em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
III(n)
No entanto, parecia-lhe que aquilo cuja ausência lamentava era enfim uma atmosfera de calma, de paz, que não seria favorável ao seu amor. Quando Odette deixasse de ser para ele uma criatura sempre ausente, desejada, imaginária, quando o sentimento que ela lhe inspirava já não fosse aquela mesma misteriosa perturbação que lhe causava a frase da sonata, mas pura afeição e reconhecimento, quando se estabelecessem entre ambos relações normais que dariam fim à sua loucura e à sua tristeza, então por certo os atos da vida de Odette lhe pareceriam pouco interessantes em si mesmos — como já várias vezes o suspeitara, como, por exemplo, no dia em que lera através do envelope a carta endereçada a Forcheville. Considerando o seu mal com tanta sagacidade como se o tivesse inoculado em si mesmo para fazer-lhe o estudo, refletia que, quando estivesse curado, lhe seria indiferente o que Odette pudesse fazer. Mas do fundo de seu estado mórbido, por assim dizer, temia, como a morte, semelhante cura, que seria com efeito a morte de tudo o que ele atualmente era.
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
No entanto, parecia-lhe que aquilo cuja ausência lamentava era enfim uma atmosfera de calma, de paz, que não seria favorável ao seu amor. Quando Odette deixasse de ser para ele uma criatura sempre ausente, desejada, imaginária, quando o sentimento que ela lhe inspirava já não fosse aquela mesma misteriosa perturbação que lhe causava a frase da sonata, mas pura afeição e reconhecimento, quando se estabelecessem entre ambos relações normais que dariam fim à sua loucura e à sua tristeza, então por certo os atos da vida de Odette lhe pareceriam pouco interessantes em si mesmos — como já várias vezes o suspeitara, como, por exemplo, no dia em que lera através do envelope a carta endereçada a Forcheville. Considerando o seu mal com tanta sagacidade como se o tivesse inoculado em si mesmo para fazer-lhe o estudo, refletia que, quando estivesse curado, lhe seria indiferente o que Odette pudesse fazer. Mas do fundo de seu estado mórbido, por assim dizer, temia, como a morte, semelhante cura, que seria com efeito a morte de tudo o que ele atualmente era.
Depois daquelas noites de calma, aplacavam-se as suspeitas de Swann: bendizia a
Odette, e, logo na manhã seguinte, mandava-lhe as mais belas joias, porque as atenções
dela na véspera lhe haviam despertado ou gratidão, ou o desejo de vê-las renovarem-se,
ou um paroxismo de amor que tinha necessidade de expandir-se.
Mas em outros instantes volvia-lhe o sofrimento, imaginava que Odette era amante
de Forcheville e que, quando ambos o tinham visto, do fundo do landô dos Verdurin,
no Bois, nas vésperas da reunião em Chatou a que não fora convidado, pedir-lhe em
vão que voltasse com ele, com aquele ar de desespero que até o cocheiro observara,
voltando depois sozinho e vencido, com certeza tivera Odette, para designá-lo a
Forcheville e dizer-lhe: “Ele está furioso, hem!”, o melhor olhar, brilhante, malicioso,
baixo e disfarçado, que no dia em que este correra com Saniette da casa dos Verdurin.
Swann então a detestava. “Também eu sou um idiota”, pensava ele, “pagando com o
meu dinheiro o prazer dos outros. Bem fará ela em conter-se e não puxar muito pela
corda, pois eu poderei não lhe dar mais nada, absolutamente. Em todo caso,
renunciemos provisoriamente às gentilezas suplementares! E pensar que ainda ontem
mesmo, como ela dissesse que tinha vontade de assistir à temporada de Bayreuth, cometi
a asneira de propor-lhe alugar para nós dois um dos castelos do rei da Baviera, nas
vizinhanças![1] E aliás ela não pareceu muito encantada, ainda não disse nem sim nem
não; queira Deus que não aceite! Ouvir Wagner durante quinze dias com ela, que tanto
se importa com Wagner como um peixe com uma maçã! Havia de ser muito divertido!”.
E como o seu ódio, tal qual o seu amor, tinha necessidade de manifestar-se e agir,
comprazia-se em levar cada vez mais longe as suas venenosas imaginações, porque,
graças às perfídias que atribuía a Odette, ainda mais a detestava e poderia, se fossem
certas — o que procurava imaginar —, ter ensejo de puni-la e saciar nela a sua crescente
cólera. Chegou até a supor que ia receber uma carta de Odette pedindo-lhe dinheiro para
alugar aquele castelo perto de Bayreuth, mas prevenindo-o de que não poderia ir ali
visitá-la, pois que ela prometera convidar Forcheville e os Verdurin. [2] Ah!, como
desejaria que Odette tivesse tal audácia! Que alegria teria ele em recusar, em redigir a
vingadora resposta, cujos termos se comprazia em escolher e enunciar em voz alta, como
se de fato houvesse recebido a carta!
Pois foi isso mesmo o que aconteceu no dia seguinte. Escreveu-lhe Odette dizendo
que os Verdurin e seus amigos haviam manifestado desejos de assistir àquelas
representações de Wagner e que se ele tivesse a bondade de lhe enviar aquele dinheiro,
poderia ela enfim, depois de tantas vezes recebida por eles, ter o prazer de convidá-los
por sua vez. Dele, Swann, nenhuma palavra; estava subentendido que a presença dos
Verdurin excluía a sua.
De modo que aquela terrível resposta que redigira palavra por palavra na véspera,
sem esperança de utilizá-la, teria ele a alegria de dirigir a Odette. Ah!, bem compreendia
que, com o dinheiro que ela possuía, ou que conseguiria facilmente, poderia mesmo
alugar casa em Bayreuth, visto que o desejava, ela que não era capaz de distinguir entre
Bach e Clapisson.[3] Em todo caso, seria obrigada a viver mais modestamente. Não
teria como organizar cada noite (o que aconteceria se desta vez lhe enviasse algumas
notas de mil francos) dessas finas ceias após as quais talvez tivesse a fantasia — que era
bem possível ainda não lhe ocorrera — de cair nos braços de Forcheville. E ao menos
aquela viagem detestada não seria ele, Swann, quem a pagaria! — Ah!, se pudesse
impedi-la, se ela torcesse um pé antes de partir, se o cocheiro que a levaria à estação
consentisse, não importava por que preço, em levá-la para um lugar onde ficasse por
algum tempo sequestrada, aquela mulher pérfida de olhar animado por um sorriso de
cumplicidade dirigido a Forcheville, que era como Swann a via nas últimas quarenta e
oito horas.
Mas essa aparência nunca durava muito; ao cabo de alguns dias aquele olhar
brilhante e falso ia perdendo o fulgor e a duplicidade, aquela imagem de uma Odette
execrada dizendo a Forcheville: “Como ele está furioso, hem!”, começava a empalidecer,
a apagar-se. Então, progressivamente reaparecia e elevava-se docemente brilhando, a
face de outra Odette, daquela que também dirigia um sorriso a Forcheville, mas um
sorriso em que não havia senão ternura para Swann, quando ela dizia: “Não demore
muito, pois esse senhor não gosta que eu tenha visitas quando deseja estar junto de mim.
Ah!, se conhecesse essa criatura como eu a conheço!”, aquele mesmo sorriso que tinha
para agradecer a Swann algum sinal da sua delicadeza que ela tanto prezava, algum
conselho que lhe pedira numa das graves emergências em que só nele depositava
confiança.
Perguntava-se então como pudera escrever a essa última Odette aquela carta
ultrajante de que ela até então o julgara incapaz e que deveria tê-lo feito descer do lugar
elevado, único, que conquistara por sua bondade e lealdade, no coração de Odette. Ia
tornar-se-lhe menos caro, pois era por essas qualidades, que não encontrava nem em
Forcheville nem em nenhum outro, que Odette o amava. Era por causa dessas
qualidades que Odette tantas vezes lhe demonstrava uma gentileza que ele desprezava
quando enciumado, porque não era um sinal de desejo e antes denotava afeto que amor,
mas cuja importância começava a sentir à medida que o espontâneo alívio das suspeitas,
acentuado muitas vezes pela distração que lhe trazia uma leitura de arte ou a conversa de
um amigo, que tornava a sua paixão menos exigente quanto a reciprocidades.
Agora que, após essa oscilação, voltava naturalmente Odette ao lugar de onde a
afastara por um instante o ciúme de Swann, ao ângulo de onde a achava encantadora,
imaginava-a cheia de ternura, com um olhar de consentimento, e tão linda assim, que
não podia deixar de avançar os lábios para ela, como se ali estivesse e a pudesse beijar; e,
por aquele olhar encantador e bom, guardava-lhe tanta gratidão como se ela acabasse de
lhe dirigir realmente, e não apenas a sua imaginação que o pintara naquele momento
para satisfazer o seu desejo.
Que desgosto deveria ter-lhe causado! Por certo achava razões válidas para se
ressentir com Odette, mas essas razões não lhe inspirariam rancor se não a amasse tanto.
Não tivera queixas igualmente graves de outras mulheres, às quais de bom grado
prestaria hoje serviços, sem lhes ter ódio algum, exatamente porque as deixara de amar?
Se algum dia devera encontrar-se na mesma situação de indiferença para com Odette,
compreenderia que só o ciúme lhe fizera achar alguma coisa de atroz, de imperdoável,
naquele desejo, tão natural no fundo, proveniente de um pouco de infantilidade e
também de certa delicadeza d’alma, de poder por seu turno, já que se apresentava a
ocasião, retribuir as gentilezas dos Verdurin, fazer o papel de dona de casa.
Voltava àquele ponto de vista — contrário ao do amor e do ciúme e no qual às vezes
se colocava por uma espécie de equidade intelectual e para atender às diversas
probabilidades — sob o qual procurava julgar Odette como se nunca a tivesse amado,
como se fosse para ele uma mulher como as outras, como se a vida de Odette, logo que
ele se achava ausente, não fosse muito outra, tramada às ocultas dele, urdida contra ele.
Por que julgava que Odette lá desfrutaria, com Forcheville ou com outros,
arrebatadores prazeres que não conhecera junto dele e que eram pura invenção do
ciúme? Em Bayreuth, como em Paris, se Forcheville pensasse nele só poderia ser como
em alguém de grande importância na vida de Odette, a quem seria obrigado a ceder o
lugar quando se encontrassem os dois em casa dela. Se Forcheville e Odette
consideravam um triunfo estarem em Bayreuth contra a vontade dele, era ele próprio o
culpado ao procurar em vão impedi-la de ir, ao passo que se houvesse aprovado o
projeto de Odette, aliás defensável, ela pareceria lá estar a conselho seu, sentir-se-ia
enviada, alojada por ele, e o prazer que teria em hospedar àquela gente que tantas vezes a
hospedara, era a Swann que o devia agradecer.
E — em vez de partir estremecida com ele, sem o rever, — se lhe enviasse aquele
dinheiro, se a animasse àquela viagem e se empenhasse em lha tornar agradável, Odette
acorreria, feliz, reconhecida, e ele sentiria essa alegria de a ver que não experimentava há
uma semana e que nada podia substituir. Pois logo que podia imaginá-la sem horror,
que revia a bondade em seu sorriso, e o ciúme não acrescentava a seu amor o desejo de
arrebatá-la a qualquer outro, esse amor se tornava de novo um gosto pelas sensações
que lhe dava a pessoa de Odette, pelo prazer que tinha em admirar como um espetáculo,
ou interrogar como um fenômeno, o erguer-se de um de seus olhares, a formação de
um de seus sorrisos, a emissão de uma entonação de sua voz. E esse prazer, diferente de
todos os outros, acabara por criar em Swann uma necessidade dela que só ela podia
aplacar com sua presença ou suas cartas, quase tão desinteressada, quase tão artística, tão
perversa, como a outra necessidade que caracterizava aquele novo período da vida de
Swann, em que, à secura dos anos anteriores, sucedera uma espécie de plenitude
espiritual, sem que ele soubesse mais a que devia aquele inesperado enriquecimento de
sua vida interior do que uma pessoa de saúde delicada, que a partir de certo momento se
fortalece, engorda e parece encaminhar-se para uma cura definitiva; essa outra
necessidade, que também se desenvolvia fora do mundo real, era a de ouvir, de conhecer
música.
Assim, pela própria química de seu mal, depois que fabricara ciúme com o seu
amor, recomeçava a fabricar ternura, piedade para com Odette. De novo se tornara a
Odette encantadora e boa. Sentia remorsos de ter sido duro com ela. Queria que Odette
se lhe aproximasse, mas desejava proporcionar-lhe antes algum prazer, para ver a
gratidão modelar o seu rosto e esboçar o seu sorriso.
Assim, segura de o ver de volta após alguns dias, tão terno e submisso como antes,
a pedir-lhe reconciliação, Odette ia tomando o hábito de não mais temer desagradar-lhe e
até mesmo de o irritar, e recusava-lhe, quando lhe parecia cômodo, os prazeres de que
ele mais fazia questão.
Talvez não soubesse o quanto ele fora sincero durante a briga, ao dizer-lhe que não
lhe mandaria dinheiro e procuraria fazer-lhe todo o mal possível. Talvez tampouco
soubesse da sua sinceridade, se não com ela, pelo menos consigo mesmo, em outros
casos em que, em prol do futuro da sua ligação, para mostrar a Odette que era capaz de
passar sem ela, havendo sempre possibilidade de um rompimento, resolvia Swann
passar algum tempo sem visitá-la.
Às vezes era após alguns dias em que ela não lhe causara nenhum cuidado novo; e
como sabia que das suas próximas visitas não poderia tirar nenhum grande júbilo, mas
provavelmente algum desgosto que poria fim à calma em que se encontrava, escrevia-lhe
que, estando muito ocupado, não poderia vê-la em nenhum dos dias que lhe prometera.
Mas sucedia que uma carta dela, cruzando-se com a sua, vinha precisamente pedir-lhe
que adiasse um encontro. Ele se perguntava por que, volviam-lhe as suspeitas e o
sofrimento. Já não podia manter, no novo estado de agitação em que se encontrava, a
decisão que tomara no estado anterior de calma relativa, e corria à casa de Odette,
exigindo ser recebido em todos os dias seguintes. E mesmo que ela não lhe escrevesse
em primeiro lugar, se apenas respondia, aquiescendo ao seu pedido de uma curta
separação, isso bastava para que ele já não pudesse ficar sem vê-la. Pois, contrariamente
aos cálculos de Swann, o consentimento de Odette transformara tudo em seu íntimo.
Como todos os que possuem uma coisa, Swann, para ver o que aconteceria se deixasse
um momento de possuí-la, tirara essa coisa de seu espírito, ali deixando tudo o mais no
mesmo estado de quando ela ali estava. Ora, a ausência de uma coisa não é apenas isso,
não é uma simples falta parcial, é um transtorno de todo o resto, é um estado novo que
não se pode prever no antigo.
Mas outras vezes pelo contrário — quando Odette estava prestes a partir em viagem
— era depois de uma querela por ele pretextada que Swann resolvia não lhe escrever
nem visitá-la antes de seu regresso, dando assim as aparências e as vantagens de um
rompimento sério, que ela talvez julgasse definitivo, a uma separação cuja maior parte
era inevitável por causa da própria viagem e que ele apenas fazia começar um pouco
mais cedo. Já imaginava Odette inquieta, aflita, por não haver recebido nem visita nem
carta, e essa imagem, acalmando-lhe o ciúme, lhe tornava fácil desabituar-se de vê-la.
Sem dúvida, por momentos, bem no extremo de seu espírito, para onde o afastava a sua
resolução, graças a todo o espaço interposto das três semanas de separação aceita, era
com prazer que considerava a ideia de que veria Odette em seu regresso: mas também
era com tão pouca impaciência que começava a indagar consigo se não duplicaria
voluntariamente a duração de uma abstinência tão fácil. E essa ausência datava apenas de
três dias, muito menos tempo do que às vezes passava sem ver Odette, e sem
premeditação como agora. E, no entanto, eis que uma leve contrariedade ou mal-estar
físico — levando-o a considerar o momento presente como um momento excepcional,
fora da regra, em que a própria prudência aceitaria o sossego que traz um prazer e daria
tréguas à vontade, até o retorno útil do esforço — suspendia a atividade desta, que
deixava de exercer a sua pressão; ou ainda menos que isso, a lembrança de alguma coisa
que se esquecera de perguntar a Odette, se ela escolhera a cor de que pretendia mandar
pintar o seu carro, ou, tratando-se de valores da Bolsa, se queria ações comuns ou
especiais (seria muito bonito mostrar-lhe que podia passar sem vê-la, mas, se depois
disso fosse preciso repintar o carro ou as ações não dessem dividendo, nada teria
adiantado), então, como um elástico distendido que se solta, ou como o ar que se escapa
de uma máquina pneumática que se entreabre, a ideia de tornar a vê-la, das distâncias
onde se mantinha, saltava para o campo do presente e das possibilidades imediatas.
Voltava sem mais encontrar resistência, e tão irresistível que a Swann lhe doía menos
ver passarem de um em um os quinze dias que tinha de ficar separado de Odette, que os
dez minutos que esperava enquanto o cocheiro atrelava o carro que o levaria à casa dela e
que ele passava em transportes de impaciência e de alegria, e retomava mil vezes com
ternura aquela ideia de tornar a vê-la que, em tão brusca reviravolta, exatamente quando
a julgava tão longe, ali de novo se achava, na sua mais próxima consciência. É que
desaparecera como obstáculo o desejo de lhe resistir imediatamente, que não mais existia
em Swann, desde que havia provado a si mesmo — pelo menos o supunha — que lhe
era tão fácil, e não via mais nenhum inconveniente em adiar uma tentativa de separação,
agora que estava certo de levá-la a efeito quando bem quisesse. Era que também essa
ideia de a rever lhe voltava tocada de uma novidade, de uma sedução, dotada de uma
virulência que o hábito desgastara, mas que se haviam retemperado naquela privação,
não de três dias, mas de quinze (pois a duração de uma renúncia deve ser calculada
antecipadamente conforme o termo fixado) e, do que até então fora um prazer previsto
que facilmente se sacrifica, fizera uma felicidade inesperada a que não se tem forças de
resistir. E além disso, voltava embelezada pela ignorância em que estava Swann do que
poderia ter pensado ou feito Odette ao ver que não lhe dera sinal de existência, de modo
que o que ele ia encontrar era a apaixonante revelação de uma Odette quase
desconhecida.
Mas Odette, da mesma forma que julgara apenas uma farsa a sua recusa em fornecer
dinheiro, não via senão um pretexto no informe que Swann lhe vinha pedir sobre a
pintura do carro ou a compra de títulos. Pois não sabia reconstituir as diversas fases da
crise que ele atravessava e, na ideia que formava a seu respeito, olvidava incluir seu
mecanismo, só acreditando naquilo que de antemão conhecia, isto é, a fatal, infalível e
sempre idêntica conclusão. Ideia incompleta — e talvez tanto mais profunda — se
considerada do ponto de vista de Swann, que devia julgar-se incompreendido de Odette,
como um morfinômano ou um tuberculoso, persuadido o primeiro de que fora detido
por um acontecimento exterior no momento em que ia livrar-se de seu inveterado
hábito, e o outro por uma indisposição acidental no momento em que ia enfim
restabelecer-se, se sentem incompreendidos pelo médico, que não dá a mesma
importância a essas pretensas contingências, meros disfarces, segundo ele, de que se
reveste o vício ou o estado mórbido para se tornarem de novo sensíveis aos enfermos, e
que na realidade não cessaram de pesar incuravelmente sobre eles, enquanto se deixavam
embalar em sonhos de regeneração ou de cura. E de fato, chegara o amor de Swann a
esse estado em que o médico e, em certas afecções, o cirurgião mais audacioso, se
perguntam se privar um doente de seu vício, ou tirar-lhe o seu mal, será ainda razoável
ou mesmo possível.
continua na página 202...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, No entanto - n)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
[1] O rei Luís II da Baviera (1845-86) mandou construir alguns castelos no vale do
Reno e o teatro (Festspielhaus) em que aconteceu o primeiro festival de Bayreuth, em 1876.
[N.E]
[2] As representações de Parsifal, de Wagner, em Bayreuth aconteceram em 1882. [n.
e.]
[3] Clapisson (1806-66) era compositor de óperas-cômicas. [n. e.]