon,[3] e cujos buracos e manchas tinham sido cuidadosamente dissimulados sob pedaços de lacre. Gravuras representando as Batalhas de Alexandre, por Lebrun,[4] mas em quadros desdourados, guarneciam simetricamente as paredes. No meio da peça havia uma mesa de acaju maciço, de forma antiquada e de bordos gastos. Uma pequena estufa, cujo cano reto mal se via, ficava diante da lareira, cuja abertura continha um armário. Por um estranho contraste, as cadeiras apresentavam vestígios de um passado esplendor e eram de acaju esculpido, mas o marroquim vermelho dos assentos, as tachas douradas e os canutilhos mostravam cicatrizes tão numerosas como as dos velhos sargentos da guarda imperial. Aquela peça servia de museu para certas coisas que não se encontram senão nessas espécies de lares anfíbios, objetos sem nome, que participam ao mesmo tempo do luxo e da miséria. Entre outras curiosidades, Hipólito notou um óculo de longo alcance, magnificamente ornado, suspenso acima do pequeno espelho esverdeado que decorava a lareira. Para completar esse estranho mobiliário, havia entre a chaminé e o tabique um feio aparador pintado de modo a imitar o acaju, que de todas as madeiras é a que menos se consegue falsificar. Mas, quer o mosaico vermelho e escorregadio, quer os tapetes ordinários colocados diante das cadeiras, os móveis, tudo reluzia com aquele asseio de esfregação que dá um falso brilho às velharias, acentuando ainda mais seus estragos, sua idade e os longos serviços prestados. Reinava nessa peça um olor indefinível, resultante da mescla das exalações do cafarnaum com os vapores da sala de jantar e os da escada, embora a janela estivesse entreaberta e o ar da rua agitasse as cortinas de percal cuidadosamente estiradas, de modo a ocultar o vão onde os precedentes inquilinos tinham assinalado sua presença por várias incrustações, espécie de afrescos domésticos. Adelaide abriu logo a porta da outra sala, onde introduziu o pintor com certo prazer. Hipólito, que em outros tempos vira em casa de sua mãe os mesmos sinais de indigência, notou-os com a singular vivacidade de impressão que caracteriza as primeiras aquisições de nossa memória e penetrou, melhor do que outro qualquer, nos detalhes daquela existência. Ao reconhecer as coisas de sua infância, aquele bom rapaz não sentiu nem desprezo dessa infelicidade oculta, nem orgulho do luxo que acabava de conquistar para sua mãe.

— Então, senhor, quero crer que não sente mais os efeitos de sua queda, não? — disse-lhe a velha, levantando-se de uma antiga poltrona, colocada no canto da lareira e oferecendo-lhe uma cadeira. 
— Não, senhora. Venho agradecer-lhe os cuidados que me proporcionou, e sobretudo à senhorita que me ouviu cair. 

     Ao dizer essa frase, impregnada de adorável estupidez, que dá à alma as primeiras perturbações de um amor verdadeiro, Hipólito olhou para a moça. Adelaide estava acendendo a lâmpada de dupla corrente de ar, sem dúvida para fazer desaparecer uma vela posta num grande castiçal de cobre, adornada com algumas estrias salientes, devidas a um escoamento extraordinário de cera. Inclinou ligeiramente a cabeça, foi colocar o castiçal na antecâmara, voltou para pôr a lâmpada em cima da lareira e sentou-se ao lado da mãe, um pouco atrás do pintor, a fim de poder olhá-lo à vontade, fingindo estar muito ocupada com a luz da lâmpada, que, devido à umidade do vidro embaciado, estralejava por estar com a mecha queimada e mal cortada. Avistando o grande espelho que ornava a lareira, Hipólito para ele dirigiu imediatamente os olhos, a fim de admirar Adelaide. O pequeno ardil da moça serviu, portanto, apenas para embaraçar os dois. Conversando com a sra. Leseigneur, pois foi este nome que Hipólito se arriscou a dar à velha senhora, ele examinou o salão, mas de modo discreto e disfarçado. Viam-se apenas as figuras egípcias da grelha de ferro, numa lareira cheia de cinza, onde dois tições tentavam reunir-se diante de uma falsa acha de lenha de terracota, tão cuidadosamente enterrada como o poderia estar o tesouro de um avaro. Um velho tapete de Aubusson, bem remendado, bem passado, gasto como o casaco de um inválido, não recobria todo o mosaico, cuja frialdade se sentia nos pés. As paredes tinham como adorno um papel avermelhado, fingindo um estofo de lampa com desenhos amarelos. No centro da parede oposta às janelas, o pintor viu uma fenda e os rasgões produzidos no papel pelas duas portas de uma alcova onde, sem dúvida, dormia a sra. Leseigneur. Um sofá, colocado diante dessa abertura secreta, não a dissimulava de modo completo. Em frente à lareira, por cima de uma cômoda de acaju, cujos ornamentos não deixavam de ter certa riqueza e gosto, ostentava-se o retrato de um militar de alta patente, que a escassez de luz não permitiu ao pintor distinguir, mas, pelo que viu, achou que aquele horrível borrão tivesse sido pintado na China. Nas janelas, cortinas de seda encarnada estavam descoradas como os móveis de estofo amarelo e encarnado daquele salão para duplo fim. Em cima do mármore da cômoda, uma bandeja preciosa de malaquita continha uma dúzia de xícaras de café, com pinturas magníficas e fabricadas sem dúvida em Sèvres. Em cima da lareira, erguia-se o eterno relógio estilo Império, representando um guerreiro guiando os quatro cavalos de um carro, cuja roda tinha em cada raio o número de uma hora. As velas dos castiçais estavam amarelecidas pela fumaça, e, em cada canto do alizar, havia um vaso de porcelana coroado de flores artificiais, cheias de poeira e cercadas de musgo. No meio da peça, Hipólito notou uma mesa de jogo preparada e cartas novas. Para um observador, havia um não sei quê de desolador no espetáculo daquela miséria, que se assemelhava à maquiagem de uma mulher velha que ainda quer se dar ares de moça. Diante desse espetáculo, qualquer homem de bom-senso teria, de início e secretamente, estabelecido o seguinte dilema: ou essas duas mulheres são a própria probidade, ou vivem de expedientes e do jogo. Mas, ao ver Adelaide, um rapaz tão puro como Schinner só podia acreditar na mais perfeita inocência e atribuir às incoerências daquele mobiliário os mais honrosos motivos.

— Minha filha — disse a velha dama à moça —, estou com frio, acende o fogo e traze o meu xale.

     Adelaide foi a um quarto contíguo ao salão, no qual provavelmente dormia, e voltou trazendo para a mãe um xale de cachemira que, quando novo, devia ter custado um preço elevado, e cujos desenhos eram indianos, mas que, agora velho, desbotado e cheio de cerziduras, harmonizava-se perfeitamente com os móveis. A sra. Leseigneur envolveu-se artisticamente nele e com a destreza de uma mulher velha que queria fazer crer na verdade de suas palavras. A rapariga correu celeremente ao cafarnaum e voltou com um punhado de gravetos que galhardamente atirou no fogo para reacendê-lo.
     Seria bastante difícil reproduzir a conversa havida entre aquelas três pessoas. Guiado pelo tato adquirido pelas desgraças sofridas na infância, Hipólito não se atrevia a fazer a menor observação relativa à situação de suas vizinhas, ao ver em torno os sintomas de uma penúria tão mal disfarçada. A mais simples pergunta teria sido indiscreta e não devia ser feita senão por uma amizade já velha. Não obstante, o pintor estava profundamente preocupado com aquela miséria oculta, e sua alma generosa sofria com aquilo, mas sabendo o que qualquer espécie de piedade, mesmo a mais amistosa, pode ter de ofensivo, ele se sentia constrangido pelo desacordo que havia entre os seus pensamentos e as suas palavras.

continua pág 398...
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.

(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843

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Leia também:
"Chat-Qui-Pelote"
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (57)
A bolsa
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: A bolsa (02)
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[1] Ginásio: Théâtre du Gymnase Dramatique, de comédias musicadas (Vaudevilles), inaugurado em 1828.
[2] Porte-Saint-Martin: no bulevar deste nome, onde anos depois se representaria Vautrin, drama do próprio Balzac.
[3] Réveillon: pessoa real, fabricante de papéis de parede.
[4] Lebrun: Charles Lebrun (1619-1690), ilustre pintor francês; deve a fama a uma série de quadros monumentais que representam as Batalhas de Alexandre.