quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Os Bruzundangas - Capítulo XV: Uma Consulta Médica

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.

Capítulo XV

Uma Consulta Médica

     NA BRUZUNDANGAS, quando lá estive, a fama do doutor Adhil Ben Thaft não cessava de crescer.
     Não havia dia em que os jornais não dessem notícias de mais uma proeza por ele feita, dentro ou fora da medicina. Em tal dia, um jornal dizia: “O doutor Adhil, esse maravilhoso clínico e excelente goal-keeper acaba de receber um honroso convite do Libertad Football Club, de São José de Costa Rica, para tomar parte na sua partida anual com o Ayroca Football Club, de Guatemala. Todo o mundo sabe a importância que tem esse desafio internacional e o convite ao nosso patrício representa uma alta homenagem à ciência da nossa terra e ao football nacional. O celebrado mestre, porém, não pôde aceitar o convite, pois a sua atividade mental anda agora norteada para a descoberta da composição da Pomada Vienense, específico muito conhecido para a cura dos calos.”
     O extraordinário clínico vivia assim mais citado nos jornais que o próprio mandachuva e o seu nome era encontrado em todas as seções dos quotidianos. A seção elegante do O Conservador, logo ao dia seguinte da notícia acima, editada nos sueltos do Jornal ocupou-se do famoso médico da seguinte maneira:

“O doutor Adhil apareceu ontem no Lírico inteiramente fashionable.

“O milagroso clínico saltou do seu coupé completamente nu. Não se descreve o interesse das senhoras e o maior ainda de muitos homens. Eu fiquei babado de gozo.”

     A fama do doutor corria assim desmedidamente. Deixou em instantes de ser médico do bairro ou da esquina, como dizia Mlle. Lespinasse, para ser o médico da capital do país, o lente sábio, o literato ilegível, à João de Barros, o herói do football, o obrigado papa-banquetes diários; o Cícero das enfermarias, o mágico dos salões, o poeta dos acrósticos, o dançador dos bailes do tom, etc., etc...
     O seu consultório vivia tão cheio que nem a avenida em dia de carnaval; e havia quem dissesse que muitos rapazes preferiam-no para as proezas daquelas que os nossos cinematógrafos são o teatro habitual.
     Era procurado sobretudo pelas senhoras ricas, remediadas e pobres, e todas elas tinham garbo, orgulho, satisfação, emoção na voz quando diziam:

Estou me tratando com o doutor Adhil.

     Moças pobres sacrificavam os orçamentos domésticos para irem à consulta do doutor Adhil e muitas houve que deixavam de comprar o sapato ou o chapéu da moda para pagar o exame perfunctório do famoso doutor. De uma eu sei que lá foi com enormes sacrifícios para curar-se de um defluxo; e curou-se, embora o doutor Adhil não lhe tivesse receitado um xarope qualquer, mas um específico de nome arrevesado, grego ou copta, Mutrat Todotata.
     Porque o maravilhoso clínico não gostava das fórmulas e medicamentos vulgares; ele era original na botica que empregava.
     O seu consultório ficava em uma rua central, ocupando todo um primeiro andar. As ante-salas eram mobiliadas com gosto e tinham mesmo pela parede quadros e mapas de cousas da arte de curar.
     Havia mesmo, no corredor, algumas gravuras de combate ao alcoolismo e era de admirar que estivessem no consultório de um médico, cuja glória o obrigava a ser conviva de banquetes diários, bem e fartamente regados.
     Para se ter a felicidade de sofrer um exame de minutos do milagroso clínico, era preciso que se adquirisse a entrada, isto é, o cartão, com ante- cedência, às vezes, de dias. O preço era alto, para evitar que os viciosos do grande clínico não atrapalhassem os que verdadeiramente necessitavam das luzes do célebre clínico...
     Custava a consulta cerca de cinquenta mil-réis, na nossa moeda; mas apesar de tão alto preço, o escritório da celebridade médica era objeto de uma verdadeira romaria e toda cidade o tinha como uma espécie de Aparecida médica.
     Cator Krat Ben, sócio principal da firma Suza & Cia, estabelecido com armazém de secos e molhados, lá pelas bandas de um arrabalde afastado da cidade, andava sofrendo de umas dores no estômago que não o deixavam comer com toda liberdade o seu bom cozido, rico de couves e nabos, farto de toucinho e abóbora vermelha, nem mesmo saborear, a seu contento, o caldo que tantas saudades lhe dava de sua aldeia natal.
     Consultou mezinheiros, curandeiros, espíritas, médicos locais e não havia meio de lhe passar de todo aquela insuportável dorzinha que não lhe permitia comer, com satisfação e abundância, o cozido e tirava-lhe de qualquer modo o sabor do caldo que tanto amava e apreciava.
     Era ir para a mesa, lá lhe aparecia a dor e o cozido com os seus pertences, muito cheiroso, rico de couves, farto de toucinho e abóbora, olhava-o, namorava-o e ele namorava o cozido sem ânimo de mastigá-lo, de devorá-lo, de engoli-lo com aquele ardor que a sua robustez e o seu desejo exigiam.
     Krat Ben Suza era solteiro e quase casto.
     Na sua ambição de pequeno comerciante, de humilde aldeão tangido pela vida e pela sociedade para a riqueza e para a fortuna, tinha recalcado todas as satisfações da vida, o amor fecundo ou infecundo, o vestuário, os passeios, a sociabilidade, os divertimentos, para só pensar nos contos de réis que lhe dariam a forra mais tarde, com toda a certeza, do seu quase ascetismo atual, no balcão de uma venda dos subúrbios.
     À mesa, porém, ele sacrificava um pouco do seu ideal de opulência e gastava sem pena na carne, nas verduras, nos legumes, no peixe, nas batatas, no bacalhau que, depois do cozido, era o seu prato predileto.
     Desta forma, aquela dorzita no estômago o fazia sofrer extraordinariamente. Ele se privava do amor; mas que importava se daqui a anos, ele pagaria para seu gozo, em dinheiro, em joias, em carruagens, em casamento até, corpos macios, veludosos, cuidados, perfumados, os mais caros que houvesse aqui ou na Europa; ele se privava de teatros, de roupas finas, mas que importava, se dentro de alguns anos, ele poderia ir aos primeiros teatros daqui ou da Europa com as mais caras que escolhesse; mas deixar de comer — isto não! Era preciso que o corpo estivesse sempre bem nutrido para aquela faina de quatorze ou quinze horas por dia, a servir ao balcão, a ralhar com os caixeiros, a suportar os desaforos dos fregueses e a ter cuidado com os calotes.
     Certo dia, ele leu nos jornais a notícia que o doutor Adhil Ben Thaft tinha tido permissão do governo para dar alguns tiros com os grandes canhões do grande couraçado da esquadra do país — “Witopá”.
     Leu a notícia toda e feriu-lhe o fato da informação dizer: “Esse maravilhoso clínico é, certamente, um exímio artilheiro...”
     Clínico maravilhoso! Com muito esforço de memória, pôde conseguir recordar-se de que aquele nome já por ele fora lido em qualquer parte. Maravilhoso clínico! Quem sabe se ele não curaria daquela dorzita ali, no estômago? Meditava assim, quando lhe entra pela venda adentro, o Sr. Hutekle, empregado na Repartição das Arapucas, funcionário público, homem sério e pontual no pagamento.
     Krat foi-lhe logo perguntando:

— Senhor Hutekle, o senhor conhece o doutor Adhil Ben Tad?

— Thaft, emendou o outro.

— Isto mesmo. Conhece-o, Senhor Hutekle?

— Conheço.

— É bom médico?

— Milagroso. Monta a cavalo, joga xadrez, escreve muito bem, é um excelente orador, grande poeta, músico, pintor, goal-keeper dos primeiros...

— Então é um bom médico, não é meu caro senhor?

— É. Foi quem salvou a minha mulher. Custou-me caro... Duas consultas...

— Quanto?

— Cinquenta mil-réis cada uma... Some.

     O merceeiro guardou a informação, mas não se resolveu imediatamente a ir consultar o famoso taumaturgo urbano. Cinquenta mil-réis!
     E se não ficasse curado com uma única consulta? Mais cinquenta...
     Viu na mesa o cozido, olente, fumegante, farto de nabos e couves, rico de toucinho e abóbora vermelha, a namorá-lo e ele a namorar o prato, sem poder gozá-lo com o ardor e a paixão que o seu desejo pedia. Pensou dias e afinal decidiu-se a descer até à cidade, para ouvir a opinião do doutor Adhil Ben Thaft sobre a sua dor no estômago, que lhe aparecia de onde em onde.
     Vestiu-se o melhor que pôde, dispôs-se a suportar o suplício das botas, pôs ao colete o relógio, a corrente e o medalhão de ouro com a enorme estrela de brilhante que parece ser o distintivo dos pequenos e grandes negociantes de todas as terras, e encaminhou-se para a estação da estrada de ferro. Ei-lo no centro da cidade.
     Adquiriu a entrada, isto é, o cartão, nas mãos do contínuo do consultório, despedindo-se dos seus cinquenta mil-réis com a dor de pai que leva um filho ao cemitério. Ainda se o doutor fosse seu freguês... Mas qual! Aqueles não voltariam mais...
     Sentou-se entre ‘cavalheiros bem vestidos e damas perfumadas. Evitou encarar os cavalheiros e teve medo das damas... Sentia bem o seu opróbrio, não de ser taverneiro, mas de só possuir de economias duas miseráveis dezenas de contos... Se tivesse algumas centenas — então, sim, ele! — ele poderia olhar aquela gente com toda a segurança da fortuna, do dinheiro, que havia de alcançar certamente, dentro de anos, o mais breve possível.
     Um a um, iam eles entrando para o interior do consultório; e pouco se demoravam. Suza começou a ficar desconfiado... Diabo! Assim tão depressa?
     Boa profissão, a de médico! Ah! Se o pai tivesse sabido disso... Mas qual!
     Pobre pai! Ele mal podia com o peso da mulher e dos filhos, como havia de pagar-lhe mestres? Cada um enriquece como pode...
     Foi, por fim, à presença do doutor. Krat gostou do homem. Tinha um olhar doce, os cabelos já grisalhos, apesar de sua fisionomia moça, umas mãos alvas, polidas.
     Perguntou-lhe o médico com muita macieza de voz:

— Que sente o senhor?

     Krat Ben Suza foi-lhe dizendo logo o terrível mal no estômago de que vinha sofrendo, há tanto tempo, mal que aparecia e desaparecia mas que não o deixava nunca. O doutor Adhil Ben Thaft fê-lo tirar o paletó, o colete, auscultou-o bem, examinou-o demoradamente, tanto de pé, como deitado, sentou-se depois, enquanto o negociante recompunha a sua modesta toilette.
     Suza sentou-se também, e esperou que o médico saísse de sua meditação.
     Foi rápida. Dentro de um segundo, o famoso clínico dizia com toda segurança:

— O senhor não tem nada.

     O humilde vendeiro ergueu-se de um salto da cadeira e exclamou indignado:

— Então, senhor doutor, eu pago cinquenta mil-réis e não tenho nada! Esta é boa! Noutra não caio eu!

     E saiu furioso do consultório que merecia da cidade uma romaria semelhante à da milagrosa Lourdes, no doce país de França.

Os Bruzundangas - Capítulo XV: Uma Consulta Médica
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Foi uma noite esplêndida

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Foi uma noite esplêndida, que o comandante Diego Samaritano condimentou com relatos suculentos de seus quarenta anos no rio, mas Fermina Daza teve que fazer um grande esforço para parecer entretida. Apesar de haver soado às oito o último aviso e de terem feito descer a essa hora os visitantes e recolhido a passarela, o navio não zarpou até que o comandante acabasse de jantar e subisse ao posto de comando para dirigir a manobra. Fermina Daza e Florentino Ariza ficaram debruçados na amurada do salão comum, confundidos com os passageiros ruidosos que disputavam entre si o jogo de identificar as luzes da cidade, até que o navio saiu da baía, meteu-se por canais invisíveis e pântanos salpicados de luzes ondulantes de pescadores, e resfolegou afinal a plenos pulmões no livre ar do rio Grande da Madalena. Então a banda irrompeu numa peça popular da moda, houve um alarido de prazer dos passageiros, e a dança começou em tropel.
     Fermina Daza preferiu se refugiar no camarote. Não tinha dito uma palavra durante toda a noite, e Florentino Ariza a deixara perdida em suas cavilações. Só a interrompeu para se despedir diante do camarote, mas ela não estava com sono, só um pouco de frio, e sugeriu que se sentassem um pouco para olhar o rio do mirante privado. Florentino Ariza rodou duas poltronas de vime até a amurada, apagou as luzes, pôs nos ombros dela uma manta de lã e se sentou ao seu lado. Ela enrolou um cigarro da caixinha que ele lhe trazia de presente, enrolou-o com uma habilidade surpreendente, fumou-o devagar com o fogo dentro da boca, sem falar, e depois enrolou mais dois em seguida e os fumou sem pausas. Florentino Ariza tomou gole a gole duas garrafas térmicas de café forte.
     O resplendor da cidade tinha desaparecido no horizonte. Vistos do mirante escuro, o rio liso e silente, e as pastagens das duas margens debaixo da lua cheia, se converteram numa planície fosforescente. De vez em quando se via uma choça de palha perto das grandes fogueiras que anunciavam que ali se vendia lenha para as caldeiras dos navios. Florentino Ariza conservava lembranças esbatidas de sua viagem de juventude, e a visão do rio fazia com que revivessem em rajadas deslumbrantes, como se fossem de ontem. Contou algumas a Fermina Daza, achando que podia animá-la, mas ela fumava em outro mundo. Florentino Ariza renunciou às suas lembranças e deixou-a só com as dela, e enquanto isso enrolava cigarros e os ia dando já acesos, até que a caixa acabou. A música cessou depois da meia-noite, o bulício dos passageiros se dispersou e se desfez em sussurros sonolentos, e os dois corações ficaram sozinhos no mirante em sombras, vivendo ao compasso do resfolegar do navio.
     Depois de um longo tempo, Florentino Ariza olhou Fermina Daza ao fulgor do rio, viu-a espectral, o perfil de estátua suavizado por um tênue resplendor azul, e viu que chorava em silêncio. Mas em vez de consolá-la, ou esperar que esgotasse suas lágrimas, como queria ela, deixou-se invadir pelo pânico.

— Você quer ficar só? — perguntou.

— Se quisesse não diria a você que entrasse — disse ela. 

     Então ele estendeu os dedos gelados na escuridão, buscou tateante a outra mão na escuridão, e a encontrou à espera. Ambos foram bastante lúcidos para perceber, num mesmo instante fugaz, que nenhuma das duas era a mão que tinham imaginado antes de se tocar, e sim duas mãos de ossos velhos. Mas no instante seguinte já eram. Ela começou a falar do marido morto, no tempo presente, como se estivesse vivo, e Florentino Ariza soube nesse momento que também para ela soara a hora de se perguntar com dignidade, com grandeza, com desejos incontidos de viver, o que devia fazer com o amor sem dono que lhe havia ficado.
     Fermina Daza parou de fumar para não soltar a mão que ele guardava na sua. Estava perdida na ansiedade de compreender. Não podia conceber marido melhor que tinha sido o seu, e no entanto encontrava mais tropeços do que complacências na evocação de sua vida, demasiadas incompreensões recíprocas, brigas inúteis, rancores mal solucionados. Suspirou de repente: "É incrível como se pode ser tão feliz durante tantos anos, no meio de tanto bate-boca, tantas chateações, porra, sem saber de verdade se isso é amor ou não." Quando acabou de desabafar, alguém tinha apagado a lua. O navio avançava com os passos contados, pondo um pé antes de pôr o outro: um imenso animal à espreita. Fermina Daza tinha voltado da ansiedade.

— Agora vá — disse.

     Florentino Ariza lhe apertou a mão, se inclinou para ela, e procurou beijá-la na face. Mas ela o afastou com sua voz rouca e suave.

— Ainda não — disse: — estou com cheiro de velha.

     Ouviu-o sair na escuridão, ouviu seus passos nas escadas, ouviu-o deixar de ser até o dia seguinte. Fermina Daza acendeu outro cigarro, e enquanto o fumava viu o doutor Juvenal Urbino com seu terno de linho imaculado, seu rigor profissional, sua simpatia deslumbrante, seu amor oficial, fazendo-lhe de outro navio do passado um aceno de adeus com seu chapéu branco. "Nós homens somos uns pobres criados dos preconceitos", ele tinha dito certa vez. "Em compensação, quando uma mulher resolve dormir com um homem não há barreira que não salte, nem fortaleza que não derrube, nem consideração moral nenhuma que não esteja disposta a varar de lado a lado: não há Deus que valha." Fermina Daza continuou imóvel até a madrugada, pensando em Florentino Ariza, não como o sentinela desolado da pracinha dos Evangelhos cuja lembrança já não lhe suscitava sequer uma luzinha de saudade, e sim como era agora, decrépito e descadeirado, mas real: o homem que estivera sempre ao alcance de sua mão, sem que ela o admitisse. Enquanto o navio a carregava resfolegante rumo ao fulgor das primeiras rosas, só rogava a Deus que Florentino Ariza soubesse por onde começar outra vez no dia seguinte. 

continua na página 244...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Foi uma noite esplêndida
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Não houve nada a fazer

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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continuando...

      Não houve nada a fazer. Quando por fim se convenceu de que estavam esgotadas todas as instâncias, Ofélia voltou a Nova Orleans. A única coisa que conseguiu da mãe foi que se despedisse dela, e Fermina Daza concordou depois de muitas súplicas, mas sem lhe permitir que entrasse na casa: tinha jurado pelos ossos da mãe, que para ela, naqueles dias de trevas, eram os únicos que continuavam limpos.
     Numa de suas primeiras visitas, falando de seus navios, Florentino Ariza tinha feito a Fermina Daza um convite formal para que embarcasse numa viagem de descanso pelo rio. Com mais um dia de trem podia ir até a capital da república, que eles, como a maioria dos caribenhos de sua geração, continuavam chamando pelo nome que teve até o século anterior: Santa Fé. Mas ela conservava as prevenções do mando e não queria conhecer uma cidade gelada e sombria onde as mulheres só saíam de casa para a missa das cinco, e não podiam entrar nas sorveterias nem nas repartições públicas, segundo lhe haviam dito, e onde havia a toda hora engarrafamentos de enterros nas ruas e uma garoa miúda desde os tempos do descobrimento: pior do que em Paris. Em compensação, sentia uma atração muito forte pelo rio, queria ver os jacarés tomando sol nas pontas de areia, queria ser acordada no meio da noite pelo choro de mulher dos peixes-boi, mas a ideia de uma viagem tão difícil, na sua idade, e ainda por cima viúva e só, lhe parecia irreal.
     Florentino Ariza reiterou o convite mais adiante, quando ela resolvera continuar viva sem o marido, e então lhe pareceu mais viável. Mas depois da briga com a filha, azedada pelas injúrias ao pai, pelo rancor ao marido morto, pela raiva de lembrar os salamaleques hipócritas de Lucrécia dei Real, que teve por tantos anos como sua melhor amiga, ela mesma se sentia de sobra na própria casa. Uma tarde, enquanto tomava sua infusão de folhas universais, olhou para o pântano do quintal, onde não tornaria a brotar a árvore da sua desventura.

— O que eu gostaria de fazer era me soltar desta casa, andando, em linha reta, reta, reta, e não voltar nunca mais — disse.

— Vá num navio — disse Florentino Ariza.

     Fermina Daza o olhou pensativa. 

— Pois olhe que podia ser — disse. 

     Não tinha pensado nisso um momento antes de falar, mas bastou admitir a possibilidade para dar a coisa como feita. O filho e a nora ouviram encantados. Florentino Ariza se apressou a precisar que Fermina Daza seria hóspede de honra em seus navios, haveria para ela um camarote arranjado como se fosse sua casa, um serviço perfeito, e o comandante em pessoa se devotaria à sua segurança e seu bem estar. Levou mapas da rota para entusiasmá-la, cartões postais de poentes furibundos, poemas ao paraíso primitivo do Madalena escritos por viajantes ilustres, ou que tinham chegado a tal pela excelência do poema. Ela lhes dava uma olhadela quando estava no humor certo. 

— Você não precisa me enganar como a uma criança — dizia. — Se vou, é porque resolvi, não pelo interesse da paisagem.

     Quando o filho sugeriu que sua esposa a acompanhasse, ela cortou a proposta pela raiz: "Estou muito crescida para que alguém cuide de mim." Ela própria acertou os pormenores da viagem. Sentiu um imenso descanso com a ideai de viver oito dias de subida e cinco de descida sem nada além do indispensável: meia dúzia de vestidos de algodão, suas coisas de toucador e asseio, um par de sapatos para embarcar e desembarcar e as babuchas caseiras para a viagem, e nada mais: o sonho de sua vida.
     Em janeiro de 1824, o comodoro João Bernardo Elbers, fundador da navegação fluvial, tinha içado a bandeira do primeiro navio a vapor que sulcou o rio Madalena, um traste primitivo de quarenta cavalos de força chamado Fidelidade. Mais de um século depois, num 7 de julho às seis da tarde, o doutor Urbino Daza e a mulher acompanharam Fermina Daza a embarcar no navio que a levaria em sua primeira viagem pelo rio. Era o primeiro construído nos estaleiros locais, que Florentino Ariza batizara em memória de seu antecessor glorioso: Nova Fidelidade. Fermina Daza jamais pôde acreditar que aquele nome tão significativo para eles fosse deveras uma casualidade histórica, e não mais uma graça do romantismo crônico de Florentino Ariza.
     Em todo caso, ao contrário de outros navios fluviais, antigos e modernos, o Nova Fidelidade tinha junto do camarote do comandante um camarote suplementar, amplo e confortável: uma sala de visitas com móveis de bambu de cores festivas, um quarto de dormir matrimonial decorado de alto a baixo com motivos chineses, um banheiro com banheira e chuveiro, um mirante coberto, muito amplo, com samambaias dependuradas e uma visão completa pela frente e pelos dois bordos do navio, e um sistema de refrigeração silencioso que mantinha todo o recinto a salvo do estrondo exterior num clima de primavera perpétua. Este aposento de luxo, conhecido como Camarote Presidencial porque ali haviam viajado até então três presidentes da república, não tinha um propósito comercial, reservado que era a autoridades de categoria e convidados muito especiais. Florentino Ariza o fizera construir com essa finalidade de imagem pública logo que foi nomeado presidente da C.F.C., mas com a certeza íntima de que mais cedo ou mais tarde ia ser o refúgio feliz de sua viagem de núpcias com Fermina Daza.
     Chegado o dia, com efeito, ela tomou posse do Camarote Presidencial em sua condição de dona e senhora. O comandante do navio fez as honras de bordo ao doutor Urbino Daza e esposa, e a Florentino Ariza, com champanha e salmão defumado. Chamava-se Diego Samaritano, vestia uniforme de linho branco, de uma correção absoluta, do bico dos botins ao boné com o escudo da C.F.C. bordado em fio de ouro, e tinha em comum com os demais capitães do rio uma corpulência de paineira, uma voz peremptória e maneiras de cardeal florentino. Às sete da noite deram o primeiro sinal de partida, e Fermina Daza sentiu-o ressoar com uma dor aguda dentro do ouvido esquerdo. Na noite anterior tinha tido sonhos sulcados de maus pressentimentos que não ousou decifrar. Muito cedo de manhã se fez levar ao vizinho panteão do seminário, que então se chamava Cemitério da Mangueira, e se reconciliou com o marido morto, de pé diante da sua cripta, num monólogo em que soltou os justos reproches que trazia atravessados na garganta. Depois lhe contou os pormenores da viagem e se despediu até muito breve. Não quis dizer a ninguém mais que partia, como fizera quase sempre que viajava à Europa, para evitar os adeuses exaustivos. Apesar de suas tantas viagens tinha a impressão de ser esta a primeira, e à medida que o dia rodava lhe aumentava a aflição. Uma vez a bordo, se sentiu abandonada e triste, e queria ficar só para chorar.
     Quando soou o último aviso, o doutor Urbino Daza e a mulher se despediram dela sem dramas, e Florentino Ariza os acompanhou à passarela de desembarque. O doutor Urbino Daza se afastou para lhe ceder o lugar depois de passar sua esposa, e só então percebeu que Florentino Ariza também partia em viagem. O doutor Urbino Daza não conseguiu disfarçar seu desconcerto.

— Mas disto não havíamos falado — disse.

     Florentino Ariza lhe mostrou a chave do seu camarote com uma intenção demasiado evidente: um camarote ordinário na coberta comum. Mas isso não pareceu ao doutor Urbino Daza prova suficiente de inocência. Dirigiu à mulher um olhar de náufrago, em busca de um ponto de apoio para seu desconcerto, mas se encontrou com uns olhos gelados. Ela lhe disse muito baixo, com voz severa: "Você também?" Sim: ele também, como a irmã Ofélia, pensava que o amor tinha uma idade em que começava a ser indecente. Mas soube reagir a tempo, e se despediu de Florentino Ariza com um aperto de mão mais resignado que agradecido.
     Florentino Ariza os viu desembarcar da amurada do salão. Tal como esperava e desejava, o doutor Urbino Daza e a mulher se voltaram para olhá-lo antes de entrar no automóvel, e ele fez um aceno de despedida. Os dois retribuíram. Continuou na amurada até o automóvel desaparecer na poeirada do pátio de carga, e depois foi para o seu camarote, para pôr um traje mais adequado ao primeiro jantar a bordo, na sala de jantar privada do comandante.

continua na página 244...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Não houve nada a fazer
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

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Os Bruzundangas - Capítulo XIV: As Eleições

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.

Capítulo XIV

As Eleições

     DENTRE as muitas superstições políticas do nosso tempo, uma das mais curiosas é sem dúvida a das eleições. Admissíveis quando se trata de pequenas cidades, para a escolha de autoridades verdadeiramente locais, quase municipais, como eram na antiguidade, elas tomam um aspecto de sortilégio, de adivinhação, ao serem transplantadas para os nossos imensos estados modernos. Um deputado eleito por um dos nossos imensos distritos eleitorais, com as nossas dificuldades de comunicação, quer materiais, quer intelectuais, sai das urnas como um manipanso a quem se vão emprestar virtudes e poderes que ele quase sempre não tem. Os seus eleitores não sabem quem ele é, quais são os seus talentos, as suas ideias políticas, as suas vistas sociais, o grau de interesse que ele pode ter pela causa pública; é um puro nome sem nada atrás ou dentro dele. O eleito, porém, depois de certos passes e benzeduras legais, vai para a Câmara representar-lhes a vontade, os desejos e, certamente, procurar minorar-lhes os sofrimentos, sem nada conhecer de tudo isto.
     A superstição eleitoral é uma das nossas cousas modernas que mais há de fazer rir os nossos futuros bisnetos.
     Na Bruzundanga, como no Brasil, todos os representantes do povo, desde o vereador até ao presidente da república, eram eleitos por sufrágio universal, e, lá, como aqui, de há muito que os políticos práticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador — “o voto”.
     Julgavam os chefes e capatazes políticos que apurar os votos dos seus concidadãos era anarquizar a instituição e provocar um trabalho infernal na apuração porquanto cada qual votaria em um nome, visto que, em geral, os eleitores têm a tendência de votar em conhecidos ou amigos. Cada cabeça, cada sentença; e, para obviar os inconvenientes de semelhante fato, os mesários da Bruzundanga lavravam as atas conforme entendiam e davam votações aos candidatos, conforme queriam.
     Na capital da Bruzundanga, Bosomsy, onde assisti diversas eleições, o espetáculo delas é o mais ineditamente pitoresco que se pode imaginar.
     As ruas ficam quase desertas, perdem o seu trânsito habitual de mulheres e homens atarefados; mas para compensar tal desfalque passam constantemente por elas carros, automóveis, pejados de passageiros heterogêneos. O doutor-candidato vai neles com os mais cruéis assassinos da cidade, quando ele mesmo não é um assassino; o grave chefe de seção, interessado na eleição de F., que prometeu fazê-lo diretor; o grave chefe, o homem severo com os vadios de sua burocracia, não trepida em andar de cabeça descoberta, com dous ou três calaceiros conhecidíssimos. A fisionomia aterrada e curiosa da cidade dá a entrever que se está à espera de uma verdadeira batalha; e a julgar-se pelas fisionomias que se amontoam nas seções, nos carros, nos cafés, e botequins, parece que as prisões foram abertas e todos os seus hóspedes soltos, naquele dia.
     Raro é o homem de bem que se faz eleitor, e se se alista, para atender a pedidos de amigos, não tarda que o seu diploma sirva a outro cidadão mais prestante, que no dia do pleito, para fins eleitorais, muda de nome e toma o do pacato burguês que se deixa ficar em casa, e vota com eles. Isto é o que lá se chama: — “um fósforo”.
     Às vezes semelhantes eleitores votam até com nomes de mortos, cujos diplomas apresentam aos mesários solenes e hieráticos que nem sacerdotes de antigas religiões. Quer um, quer outro serviço eleitoral, constituem os préstimos mais relevantes que se podem prestar aos políticos de profissão.
     Tais costumes eleitorais da Bruzundanga são fonte de muitos casos cômicos, mas, por serem quase semelhantes aos que se passam entre nós, abstenho-me de narrá-los. Entretanto, vou dar-lhes o depoimento de um ingênuo e inteligente eleitor, que descreve a sua iniciação eleitoral na Bruzundanga e os característicos do exercício dos direitos políticos que a sua constituição outorga aos cidadãos.
     Trata-se de uma das melhores relações que travei naquele país. Ao tempo em que nos conhecemos, ele tinha aí os seus vinte e seis anos e já havia publicado algumas memórias interessantes sobre a paleontologia da Bruzundanga.
     Não sei, ao certo, se continuou com brilho a sua estreia brilhante; mas, suspeito que não.
     A sociedade da Bruzundanga mata os seus talentos, não porque os desdenhe, mas porque os quer idiotamente mundanos, cheios de empregos, como enfeites de sala banal.
     O meio inconsciente de que ela se serve para tal fim, é o casamento.
     O rapaz começa a fazer ruído e logo todos o cercam, já os de sua camada, já os de camada superior, se é de extração modesta.
     É natural que ele encontre entre tantas damas da roda que o cerca a do seu pensamento.
     Ei-lo casado; a mulher, porém, não pode compreender sábio que não ganhe muito dinheiro e viva modestamente. Não compreende nem Spinosa, nem Fabre. Se não se faz católico praticamente, o rapaz, para arranjar bons empregos, faz-se charlatão, acólito de políticos, já não medita, perde a pertinácia, para as pesquisas originais, publica compilações rendosas e enche-se de cargos públicos e particulares. É esta a trajetória de todas as “esperanças” intelectuais da Bruzundanga.
     Penso, por isso, que o meu amigo, Halaké Ben Thoreca, como todos os seus iguais, se banalizou com o casamento e a conseqüente cavação de empregos. Tratemos, porém, da sua estréia eleitoral, como ele me contou. Vamos ouvi-lo:

     “Pelos meus vinte e dous anos, uma manhã, li um artigo eloquente em que se lembrava aos bruzundanguenses a necessidade, o dever de inscrever os seus nomes no próximo alistamento eleitoral. Li e fiquei convencido, Depois de árduos trabalhos, obtive o diploma; e, nas vésperas da eleição, pus-me a estudar os manifestos dos candidatos ao cargo espinhoso de deputado. Fiquei perplexo.
     Julho Ben Khosta, com mais de vinte anos de prática no ofício de candidato, prometia, caso fosse eleito, propugnar a disseminação de livros e estampas; e, hoje mesmo, apesar de homem feito, passa horas e horas a folheá-los. A promessa de Julho Ben Khosta demoveu-me a empenhar-lhe o meu voto. Não durou muito essa minha resolução. Na mesma coluna dos apedidos do jornal, a plataforma do doutor Karaban acenava-me com uma grande esperança.
     Este doutor gastava frases e juramentos, prometendo que faria decretar a aprovação compulsória dos estudantes reprovados.
     Calculem que eu tinha quatro bombas em mecânica e, por aí, poderão imaginar como fiquei contente com semelhante candidato.
     Foi tiro e queda: decidi votar no doutor Karaban. Saí bem cedo, para almoçar qualquer cousa.
     Na pensão um meu amigo pediu-me que votasse no Kasthriotoh. É um moço muito pobre, está quase na miséria, disse-me o amigo, cheio de família; precisa muito do subsídio.
     Tive dó e, quando deixei o almoço, tinha o arraigado propósito de votar no indigente Kasthriotoh. Dirigi-me, no dia próprio, para a seção eleitoral, e esperei. Chamaram-me, afinal.
     Quase a tremer, no alevantado fito de influir nos destinos da Pátria consegui atravessar por entre duas filas de homens de aspecto feroz, que me olhavam desdenhosamente.
     Sentei-me, mostrei o meu título, assinei um livro, depus a cédula na urna e fiquei um momento cismando diante da esbelteza de um longo arco abatido que, de uma única enjambée e com uma flecha relativamente diminuta, vencia, com suave elegância, toda a largura do átrio do palácio vice-real, onde funcionava a seção eleitoral.
     Creio que me demorei indecentemente nessa admiração, porque vi as minhas cismas interrompidas pelo grito enérgico do coronel mesário-presidente:

— O senhor não se levanta! berrou o homem. Obedecendo, afastei-me corrido de vergonha e atravessei de novo por entre aquelas mesmas caras ferozes que me tinham visto passar um pouco antes, no alevantado intuito de influir nos destinos da Pátria.

     Aguardei o resultado quieto, a um canto.
     Estava seriamente interessado em impedir que o pobre Kasthriotoh morresse de fome, com a mulher, filhos, sogra, cunhadas, etc.
     Estive assim cerca de duas horas, ao fim das quais alguns daqueles sujeitos horrendos se aproximaram e, fingindo que o faziam às ocultas, começaram a examinar facas, punhais, estoques, garruchas, revólveres, que traziam. Via perfeitamente tais armas e descobri que mesmo para isso é que eles tal cousa faziam.
     Fascinaram-me e não pude desviar o olhar. Foi a minha desgraça, Deus dos Céus! Um deles ergueu o chapéu ao alto da cabeça e fez para mim, encarando-me com horrorosa catadura:

— Que está olhando?

— Nada, não senhor; respondi eu.

— Vá... Você está aí com parte de siri sem unha... Arreda!

     E, sem saber como, vi-me envolvido em um formidável rolo e levei uma porção de pauladas e quatro facadas.
     Mandaram-me para a Santa Casa, onde meu amigo Hanthônio me foi visitar:

— Que foi isto? perguntou-me.

— Direitos políticos.

     Depois de restabelecido, vim a saber que o Kasthriotoh não tivera um único voto e arranjara um emprego modesto que lhe dava para fazê-lo viver e mais a família com café e pão sem manteiga. A ata (eu a pude ver mais tarde) estava um primor de autenticidade, pois tinha sido falsificada com toda a perfeição por um espanhol que vivia do ofício eleitoral de falsificar atas de eleições. Eis como foi a minha estreia eleitoral.”

     Os meus leitores poderão verificar que, no ponto de vista eleitoral, a Bruzundanga nada tem que invejar da nossa cara pátria.

Os Bruzundangas - Capítulo XIV: As Eleições
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Nova fase da luta: III: Complemento do assédio

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1

Nova fase da luta 


III - 

Complemento do assédio

     Logo ao alvorecer, enquanto a esquerda da linha e os canhões da Favela iniciavam renhido ataque, atraindo para aquele lado a atenção do inimigo, o tenente-coronel Siqueira de Meneses, seguido pelos 24.°, 38.° e 32.° Batalhões de linha, comandados pelo major Henrique de Magalhães, capitão Afonso Pinto de Oliveira e tenente Joaquim Potengi; o do Amazonas; a ala direita do de S. Paulo, guiada pelo major José Pedro de Oliveira; e um contingente de cavalaria ao mando do alferes Pires de Almeida — abalara o segmento ainda desguarnecido do assédio, assaltando os pequenos contingentes que o guarneciam dentro das últimas vivendas, que se derramavam, esparsas, por aquela banda.
     Os jagunços não contavam que fossem até lá. Era o ponto de Canudos diametralmente oposto à fazenda Velha e mais distante da primitiva frente do assalto.
     Via-se ali um subúrbio novo, as "Casas Vermelhas", ereto depois do fracasso da 3.ª expedição, e nele edificações mais corretas, cobertas, algumas de telhas. Não estava guarnecido convenientemente. Faltavam-lhe as trincheiras-abrigos, que abrolhavam tão numerosas noutros pontos, e, circunstância na emergência desastrosa para os rebeldes, todas as vivendas pelo fato de serem as mais remotas se atestavam de mulheres e crianças.
     A força tendo à vanguarda o 24.°, marchando pelo leito do rio, caiu-lhes em cima e varejou-as em minutos. Como em geral acontecia, os guerrilheiros viram-se tolhidos na balbúrdia do mulherio medroso. Entretanto não cederam desde logo a posição. Recuaram, resistindo; e acompanhando-os os soldados foram embrenhando-se nas vielas.
     Tomando a ofensiva, reeditavam episódios inevitáveis. Enfiavam as espingardas pelos tabiques de taipa, disparando-as, a esmo, para dentro; arrombavam-nos depois a coronhadas; e sobre a acendalha de trapos e móveis miseráveis atiravam fósforos acesos. Os incêndios deflagravam, abrindo-lhes caminho. Adiante recuava o sertanejo, recuando pelos cômodos escusos. Aqui, ali, destacadamente, uma resistência estupenda de um ou outro, jogando alto a vida. Um deles, abraçado pela esposa e a filha, no momento em que a porta da choupana se escancarou, estrondada em lascas, atirou-as rudemente de si: assomou de um salto ao limiar e abateu, num revide terrível, o primeiro agressor que deparou, um alferes, Pedro Simões Pinto, do 24.º, Baqueou logo, circulado pelos soldados, a cutiladas. E ao expirar teve uma frase lúgubre: "Ao menos matei um . . . "
     Outro distraiu os soldados. Episódio truanesco e medonho: num recanto da saleta invadida, caído de banda, sem alento sequer para sentar-se, adelgaçado de magreza extrema, um curiboca velho, meio desnudo, revestido de esparadrapos, forcejava por disparar uma lazarina antiga. Sem forças para aperrá-la, levantava-a a custo. Deixava-a logo descair nos braços frouxos, desesperado, refegada a face ossuda, num esgar de cólera impotente. As praças rodearam-no um momento; e seguiram num coro estrepitoso de risadas.
     Mas este resistir a todo o transe, em que entravam os próprios moribundos, cortou-lhes, afinal, o passo. Em pouco tempo tiveram treze baixas. Além disto o adversário recuava, mas não fugia. Ficava na frente, a dois passos, na mesma vivenda, no cômodo próximo, separado por alguns centímetros de taipa. Estacaram. Para não perderem o avançamento feito abarreiraram, com os móveis e destroços das casas, toda a frente da posição. Era o processo usual e obrigatório.
     Defronte não havia terreno neutro. O jagunço ficava colado — indomável — na escarpa oposta do parapeito, vigilante, tenteando a pontaria.


Cenário de tragédia

     Esta refrega, atroando ao norte, ecoava no acampamento, alarmando-o. Atestadas de curiosos, todas as casinhas adjacentes à comissão de engenharia formavam a platéia enorme para a contemplação do drama. Assestavam-se binóculos em todos os rasgões das paredes. Aplaudia-se. Pateava-se. Estrugiam bravos. A cena — real, concreta, iniludível — aparecia-lhes aos olhos como se fora uma ficção estupenda, naquele palco revolto, no resplendor sinistro de uma gambiarra de incêndios. Estes progrediam constrangidos, ao arrepio do sopro do nordeste, esgarçando-lhe a fumarada amarelenta, ou girando-a em rebojos largos em que fulguravam e se diluíam listrões fugazes de labaredas. Era o sombreado do quadro, abrangendo-o de extremo a extremo e velando-o de todo, às vezes, como o telão descido sobre um ato de tragédia.
     Nesses intervalos desaparecia o arraial. Desaparecia inteiramente a casaria. Diante dos espectadores estendia-se, lisa e pardacenta, a imprimidura, sem relevos, do fumo. Recortava-a, rubro e sem brilhos — uma chapa circular em brasa — um sol bruxuleante, de eclipse. Rompia-a, porém, de súbito, uma lufada rija. Pelo rasgão enorme, de alto a baixo aberto, divisava-se uma nesga do arraial — bandos estonteados de mulheres e crianças correndo para o sul, em tumulto, indistintos entre as folhagens secas das latadas. As baterias da Favela batiam-nos de frente. Os grupos miserandos, entre dois fogos, fustigados pela fuzilaria, repelidos pelo canhoneio, desapareciam, por fim, entaliscados nos escombros, ao fundo do santuário. Ou escondiam-nos outra vez, promanando da combustão lenta e inextinguível e rolando vagarosamente sobre os tetos, os novelos de fumo, compactos, em cúmulos, alongando-se pelo solo, empolando-se na altura, num tardo ondular de grandes vagas silenciosas, adensando-se e desfazendo-se à feição dos ventos; chofrando a frontaria truncada da igreja nova, deixando lobrigar-se num pedaço de muramento esboroado, e encobrindo-o logo; dissolvendo-se adiante sobre um trecho deserto do rio; espraiando-se mais longe, delidos, pelo topo dos outeiros...
     As vistas curiosas dos que pelo próprio afastamento não compartiam a peleja coavam-se naquele sendal de brumas. E quando estas se adunavam impenetráveis, em toda a cercadura de camarotes grosseiros do monstruoso anfiteatro explodiam irreprimíveis clamores de contrariedades e desapontamentos de espectadores frenéticos, agitando os binóculos inúteis, procurando adivinhar o enredo inopinadamente encoberto.
     Porque a ação se delongava. Delongava-se anormal, sem o intermitir das descargas intervaladas, o tiroteio cerrado e vivo, crepitando num estrepitar estrídulo de tabocas estourando nos taquarais em fogo. De sorte que por vezes pairava no ânimo dos que o escutavam, ansiosos, o pensamento de uma surtida feliz dos sertanejos, saindo pelas tranqueiras rotas ao norte. Os ecos dos estampidos, variando de rumos, torcidos em ricochete pelos flancos das colinas, subindo de intensidade no nevoeiro compacto, desviavam-se. Estalavam-lhes perto, à direita e à retaguarda, dando a ilusão de um ataque do inimigo escapo e precipitando-se, em tropel, num revide repentino. Trocavam-se ordens precipites. Formavam-se os corpos de reserva. Cruzavam-se inquirições comovidas...
     Ouvia-se, porém, longínquo, um ressoar de brados e vivas. Corria-se aos mirantes acasamatados. Retomavam-se os binóculos. Uma rajada corria, em sulco largo e límpido, pela cerração dentro, talhando-a de meio a meio, e desvendando de novo o cenário.
     Era um desafogo. Vozeavam aclamações e aplausos. Os jagunços recuavam.
     Por fim se viu, estirando-se até ao caminho do Cambaio, uma linha de bandeirolas vermelhas.


Estava bloqueado Canudos.

     A nova chegou em pouco ao acampamento de onde largaram, à espora fita, correios para Monte Santo, levando-a, para que de lá o telégrafo a espalhasse no país inteiro.
     Circuitava agora toda a periferia do povoado uma linha interrompida de tranqueiras, nos intervalos das quais não havia escoar-se mais um único habitante: a leste, o centro do acampamento, à retaguarda da linha negra, centralizada pela 3.ª Brigada; ao norte, as posições recém-expugnadas, alongando-se guarnecidas sucessivamente pelo 31.°, ala esquerda do 24.º, 38.°, ala direita do Batalhão Paulista e o 32.°, de Infantaria, cortando as estradas do Uauá e a Várzea da Ema; em todo o quadrante de noroeste, guarnições espaçadas, ladeando o redente artilhado no extremo da vereda do Cambaio; a Favela e o baluarte dominante da Sete de Setembro, ao sul.
     Ainda que em fragmentos, traçara-se a curva fechada do assédio real, efetivo.
     A insurreição estava morta.

continua na página 321...
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Leia também:

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OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
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OS SERTÕES - Nova fase da luta: III: Complemento do assédio
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.