quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Os Bruzundangas - OUTRAS HISTÓRIAS DOS BRUZUNDANGAS: No Salão da Marquesa

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís

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OUTRAS HISTÓRIAS DOS BRUZUNDANGAS


No Salão da Marquesa

     NA República da Bruzundanga, nunca houve grande gosto pelas coisas de espírito. A atividade espiritual daquelas terras se limita a uns doutorados de sabedoria equívoca; entretanto, alguns espíritos daquele Fonkim se esforçavam por dar um verniz espiritual à sociedade da terra. Escreviam livros e folhetos, revistas e revistecas, de modo que, artificialmente, o país tinha uma certa atividade espiritual.
     Notavam todos a falta de salas literárias, de salões espirituais, tais aqueles que tanto brilho deram ao século XVIII francês, revelando não só grandes escritores e filósofos, mas também espíritos femininos que, pela sua graça, pelo seu talento de penetração, muito distinguiram o sexo amável, antes desse feminismo truculento e burocrático que anda por aí.
     Consciente desta falta, a Marquesa de Borós, uma senhora de alta estirpe e não menos alta inteligência, tomou o alvitre de fundar um salão literário.
     Ela residia em um grande palácio que se dependurava sobre a cidade capital, do alto de uma verdejante colina; e nele, em certas e determinadas tardes reunia os intelectuais do país.
     Em começo, recebeu alguns de valia; mas, bem depressa, os fariseus e simuladores de talento tomaram conta da sala.
     A sua delicadeza e a sua bondade se vira obrigada a receber toda essa chusma de mediocridades que, sem ter talento nem vocação, se julgam literatos e artistas, como se se tratasse de condecorações e títulos fornecidos pelo presidente da República do Cunany.
     A esse pessoal, acompanhou o equivalente feminino; e era de ver como Cathos fazia pendant ao farmacêutico Homais; Madelon ao gramático Vaugelas; e Filaminta ao artista Pèlerin.
     Uma sociedade, ou antes: este salão começou a dominar a atividade espiritual do país; e não havia recompensa do esforço intelectual em que ele não se metesse e até pusesse o seu veto.
     O parecer dele era sempre sobremodo néscio e tolo.
     Para uns, ele opinava:

— O Jagodes receber prêmio — qual! Um filho natural! Não é possível!

     Para outros, ele sentenciava:

— Não julgo o Fagundes digno de figurar no Grêmio Literário Nacional... Ele não bebe champagne!

     A propósito destoutro, ele dogmatizava:

— O Bustamante não pode receber a medalha. É verdade que ele tem merecimento; mas veste-se muito mal...

     Essa opinião acabava de ser pronunciada pelo ilustre literato Manuel das Regras, cuja obra por ser desconhecida era de alto valor, quando, num canto da sala, foi visto um sujeito malvestido, relaxado, sujo mesmo, com um todo de homem de outros tempos.
     Todos se entreolharam com certo medo, apesar do estranho não ter nenhum ar de existência sobrenatural.
     Um mais animoso resolveu-se a falar ao intruso:

— Quem é o senhor?!
— Eu! Eu sou Francisco II, rei da Prússia.

     E toda aquela miudeza de gente escafedeu-se por todas as portas e janelas da sala.

Careta, Rio, 5-11-21.

Os Bruzundangas - Outras Histórias dos Bruzundangas: No Salão da Marquesa
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

O Cortiço - XI: A Bruxa

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


XI 
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     A Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo e tentou incendiar o cortiço.
     Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ela, com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o número 12 e preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as consequências foram do mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como aquela ao fogo, não escaparam à devastação da polícia. Algumas ficaram completamente assoladas. E a coisa seria ainda mais feia, se não viera o providencial aguaceiro apagar também o outro incêndio ainda pior, que, de parte a parte, lavrava nos ânimos. A polícia retirou-se sem levar nenhum preso. “A ir um iriam todos à estação! Deus te livre! Demais, para quê? o que ela queria fazer, fez! Estava satisfeita!”
     Apesar do empenho do João Romão, ninguém conseguiu descobrir o autor da sinistra tentativa, e só muito tarde cada qual cuidou de pregar olho, depois de reacomodar, entre plangentes lamentações, o que se salvou do destroço. O tempo levantou de novo à meia-noite. Ao romper da aurora já muita gente estava de pé e o vendeiro passava uma revista minuciosa no pátio, avaliando e carpindo, inconsolável e furioso, o seu prejuízo. De vez em quando soltava uma praga. Além do que escangalharam os urbanos dentro das casas, havia muita tina partida, muito jirau quebrado, lampiões em fanicos, hortas e cercas arrasadas; o portão da frente e a tabuleta foram reduzidos a lenha. João Romão meditava, para cobrir o dano, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem, aumentando-lhes o aluguel dos cômodos e o preço dos gêneros. Viu-se numa dobadoura durante o dia inteiro; desde pela manhã dera logo as providências para que tudo voltasse aos seus eixos o mais depressa possível: mandou buscar novas tinas; fabricar novos jiraus e consertar os quebrados; pôs gente a remendar o portão e a tabuleta. Ao meio-dia teve de comparecer à presença do subdelegado na secretaria da polícia. Foi mesmo em mangas de camisa e sem meias; muitos do cortiço o acompanharam, quer por espírito de camaradagem, quer por simples curiosidade.
     Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! Parecia uma romaria; algumas mulheres levaram os seus pequenitos ao colo; um magote de italianos ia à frente, macarroneando, a fumar cachimbo; alguns cantavam. Ninguém tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farândola.
     A sala da polícia encheu-se.
     O interrogatório, exclusivamente dirigido a João Romão, era respondido por todos a um só tempo, a despeito dos protestos e das ameaças da autoridade, que se viu tonta. Nenhum deles nada esclarecia e todos se queixavam da polícia, exagerando as perdas recebidas na véspera.
     A respeito de como se travara o conflito e quem o provocara, o taverneiro declarou que nada podia saber ao certo, porque na ocasião se achava ausente da estalagem. De que tinha certeza era de que as praças lhe invadiram a propriedade e puseram em cacos tudo o que encontraram, como se aquilo lá fosse roupa de francês!

- Bem feito! bradou o subdelegado. Não resistissem!

     Um coro de respostas assanhadas levantou-se para justificar a resistência. “Ah! Estavam mais que fartos de ver o que pintavam os morcegos, quando lhes não saia alguém pela frente! Esbodegavam até à última, só pelo gostinho de fazer mal! Pois então uma criatura, porque estava a divertir-se um bocado com os amigos, havia de ser aperreada que nem boi ladrão?... Tinha lá jeito? Os rolos era sempre a polícia quem os levantava com as suas fúrias! Não se metesse ela na vida de quem vivia sossegado no seu canto, e não seria tanto barulho!...” Como de costume, o espírito de coletividade, que unia aquela gente em circulo de ferro, impediu que transpirasse o menor vislumbre de denúncia. O subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a um por um, despachou o bando, que fez logo a sua retirada, no meio de uma alacridade mais quente ainda que a da ida.
     Lá no cortiço, de portas adentro, podiam esfaquear-se à vontade, que nenhum deles, e muito menos a vitima, seria capaz de apontar o criminoso; tanto que o médico, que, logo depois da invasão da polícia, desceu da casa do Miranda à estalagem, para socorrer Jerônimo, não conseguiu arrancar deste o menor esclarecimento sobre o motivo da navalhada. “Não fora nada!... Não fora de propósito!... Estavam a brincar e sucedera aquilo!... Ninguém tivera a menor intenção de fazer-lhe mossa!...”
     Rita mostrou-se de uma incansável solicitude para com o ferido. Foi ela quem correu a buscar os remédios, quem serviu de ajudante ao medico e quem serviu de enfermeira ao doente. Muitos lá iam, demorando-se um instante, para dar fé; ela, porém, desde que Jerônimo se achou operado, não lhe abandonou a cabeceira; ao passo que Piedade, aflita e atarantada, não fazia senão chorar e arreliar-se. A mulata, essa não chorava; mas a sua fisionomia tinha uma profunda expressão de mágoa enternecida. Agora toda ela se sentia apegar-se àquele homem bom e forte; àquele gigante inofensivo, àquele Hércules tranquilo que mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na sua boa-fé, se deixara navalhar pelo facínora. “E tudo por causa dela! só por ela!” Seu coração de mulher rendia-se cativo a semelhante dedicação ensanguentada e dolorosa. E ele, o mísero, interrompia as contrações do rosto para sorrir defronte dos olhos enamorados da baiana, feliz naquela desgraça que lhe permitia gozar dos seus carinhos. E tomava-lhe as mãos, e cingia-lhe a cintura, resignado e comovido, sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente.
     Rita afagava-o, já sem a menor sombra de escrúpulo, tratando-o por tu, ameigando-lhe os cabelos sujos de sangue com a polpa macia da sua mão feminil. E ali mesmo em presença da mulher dele só faltava beijá-lo com a boca, que com os olhos o devorava de beijos ardentes e sequiosos.
     Depois da meia-noite dada, ela e Piedade ficaram sozinhas velando o enfermo. Deliberou-se que este iria pela manhã para a Ordem de Santo Antônio, de que era irmão. E, com efeito, no dia imediato, enquanto o vendeiro e seu bando andavam lá às voltas com a polícia, e o resto do cortiço formigava, tagarelando em volta do conserto das tinas e jiraus, Jerônimo, ao lado da mulher e da Rita, seguia dentro de um carro para o hospital.
     As duas só voltaram de lá à noite, caindo de fadiga. De resto, toda a estalagem estava igualmente prostrada e morrendo pela cama, se bem que nesse dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho; as que tinham roupa com mais pressa foram lavar fora ou arrastaram bacias de banho para debaixo das bicas, à falta de melhor vasilha para o serviço. Discutiu-se a campanha da véspera sem variar o assunto. Aqui era um que lembrava as suas proezas com os urbanos, descrevendo entusiasmado os pormenores da luta; ali, outro repetia, cheio de empáfia, os desaforos que dissera depois nas bochechas da autoridade; mais adiante trocavam-se queixas e recriminações; cada qual, mulheres e homens, sofrera o seu prejuízo ou a sua arranhadura, e mostravam entre si, numa febre de indignação, os objetos partidos ou a parte do corpo escoriada.
     Mas às nove da noite já não havia viva alma no pátio da estalagem. A venda fechou-se um pouco mais cedo que de costume. Bertoleza atirou-se ao colchão, estrompada; João Romão recolheu-se junto dela, porem não conseguiu dormir: sentia calafrios e pontadas na cabeça. Chamou pela amiga, a gemer, e pediu-lhe que lhe desse alguma coisa para suar. Supunha estar com febre.
     A crioula só descansou quando, muitas horas adiante, depois de mudar-lhe a roupa, o viu pegar no sono; e daí a pouco, às quatro da madrugada, erguia-se ela, com estalos de juntas, a bocejar, fungando no seu estremunhamento pesadão, e pigarreando forte. Acordou o caixeiro para ir ao mercado; gargarejou um pouco da água à torneira da cozinha e foi fazer fogo para o café dos trabalhadores, riscando fósforos e acendendo cavacos num fogareiro, donde começaram a borbotar grossos novelos de fumo espesso.
     Lá fora clareava já, e a vida renascia no cortiço. A luta de todos os dias continuava, como se não houvera interrupção. Principiava o burburinho. Aquela noite bem dormida punha-os a todos de bom humor.
     Pombinha, entretanto, nessa manhã acordara abatida e nervosa, sem animo de sair dos lençóis. Pediu café à mãe, bebeu, e tornou a abraçar-se nos travesseiros, escondendo o rosto.

- Não te sentes melhor hoje, minha filha?... perguntou-lhe Dona Isabel, apalpando-lhe a testa. Febre não tens.
- Ainda sinto o corpo mole... mas não é nada... isto passa!...
- Foi de tanto gelo, que tomaste em casa de madama!... Não te dizia?... Agora, o melhor é dar-te um escalda-pés!...
- Não, não, por amor de Deus! Daqui a pouco estou em pé!

     Às oito horas, com efeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o alinho da cabeça, defronte do seu modesto lavatório de ferro. Dir-se-ia sem forças para a menor coisa; toda ela transpirava uma contemplativa melancolia de convalescente; havia uma doce expressão dolorosa na limpidez cristalina de seus olhos de moça enferma; um pobre sorriso pálido a entreabrir-lhe as pétalas da boca, sem lhe alegrar os lábios, que pareciam ressequidos à mingua de beijos de amor; assim delicada planta murcha, languesce e morre, se carinhosa borboleta não vai sacudir sobre ela as asas prenhes de fecundo e dourado pólen.
     O passeio à casa de Léonie fizera-lhe muito mal. Trouxe de lá impressões de íntimos vexames, que nunca mais se apagariam por toda a sua vida.
     A cocote recebeu-a de braços abertos, radiante com apanhá-la junto de si, naqueles divãs fofos e traidores, entre todo aquele luxo extravagante e requintado próprio para os vícios grandes. Ordenou à criada que não deixasse entrar ninguém, ninguém, nem mesmo o Bebê, e assentou-se ao lado da menina, bem juntinho uma da outra, tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade de perguntas, e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados.
     Dona Isabel suspirava também, mas de outro modo: na sua parva compreensão do conforto, aqueles impertinentes espelhos, aqueles móveis casquilhos e aquelas cortinas escandalosas arrancavam-lhe saudosas recordações do bom tempo e avivavam a sua impaciência por melhor futuro. Ai! assim Deus quisesse ajudá-la!...
     Às duas da tarde, Léonie, por sua própria mão serviu às visitas um pequeno lanche de foie-gras, presunto e queijo, acompanhado de champanha, gelo e água de Seltz; e, sem se descuidar um instante da rapariga, tinha para ela extremas solicitudes de namorado; levava-lhe a comida à boca, bebia do seu copo, apertava-lhe os dedos por debaixo da mesa.
     Depois da refeição, Dona Isabel, que não estava habituada a tomar vinho, sentiu vontade de descansar o corpo; Léonie franqueou-lhe um bom quarto, com boa cama, e, mal percebeu que a velha dormia, fechou a porta pelo lado de fora, para melhor ficar em liberdade com a pequena. Bem! Agora estavam perfeitamente a sós!

- Vem cá, minha flor!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair sobre um divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!... Estou louca por ti!

     E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a menina, enchendo-a de espanto e de um instintivo temor, cuja origem a pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era.
     A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a mão.

- Descansemos nós também um pouco... propôs, arrastando-a para a alcova.

     Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda perplexa, com vontade de afastar-se, mas sem animo de protestar, por acanhamento, tentou reatar o fio da conversa, que elas sustentavam um pouco antes, à mesa, em presença de Dona Isabel. Léonie fingia prestar-lhe atenção e nada mais fazia do que afagar-lhe a cintura, as coxas e o colo. Depois, como que distraidamente, começou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.

- Não! Para quê!... Não quero despir-me...
- Mas faz tanto calor... Põe-te a gosto...
- Estou bem assim. Não quero!
- Que tolice a tua...! Não vês que sou mulher, tolinha?... De que tens medo?... Olha! Vou dar exemplo!

     E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha.
     A menina, vendo-se descomposta, cruzou os braços sobre o seio, vermelha de pudor.

- Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila trêmula.

     E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta, e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo bico do peito.

- Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se em cócegas, e deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta.
- Que mal faz?... Estamos brincando...
- Não! Não! balbuciou a vitima, repelindo-a.
- Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu.

     Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre seu mesquinho peito de donzela impúbere e o rogar vertiginoso daqueles cabelos ásperos e crespos nas estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do sangue, desertando-lhe a razão ao rebate dos sentidos.

Continua página 71...
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Leia também:

O Cortiço - XI: A Bruxa
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   Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
   Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
   Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
   A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
   Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
   Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

Marcel Proust - No Caminho de Swann (II - Combray, Jantei com Legrandin no terraço - l)

 em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(l) 

continuando...

     Jantei com Legrandin no terraço; fazia luar: “Há uma bela qualidade de silêncio, não é?”, disse-me ele. “Aos corações feridos, como o meu, um romancista que lerá mais tarde julga que só convém a sombra e o silêncio.[1] Olhe, meu filho, chega na vida uma hora, de que ainda está muito longe, em que os olhos não toleram mais que uma luz, a que uma linda noite como esta prepara e destila na escuridão, em que os ouvidos já não podem escutar outra música a não ser a que executa o luar na flauta do silêncio.” Eu escutava as palavras do sr. Legrandin, que sempre me pareciam tão agradáveis; mas perturbado com a lembrança de uma mulher a quem vira recentemente pela primeira vez, e pensando, agora que sabia estar Legrandin ligado a várias personalidades aristocráticas dos arredores, que talvez ele conhecesse aquela, tomei-me de coragem e disse-lhe: “Será que o senhor não conhece a… as castelãs de Guermantes?”, e feliz também porque, pronunciando esse nome, adquiria sobre o mesmo uma espécie de poder, pelo simples fato de o arrancar a meu sonho e dar-lhe uma existência objetiva e sonora.
     Mas, a esse nome de Guermantes, vi fixar-se no meio dos olhos azuis de nosso amigo um pontinho escuro, como se acabassem de ser varados por uma agulha invisível, ao passo que o resto da pupila reagia segregando ondas de azul. Suas olheiras enegreceram, aprofundaram-se. E sua boca vincada de um sulco amargo, dominando-se mais depressa, sorriu, enquanto o olhar permanecia doloroso, como o de um mártir cujo corpo se acha crivado de flechas: “Não, eu não as conheço”, disse ele, mas em vez de dar a uma informação tão simples, a uma resposta tão pouco surpreendente o tom natural e comum que convinha, pronunciou-a acentuando as palavras, inclinando-se, sacudindo a cabeça, e ao mesmo tempo com a insistência que se dá, para merecer crédito, a uma afirmação inverossímil — como se o fato de não conhecer os Guermantes só pudesse ser efeito de um singular acaso —, e também com a ênfase de quem, não podendo calar uma situação que lhe é penosa, prefere proclamá-la para dar aos outros a ideia de que a confissão que faz não lhe causa nenhum embaraço, e é fácil, agradável e espontânea, e que a própria situação — a falta de relações com os Guermantes — bem poderia ser, não sofrida, mas imposta por ele, e resultar de alguma tradição de família, princípio de moral ou voto místico que expressamente lhe proibisse a frequentação dos Guermantes.[2] “Não”, tornou ele, explicando com suas palavras sua própria entonação, “não, eu não a conheço, nunca o quis, sempre tratei de resguardar minha completa independência; no fundo, você bem sabe que sou um jacobino. Muita gente interveio, dizendo que eu fazia mal em não ir a Guermantes, dava assim a impressão de um casmurro, de um velho urso. Ora, isso não é fama que me assuste, pois é bem verdade! Afinal, só amo neste mundo a algumas igrejas, uns dois ou três livros, uns poucos quadros mais e o luar, quando a brisa de sua juventude traz até mim o cheiro dos jardins que minhas velhas pupilas já não podem distinguir”. Eu não compreendia muito bem por que seria preciso alardear independência para não ir à casa de pessoas desconhecidas e por que poderia isso dar à gente um ar de selvagem ou de urso. Mas bem compreendia que Legrandin não era inteiramente verídico quando dizia só amar as igrejas, o luar e a juventude; ele amava, e muito, os senhores dos castelos e sentia-se, em sua presença, tão temeroso de lhes desagradar, que não se atrevia a lhes deixar ver que tinha como amigos a burgueses, filhos de notários ou de corretores, preferindo, se a verdade viesse a ser descoberta, que o fosse em sua ausência, longe dele e “por omissão”; ele era esnobe. Por certo, nada dizia de tudo isso na linguagem de que meus pais e eu tanto gostávamos. E se eu perguntava: “Conhece os Guermantes?”, o causeur Legrandin respondia: “Não, nunca quis conhecê-los”. Infelizmente respondia tarde, pois um outro Legrandin que ele ocultava cuidadosamente no fundo de si mesmo e que não mostrava nunca, porque esse Legrandin sabia sobre o nosso, sobre o seu esnobismo, histórias comprometedoras, um outro Legrandin já tinha respondido com a expressão do olhar, com o ricto da boca, com a gravidade excessiva do tom da resposta, com as mil flechas de que nosso Legrandin se vira em um instante crivado e desfalecente, como um são Sebastião do esnobismo: “Ah!, que mal me faz! Eu não conheço os Guermantes, não me venha despertar a grande dor de minha vida”. E como esse Legrandin indiscreto, esse Legrandin falastrão, se não tinha a bonita linguagem do outro, tinha o verbo infinitamente mais pronto, composto do que se chama “reflexos”, quando o Legrandin “bom conversador” queria impor-lhe silêncio, o outro já tinha falado e, por mais que nosso amigo se desolasse com a má impressão que as revelações de seu alter ego deviam causar, o mais que podia fazer era atenuá-la.
     Mas isso não queria dizer que o sr. Legrandin não fosse sincero quando trovejava contra os esnobes. Ele não podia saber, pelo menos por si mesmo, que era esnobe, pois nós só conhecemos as paixões dos outros, e o que chegamos a saber das nossas apenas são eles que nos vão dizer. Sobre nós, elas só agem de forma secundária, pela imaginação que substitui os primeiros móveis por móveis de reserva mais decentes. Jamais o esnobismo de Legrandin lhe aconselhava que fosse visitar seguidamente a uma duquesa. Mas encarregava a imaginação de Legrandin de lhe apresentar essa duquesa como que ataviada de todas as graças. Legrandin se aproximava então da duquesa, pensando ceder a essa atração do espírito e da virtude que os infames esnobes ignoram. Só os outros sabiam que ele era esnobe; pois graças à incapacidade em que estavam de compreender o trabalho intermediário de sua imaginação, viam em face uma da outra a atividade mundana de Legrandin e sua causa primeira.
     Agora, em casa, já não tínhamos ilusões quanto ao sr. Legrandin e nossos encontros haviam se espaçado muito. Minha mãe divertia-se imenso cada vez que apanhava Legrandin em flagrante delito do pecado que ele não confessava e que continuava a chamar o pecado sem remissão, o esnobismo. Meu pai, esse, não podia tomar com tanto desprendimento e bom humor os desdéns de Legrandin; e, quando se pensara um ano em mandar-me passar as férias de verão em Balbec com minha avó, ele disse: “Preciso absolutamente comunicar a Legrandin essas férias em Balbec, para ver se ele se dispõe a apresentá-los à irmã. Com certeza já não se lembra de ter-nos dito que ela morava a dois quilômetros da praia”. Minha avó, que achava que nos banhos de mar a gente devia ficar da manhã à tarde na praia respirando o sal, não travando relações com ninguém, porque as visitas e passeios são outros tantos roubos que fazemos do ar marinho, pedia, ao contrário, que não falássemos de nossos projetos a Legrandin, pois já via sua irmã, a sra. de Cambremer, desembarcando no hotel no momento em que íamos para a pesca e forçando-nos a ficar encerrados para recebê-la. Mas mamãe ria de seus temores, pensando que o perigo não seria tão ameaçador e Legrandin não se mostraria tão solícito em apresentar-nos a sua irmã.[3] Ora, sem que se tivesse necessidade de falar em Balbec, foi ele próprio, Legrandin, que, sem desconfiar que tivéssemos jamais a intenção de ir para aquelas bandas, veio colocar-se no laço uma tarde em que o encontramos à margem do Vivonne.

— Há nas nuvens esta tarde violetas e azuis muito lindos, não é, companheiro? — disse ele a meu pai. — Um azul sobretudo mais floral que aéreo, um azul de cinerária, que surpreende no céu. E aquela nuvenzinha cor-de-rosa não tem também um tom de flor, de cravo ou de hidrângea? Apenas na Mancha, entre a Normandia e a Bretanha, pude fazer mais ricas observações sobre essa espécie de reino vegetal da atmosfera. Lá perto de Balbec, perto desses lugares selvagens, há uma pequena enseada de uma doçura encantadora, em que os poentes da terra de Auge, os poentes vermelhos e ouro que aliás estou longe de desdenhar, se apresentam sem caráter, insignificantes; mas naquela atmosfera úmida e suave se abrem à tarde, em alguns instantes, desses buquês celestes, azuis e róseos, que são incomparáveis e muitas vezes levam horas para se fanarem. Outras vezes desfolham-se em seguida e então é ainda mais belo ver o céu inteiro juncado de inúmeras pétalas sulfúreas ou róseas. Naquela enseada, como de opala, ainda mais suaves parecem as praias de ouro, por se acharem ligadas como loiras Andrômedas àqueles terríveis rochedos das costas vizinhas, àquelas ribas fúnebres,[4] famosas por tantos naufrágios, e onde todos os invernos tantas barcas soçobram aos perigos do mar. Balbec! A mais antiga ossamenta geológica do solo de França, verdadeiramente Ar-mor, o Mar, o fim da terra, a região maldita que Anatole France — um encantador que aqui o nosso amiguinho deveria ler — tão bem descreveu, sob suas brumas eternas, como o verdadeiro país dos cimérios, da Odisseia.[5] Principalmente de Balbec, onde já estão construindo hotéis, superpostos ao solo antigo e bom, que em nada alteram, que delícia excursionar, a dois passos, por aquelas regiões primitivas e tão belas!
— Ah! Será que o senhor não conhece alguém em Balbec? — disse meu pai. — Justamente esse pequeno deve ir passar dois meses lá com a avó e talvez com minha mulher.

     Legrandin, colhido de improviso pela pergunta em um momento em que tinha os olhos fitos em meu pai, não pôde desviá-los, mas, fixando-os de segundo a segundo com maior intensidade — e sem deixar de sorrir tristemente — nos olhos de seu interlocutor, com um ar de amizade e franqueza e de que não teme olhá-lo em face, pareceu atravessar-lhe o rosto, como que de súbito transparente, e ver naquele momento, além dele, uma nuvem vivamente colorida, que lhe criava um álibi mental e lhe permitiria provar que, no momento em que fora inquirido se não conhecia alguém em Balbec, estava pensando noutra coisa e não ouvira a pergunta. Habitualmente, tais olhares fazem o interlocutor dizer: “Mas em que está pensando o senhor?”. No entanto meu pai, curioso, irritado e cruel, insistiu:

— O senhor não tem amigos em Balbec, visto que conhece tão bem o lugar?

     Em um último e desesperado esforço, o sorridente olhar de Legrandin atingiu seu máximo de ternura, de vago, de sinceridade e de distração. Mas, considerando sem dúvida que agora não poderia deixar de responder, disse-nos:

— Tenho amigos por toda parte onde haja grupos de árvores feridas, mas não vencidas, que se aproximaram para implorar juntas, com uma obstinação patética, um céu inclemente que não se compadece delas. 
— Não era isso que eu queria dizer — interrompeu meu pai, tão obstinado como as árvores e tão impiedoso como o céu. — Eu perguntava para o caso em que acontecesse qualquer coisa a minha sogra e tivesse ela a necessidade de não se sentir lá como em terra estranha, se o senhor não conhecia alguém em Balbec.
— Lá, como em toda parte, conheço todo mundo e não conheço ninguém — respondeu Legrandin, que não se rendia tão depressa —, muito às coisas e muito pouco às pessoas. Mas lá as próprias coisas parecem pessoas, pessoas raras, de uma essência delicada e que a vida teria decepcionado. Ora é um castelo que encontramos na costa, junto ao caminho, parado ali para confrontar sua pena com a noite ainda rósea onde sobe a lua de ouro e cuja flâmula e cores ostentam em seus mastros os barcos que regressam, estriando as águas matizadas; ora é uma simples casa solitária, feia até, de aspecto tímido mas romanesco, que oculta a todos os olhos algum segredo imperecível de felicidade e encantamento. Essa terra sem verdade — acrescentou com uma delicadeza maquiavélica —, essa terra de ficção, eu não a recomendaria para o meu amiguinho, já tão dado à tristeza e com o coração tão predisposto. Os climas de confidência amorosa e de lamento inútil podem convir ao velho desabusado que eu sou, mas são sempre insalubres para um temperamento ainda em formação. Acredite-me — tornou ele com insistência —, as águas daquela baía, já metade bretã, podem exercer uma ação sedativa, aliás discutível, num coração que já não é intato como o meu, num coração cuja lesão não é mais compensada. Elas são contraindicadas na sua idade, meu menino. Boa-noite, vizinhos — acrescentou, deixando-nos com a brusquidão evasiva que lhe era habitual, e, voltando-se para nós com o dedo erguido do médico, resumiu sua consulta, gritando-nos: — Nada de Balbec antes dos cinquenta anos, e ainda assim depende do estado do coração. 

     Meu pai martelou no assunto em nossos encontros ulteriores, torturou-o com perguntas — tudo inútil: como aquele falsário erudito que empregava no fabrico de palimpsestos apócrifos um labor e uma ciência cuja centésima parte bastaria para lhe assegurar uma situação mais lucrativa, mas honrada,[6] o sr. Legrandin, se continuássemos a insistir, terminaria por edificar toda uma ética paisagística e uma geografia celeste da Baixa Normandia, antes que confessar que a dois quilômetros de Balbec residia sua própria irmã e ver-se obrigado a oferecer-nos uma carta de apresentação, coisa que não o assustaria tanto se tivesse certeza — como devia ter, dada a experiência que tinha do caráter de minha avó — de que não iríamos utilizá-la.
     Sempre voltávamos cedo de nossos passeios, para ter tempo de fazer uma visita a tia Léonie antes do jantar. No começo da estação em que os dias acabam cedo, ao chegarmos à rua do Espírito Santo, ainda havia um reflexo do poente nas vidraças da casa e uma faixa de púrpura ao fundo dos bosques do Calvário, que ia refletir-se mais além, no lago; púrpura que, acompanhada muitas vezes de um frio bastante vivo, se associava, em meu espírito, à púrpura do fogo onde se assava um frango, que me traria, depois do prazer poético do passeio, o prazer da gula, do calor e do repouso. No verão, pelo contrário, quando entrávamos, o sol ainda não se deitara e, durante nossa visita, sua luz que declinava e atingia a janela passava entre as grandes cortinas e os umbrais, dividida, ramificada, filtrada, e, incrustando de partículas de ouro a madeira de limoeiro da cômoda, iluminava obliquamente o quarto com a delicadeza que tem nos bosques, sob as árvores. Mas certos dias muito raros, ao regressarmos, fazia muito tempo que a cômoda perdera suas incrustações momentâneas e, ao chegarmos à rua do Espírito Santo, não havia mais nenhum reflexo de poente nas vidraças, e o lago ao pé do Calvário perdera sua púrpura, e às vezes era já de uma cor opalina, e um longo raio de lua, que se ia alargando e estriando com todas as rugas da água, atravessava-o de um lado a outro. E então, aproximando-nos de casa, avistávamos um vulto à porta, e mamãe me dizia:

— Meu Deus! Lá está Françoise à nossa espera; tua tia está alarmada; é que voltamos muito tarde.

     E sem perder tempo em desembaraçar-nos de nossos abrigos, subíamos em seguida ao quarto de tia Léonie para tranquilizá-la e mostrar-lhe que, contrariamente ao que imaginara, nada nos tinha acontecido, mas que apenas fôramos para o “lado de Guermantes” e — ora essa! — bem sabia ela que, quando dávamos esse passeio, não se podia ter certeza da hora do regresso.

— Eu não lhe dizia, Françoise, que eles deviam ter ido para o lado de Guermantes?! — exclamava minha tia. — Meu Deus! Devem estar com uma fome! E o seu carneiro que com certeza já está torrado, com todo esse tempo que esperou. Também, é hora que se chegue?! Como, então, vocês foram para o lado de Guermantes?
— Mas eu julgava que você o sabia, Léonie — dizia mamãe. — Pensava que Françoise nos tivesse visto sair pelo portãozinho da horta.

     Pois havia nas vizinhanças de Combray dois “lados” para os passeios, e tão opostos que não saíamos com efeito pelo mesmo portão, quando queríamos ir para um lado ou outro: o lado de Méséglise-la-Vineuse, também chamado o lado de Swann, porque se passava pela propriedade do sr. Swann quando íamos para aquelas bandas, e o lado de Guermantes.[7] De Méséglise, a falar a verdade, jamais lhe conheci senão o “lado” e uma gente estranha que nos domingos vinha passear em Combray, gente que, desta vez, nenhum de nós, nem sequer tia Léonie, “conhecia”, e que por isso era considerada “gente que devia ter vindo de Méséglise”. De Guermantes, eu viria um dia a saber muito mais, mas isso dali a anos e durante toda a minha adolescência, se Méséglise era para mim qualquer coisa de inacessível como o horizonte, oculto à vista, por mais longe que se fosse, pelos acidentes de um terreno que já não se assemelhava ao de Combray, Guermantes sempre me apareceu como um termo antes ideal que real de seu próprio “lado”, uma espécie de expressão geográfica abstrata como a linha do equador, como os polos, como o Oriente. Assim, “tomar por Guermantes” para ir a Méséglise, ou o contrário, parecia-me uma expressão tão sem sentido como tomar por leste para ir a oeste. Visto que meu pai falava sempre do lado de Méséglise como da mais bela vista da planície que conhecia e do lado de Guermantes como da paisagem típica de rio, eu lhes dava, concebendo-os assim como duas entidades, essa coesão e unidade que só pertencem às criações de nosso espírito; a mínima parcela de cada um me parecia preciosa e cheia de sua peculiar excelência, ao passo que, em comparação com eles, antes que se chegasse ao solo sagrado de um ou outro, os caminhos em cujo fim se achavam pousados como o ideal da vista de planície e o ideal da paisagem de rio não valiam a pena ser vistos, como para o espectador apaixonado de arte dramática as ruas que conduzem ao teatro. Mas sobretudo eu punha entre ambos, muito mais que suas distâncias quilométricas, a distância que havia nas duas partes de meu cérebro com que pensava neles, uma dessas distâncias internas do espírito que não só afastam as coisas, mas as separam e colocam em planos diversos. E essa demarcação ainda se tornava mais absoluta, porque aquele hábito que tínhamos de nunca ir para os dois lados no mesmo dia, em um único passeio, mas uma vez do lado de Méséglise, outra vez do lado de Guermantes, encerrava-os por assim dizer longe um do outro, e sem poder se conhecer, nos vasos herméticos e incomunicáveis de tardes diferentes. 
     Quando queríamos ir para o lado de Méséglise, saíamos (não muito cedo, e mesmo que o céu estivesse nublado, porque o passeio não era muito longo e não nos afastava muito) como para ir a qualquer parte, pela porta principal da casa de minha tia, na rua do Espírito Santo. Éramos saudados pelo armeiro, púnhamos as cartas na caixa, dizíamos de passagem a Théodore, da parte de Françoise, que estava lhe faltando azeite ou café, e saíamos da cidade pela estrada que margeava a cerca branca do parque do sr. Swann. Antes de lá chegar, encontrávamos pelo caminho, vindo ao encontro dos estranhos, o cheiro de seus lilases. Eles próprios, dentre os coraçõezinhos verdes e frescos de suas folhas, erguiam curiosamente acima da cerca do parque seus penachos de plumas brancas e malvas, rebrilhantes, embora na sombra, do sol em que se haviam banhado. Alguns, meio ocultos pela pequena casa de telhas chamada a casa dos Arqueiros, onde morava o guarda, assomavam por cima da frontaria gótica seu róseo minarete. As Ninfas da primavera pareceriam vulgares perto daquelas jovens huris que guardavam naquele jardim francês os tons vivos e puros das miniaturas da Pérsia. Apesar de meu desejo de enlaçar-lhes o talhe flexível e acercar de minha face os estrelados bucles de suas cabecinhas cheirosas, seguíamos adiante sem parar, pois meus pais não frequentavam Tansonville desde o casamento de Swann, e, para não parecer que estávamos a espiar para dentro do parque, em vez de tomar o caminho que margina seu cercado e que vai dar diretamente nos campos, tomávamos outro que ali também vai ter, mas obliquamente, e nos fazia desembocar muito longe. Um dia, disse meu avô a meu pai:

— Não te lembras que Swann nos disse ontem que, como a mulher e a filha partiam para Reims, ele aproveitaria a ocasião para ir passar vinte e quatro horas em Paris? Visto que essas damas não estão aqui, poderíamos seguir ao longo do parque, o que nos abreviaria muito o caminho. 

continua na página 98...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Jantei com Legrandin no terraço - l)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Alusão à epígrafe de Balzac ao romance Um médico de aldeia: “Aos corações feridos, sombra e silêncio”. [n. e.]
[2] Muito mais tarde, quando o herói conseguir enfim ter acesso ao salão de um dos Guermantes, ele poderá contemplar o deslumbre mundano de Legrandin, que, coincidentemente, consegue também entrar em contato com a família. [n. e.]
[3] Avó e neto partirão, efetivamente, para Balbec sem a recomendação de Legrandin. Já na segunda estada nessa praia, será a família Cambremer que virá em visita solícita ao herói. [n. e.]
[4] Conforme a lenda, Andrômeda, gabando-se de sua beleza, que, de acordo com ela mesma, era superior à das Nereidas, recebe punição de Netuno, que, despertando um monstro, traz a desgraça ao lugar. O oráculo ordena a rendição de Andrômeda ao monstro, e ela só será salva por Perseu, que petrifica o monstro utilizando a cabeça de Medusa. [n. e.]
[5] Povo nômade encontrado por Ulisses no décimo primeiro canto da Odisseia. No livro III, capítulo V, de Pierre Nozière, o herói criado por Anatole France lê justamente essa passagem da Odisseia. [n. e.]
[6] Alusão provável a Vrain-Lucas, que vendera, a partir de 1861, toda uma série de supostos manuscritos redigidos em francês antigo ao matemático Michel Chasles. Alphonse Daudet, escritor e pai de amigos de Proust, trata do episódio em seu livro L’Immortel, que Proust conhecia. [n. e.]
[7] A abertura da grande “sinfonia” do tempo perdido conta com esses dois lados — o caminho de Swann e o caminho de Guermantes —, que, como motivos musicais, voltarão nas últimas páginas do livro, fechando magistralmente o longo percurso de busca do herói. [n. e.]

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Os Bruzundangas - OUTRAS HISTÓRIAS DOS BRUZUNDANGAS: Rejuvenescimento

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.


OUTRAS HISTÓRIAS DOS BRUZUNDANGAS



Rejuvenescimento
(Crônica Militar)


“Todas as medidas esperadas para resolver o problema do rejuvenescimento dos quadros do Exército, das discutidas no Congresso, não conseguiram sair do campo das discussões.
Rejuvenescer os quadros não significa somente melhorar o futuro dos oficiais; é concorrer para que não reine o desânimo, para que seja mantido o ardor profissional.
Não é possível esperar dum oficial que moireja de seis a oito anos em cada posto, que ele tenha sempre o mesmo entusiasmo, que a própria idade consegue arrefecer.
E com a idade vem naturalmente a diminuição do vigor físico exigido para o desempenho do árduo trabalho de oficial de tropa.”

     É ASSIM que se exprime sabiamente um jornal desta cidade. Estamos de pleno acordo com as opiniões do nosso colega diário; mas julgamos, no nosso humilde parecer, que ele só encara uma face do problema. É nossa opinião que essa questão de rejuvenescimento, é uma questão geral e interessa, não só aos militares, como também a outras classes da sociedade.
     Que ardor profissional pode ter um carpinteiro que tem cinquenta anos de idade e trabalha no ofício desde os dezesseis?
     A sua obra há de se ressentir da fadiga dos seus músculos cansados e do desinteresse que traz a monotonia de fazer durante anos a mesma tarefa. A sociedade perde muito com isso, pois os seus trabalhos não terão a perfeição que havia nos que executava com trinta anos de vida.
     Seria inútil repetir exemplos como este, pois eles estão aí aos pontapés, para mostrar o quanto é indispensável decretar medidas que rejuvenesçam os quadros de todas as profissões.
     Para as funções públicas, inclusive as militares, já o célebre filósofo político-militar dinamarquês, Hans Reykavyk propôs dous métodos para obter o remoçamento dos quadros:
     Um, aparente meramente, e de origem feminina; o segundo substancial e rigorosamente científico.
     O primeiro método se baseia nas pinturas, pomadas e massagens. Não há negar que o seu emprego, quando executado por operador hábil, dá ao indivíduo que a ele se sujeita a aparência de mocidade; mas é só aparência e não restitui a quantidade de força vital que o indivíduo perdeu com o correr dos anos.
     De resto, ele ia levar para a caserna hábitos de camarim de atriz.
     A guerra em si mesma nada tem de teatral; só acham essa cousa nela os pintores de batalhas que recebem encomendas dos governos, e os literatos da moda.
     A guerra em si é uma cousa brutal e horrendamente ignóbil; a única consideração que rege a batalha, se há uma, está na cabeça de quem a dirige, e isto não é matéria para tela, nem para páginas literárias, mas notas e riscos numa carta topográfica, em escala conveniente com convenções adequadas.
     Além disto, introduzindo hábitos teatrais no viver guerreiro, iria isso perturbar a ação dos combatentes, diminuir-lhes a eficiência com a suposição de que deviam tomar belas atitudes, para obter o aplauso da galeria, distraindo-lhes do verdadeiro objetivo de sua ação que é dar cabo do inimigo, por fas ou nefas.
     Esse sistema de academia de beleza não pode ser adotado, sendo essa também a conclusão a que chega, depois de exaustiva análise, o grande filósofo dinamarquês que nos guia nestas despretensiosas notas.
     Resta o método científico que se estriba na psicologia experimental e é corrigido pela sociologia transcendente.
     Não posso transcrever aqui todas as considerações que precedem a exposição que o Senhor Hans Reykavyk faz desse método.
     Bastará dizer-lhes que, depois de expor fatos concretos em abundância, ele estabelece o postulado de que o general deve ser moço; de menos de trinta anos, pois é nessa idade que os homens têm o máximo de iniciativa.
     Saído das escolas militares o oficial será logo general, ganhando como tenente, depois irá descendo de graduação, de forma a chegar aos sessenta como tenente, ganhando como general.
     Eis em linhas gerais o plano de rejuvenescimento dos quadros de oficiais militares, a que chega o ilustre Reykavyk, após uma análise detalhada das conclusões da psicologia experimental, convenientemente corrigidas pela sociologia transcendente.
     Além de outras vantagens, tem este método a de fazer que os tenentes deixem, por morte, para as viúvas, filhos, filhas, genros e netos um montepio que porá estes a coberto de todas as necessidades — montepio de general.
     Pelo seu caráter geral e abstrato, com as necessárias modificações, ele pode aplicar-se, não só a todas as corporações militares, como também a quaisquer outras civis, estipendiadas pelo governo.
     Não é preciso mais dizer, a fim de pôr em evidência o grande alcance do sistema do pensador dinamarquês e chamar para ele a atenção do legislativo brasileiro.
     Creio que, fazendo isso, cumpro um dos deveres da missão militar de que me acho incumbido no Brasil.
     Capitão Ortiz y Valdueza, do corpo de Submarinos dos Estados Unidos da Bruzundanga.
     Pela tradução do “bengali”.—Lima Barreto — (Tradutor público ad-hoc).

Careta, Rio, 19-3-1921.

Os Bruzundangas - Outras Histórias dos Bruzundangas: Rejuvenescimento
Os Bruzundangas - Outras Histórias dos Bruzundangas: No Salão da Marquesa
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Os Bruzundangas - OUTRAS HISTÓRIAS DOS BRUZUNDANGAS: Lei de Promoções

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.


OUTRAS HISTÓRIAS DOS BRUZUNDANGAS


Lei de Promoções
(Crônica Militar)

     O QUE tem até agora regulado as promoções, quer no exército e armada, quer na polícia e guarda nacional, é o arbítrio, o capricho e a ignorância cega dos elementos da genesíaca cartesiana, que os metafísicos definem erroneamente como aplicação da álgebra à geometria.
     No semi-século genial e fecundo que medeou entre Descartes e Leibnitz, muita conquista útil foi obtida, no terreno da análise transcendente, mesmo antes da sua completa sistematização pelo gênio do último daqueles filósofos.
     No semi-século genial e fecundo que medeou entre Descartes e Leibnitz, muita conquista útil foi obtida, no terreno da análise transcendente, mesmo antes da sua completa sistematização pelo gênio do último daqueles filósofos.
     Fermat, Cavallieri, Roberval e outros muitos concorreram para o esta- belecimento definitivo do instrumento leibnitziano — uma imortal conquista científica, para obtenção da qual o espírito humano estava assaz maduro, tanto assim que Newton, pela mesma época, apresentou o seu cálculo das fluxões.
     Todo esse lento e paciente trabalho que absorveu o espírito de tantos grandes homens da Humanidade, obriga-nos a dispensar um culto acendrado à memória deles, por isso lhes cito aqui os nomes, ao lembrar as suas descobertas que muito lucraram com o rigor e a justiça das promoções nos batalhões dos colégios equiparados e linhas de tiro.
     Nestas unidades, o acesso ao posto imediato é determinado por um processo rigorosamente científico, de um rigor verdadeiramente astronômico.
     É preciso estendê-lo ao resto das forças armadas.
     Suponhamos um sargento que quer ser alferes. Pega-se o candidato e faz-se engolir a seguinte beberagem:

Ácido azótico .......................................... 5 g 
Oxalato de potássio ................................. 7 g 
Magnésia calcinada ................................. 3 g 
Bicloreto de mercúrio .............................. 2 g 
Água destilada ......................................... 100 g

     Deve-se dar ao paciente tudo isto de uma só vez. Se o sujeito não bater a bota, examinam-se as fezes com o papel tournesol, que, no caso de avermelhar-se, indica que o tipo pode ser alferes. No contrário, não.
     Isto não tem nada que ver com Leibnitz, nem com o seu cálculo infinitesimal; mas não me ficava bem deixar de citar o imortal filósofo e a sua magna obra, podendo, se assim não procedesse, ser confundido com um qualquer legislador metafísico e anarquizado, por aí, que não é senhor do saber integral da humanidade.
     A dosagem que indiquei, deve variar quando se tratar de polícias, guardas nacionais e oficiais de fazenda. Para os primeiros carregar no ácido azótico, para os segundos e terceiros, dobrar a dose de bicloreto de mercúrio.
     Com o emprego deste método que é rigorosamente científico, o governo pode ter, em breve, um corpo de oficiais perfeitamente selecionados pela Morte e um povoamento rápido e instantâneo dos cemitérios — o que, afinal, é o fim natural de todas as guerras a que os oficiais, sejam desta ou daquela corporação, são obrigados a servir com todos os riscos e vantagens.
     Há, porém, o método empírico que é mais humano e compatível com o grau de adiantamento a que chegou a nossa humanidade atualmente. Não há morte, nem sangue, nem bravura, nem salvas.
     Este método é muito usado na guarda nacional e poucas outras entidades (vocabulário do football) militares. Vamos ver em que consiste.
     Um tal método tem por princípio básico só admitir à promoção, oficiais que nunca tenham visto soldados, fortalezas, quartéis, etc.
     Por esse processo, estão fatalmente eliminados todos os oficiais que hajam servido em guarnições longínquas.
     O mais relevante conhecimento exigido, para as promoções de acordo com esse processo empírico, é o de uma perfeita sabedoria nas marcas de papel de ofícios, de grampos, colchetes e alfinetes, para papéis. Contam-se como ultrameritórios os serviços pacíficos em linhas telegráficas, em leitura de pluviômetros, em conversas com bugres filósofos e em construção de estradas de ferro que não acabam mais.
     Em caso de merecimento igual, entre os candidatos, promovido será o que tiver melhor “pistolão”.
     Para isso, o oficial precavido não se deve afastar da capital do país; e, nela, sempre cultivar a amizade de poderosos políticos e pessoas de seu amor e amizade; e é, por isso, que os oficiais que servem em guarnições longínquas, fronteiras, etc., não podem entrar na lista das promoções, determinação que se subentende nesse sistema empírico que a sabedoria dos tempos consagrou com alguns retoques.
     Não falei nas promoções nos bombeiros. Emendo a mão. Nos bombeiros — corporação reduzida — as promoções devem ser feitas em família. É o melhor
     O que acabo de dizer, são como o croquis das minhas ideias sobre promoções nas classes armadas, sendo que algumas não me pertencem propriamente, antes a todos os militares, suas mulheres, filhas e noivas. Eis aí.
     Capitão Ortiz y Valdueza (Do Exército da Bruzundanga).
     Reconheço a rubrica supra e a letra do Capitão Ortiz y Valdueza, do Corpo de Submarinos do Exército da República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
     (Tenho o sinal público e, à margem, “grátis”), — O COPISTA.

Careta, Rio, 29-1-21.

Os Bruzundangas - Outras Histórias dos Bruzundangas: Lei de Promoções
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.