sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

#tbt sexagenário: O Ritmo da Chuva

Fernanda Takai

Rodrigo Amarante

Ao vivo no Rio De Janeiro / 2004





Olho para chuva que não quer cessar
Nela, vejo o meu amor
Esta chuva ingrata que não vai parar
Pra aliviar a minha dor

Eu sei que o meu amor
Pra muito longe foi
Com a chuva que caiu
Ó gente, por favor, pra ela vá contar
Que o meu coração se partiu

Chuva, traga o meu benzinho
Pois preciso de carinho
Diga a ela pra não me deixar
Triste assim

O ritmo dos pingos ao cair no chão
Só me deixa relembrar
Tomara que eu não fique a esperar em vão
Por ela que me faz chorar

Chuva, traga o meu benzinho
Pois preciso de carinho
Diga a ela pra não me deixar
Triste assim

O ritmo dos pingos ao cair no chão
Só me deixa relembrar
Tomara que eu não fique a esperar em vão
Por ela que me faz chorar
Oh chuva, traga o meu amor
Chuva, chuva traga o meu amor
Ouça-me chuva e traga, por favor
Chuva, chuva traga o meu amor
Ouça-me chuva e traga, por favor

Composição: Demetrius Zahara Netto / John Gummoe


"Rhythm of the Rain" é uma música pop gravada pelo grupo The Cascades. Lançada em novembro de 1962, a canção foi escrita por John Claude Gummoe, membro do grupo. Em 9 de março de 1963, a música chegou ao 3.º lugar da parada pop americana, e passou duas semanas no 1.º lugar da parada daquele país intitulada US Easy Listening. A canção também entrou para o top 5 no Reino Unido e chegou ao 1.º lugar na Irlanda. Em 1999, a BMI listou a canção como sendo a nona mais tocada nas rádios e TVs no século XX. A música foi usada no filme Quadrophenia, de 1979, e entrou na trilha sonora do mesmo.


The Cascades - Rhythm Of The Rain - 1962 




Quadrophenia Trailer (1979)

"Se existe um filme que captura perfeitamente a desilusão da juventude com um movimento ou subcultura, esse filme é Quadrophenia. O filme retrata os conflitos entre "rockers" e "mods", os tumultos, o choque com a realidade social e a decepção. Ele retrata tudo o que se vivencia durante o árduo processo de amadurecimento e a constatação de que a realidade está muito distante dos sonhos estudantis."






Em 1964 foi composta uma versão em português gravada 
pelo cantor Demétrius titulada como "O Ritmo da Chuva"




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Still Loving You / O Ritmo da Chuva / 

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção VIII(1.b)

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção VIII

DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE[1]
PRIMEIRA PARTE
 
continuando...

     O filósofo, se é coerente, deve estender o mesmo raciocínio às ações e volições dos seres inteligentes, visando assim mostrar que as decisões humanas mais irregulares e inesperadas se explicam com frequência quando se conhecem todas as circunstâncias do caráter e da situação humanas. Uma pessoa com disposições amáveis pode responder de maneiras impertinentes, mas porque ela está com dor de dentes ou ainda não jantou. Um homem de modos grosseiros pode revelar vivacidade incomum ao seu comportamento porque recebeu de repente uma grande fortuna. Mesmo considerando-se que um ato, como às vezes ocorre, não pode ser explicado por quem o praticou ou pelos circundantes, reconhecemos que, em geral, os caracteres humanos são até certo ponto inconstantes e irregulares. De certo modo, é este o caráter constante da natureza humana, embora se aplicando mais particularmente às pessoas destituídas de regras estáveis em sua conduta, mas que atuam numa sequência contínua de capricho e de inconstância. Apesar destas aparentes irregularidades, os princípios e motivos internos devem atuar de modo uniforme, da mesma maneira que se supõe que os ventos, a chuva, as nuvens e as outras variações do tempo são governados por princípios estáveis, embora a sagacidade e a investigação humana não os possam facilmente desvendar.
     Desta maneira, parece que não apenas a conjunção entre os motivos e os atos voluntários é tão regular e uniforme (de modo análogo à relação de causa e efeito em qualquer aspecto da natureza), mas, também, que esta conjunção regular tem sido reconhecida universalmente e jamais tem sido tema de debate, quer pela filosofia quer na vida diária. Ora, como derivam da experiência passada todas as experiências sobre o futuro e como concluímos que os objetos que sempre encontramos conjuntados sempre estarão conjuntados, pode, pois, parecer supérfluo provar que esta experimentada uniformidade das ações humanas é a fonte de onde tiramos inferências que a elas se referem.[6] Mas, a fim de mostrar maior número de aspectos dos argumentos, insistiremos também, embora sumariamente, neste último tópico.  
     Em todas as sociedades, pode-se verificar que a mútua dependência entre os homens é tão grande que raramente uma ação humana é inteiramente completa em si mesma ou se realiza sem alguma referência às ações dos demais, constituindo assim no requisito necessário para que possa responder por completo à intenção de quem a realiza. O artesão paupérrimo, que trabalha sozinho, espera pelo menos a proteção do magistrado assegurando lhe o gozo do fruto de seu trabalho. Também espera que, quando leva suas mercadorias ao mercado e as oferece a um preço razoável, encontrará compradores e terá poder graças ao dinheiro que obteve para comprar dos outros as mercadorias que são necessárias para a sua subsistência. A medida que os homens estendem suas relações e tornam mais complexas suas comunicações com outros homens, sempre compreendem em seus planos de vida uma maior variedade de atos voluntários que esperam, por motivos justos, que colaborem com sua própria ação. Em todas estas conclusões tiram suas regras da experiência passada, do mesmo modo que em seus raciocínios sobre objetos externos; acreditam firmemente que tanto os homens como os elementos devem continuar em suas operações tal como foram sempre encontrados. Um fabricante conta ao mesmo tempo com o trabalho de seus empregados para a execução de qualquer obra como com a maquinaria empregada e ficaria igualmente surpreso se se decepcionasse em suas expectativas. Numa palavra, a inferência e o raciocínio experimental referentes aos atos de outrem incorporam-se tanto na vida humana, que nenhum homem, enquanto está desperto, deixa de utilizá-los por um momento sequer. Não temos razão, portanto, para afirmar que toda a humanidade sempre tem concordado com a doutrina da necessidade tal como a definição e a explicação dadas mais acima?
     Os filósofos não têm jamais mantido, a este respeito, opinião diferente daquela da plebe. Porque, sem mencionar que quase todas as ações de sua existência supõem esta opinião, há apenas alguns setores do saber especulativo aos quais ela não é essencial. O que seria da história se não tivéssemos confiança na veracidade do historiador, de acordo com a experiência que temos adquirido dos homens? Como a política poderia ser uma ciência, se as leis e as formas de governo não tivessem influência uniforme sobre a sociedade? Onde estaria o fundamento da moral, se cada caráter particular não tivesse um determinado poder de produzir sentimentos particulares e se estes sentimentos não influenciassem nossas ações de maneira constante? E quais poderiam ser nossas pretensões quando aplicamos nossa crítica[7] a um poeta ou a um autor elegante, se não pudéssemos decidir se a conduta e os sentimentos de seus personagens são ou não são naturais, em tais caracteres e em tais circunstâncias? Parece quase impossível, portanto, que nos ponhamos a fazer ciência ou atuar de alguma maneira, sem reconhecer a doutrina da necessidade, e esta inferência que vai dos motivos aos atos voluntários, dos caracteres às condutas.
     E, certamente, quando consideramos quão exatamente se entrelaçam a evidência natural e a evidência moral, formando uma única corrente de argumentos, não teremos escrúpulos em admitir que ambas são da mesma natureza e que derivam dos mesmos princípios. Um prisioneiro desprovido de dinheiro e influência descobre a impossibilidade de sua fuga, quer considerando a obstinação do carcereiro, quer verificando as paredes e grades que o cercam; e, em todos os seus esforços para conseguir libertar-se, opta antes trabalhar sobre a pedra e o ferro dos últimos do que sobre a natureza inflexível dos primeiros. O mesmo prisioneiro, ao ser conduzido para o cadafalso, prevê sua morte com tanta certeza devido à constância e fidelidade dos guardas como à operação do machado ou da roda. Seu espírito percorre uma certa série de ideias: a negativa dos soldados em consentirem em sua fuga, a ação do carrasco, a separação de sua cabeça de seu corpo, a sangria, movimentos convulsivos e a morte. Há aqui um encadeamento complexo de causas naturais e de atos voluntários, mas o espírito não sente nenhuma diferença ao passar de um elo a outro. Não se sente também menos seguro do evento futuro, como se este estivesse ligado aos objetos presentes à memória e aos sentidos por uma série de causas, aglutinadas entre si pelo que nos agrada denominar de necessidade física. A experiência da mesma uma o tem o mesmo efeito sobre o espírito, quer os objetos unidos sejam motivos, volição e ações, quer sejam uma figura e um movimento. Podemos mudar o nome das coisas, porém sua natureza e sua ação sobre o entendimento não mudam jamais.
     Se um homem, que sei que é honesto e rico e com o qual mantenho íntima amizade, vem à minha casa onde estou rodeado por meus criados, estou bem seguro que não me apunhalará antes de sair a fim de roubar meu tinteiro de prata e deste evento suspeito tanto como de que venha abaixo a casa, que é nova e solidamente construída e alicerçada. Mas ele poderia ser acometido de uma súbita e desconhecida loucura. E do mesmo modo pode ocorrer um repentino terremoto que sacuda minha casa e a faça cair sobre minha cabeça. Substituirei, pois, a hipótese. Direi que tenho certeza que ele não colocará sua mão no fogo deixando-a nele até que se consuma. Este evento, posso prevê-lo com a mesma segurança, penso eu, como prevejo que, se ele se jogar pela janela e não encontrar nenhum obstáculo, não permanecerá um momento sequer suspenso no ar. Não existe nenhuma forma de loucura desconhecida que possa conferir a menor possibilidade ao primeiro evento, tão contrário a todos os princípios conhecidos da natureza humana. Um homem que ao meio-dia deixa sua bolsa cheia de ouro na calçada de Charing Cross pode esperar que ela voará como uma pena ou que uma hora depois estará intacta. Mais da metade dos raciocínios humanos contém inferências de natureza semelhante, acompanhadas de um maior ou menor grau de certeza proporcional à nossa experiência da conduta habitual dos homens em tais situações particulares.[8]
     Tenho frequentemente considerado qual poderia ser a razão pela qual toda a humanidade, embora tenha sempre e sem hesitação reconhecido a doutrina da necessidade em toda sua ação prática e em todos os seus raciocínios[9], manifesta-se, contudo, relutante em reconhecê-la em palavras, tendo antes mostrado, em toda época, uma tendência a professar opinião contrária. O fato, penso eu, pode ser explicado da seguinte maneira. Se examinamos as ações dos corpos e a produção dos efeitos a partir de suas causas, veremos que nenhuma de nossas faculdades pode levar-nos mais longe no conhecimento desta relação que a simples constatação de uma conjunção constante entre objetos particulares, e de uma tendência do espírito em passar, por uma transição costumeira, do aparecimento de um para a crença no outro. Mas, embora esta conclusão acerca da ignorância humana seja o resultado do mais cuidadoso exame sobre o assunto, os homens ainda mantém uma forte tendência em acreditar que penetraremos mais profundamente nos poderes da natureza e que perceberemos qualquer coisa semelhante a uma conexão necessária entre a causa e o efeito. Quando dirigem de novo suas reflexões para as operações de seus próprios espíritos e não sentem tal conexão entre o motivo e a ação, são então levados a supor que há uma diferença entre os efeitos resultantes da força material e aqueles que nascem do pensamento e da inteligência. Mas desde que estamos convencidos de que nada sabemos a mais sobre toda espécie de causalidade do que unicamente a conjunção constante de objetos e a consequente inferência do espírito de um a outro, e admitindo-se que toda gente concorda que estas duas circunstâncias intervêm nos atos voluntários, podemos mais facilmente reconhecer que a mesma necessidade é comum a todas as causas. E embora este raciocínio possa contradizer os sistemas de muitos filósofos, atribuindo a necessidade às determinações da vontade, veremos, depois de refletir, que eles discordam somente em palavras e não em seu sentimento real. A necessidade, no sentido que a entendemos aqui, nunca tem sido rejeitada, nem pode ser rejeitada, penso eu, por um filósofo. Pode-se apenas pretender, talvez, que o espírito deve perceber, nas operações materiais, uma conexão adicional entre a causa e o efeito; e que esta conexão não intervém nas ações voluntárias dos seres inteligentes. Ora, se isto ocorre assim ou não, somente a investigação pode revelar; é, portanto, dever destes filósofos de justificarem sua afirmativa, definindo ou descrevendo esta necessidade e no-la mostrando nas operações das causas materiais.
     Parece, certamente, que se começa pelo lado errado sobre a questão da liberdade e da necessidade quando nela se penetra examinando as faculdades da alma, a influência do entendimento e as operações da vontade. Dever-se-ia, primeiramente, discutir um problema mais simples, a saber, as ações do corpo e da matéria bruta, e verificar se pode formar alguma ideia da causalidade e da necessidade, além de uma conjunção constante de objetos e a subsequente inferência do espírito de um para o outro. Se estas circunstâncias formam, com efeito, toda a necessidade que concebemos na matéria, e se estas circunstâncias intervêm também, por reconhecimento universal, nas operações do espírito, a discussão está terminada; pelo menos, deve-se reconhecer que ela é, de agora em diante, puramente verbal. Mas, contanto que suponhamos temerariamente que temos uma ideia adicional da necessidade e da causalidade nas operações dos objetos externos, ao mesmo tempo que nada a mais podemos encontrar nas ações voluntárias do espírito, não há possibilidade de conduzir a questão para uma solução determinada enquanto procedemos sobre uma hipótese tão crônica. O único método adequado para esclarecer-nos consiste em subir mais alto e, examinando a estreiteza do campo da ciência que se aplica às causas materiais, convencer-nos de que tudo que apreendemos delas se restringe à conjunção constante e à inferência acima mencionadas. Podemos, talvez, notar que é com relutância que somos induzidos a fixar limites tão estreitos ao entendimento humano; mas a seguir não encontraremos obstáculos ao aplicar esta doutrina aos atos da vontade. Pois, como é evidente que estas. ações estão em conjunção regular com os motivos, as circunstâncias e os caracteres, e como sempre tiramos inferências de uns aos outros, somos obrigados a reconhecer em palavras aquela necessidade que já temos reconhecido em todas as deliberações de nossa vida e em todos os passos de nossa conduta e de nossas ações.[10]
     Mas para realizar nosso projeto de reconciliação relativo à questão da liberdade e da necessidade — a mais controvertida questão da metafísica, a mais litigiosa das ciências — não precisamos de muitas palavras para provar que todos os homens sempre têm concordado a respeito da doutrina da liberdade, assim como com a da necessidade, e que toda discussão a este respeito também tem sido, até agora, puramente verbal. Pois o que se entende por liberdade quando se aplica a palavra às ações voluntárias? Não podemos certamente dizer que estes atos têm tão pouca conexão com os motivos, as inclinações e as circunstâncias, que um não deriva do outro com um certo grau de uniformidade e que um não proporciona nenhuma inferência pela qual podemos concluir a existência do outro. Pois estes são fatos patentes e reconhecidos. Por liberdade, então, podemos apenas entender um poder de agir ou de não agir segundo as determinações da vontade;[11] isto é, se escolhermos permanecer em repouso, podemos; mas, se escolhermos mover-nos, também podemos. Ora, reconhece-se universalmente que esta liberdade incondicional encontra-se em todo homem que não esteja prisioneiro ou acorrentado. Logo, aqui não há assunto para discussão.
     Acerca de qualquer definição que possamos dar de liberdade, devemos cuidadosamente observar duas circunstâncias indispensáveis: primeira, a definição deve estar de acordo com a evidência do fato; segunda, a definição deve concordar com ela mesma. Se observarmos estas circunstâncias e se tornarmos nossa definição inteligível, estou persuadido de que todos os homens terão uma só opinião a respeito deste assunto.
     Admite-se universalmente que nada existe sem uma causa de sua existência e que a palavra ‘acaso”, se examinada com cuidado, é puramente negativa e não designa nenhuma força real que exista em qualquer lugar na natureza. Mas se se pretende que algumas causas são necessárias enquanto outras não o são, vemos então a vantagem das definições. Se alguém definisse uma causa, sem compreender, como elemento da definição, a conexão necessária com o seu efeito, e se mostrasse distintamente a origem da ideia expressa pela definição, desistiria prontamente de toda controvérsia. Mas, se se aceita a explicação anterior do assunto, isto deve ser absolutamente impraticável. Se os objetos não tivessem entre si uma conjunção regular, nunca formaríamos qualquer noção de causa e de efeito; esta conjunção regular produz a inferência no entendimento, que é a única conexão da qual podemos ter alguma compreensão. Quem pretender definir a causa, excluindo estas circunstâncias, será obrigado a empregar termos ininteligíveis ou dar sinônimos do termo que se tenta esforçar por definir.[12] Se se admite a definição acima citada, a liberdade, oposta à necessidade e não à restrição, é a mesma coisa que o acaso e a respeito do qual toda a gente está de acordo que não existe.

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[6] Nas edições de K a M lê-se: "a forma de todas as inferências que formamos a seu respeito.
[7] Hume se refere talvez ao que se entende atualmente por estética. [N. do T.]
[8] Este parágrafo foi inserido apenas na última edição revista por Hume e publicada em 1777 (edição O). [N. do T.]
[9] Dos argumentos atados por Hume, depreendemos uma proposição, segundo Flew, geral e fundamental. Trata-se de aceitar como evidente que o método experimental, o único em verdade válido nas questões de fato e de existência real, deve basear-se em regularidades, ou uniformidades, discerníveis rios fatos naturais, e quer aplicado aos homens, quer a outros objetos quaisquer, devem resultar inferências bem-sucedidas. Por este motivo, Hume procurou mostrar que não apenas na esfera humana, como em outros objetos quaisquer, há suficiente regularidade para originar a inferência causal (Flew, ob. cit., pp. 146-7). [N. do T.]
[10] O predomínio da doutrina da liberdade pode ser explicado por outra causa, ou seja, uma falsa sensação ou aparente experiência de liberdade ou indiferença que temos ou que podemos ter em muitos de nossos atos. A necessidade de uma ação da matéria ou do espírito não é, propriamente falando, uma qualidade no agente, mas em qualquer ser pensante e inteligente que pode considerar a ação, e ela consiste principalmente nas determinações de seus pensamentos para inferir a existência desta ação a partir de alguns objetos precedentes. De modo que a liberdade, quando oposta à necessidade, não é senão a ausência desta determinação e a presença de certo abandono ou indiferença que sentimos ao passar ou não passar da ideia de um objeto à de outro que o sucede. Podemos, assim, observar que, mesmo ao refletir sobre os atos humanos, raramente sentimos esse abandono ou indiferença, mas somos geralmente capazes de inferi-los de seus motivos e das disposições de quem os realiza; sem dúvida, ao realizar estes mesmos atos, notamos frequentemente algo parecido a isto. E, como é fácil confundir todos os objetos semelhantes, isto tem sido usado como prova demonstrativa e mesmo intuitiva da liberdade humana. Sentimos que nossos atos estão sujeitos à nossa vontade na maioria dos casos e imaginamos que sentimos a vontade como não subordinada a nenhuma coisa porque, quando por afirmação contrária somos provocados a tratar de fazê-lo, sentimos que ela se move facilmente em todas as direções e produz uma imagem de si mesma (ou uma veleidade, como tem sido denominada nas escolas), embora sem decidir para que lado ela se dirige. Esta imagem ou débil movimento nesse momento poderia (estamos persuadidos disto) haver chegado a ser a própria coisa, porque, se isto fosse negado, veríamos, numa segunda tentativa, que agora pode chegar a sê-lo. Não consideramos que o fantástico desejo de mostrar a liberdade é aqui o motivo de nossas ações. Parece certo que, qualquer que seja a maneira pela qual sentimos em nós a liberdade, um espectador pode geralmente inferir nossos atos de nossos motivos e do nosso caráter, e mesmo quando não pode conclui geralmente que poderia se conhecesse perfeitamente todas as circunstâncias de nossa situação e temperamento e as fontes mais secretas de nossa disposição. Esta é, portanto, a verdadeira essência da necessidade, segundo a doutrina anterior (Hume).
[11] O homem como “agente” deve considerar-se inteiramente livre para realizar, ou não, qualquer ação. Na condição de ‘espectador”, que observa e reflete tanto sobre suas ações como as de outrem, o homem conclui que elas importam em tal uniformidade que é levado a enquadrá-las como efeitos necessários de causas conhecidas. É com vistas à última caracterização que Hume tem a intenção de conciliar as doutrinas da “liberdade e da necessidade”. Reafirma, assim, que a definição de “causa” implica a “conexão necessária” com seu efeito, como elemento essencial, ou ainda, segundo o Tratado, a “necessidade constitui um aspecto essencial da causalidade” (II, ii, III, p. 407). A partir desta formulação, infere que se “se admite a definição de causa acima citada, a liberdade, oposta à necessidade e não à restrição, é a mesma coisa que o acaso e a respeito do qual toda a gente está de acordo que não existe”. Excluindo o fator “acaso” da doutrina da liberdade, Hume está prescrevendo as mesmas regras da necessidade causal para elucidar a liberdade humana. Instaura, desta maneira, a liberdade no seio da necessidade e pressupõe que apenas assim os atos humanos devem ser julgados sob o prisma da responsabilidade moral. [N. do T.]
[12] Assim, se uma causa fosse definida como o que produz algo, é fácil observar que produzir é sinônimo de causar. Do mesmo modo, se se definisse uma causa como aquilo por meio do qual algo existe, esta definição está sujeita à mesma objeção. O que se entende pelos termos por meio da qual? Se se houvesse dito que a causa é aquilo depois do qual algo existe constantemente, teríamos entendido os termos. Porque isto é, em verdade, tudo o que sabemos acerca do assunto. E esta constância constitui a verdadeira essência da necessidade, já que não temos outra ideia dela (Hume).

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

#tbt sexagenário: Still Loving You

Scorpions

Still Loving You

O #tbt sexagenário que começa hoje traz essa clássica balada dos anos 80, a atemporal "Still Loving You" do Scorpions, com o clipe legendado... eu estava lá.





Time, it needs time
To win back your love again
I will be there
I will be there
Love, only love
Can bring back your love someday
I will be there
I will be there

Fight, babe, I'll fight
To win back your love again
I will be there
I will be there
Love, only love
Can break down the wall someday
I will be there
I will be there

If we'd go again all the way from the start
I would try to change the things that killed our love
Pride has built a wall so strong that I can't get through
Is there really no chance to start once again?
I'm loving you

Try, baby, try
To trust in my love again
I will be there
I will be there
Love, our love
Just shouldn't be thrown away
I will be there
I will be there

If we'd go again all the way from the start
I would try to change the things that killed our love
Yes, I've hurt your pride and I know what you've been through
You should give me a chance
This can't be the end

I'm still loving you
I'm still loving you
I'm still loving you
I need your love
I'm still loving you

Composição: Klaus Meine / Rudolf Schenker

Data do lançamento: 1984!
Artista: Scorpions
Álbum: Love at First Sting
Gêneros: Hard rock, Glam metal


SCORPIONS: A História de uma das maiores Bandas de Hard Rock do Mundo





Vento da Mudança - Wind Of Change




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Still Loving You / O Ritmo da Chuva

Curta: Nilo, o presidente negro

Nunca é tarde para sonhar


Baseado na história de Nilo Procópio Peçanha. Com afeto e orgulho, este curta-metragem é um convite para conhecer e se emocionar com a vida do primeiro e único presidente negro do país, uma história real de perseverança, representatividade e esperança, que ilumina o passado e inspira futuras gerações.


Nilo Peçanha




Direção: Diane Lizst
Produtora Executiva: Diane Lizst
Roteiro: Diane Lizst e Isabella Ismile
Gestão de Projeto: Franproduz
Direção de arte: Isabella Ismile
Co-diretor de arte: Pedro Arcelino
Produtor Audiovisual: Pedro Arcelino
Animação: Isabella Ismile
Design de personagens: Diane Lizst e Isabella Ismile
Storyboard: Diane Lizst e Isabella Ismile
Cenários: Isabella Ismile e Rodrigo Tannus
Assistente de animação: Gabriel Matos
Produção Fonográfica: Filipe de Matos Monteiro
Música: Nunca é tarde para sonhar
Composição: Giselle Damásio
Cantor Intérprete: Evando dos Santos
Back-vocal: Diane Lizst e Giselle Damasio
Narração: Diane Lizst
Dublagem: Evando dos Santos
Sonoplastia: Isabella Ismile
Interpretação em Libras: Milena Gomes
Legenda: Isabella Ismile
Edição: Isabella Ismile
Design: Pedro Arcelino

Realização:
Governo Federal
Ministério da Cultura - MINC
Prefeitura de Campos dos Goytacazes
Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima
Fundo Municipal de Cultura via Lei Paulo Gustavo

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Nilo, o presidente negro /


Nilo Peçanha: O PRESIDENTE NEGRO que a história quase ESQUECEU



Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 2 - A Aliança Temporária Entre a Ralé e a Elite)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

Uma Sociedade Sem Classes
     2 - A Aliança Temporária Entre a Ralé e a Elite
           O que perturba os espíritos lógicos mais que a incondicional lealdade dos membros dos movimentos totalitários e o apoio popular aos regimes totalitários é a indiscutível atração que esses movimentos exercem sobre a elite e não apenas sobre os elementos da ralé da sociedade. Seria realmente temerário atribuir à excentricidade artística ou à ingenuidade escolástica o espantoso número de homens ilustres que são simpatizantes, companheiros de viagem ou membros registrados dos partidos totalitários.
     Essa atração da elite é um indício tão importante para a compreensão dos movimentos totalitários (embora não se possa dizer o mesmo dos regimes totalitários) quanto a sua ligação com a ralé. Denota a atmosfera específica, o clima geral que propicia o surgimento do totalitarismo. É preciso lembrar que a idade dos líderes dos movimentos totalitários e dos seus simpatizantes supera a dos membros das massas que organizam, de modo que, do ponto de vista cronológico, as massas não precisam aguardar, impotentes, que os seus líderes surjam de uma sociedade de classes em declínio, da qual são o produto mais importante. Aqueles que voluntariamente abandonaram a sociedade antes do colapso das classes, juntamente com a ralé — que é o subproduto mais recente do domínio da burguesia —, estão prontos para aclamá-los. Os atuais governantes totalitários e os líderes dos movimentos totalitários têm ainda os traços característicos da ralé, cuja psicologia e filosofia política são bastante conhecidas; o que sucederá quando um autêntico homem da massa assumir o comando ainda não sabemos, embora possamos supor que ele se assemelhe mais a um Himmler, com a sua meticulosa e calculada correção, do que a um Hitler, com o seu fanatismo histérico, e lembrará mais a teimosa obtusidade de um Molotov do que a crueldade sensual e vingativa de um Stálin. 
     A esse respeito, a situação da Europa após a Segunda Guerra Mundial não foi muito diferente daquela que sucedeu à Primeira. Do mesmo modo como, na década de 20, foram formuladas as ideologias do fascismo, bolchevismo e nazismo, e seus respectivos movimentos foram liderados pela chamada geração de vanguarda, por aqueles que haviam sido criados nos tempos de antes da guerra e se recordavam perfeitamente dessa época, o clima político e intelectual do totalitarismo de pós-guerra foi determinado por uma geração que conheceu a época anterior a 1939. Isso se aplica especialmente à França, onde o colapso do sistema de classes ocorreu após a Segunda Guerra, e não após a Primeira. Os movimentos totalitários, exatamente como os homens da ralé e os aventureiros da era imperialista, têm em comum com os seus simpatizantes intelectuais o fato de que uns e outros já estavam fora do sistema de classes e nacionalidades da respeitável sociedade europeia antes que esse sistema entrasse em colapso.
     Quando a falsa respeitabilidade cedeu ao desespero da anarquia, esse colapso pareceu oferecer a primeira grande oportunidade tanto para a elite quanto para a ralé e, obviamente, para os novos líderes das massas. Suas carreiras lembram as dos primeiros líderes da ralé: fracasso na vida profissional e social, perversão e desastre na vida privada. O fato de que as suas vidas, antes do seu ingresso na carreira política, haviam sido um fracasso — ingenuamente apontado em seu detrimento pelos líderes mais respeitáveis dos velhos partidos — era o ponto alto da sua atração para as massas. Parecia demonstrar que, individualmente, eles encarnavam o destino da massa do seu tempo, e que o desejo de tudo sacrificarem pelo movimento, a devoção por aqueles que haviam sofrido alguma catástrofe, a determinação de jamais cederem à tentação da segurança da vida normal e o desprezo pela respeitabilidade eram perfeitamente sinceros e não apenas inspirados por ambições passageiras.
     Por outro lado, a elite do pós-guerra era apenas ligeiramente mais jovem que aquela geração que se deixara usar e abusar pelo imperialismo como jogadores, espiões e aventureiros, cavaleiros de armadura polida e matadores-de-dragões, por amor a carreiras gloriosas longe da respeitabilidade. Compartilhavam com Lawrence da Arábia o anseio de "perderem o seu eu" e sentiam violenta repulsa por todos os padrões existentes e por toda autoridade constituída. Se ainda não tinham esquecido a "idade de ouro da segurança", lembravam melhor ainda o quanto a haviam odiado e como se haviam entusiasmado com a deflagração da Primeira Guerra Mundial. Não foi somente Hitler nem somente os fracassados que agradeceram a Deus, de joelhos, quando, em 1914, a mobilização varreu a Europa.[44] Nem ao menos precisaram censurar-se por terem sido presa fácil da propaganda chauvinista ou das explicações mentirosas a respeito do caráter puramente defensivo da guerra. A elite partiu para a guerra na exultante esperança de que tudo o que conhecia, toda a cultura e textura da vida desmoronaria em "tempestades de aço" (Ernst Jünger). Nas palavras cuidadosamente escolhidas de Thomas Mann, a guerra era "castigo" e "purificação"; "a guerra em si, e não as vitórias, é que inspirava o poeta". Ou, nas palavras de um estudante da época, "o que importa não é o objeto pelo qual se faz o sacrifício, mas a eterna disposição de fazê-lo"; ou ainda, nas palavras de um jovem trabalhador, "não importa que a gente viva ou não alguns anos a mais. A gente quer ter alguma coisa que possa dizer que fez na vida".[45] E, muito antes que um dos simpatizantes intelectuais do nazismo dissesse "quando ouço a palavra cultura, puxo o revólver", os poetas já haviam proclamado a sua repulsa pela "cultura de lixo" e poeticamente invocavam os "bárbaros, citas, negros e indianos para esmagá-la".[46]   
     Tachar simplesmente de acesso de niilismo esta violenta insatisfação com a era que precedeu a guerra e as subsequentes tentativas de restaurá-la (de Nietzsche e Sorel a Pareto, de Rimbaud e T. E. Lawrence a Jünger, Brecht e Malraux, de Bakúnin e Nechayev a Alexander Blok) seria ignorar quão justificada pode ser a repulsa numa sociedade inteiramente impregnada com a atitude ideológica e os padrões morais da burguesia. Contudo, também é verdade que a "geração de vanguarda", em agudo contraste com os pais espirituais que ela mesma havia escolhido, estava completamente absorvida pelo desejo de ver a ruína de todo este mundo de segurança falsa, cultura falsa e vida falsa. Esse desejo era tão forte que o seu impacto e eloquência eram maiores que os de todas as tentativas anteriores de "transformação de valores", como a de Nietzsche, ou de reorganização da vida política, como indica a obra de Sorel, ou de restauração da autenticidade humana, como em Bakúnin, ou de apaixonado amor pela vida, na pureza das aventuras exóticas de Rimbaud. A destruição sem piedade, o caos e a ruína assumiam a dignidade de valores supremos.[47]
     Quão genuínos eram esses sentimentos prova o fato de que muito poucos dessa geração perderam o seu entusiasmo pela guerra ao experimentarem pessoalmente os seus horrores. Os sobreviventes das trincheiras não se tornaram pacifistas. Conservaram carinhosamente aquela experiência que, segundo pensavam, podia separá-los definitivamente do odiado mundo da respeitabilidade. Apegaram-se às lembranças de quatro anos de vida nas trincheiras como se fossem um critério objetivo para a criação de uma «nova elite. Nem cederam à tentação de idealizar esse passado; pelo contrário, os adoradores da guerra eram os primeiros a admitir que, na era da máquina, a guerra certamente não podia gerar virtudes como o cavalheirismo, a coragem, a honra e a hombridade,[48] mas apenas impunha ao homem a experiência da destruição pura e simples, juntamente com a humilhação de serem apenas peças da grande máquina da carnificina.
     Essa geração recordava a guerra como o grande prelúdio do colapso das classes e da sua transformação em massas. A guerra, com a sua arbitrariedade constante e assassina, tornou-se o símbolo da morte, a "grande niveladora"[49] e, portanto, a mãe da nova ordem mundial. A ânsia de igualdade e justiça, o desejo de transcender os estreitos e inexpressivos limites de classes, de abandonar privilégios e preconceitos estúpidos, pareciam encontrar na guerra um modo de fugir às velhas atitudes condescendentes de piedade pelos oprimidos e deserdados. Em épocas de crescente miséria e desamparo individual, é tão difícil resistir à piedade, quando ela se transforma em paixão, como deixar de condenar a sua própria universalidade, que parece matar a dignidade humana mais definitivamente que a própria miséria.
     Nos primeiros anos de sua carreira, quando a restauração do status quo europeu ainda constituía a mais séria ameaça às ambições da ralé,[50] Hitler apelou quase exclusivamente para esses sentimentos da geração de peculiar desprendimento do homem da massa que parecia corresponder ao desejo de anonimato, ao desejo de ser apenas um número e funcionar apenas como uma peça, para que se pudesse apagar a sua falsa identificação com tipos específicos ou funções predeterminadas na sociedade. A guerra havia sido sentida como "aquela "ação coletiva mais poderosa de todas" que obliterava as diferenças individuais, de sorte que até mesmo o sofrimento, que tradicionalmente distinguia os indivíduos com destinos próprios não intercambiáveis, podia agora ser interpretado como "instrumento de progresso histórico".[51] A elite do pós-guerra desejava incorporar-se a qualquer massa, sem distinções nacionais. Um tanto paradoxalmente, a Primeira Guerra Mundial havia quase liquidado os sentimentos nacionais da Europa, onde, entre as duas guerras, era muito mais importante haver pertencido à geração das trincheiras, não importa de que lado, do que ser alemão ou francês.[52] Os nazistas basearam toda a sua propaganda nessa camaradagem indistinta, nessa "comunidade de destino", e conquistaram grande número de organizações de veteranos de guerra em todos os países europeus, demonstrando assim quão inexpressivos se haviam tornado os slogans nacionais, mesmo entre os escalões da chamada ala direita, que os empregavam em virtude da sua conotação de violência e não pelo que continham de especificamente nacional.
     Nenhum dos elementos era muito novo nesse clima intelectual geral do pós-guerra europeu. Bakúnin já havia confessado que "não quero ser eu, quero ser nós",[53] e Nechayev já havia pregado o evangelho do "homem condenado", que não tem "quaisquer interesses pessoais, quaisquer afazeres, sentimentos, ligações, propriedades, nem mesmo um nome que possa chamar de seu".[54] Os instintos anti-humanistas, antiliberais, antiindividualistas e anticulturais da geração de vanguarda, o seu brilhante e espirituoso louvor da violência, do poder da crueldade haviam sido precedidos pelas pomposas e desajeitadas demonstrações "científicas" da elite imperialista de que a lei do universo é a luta de todos contra todos, de que a expansão é uma necessidade psicológica antes de ser mecanismo político, e de que o homem deve conduzir-se de acordo com essas leis universais.[55] O elemento novo nas obras da geração de vanguarda era o seu alto nível literário e a grande profundidade da sua paixão. Os escritores do pós-guerra já não tinham necessidade das demonstrações científicas da genética, e de pouco ou nada lhes serviam as obras completas de Gobineau ou de Houston Stewart Chamberlain, que já pertenciam ao cabedal cultural dos filisteus. Liam não Darwin, mas o marquês de Sade.[56] Se acreditavam em leis universais, certamente não estavam muito ansiosos em segui-las. Para eles, a violência, o poder e a crueldade eram as supremas aptidões do homem que havia perdido definitivamente o seu lugar no universo e era demasiado orgulhoso para desejar uma teoria de força que o trouxesse de volta e o reintegrasse no mundo. Contentava-se em participar cegamente de qualquer coisa que a sociedade respeitável houvesse banido, independentemente de teoria e conteúdo, e promovia a crueldade à categoria de virtude maior porque contradizia a hipocrisia humanitária e liberal da sociedade.
     Comparados aos ideólogos do século XIX, cujas teorias parecem às vezes compartilhar tanto, os homens dessa geração diferem principalmente por sua maior paixão e autenticidade. A miséria havia-os tocado mais fundo, as perplexidades os inquietavam mais e a hipocrisia os feria mais mortalmente do que a todos os apóstolos da boa vontade e da irmandade humana. E já não podiam fugir para terras exóticas, já não podiam dar-se ao luxo de serem matadores de dragões entre povos estranhos e apaixonantes. Não havia meio de fugir à rotina diária de miséria, humildade, frustração e ressentimentos, embelezada por uma falsa cultura de fala educada; nenhum conformismo aos costumes desses países de faz-de-conta podia salvá-los da crescente náusea que essa combinação inspirava continuamente.
     Essa impossibilidade de fugir pelo mundo afora, esse sentimento de cair repetidamente nas armadilhas da sociedade — tão diferente das circunstâncias que haviam formado o caráter imperialista — acrescentavam à velha paixão do anonimato e da perda de si mesmos uma tensão constante e um desejo de violência. Sem a possibilidade de mudança radical de papel e de caráter, o mergulho voluntário nas forças sobre-humanas da destruição parecia salvá-los da identificação automática com as funções preestabelecidas da sociedade e sua completa banalidade, ao mesmo tempo em que parecia ajudar a destruir o próprio funcionamento. Esses homens sentiam-se atraídos pelo pronunciado ativismo dos movimentos totalitários, pela curiosa e aparentemente contraditória insistência no primado simultâneo da ação pura e da força irresistível da necessidade. Era uma mistura que correspondia exatamente à experiência de guerra da "geração de vanguarda", à experiência da atividade constante dentro da estrutura da fatalidade inelutável.
     Além disso, o ativismo parecia fornecer novas respostas à velha e incômoda pergunta "quem sou eu?", que ocorre com redobrada persistência em tempos de crise. Se a sociedade insistia em "és o que pareces ser", o ativismo do pós-guerra respondia "és o que fizeste" — por exemplo, o homem que pela primeira vez atravessou o Atlântico num aeroplano (como em Der Flüg der Lind-berghs —, resposta que, após a Segunda Guerra Mundial, foi repetida com uma pequena variação por Sartre: "és a tua vida" (em Huis cios). A pertinência dessas respostas estava menos na sua validez como redefinições da identidade pessoal do que na sua utilidade para eventual fuga da identificação social, da multiplicidade de papéis e funções intercambiáveis que a sociedade havia imposto. A questão era fazer algo, fosse heroico ou criminoso, que nenhuma outra pessoa pudesse prever ou determinar.
     O pronunciado ativismo dos movimentos totalitários, sua preferência pelo terrorismo em relação a qualquer outra forma de atividade política, atraíram da mesma forma a elite de intelectuais e a ralé, precisamente porque esse terrorismo era tão diferente daquele das antigas sociedades revolucionárias^ Já não era uma questão de política calculada, que via em atos terroristas o único meio de eliminar certas personalidades importantes que se haviam tornado símbolos de opressão. O que era tão atraente é que o terrorismo se havia tornado uma espécie de filosofia através da qual era possível exprimir frustração, ressentimento e ódio cego, uma espécie de expressionismo político que tinha bombas por linguagem, que observava com prazer a publicidade dada a seus feitos estrondosos e que estava absolutamente disposto a pagar com a vida o fato de conseguir impingir às camadas normais da sociedade o reconhecimento da existência de alguém. Foi esse mesmo espírito e esse mesmo jogo que levaram Goebbels, muito antes da derrota final da Alemanha nazista, a anunciar, com óbvio deleite, que os nazistas, em caso de derrota, saberiam fechar a porta atrás de si de modo a não serem esquecidos durante séculos.
     Contudo, se existe um critério válido para distinguir a elite da ralé na atmosfera pré-totalitária, é aqui que podemos encontrá-lo: o que buscava a ralé e o que Goebbels expressou de modo tão preciso era o acesso à história, mesmo ao preço da destruição. A sincera convicção de Goebbels de que "a maior felicidade que um homem pode experimentar hoje" é ser um gênio ou servir a um gênio[57] era típica da ralé, mas não da massa nem da elite simpatizante. Esta última, pelo contrário, levava muito a sério o anonimato, ao ponto de negar seriamente a existência do gênio; todas as teorias da arte dos anos 20 tentaram desesperadamente provar que a excelência resulta da habilidade, do artesanato, da lógica e da realização das potencialidades do material.[58] A ralé, e não a elite, sentia-se fascinada pelo "radiante poder da fama" (Stefan Zweig) e aceitava entusiasticamente a idolatria do gênio que caracterizara o extinto mundo burguês. Nisso, a ralé do século XX seguiu fielmente o padrão dos antigos par-venus, que também haviam descoberto que a sociedade burguesa abria mais facilmente as portas ao fascinante "anormal" — ou seja, ao gênio, ao homossexual ou ao judeu — do que ao simples mérito. O desprezo que a elite nutria pelo gênio e o seu desejo de anonimato ainda revelavam um espírito que nem as massas nem a ralé estavam em posição de compreender, e que, nas palavras de Robespierre, tentava afirmar a grandeza do homem contra a pequenez dos grandes.
     A despeito dessa diferença entre a elite e a ralé, não há dúvida de que a elite se deleitava sempre que o submundo forçava a sociedade respeitável, através do terror, a aceitá-lo em pé de igualdade. Os membros da elite concordavam em pagar o preço, que era a destruição da civilização, pelo prazer de ver como aqueles que dela haviam sido excluídos injustamente, no passado, agora penetravam nela à força. Não se ofendiam* muito com as monstruosas contrafações da história, perpetradas por todos os regimes totalitários e claramente perceptíveis na propaganda totalitária. Estavam convencidos de que a historiografia tradicional era, de qualquer forma, uma fraude, pois havia excluído da memória da humanidade os subprivilegiados e os oprimidos. Aqueles a quem a sua própria época rejeitava eram geralmente esquecidos pela história — e o insulto, aliado ao crime, sempre perturbou todas as consciências sensíveis desde que desapareceu a fé num mundo em que os últimos seriam os primeiros. As injustiças do passado e do presente tornaram-se intoleráveis quando evaporou-se a esperança de que a balança da justiça jamais viesse a endireitar-se. A tentativa de Marx de reescrever a história do mundo em termos de luta de classes fascinou até mesmo aqueles que não acreditavam na correção da sua tese, dada a intenção original de encontrar um meio de introduzir à força na lembrança da posteridade os destinos daqueles que haviam sido excluídos da história.
     A trégua temporária entre a elite e a ralé baseava-se, em grande parte, nesse prazer genuíno com que a primeira assistia à destruição da respeitabilidade pela segunda, o que aconteceu, por exemplo, quando os barões do acopla Alemanha foram forçados a receber socialmente a Hitler, o pintor de paredes e fracassado confesso; ou quando os movimentos totalitários cometeram fraudes grosseiras e vulgares em todos os campos da vida intelectual, reunindo todos os elementos subterrâneos e espúrios da história europeia num conjunto que parecia fazer sentido. Desse ponto de vista, era sem dúvida agradável ver o bolchevismo e o nazismo passarem a repudiar até mesmo aquelas fontes de suas ideologias que já haviam conquistado algum reconhecimento em círculos acadêmicos e outros círculos oficiais. O que inspirava os manejadores da história não \ era o materialismo dialético de Marx, mas a conspiração das trezentas famílias; não o pomposo cientificismo de Gobineau e de Chamberlain, mas os "Protocolos dos sábios do Sião"; não a demonstrável influência da Igreja Católica e o papel do anticlericalismo nos países latinos, mas a literatura clandestina sobre jesuítas e maçons. A finalidade das mais variadas e variáveis interpretações era sempre denunciar a história oficial como uma fraude, expor uma esfera de in^ fluências secretas das quais a realidade histórica visível, demonstrável e conhecida era apenas uma fachada externa construída com o fim expresso de enganar o povo.
     A essa aversão da elite de intelectuais pela historiografia oficial, à sua convicção de que nada impedia que a história, fraudulenta como era, fosse usada como brinquedo por alguns malucos, deve acrescentar-se o terrível fascínio exercido pela possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformar-se em fatos incontestes, de que o homem pudesse ter a liberdade de mudar à vontade o seu passado, e de que a diferença. entre a verdade e a mentira pudesse deixar de ser objetiva e passasse a ser apenas uma questão de poder e de esperteza, de pressão e de repetição infinita. O que os fascinava não era a habilidade com que Hitler e Stálin mentiam, mas o fato de que pudessem organizar as massas numa unidade coletiva para dar às suas mentiras uma pompa impressionante. O que era simples fraude do ponto de vista factual e intelectual parecia receber a bênção da própria história quando toda a realidade dinâmica dos movimentos passou a sustentar a mentira, fingindo tirar dela o entusiasmo necessário para a ação.
     É desconcertante a atração que os movimentos totalitários exerceram sobre a elite, enquanto e onde não houvessem tomado o poder, porque as doutrinas patentemente vulgares, arbitrárias e dogmáticas do totalitarismo são mais visíveis para o espectador que está de fora^ Essas doutrinas discrepavam tanto dos padrões intelectuais, culturais e morais geralmente aceitos que se podia concluir que somente um defeito básico, inerente do caráter do intelectual, Ia trahison des clercs (Julien Benda), ou um doentio ódio do espírito contra si mesmo, explicava o prazer com que a elite aceitava as "ideias" da ralé. O que os porta-vozes do humanismo e do liberalismo geralmente esquecem, no seu amargo desapontamento e no seu desconhecimento das experiências mais gerais da época, é que, numa atmosfera em que todos os valores e proposições tradicionais se haviam evaporado — e no século XIX as ideologias se haviam refutado umas às outras e esgotado o seu apelo vital —, era de certa forma mais fácil aceitar proposições patentemente absurdas do que as antigas verdades que haviam virado banalidades, exatamente porque não se esperava que ninguém levasse a sério os absurdos. A vulgaridade, com o seu cínico repúdio dos padrões respeitados e das teorias aceitas, trazia em si um franco reconhecimento do que havia de pior e um desprezo por toda simulação que facilmente passava por bravura e novo estilo de vida. No crescente triunfo das atitudes e convicções da ralé,— que não eram mais que as atitudes e convicções da burguesia despidas de fingimento — aqueles que tradicionalmente odiavam a burguesia e tinham voluntariamente abandonado a sociedade respeitável viam apenas a falta de hipocrisia e de respeitabilidade, não o seu conteúdo.[59]
     Desde que a burguesia afirmava ser a guardiã das tradições ocidentais e confundia todas as questões morais exibindo em público virtudes que não só não incorporava na vida privada e nos negócios, mas que realmente desprezava, parecia revolucionário admitir a crueldade, o descaso pelos valores humanos e a amoralidade geral, porque isso pelo menos destruía a duplicidade sobre a qual a sociedade existente parecia repousar. Como era tentador assumir atitudes extremas na meia-luz hipócrita dos duplos padrões de moral, colocar publicamente no rosto a máscara da crueldade quando todos fingiam ser bondosos e ostentar a maldade num mundo que nem sequer era de maldade, mas de mesquinhez! A elite intelectual dos anos 20, que pouto sabia da antiga relação entre a ralé e a burguesia, estava convencida de que o velho jogo de épater le bour-geois podia ser jogado com perfeição, se o primeiro lance fosse chocar a sociedade com a caricatura irônica da sua própria conduta.
     Naquela época, ninguém podia imaginar que a verdadeira vítima dessa ironia seria a elite e não a burguesia. A avant-garde ignorava que estava investindo não contra paredes, mas contra portas abertas; o sucesso unânime desmentiria a sua pretensão de ser uma minoria revolucionária, e demonstraria que ela buscava apenas exprimir um novo espírito de massa, que era o espírito do seu tempo. A este respeito, foi particularmente significativa a acolhida que a Dreigroschenoper de Brecht teve na Alemanha de antes de Hitler. A peça mostrava bandidos como respeitáveis negociantes e respeitáveis negociantes como bandidos. A ironia não atingiu o alvo, pois os respeitáveis negociantes da plateia enxergaram naquilo uma visão profunda das coisas do mundo, e a ralé tomou a peça como a aprovação artística do banditismo. O tema musical da peça, Erst koíhmt das Fressen, dann kommt die Moral [Antes vem a comida, depois vem a moral], recebeu o aplauso delirante de todos, embora de cada um por motivos diferentes. A ralé aplaudiu porque levou a sério a afirmação; a burguesia aplaudiu porque fora lograda durante tanto tempo por sua própria hipocrisia que se cansara do esforço e via profunda sabedoria na expressão da banalidade da sua vida; a elite aplaudia porque desmascarar a hipocrisia era um elevado e maravilhoso divertimento. O efeito da obra foi exatamente o oposto do que Brecht pretendia. A burguesia já não se chocava com coisa alguma; acolhia com prazer a denúncia da sua filosofia, cuja popularidade provava que sempre estivera certa, de sorte que o único resultado político da "revolução" de Brecht foi encorajar todo o mundo a arrancar a máscara incômoda da hipocrisia e.. aceitar abertamente os padrões da ralé.
     Cerca de dez anos mais tarde, na França, o Bagatelles pour un massacre, no qual Céline propunha que se massacrassem todos os judeus, provocou reação igualmente ambígua. André Gide expressou publicamente o seu deleite nas páginas àa\Nouvelle RevueFrançaise, naturalmente não porque quisesse matar os judeus da França, mas porque exultava com a brutal confissão desse desejo e com a fascinante contradição entre a grosseria de Céline e a polidez hipócrita que cercava a questão judaica em todos os círculos respeitáveis. O desejo da elite de desmascarar a hipocrisia era tão irresistível que nem mesmo a perseguição muito real que Hitler promoveu contra os judeus chegou a prejudicar essa exultação — e a perseguição já estava em pleno andamento quando Céline escreveu o livro. A aversão contra o filo semitismo dos liberais tinha muito mais a ver com essa reação do que o ódio aos judeus. ^jalo, notável de que as conhecidas opiniões de Hitler e de Stálin sobre arte, e a perseguição que ambos moveram contra os artistas modernos, nunca eliminaram a atração que os movimentos totalitários exerciam sobre os artistas da avant-garde pode ser explicado por um estado de espírito semelhante — o que demonstra a falta de senso de realidade da elite e o seu pervertido desprendimento, muito afins do mundo fictício em que viviam e da falta de interesses das massas por si mesmas. A grande oportunidade dos movimentos totalitários, e o motivo pelo qual uma aliança temporária entre a elite intelectual e a ralé pôde ocorrer, foi que, de certo modo elementar e indistinto, os seus problemas se tornavam os mesmos e prefiguravam os problemas e a mentalidade das massas.
     O irresistível apelo da falsa pretensão dos movimentos totalitários de haverem abolido a separação entre a vida pública e a vida privada e de haverem restaurado no homem uma totalidade misteriosa e irracional tinha muito a ver com a atração que a elite sentia pela ausência de hipocrisia da ralé e pela ausência de interesse das massas por si mesmas. Desde que Balzac revelou _as vidas privadas de figuras públicas da sociedade francesa e desde que a dramatização de Ibsen dos "pilares da sociedade" conquistou o teatro da Europa, a questão da dupla moralidade tem sido um dos principais tópicos de tragédias e romances. A dupla moralidade praticada pela burguesia tornou-se o principal sinal do esprit de sérieux, sempre pomposo e nunca sincero. Essa divisão entre a vida privada e a vida pública ou social nada tinha a ver com a justa separação entre as esferas pessoal e pública, mas era antes o reflexo psicológico da luta do século XIX entre bourgeois e citoyens, entre os burgueses que usavam e julgavam todas as instituições públicas pela medida dos seus interesses privados e os cidadãos responsáveis que se preocupavam com as coisas públicas do interesse de todos. Nesse particular, a filosofia política dos liberais segundo a qual a mera soma dos interesses individuais constitui o milagre do bem comum, parecia apenas uma racionalização da temeridade com que se atendia aos interesses privados sem se atentar para o bem comum.
     Contra o espírito de classe dos partidos europeus, que sempre confessaram representar certos interesses e contra o "oportunismo" resultante da sua concepção de si mesmos como simples partes de um todo, os movimentos totalitários afirmavam a sua "superioridade" pelo fato de conterem uma Weltan-schauung através da qual tomariam posse do homem como um todo.[60]  Nessa pretensão de totalidade, os líderes da ralé dos movimentos totalitários formulavam a sua ideologia invertendo apenas a própria filosofia política da burguesia. A classe burguesa, tendo aberto caminho para si por meio da pressão social e, frequentemente, através de chantagem econômica contra instituições políticas, sempre acreditara que os órgãos públicos oficiais do poder fossem dirigidos por seus próprios interesses e influxos secretos. Nesse sentido, a filosofia política da burguesia era sempre "totalitária"; supunha sempre que política, economia e sociedade fossem uma coisa só, na qual as instituições políticas serviam apenas de fachada para os interesses privados. O duplo padrão da burguesia, sua distinção entre a vida pública e a vida pessoal, era uma concessão ao Estado nacional que havia desesperadamente tentado manter separadas as duas esferas.
     O que atraía a elite era o radicalismo em si. As esperançosas previsões de Marx de que o Estado feneceria e surgiria uma sociedade sem classes não eram suficientemente radicais nem messiânicas. Se Berdyaev tem razão quando afirma que "os revolucionários russos (...) sempre foram totalitários", então a atração que a Rússia soviética exerceu sobre os simpatizantes intelectuais do nazismo e do comunismo residia precisamente no fato de que, na Rússia, "a revolução era uma religião e uma filosofia, e não um simples conflito interessado no lado social e político da vida".[61] A verdade é que a transformação das classes em massas e o colapso do prestígio e da autoridade das instituições políticas haviam provocado, nos países da Europa ocidental, condições semelhantes às que existiam na Rússia, de modo que não foi por acaso que os seus revolucionários adquiriram o fanatismo revolucionário tipicamente russo que não esperava mudar as condições sociais ou políticas, mas destruir completamente todos os credos, valores e instituições existentes. A ralé apenas aproveitou-se desse novo estado de ânimo e provocou uma efêmera aliança entre revolucionários e criminosos, aliança esta que também havia ocorrido em muitas facções revolucionárias da Rússia czarista, mas que sempre estivera ausente do cenário europeu.
     A perturbadora aliança entre a ralé e a elite e a curiosa coincidência das suas aspirações originam-se do fato de que essas duas camadas haviam sido as primeiras a serem eliminadas da estrutura do Estado-nação e da estrutura da sociedade de classes. Se uma encontrou a outra com tanta facilidade, embora temporariamente, é porque ambas percebiam que representavam o destino da época, que seriam seguidas por massas sem fim, que mais cedo ou mais tarde a maioria dos povos europeus estaria com elas — prontos a fazerem a sua revolução, segundo pensavam.
     Ambas estavam enganadas, como se viu depois. A ralé — submundo da classe burguesa — esperava que as massas impotentes a ajudassem a galgar o poder, a apoiassem quando tentasse promover os seus interesses privados, e que poderia simplesmente substituir as camadas mais antigas da sociedade burguesa, instilando nela o espírito mais dinâmico do submundo. Mas, uma vez no poder, o totalitarismo logo aprendeu que não eram só as camadas da ralé que tinham espírito de iniciativa e que, de qualquer forma, essa iniciativa só podia ameaçar o domínio total do homem. Por outro lado, a falta de escrúpulos também não era privilégio da ralé e, se necessário, podia ser ensinada em tempo relativamente curto. Para a máquina impiedosa do domínio e do extermínio, as massas coordenadas da burguesia constituíam material capaz de crimes ainda piores que os cometidos pelos chamados criminosos profissionais, contanto que esses crimes fossem bem organizados e assumissem a aparência de tarefas rotineiras. Não foi por acaso, portanto, que os poucos protestos contra as atrocidades em massa dos nazistas contra os judeus e os povos da Europa oriental partiram não dos militares nem de qualquer outro setor das massas coordenadas compostas por homens respeitáveis, mas precisamente daqueles primeiros camaradas de Hitler que eram típicos representantes da ralé.[62]
     E  Himmler, de 1936 o homem mais poderoso da Alemanha, não era um daqueles "boêmios armados" (Heiden) cujas características eram penosamente semelhantes às da elite intelectual. Himmler era ."mais normal", isto é, mais filisteu do que qualquer outro dos primeiros líderes do movimento nazista.[63] Não era um boêmio como Goebbels, nem criminoso sexual como Streicher, nem louco como Rosen-berg, nem fanático como Hitler, nem aventureiro como Gõring. Demonstrou sua suprema capacidade de organizar as massas sob o domínio total, partindo do pressuposto de que a maioria dos homens não são boêmios, fanáticos, aventureiros, maníacos sexuais, loucos nem fracassados, mas, acima e antes de tudo, empregados eficazes e bons chefes de família.
     O isolamento desses filisteus na vida privada e sua sincera devoção a questões de família e de carreira pessoal, era o último e já degenerado produto da crença do burguês na suma importância do interesse privado. O filisteu é o burguês isolado da sua própria classe, o indivíduo atomizado produzido pelo colapso da própria classe burguesa. O homem da massa, a quem Himmler organizou para os maiores crimes de massa jamais cometidos na história, tinha os traços do filisteu e não da ralé, e era o burguês que, em meio às ruínas do seu mundo, cuidava mais da própria segurança, estava pronto a sacrificar tudo a qualquer momento — crença, honra, dignidade. Nada foi tão fácil de destruir quanto a privacidade e a moralidade pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar as suas vidas privadas. Em poucos anos de poder e de coordenação sistemática, os nazistas podiam anunciar com razão: "A única pessoa que ainda é um indivíduo privado na Alemanha é alguém que esteja dormindo".[64]
     Por outro lado, para fazer justiça àqueles elementos da elite que vez por outra se deixavam seduzir pelos movimentos totalitários e que, devido à sua capacidade intelectual, são às vezes acusados de haver inspirado o totalitarismo, é preciso dizer que nada do que esses homens desesperados do século XX fizeram ou deixaram de fazer teve qualquer influência sobre o totalitarismo, embora tivesse muito a ver com as primeiras e bem-sucedidas tentativas dos movimentos de fazerem o mundo exterior levar a sério as suas doutrinas. Sempre que os movimentos totalitários tomavam o poder, todo esse grupo de simpatizantes era descartado antes mesmo que o regime passasse a cometer os seus piores crimes. A iniciativa intelectual, espiritual e artística é tão perigosa para o totalitarismo como a iniciativa de banditismo da ralé, e ambos são mais perigosos que a simples oposição política. A uniforme perseguição movida contra qualquer forma de atividade intelectual pelos novos líderes da massa deve-se a algo mais que o seu natural ressentimento contra tudo o que não podem compreender. O domínio total não permite a livre iniciativa em qualquer campo de ação, nem qualquer atividade que não seja inteiramente previsível. O totalitarismo no poder invariavelmente substitui todo talento, quaisquer que sejam as suas simpatias, pelos loucos e insensatos cuja falta de inteligência e criatividade é ainda a melhor garantia de lealdade.[65].

Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 2 - A Aliança Temporária Entre a Ralé e a Elite)
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[44] Ver a descrição que Hitler faz de suas reações ao eclodir a Primeira Guerra Mundial (Mein Kampf, livro 1, cap. V).
[45] Ver a coleção de artigos sobre a "crônica interna da Primeira Guerra Mundial" por Hanna Hafkesbrink, Unknown Germany, New Haven, 1948, pp. 43, 45 e 81, respectivamente. Trata-se de trabalho de profundo valor, que nos revela os fatores imponderáveis da atmosfera histórica, e que torna deplorável a ausência de estudos semelhantes para a França, Inglaterra e Itália.
[46Ibid.,pp.20-1.
[47] Tudo começava com uma sensação de completo alheamento em relação à vida normal. Escreveu Rodolf Binding, por exemplo: "Cada vez mais fazemos parte dos mortos, dos alienados — porque a grandeza do que ocorre nos aliena e separa — e não dos banidos, cuja volta é possível" (ibid., p. 160). Uma curiosa reminiscência da pretensão da elite da geração das trincheiras pode ainda ser encontrada no relato de Himmler sobre a "forma de seleção" para a reorganização da SS: "(...) o processo de seleção mais severo é proporcionado pela guerra, pela luta de vida e morte. Nesse processo, o valor do sangue se manifesta pela realização. (...) Mas a guerra é uma circunstância excepcional, e era preciso encontrar uma forma de seleção contínua também em tempos de paz" (op.cit.).
[48] Ver, por exemplo, Ernst Jünger, The storm ofsteel, Londres, 1929.
[49] Hafkesbrink, op. cit., p. 156.
[50] Heiden, op. cit., mostra a consistência com que Hitler preferia a catástrofe nos primeiros dias do movimento, como receava uma possível recuperação da Alemanha. "Uma meia dúzia de vezes [durante o Ruhrputsch], com palavras diferentes, declarou às suas tropas de choque que a Alemanha estava afundando. 'Nossa tarefa é assegurar o sucesso do nosso movimento'" — (p. 167) — sucesso que, naquele instante, dependia do colapso da luta no Ruhr.
[51] Hafkesbrink, op. cit., pp. 156-7.
[52] Esse sentimento já era generalizado durante a guerra, quando Rudolf Binding escte-veu: "Esta guerra não deve ser comparada a uma campanha. Pois, numa campanha, a vontade de um líder, se confronta com a de outro. Mas nesta guerra ambos os adversários jazem por terra, e somente a Guerra impõe a sua vontade" (ibid., p. 67).
[53] Bakúnin, numa carta escrita a 7 de fevereiro de 1870. Ver Max Nomad, Apostles of Revolution, Boston, 1939, p. 180.
[54] O "Catecismo da Revolução" não foi escrito nem pelo próprio Bakúnin nem por seu discípulo Nechayev. Quanto à questão da autoria e tradução do texto completo, ver Nomad, op. cit., pp. 227 ss. De qualquer forma, o "sistema de completo descaso por quaisquer dogmas de simples decência e integridade na atitude [do revolucionário] em relação aos outros seres humanos (...) ficou na história da revolução russa com o nome de 'Nechayevshtchina" (ibid., p. 224).
[55] Ernest Seillière, Mysticisme et domination: essais de critique impérialiste, 1913, é um dos principais teóricos políticos do imperialismo. Ver também Cargill Sprietsma, We imperialists: notes on Ernest Seillières philosophy ofimperialism, Nova York, 1931; G. Monod em La Revue Historique, janeiro de 1912; e Louis Esteve, Une nouvelle psychologie de Vimpérialisme: Ernest Seillière, 1913.
[56] Na França, desde 1930, o marquês de Sade tornou-se um dos autores favoritos da avant-garde literária. Jean Paulhan, em sua introdução a uma nova edição de Les infortunes de Ia vertu, de Sade, Paris, 1946, observa: "Quando vejo hoje tantos escritores tentando conscientemente negar o artifício e o jogo literário em benefício do inexprimível [un événement indicible] (...), ansiosamente buscando o sublime no infame, o grande no subversivo (...), pergunto-me (...) se a nossa literatura moderna, naqueles setores que nos parecem mais vitais — ou, pelo menos, mais agressivos — não se voltou inteiramente para o passado, e se a causa disso não foi precisamente Sade". Ver também Georges Batailte, "Le secret de Sade", em La critique, tomo III, n?s 15-6, 17, 1947.
[57] Goebbels, op. cit., p. 139.
[58] As teorias da arte de Bauhaus eram características nesse particular. Ver também as observações de Bertolt Brecht sobre o teatro em Gesammelte Werke, Londres, 1938.
[59] O seguinte trecho, de autoria de Ròhm, é típico do sentimento de quase toda a geração mais jovem, e não apenas de uma elite: "a hipocrisia e o domínio do fariseu são as mais notáveis características da sociedade de hoje. (...) Nada podia ser mais falso do que a chamada moral da sociedade. Os moços estão perdidos no mundo filisteu da dupla moral burguesa, e já não sabem como distinguir entre a verdade e o erro" (Die Geschichte eines Hochverràters, pp. 267 e 269). A homossexualidade que reinava nesses círculos era também, pelo menos em parte, uma expressão do seu protesto contra a sociedade.
[60] O papel da Weltanschauung na formação do movimento nazista foi acentuado muitas vezes pelo próprio Hitler. É interessante notar que em Mein Kampf ele alega ter compreendido a necessidade de basear um partido numa Weltanschauung em virtude da superioridade dos partidos marxistas (livro II, cap. I: "Weltanschauung e o Partido").
[61] NicolaiBerdyaev, Theorigin of Russian Communism, 1937, pp. 124-5.
[62] Houve, por exemplo, a curiosa intervenção de Welhelm Kube, comissário-geral em Minsk e um dos mais antigos membros do partido, que, em 1941, ou seja, no começo do assassínio em massa, escreveu a seu chefe: "Não há dúvida de que desejo cooperar com a solução da questão judaica, mas aqueles que foram criados em nossa cultura são, afinal de contas, diferentes das hordas bestiais locais. Devemos designar para a tarefa de matá-los os lituanos e letões que são desprezados até mesmo pela população local? Não poderia fazê-lo. Solicito que me sejam dadas instruções claras para tratar do assunto do modo mais humano possível, em benefício do prestígio do nosso Reich e do nosso Partido". Essa carta foi publicada em Hitler 'sprofessors, de Max Weinreich, Nova York, 1946, pp. 153-4. A intervenção de Kube foi prontamente rejeitada, mas uma tentativa quase idêntica de salvar a vida de judeus dinamarqueses, feita por W. Best, plenipotenciário do Reich na Dinamarca e conhecido nazista, foi melhor sucedida. Ver Nazi conspiracy, V, 2.
     Da mesma forma, Alfred Rosenberg, que havia pregado a inferioridade dos povos eslavos, obviamente nunca imaginara que as suas teorias seriam um dia usadas para liquidá-los. Encarregado da administração da Ucrânia, escreveu relatórios indignados sobre as condições que lá prevaleciam no outono de 1942, depois de haver tentado obter a intervenção direta do próprio Hitler. Ver Nazi conspiracy, III, 83 ss., e IV, 62. Há, naturalmente, certas exceções a esta regra. O homem que salvou Paris da destruição foi o general Von Choltitz, que, no entanto, ainda "temia ser destituído do comando por não haver cumprido as ordens", embora soubesse que "a guerra estava perdida havia anos". Parece duvidoso que ele houvesse tido a coragem de resistir às ordens de "transformar Paris num monte de ruínas" sem o enérgico apoio de um velho nazista, Otto Abetz, embaixador alemão na França, segundo o seu próprio testemunho durante o julgamento de Abetz em Paris.
[63] Um inglês, Stephen H. Roberts, The house that Hitler built, Londres, 1939, descreve Himmler como "um homem de fina cortesia e ainda interessado nas coisas simples da vida. Não tem aquela pose dos nazistas que agem como se fossem semideuses. (...) Nenhum homem aparenta menos o cargo que exerce do que esse ditador da polícia alemã, e estou convencido de que ninguém que eu tenha encontrado na Alemanha é mais normal (...)" (pp. 89-90). Isso nos faz lembrar, de modo curioso, a observação da mãe de Stálin que, segundo a propaganda bolchevista, disse dele: "Um filho exemplar. Quisera que todos fossem como ele" (Souvarine, op. cit., p. 656).
[64] Quem fez essa observação foi Robert Ley. Ver Kohn-Bramstedt, op. cit., p. 178.
[65] A política bolchevista, que, nesse particular, é surpreendentemente coerente, é bem conhecida e dispensa maiores comentários. Picasso, para citar o exemplo mais famoso, não é apreciado na Rússia, embora se tenha tornado comunista. É possível que a súbita mudança de atitude de André Gide, depois que viu a realidade bolchevique na Rússia soviética (Retour de IVRSS) em 1936, tenha definitivamente convencido Stálin da inutilidade dos artistas criativos, mesmo como simpatizantes. A política nazista diferia das medidas bolchevistas apenas no fato de que não matava os seus talentos.
     Valeria a pena estudar em detalhe a carreira dos eruditos alemães, comparativamente poucos, que foram além da mera cooperação e ofereceram os seus serviços por serem nazistas convictos. (Weihreich, op. cit., não distingue entre os professores que adotaram o credo nazista e os que deviam sua carreira exclusivamente ao regime, omite as carreiras anteriores dos eruditos que se preocupavam com a situação, e coloca assim, indiscriminadamente, conhecidos homens de grandes méritos na mesma categoria de fanáticos.)
     Interessantíssimo é o exemplo do jurista Carl Schmitt, cujas engenhosas teorias acerca do fim da democracia e do governo legal ainda constituem leitura impressionante; já em meados da década de 30, foi substituído pelo tipo nazista de teóricos políticos como Hans Frank, que mais tarde foi governador da Polônia ocupada, Gottfried Neesse, e Reinhard Hoehn. O último a cair em desgraça foi Walter Frank, que havia sido antissemita convicto e membro do partido nazista antes da tomada do poder e que, em 1933, foi diretor do recém-fundado Reichsinstitut für Geschichte des Neuen Deutschlands [Instituto do Reich para a História da Nova Alemanha] com o seu famoso Forschungsabteilung Judenfrage [Seção de Pesquisas para a Questão Judaica], e editor da volumosa (nove tomos!) obra Forschungen zur Judenfrage (1937-44). Em co-meços da década de 40, Frank teve de ceder a sua posição e influência a Alfred Rosenberg, cujo Der Mythos des 20. Jahrhunderts [O mito do século XX] certamente não constitui nenhum exemplo de "erudição". O motivo pelo qual Frank não merecia a confiança dos nazistas era, obviamente, o fato de não ser charlatão. O que nem a elite nem a ralé que "abraçava" o nacional-socialismo com tanto fervor podia compreender era que "não se pode abraçar esta Ordem (...) por acaso. Além e acima do desejo de servir, está a implacável necessidade da seleção, que não reconhece nem circunstâncias atenuantes nem clemência" (Der Weg der SS [O caminho da SS], emitido pela SS Hauptamt-Schulungsamt, sem data, p. 4). Em outras palavras, no tocante à seleção dos que desejavam unir-se a eles, os nazistas tomavam sua própria decisão, independentemente do "acidente" das opiniões. O mesmo parece aplicar-se à seleção de bolchevistas para a polícia secreta. F. Beck e W. Godin contam em Russian purge and the extraction of confessions, 1951, p. 160, que os membros da NKVD eram arregimentados dentre membros do partido que não tinham tido a menor oportunidade de se oferecerem para essa "carreira".