quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Conto: A Quinta História

Clarice Lispector 



um conto que nos dá infinitas interpretações sobre o símbolo das baratas em nossas vidas, muitos caminhos para serem trilhados e contados mesmo num tema banal sobre como matar baratas






     Esta história poderia chamar-se "As Estátuas". Outro nome possível é "O Assassinato". E também "Como Matar Baratas". Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.
     A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.
     A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.
     A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompeia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te… Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de…” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.
     A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? – como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? – no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem “adeus”, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.
     A quinta história chama-se “Leibniz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas…

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Clarice Lispector: Desvendando 'A Quinta História
| Análise Completa



Embora o nome do conto seja “A quinta história”, a narradora inicia mencionando que contará três, já lhes adiantando os títulos. Num exercício de metalinguagem, eis que Clarice revela que as histórias não se contradirão, mas sim fariam parte de uma única história (como toda a literatura, de todos os tempos e espaços, parece ser), que também se poderia desmembrar em mil e uma, a serem contadas aos poucos, uma se conectando a outra, como Sherazade fizera certa vez.

A primeira história se passa numa perspectiva objetiva, quase impessoal. Tem um tom telegráfico, de frases curtas. Mesmo o título dessa história, “Como matar baratas”, dá uma ideia de receita, de algo instrucional.

A segunda, sendo a mesma, começa do mesmo modo: “queixei-me de baratas” (que se torna uma espécie de expressão geradora de histórias). Mas essa já desloca o foco e o estilo, torna-se “O assassinato” e a narradora assume um protagonismo que não havia na primeira história. Há essa “concentração intensa” na preparação do veneno da noite, do “elixir da longa morte”. A construção da cena revela como há um “mal secreto” presente no indivíduo. Não havia baratas durante o dia, mas havia um rancor, uma sensação de ultraje sobre essa invasão que começara a corroer a alma. Como se revelasse o lado Mrs. Hyde dessa Dra. Jekyll (o monstro oculto que aflora), ou então um Fortunato do conto machadiano “A causa secreta”, a narradora é meticulosa, tanto na preparação quanto na disposição da armadilha, como uma assassina à espreita de suas vítimas. Por isso declara, ao final: “Durante a noite eu matara”.

Na terceira, após o início que explica que ainda é a mesma história (com a queixa das baratas), ocorre a mudança de visão: ao invés da mulher-assassina, serão as baratas-vítimas, em sua “perspectiva de ladrilhos”. Pensando que a autora é Clarice Lispector, as baratas mortas pelo gesso se tornam alegorias: o processo de se tornar estátua. E logo se amplia não mais para baratas mortas, mas para o próprio ato de perder a vida e tornar-se pedra. Assim, a narradora vê o alvorecer de Pompeia, isto é, todos os seres que foram surpreendidos e se petrificaram. Só que o Vesúvio espalhou as cinzas e tornou as pessoas em estátuas de fora para dentro. Ela tem a epifania (que é a descoberta súbita das profundezas da existência humana, mesmo presente nas mais triviais ações, e é marca registrada de Clarice) de que é possível petrificar-se de dentro para fora. Não necessariamente por ingerir gesso (no caso das baratas), mas com outras ações, que tornam uma pessoa endurecida para a vida. É assim que, em algumas, esse gesso metafórico vai aos poucos solidificando a humanidade (“com movimentos cada vez mais penosos (…) tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência”.) Como se cada instante e ação fosse tornando a pessoa em estátua, sem que ela percebesse, até não poder voltar atrás. Em outras, “molde interno” acaba por petrificar a humanidade, deixando somente estátua, de modo súbito, quase como se cortasse o próprio pensamento e expressão (“Eu te…”). De modo que todas as baratas, agora estátuas, tornam-se símbolos da alteração da essência interna dos indivíduos em sólida pedra morta.

Na quarta história, por sua vez, há uma forma de síntese – inclusive não possuindo título. Nela, embora o enredo seja o mesmo das anteriores, mostra a situação após a noite fatídica. A narradora, diante do espetáculo das baratas, percebe que terá de repetir continuamente a receita e a armadilha (“como quem já não dorme sem a avidez de um rito”). E associa todo o processo de petrificação das baratas com uma forma de endurecimento próprio. Ela, ao matar as baratas e repetir esse gesto, estaria começando a se endurecer, perdendo a humanidade. O caminho encontrado foi romper com o “molde interno” que se estava formando, aceitando as baratas da cozinha, mas dedetizando as de seu coração…

A quinta funciona como uma retomada do que já tinha dito no primeiro parágrafo. O título é grandioso e múltiplo. Leibniz é o filósofo e matemático alemão que, entre outras coisas, trabalhou com a noção de mônada, que seria algo como uma partícula de força presente na própria alma e que, metafisicamente, conecta-se a tudo que existiu, existe e existirá, sendo, portanto, infinita. A Transcendência é o termo que designa uma forma de “ir além” do plano físico, da matéria, atingindo um plano espiritual e, possivelmente, infinito. A Polinésia é o conjunto de várias ilhas no Pacífico Sul, com vários povoados e uma cultura que estaria, em relação à cultura brasileira, a uma distância infinita. E o Amor, que é algo recorrente em Clarice, justamente por sua face misteriosa, inatingível e, afinal de contas, infinita.

Ou seja, a quinta história é a história infinita, que se prolonga e se projeta em todas as histórias, indo desde Sherazade até as baratas mortas com farinha, açúcar e gesso.

Por certo que as baratas se tornam esse símbolo da existência marginal, indesejada, mas que até mesmo elas podem propiciar lampejos da compreensão humana (que o diga GH, personagem de Clarice). E isso é uma forma de, por meio da ficção, descobrir a grandiosidade que há em cada ser humano e, mais do que isso, buscar a própria essência, escapando da automatização e da rotina, no processo contínuo de ver o mundo e as pessoas.

E pronto!


por Saulo Gomes Thimóteo


Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: POR OCASIÃO DAS festividades

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez
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      POR OCASIÃO DAS festividades do novo século houve um animado programa de atos públicos, o mais memorável dos quais foi a primeira viagem em balão, fruto da iniciativa inesgotável do doutor Juvenal Urbino. Metade da cidade se concentrou na Praia do Arsenal para admirar a subida do enorme globo de tafetá com as cores da bandeira, que carregou o primeiro correio aéreo a São João da Ciénaga, umas trinta léguas ao nordeste em linha reta. O doutor Juvenal Urbino e a mulher, que tinham conhecido a emoção do voo na Exposição Universal de Paris, foram os primeiros a subir à barquinha de vime, com o engenheiro de voo e seis convidados eminentes. Levavam uma carta do governador provincial às autoridades municipais de São João da Ciénaga, na qual se estabelecia para a história que aquele era o primeiro correio transportado pelos ares. Um cronista do Diário do Comércio perguntou ao doutor Juvenal Urbino quais seriam suas últimas palavras caso perecesse na aventura, e ele não demorou para pensar na resposta que havia de lhe custar tantas injúrias:

 — Na minha opinião — disse — o século XIX muda para todo o mundo, menos para nós.

      Perdido na cândida multidão que cantava o Hino Nacional enquanto o balão ganhava altura, Florentino Ariza se sentiu de acordo com alguém que ouviu comentar no tumulto que aquilo não era aventura própria para uma mulher, menos ainda na idade de Fermina Daza. Mas não foi tão perigosa, afinal. Ou foi menos perigosa do que deprimente. O balão chegou sem contratempos a seu destino, depois de uma viagem tranquila por um céu de um azul inverossímil. Voaram bem, muito baixo, com vento plácido e favorável, primeiro pelas encostas das cristas nevadas, e em seguida sobre o vasto pélago da Ciénaga Grande.
     Do alto do céu, como as via Deus, viram as ruínas da mui antiga e heroica cidade de Cartagena das índias, a mais bela do mundo, abandonada por seus povoadores devido ao medo pânico do cólera, depois de haver resistido a toda classe de assédios de ingleses e tropelias de bucaneiros durante três séculos. Viram as muralhas intactas, o capim nas ruas, as fortificações devoradas pelo amor-perfeito, os palácios de mármore e altares de ouro com seus vice-reis apodrecidos de peste dentro das armaduras.
      Sobrevoaram as palafitas das Trojas de Cataca, pintadas de cores doidas, com cercados de criar iguanas comestíveis, e pencas de balsâmicas e astromélias nos jardins lacustres. Centenas de meninos nus se atiravam n'água alvoroçados pela gritaria de todos, se atiravam pelas janelas, se atiravam do telhado das casas e das canoas que conduziam com uma perícia assombrosa, e fisgavam a água como savelhas para apanhar os volumes de roupa, os vidros de pastilhas para tosse, as coisas de comer que a caridosa e formosa mulher do chapéu de plumas lhes arremessava da barquinha do balão.
      Sobrevoaram o oceano de sombras dos bananais, cujo silêncio se elevava até eles como um vapor letal, e Fermina Daza se lembrou de si mesma aos três anos, aos quatro talvez, passeando pela floresta sombria pela mão da mãe, que também era quase uma menina no meio de outras mulheres vestidas de musselina, tal qual ela, com sombrinhas brancas e chapéus de gaze. O engenheiro do balão, que ia observando o mundo com uma luneta, disse: "Parecem mortos." Passou a luneta ao doutor Juvenal Urbino, e este viu as carretas de bois entre as lavouras, as sebes ao longo da linha do trem, os canais gelados, e onde quer que detivesse a vista deparou com corpos humanos espalhados. Alguém disse que o cólera estava fazendo estragos nos povoados da Ciénaga Grande. O doutor Urbino, enquanto falava, não parou de olhar pela luneta.

 — Pois deve ser uma modalidade muito especial do cólera — disse — porque cada morto tem seu tiro de misericórdia na nuca.

      Pouco depois sobrevoaram um mar de espumas, e desceram sem novidade numa grande praia ardente, cujo solo rachado de salitre queimava como fogo vivo. Lá estavam as autoridades que só tinham como proteção contra o sol os guarda-chuvas do dia-a-dia, as escolas primárias agitando bandeirolas ao compasso dos hinos, as rainhas de beleza com flores esturricadas e coroas de papelão dourado, e gente da plantação de mamão da próspera localidade de Gayra, naqueles tempos a melhor da costa caribe. A única coisa que Fermina Daza queria era ver outra vez seu povoado natal, para compará-lo com suas lembranças mais antigas, mas não houve permissão para ninguém, devido aos riscos da peste. O doutor Juvenal Urbino entregou a carta histórica, que logo se perdeu entre outros papéis e nunca mais se soube dela, e a comitiva inteira quase morreu, asfixiada no torpor dos discursos. Foram afinal levados em mulas até o embarcadouro de Pueblo Viejo, onde o pântano se ligava ao mar, porque o engenheiro não conseguiu que o balão tornasse a subir. Fermina Daza estava certa de que passara por ali com a mãe, muito menina, numa carreta puxada por uma junta de bois. Já mais velha tinha contado isso ao pai, que morreu teimando que não era possível essa lembrança.

— Eu me lembro muito bem da viagem, e foi assim — disse ele — mas sucedeu pelo menos cinco anos antes de você nascer.

     Os membros da expedição em balão voltaram três dias depois ao porto de origem, avariados por uma noite ruim, de tempestade, e foram recebidos como heróis. Perdido na multidão, é claro, estava Florentino Ariza, que reconheceu no semblante de Fermina Daza as marcas do pavor. Contudo, na mesma tarde tornou a vê-la numa exibição de ciclismo, também patrocinada pelo marido, e não tinha mais nenhum vestígio de cansaço. Pilotava um velocípede insólito que mais parecia um aparelho de circo, com uma roda dianteira muito alta sobre a qual ia sentada, e uma posterior muito pequena que apenas lhe servia de apoio. Trajava bombachas de sanefas coloridas que causaram escândalo entre as senhoras mais velhas e desconcerto entre os cavalheiros, mas ninguém ficou indiferente à sua destreza.
     Essa, e tantas outras ao longo de tantos anos, eram imagens efêmeras que apareciam de repente a Florentino Ariza, sem quê nem por que, e tornavam a desaparecer do mesmo modo deixando em seu coração uma trilha de ansiedade. Mas marcavam a pauta de sua vida, pois ele tinha conhecido as sevícias do tempo não tanto em sua própria carne como nas mudanças imperceptíveis que notava em Fermina Daza cada vez que a via.
     Certa noite entrou na Pousada do Sancho, um restaurante colonial de alto coturno, e ocupou o canto mais afastado, como costumava fazer quando se sentava sozinho para comer suas merendas de passarinho. De repente viu Fermina Daza no grande espelho do fundo, sentada à mesa com o marido e outros dois casais, num ângulo em que ele podia vê-la refletida em todo o seu esplendor. Estava indefesa, conduzindo a conversação com uma graça e um riso que crepitavam como fogos de artifício, e sua beleza ficava mais radiante debaixo dos enormes lustres de pingentes: Alice tinha tornado a atravessar o espelho.
      Florentino Ariza a observou à vontade e quase sem respirar, viu-a comer, viu-a provar apenas o vinho, viu-a tagarelando com o quarto Sancho da estirpe, viveu com ela um instante de sua vida sentado em sua mesa solitária, e durante mais de uma hora flanou sem ser visto pelo recinto vedado de sua intimidade. Depois tomou mais quatro xícaras de café para fazer tempo, até que a viu sair confundida com o grupo. Passaram tão perto que ele distinguiu o cheiro dela entre as lufadas de outros perfumes de suas acompanhantes.
     A partir dessa noite, e durante quase um ano, manteve um assédio tenaz ao proprietário da pousada, oferecendo-lhe o que quisesse, em dinheiro ou em favores, para chegar ao que mais lhe apetecesse na vida, desde que lhe vendesse o espelho. Não foi fácil, pois o velho Sancho acreditava na lenda de que aquela preciosa moldura talhada por ebanistas vienenses era gêmea de outra que pertencera a Maria Antonieta, e que desaparecera sem deixar rastro: duas joias únicas. Quando por fim cedeu, Florentino Ariza pendurou o espelho na sua casa, não pelos primores da moldura e sim pelo espaço interior, que tinha sido ocupado durante duas horas pela imagem amada.
     Quase só via Fermina Daza de braço dado com o marido, num concerto perfeito, movendo-se ambos num âmbito próprio, com uma assombrosa fluidez de siameses que só desafinava quando o cumprimentavam. Com efeito, o doutor Urbino lhe estreitava a mão com um afeto cálido, e até se permitia em certas ocasiões uma palmada no ombro. Ela, em compensação, o mantinha condenado ao regime impessoal dos formalismos, e nunca fez um mínimo gesto que o autorizasse a suspeitar que se lembrava dele em seus tempos de solteira. Viviam em dois mundos divergentes, mas enquanto ele fazia toda a espécie de esforços para reduzir a distância, ela nunca deu um único passo que não fosse em sentido contrário. Passou muito tempo antes que ele se atrevesse a pensar que aquela indiferença não passava de uma couraça contra o medo. Ocorreu-lhe de repente, no batismo do primeiro navio de água doce construído nos estaleiros locais, que foi também a primeira ocasião oficial em que Florentino Ariza representou tio Leão XII como primeiro vice-presidente da C.F.C. Esta coincidência revestiu o ato de uma solenidade especial, e não faltou ninguém que tivesse alguma significação na vida da cidade.
      Florentino Ariza se ocupava dos convidados no salão principal do navio, cheirando ainda a pintura recente e alcatrão derretido, quando uma salva de aplausos explodiu no cais e a banda atacou uma marcha triunfal. Teve que reprimir um estremecimento já quase tão antigo quanto ele próprio quando viu a formosa mulher dos seus sonhos no braço do marido, esplêndida em sua maturidade, desfilando como uma rainha de outros tempos entre a guarda de honra em uniforme de parada, debaixo de uma tempestade de serpentinas e pétalas naturais que lhe atiravam das janelas. Ambos respondiam com a mão às ovações, mas ela era tão deslumbrante que parecia ser a única no meio da multidão, vestida toda de um dourado imperial, dos sapatos de salto alto e das caudas de raposa no pescoço, até o chapéu-sino.
      Florentino Ariza os esperou na ponte, junto com as autoridades provinciais, em meio ao estrondo da música e dos foguetes e dos três bramidos intensos do navio que deixaram o cais empapado de vapor. Juvenal Urbino cumprimentou a fila de recepção com aquela naturalidade tão sua que fazia cada um pensar que era alvo de um afeto especial: primeiro o comandante do navio em uniforme de gala, depois o arcebispo, depois o governador com sua mulher e o prefeito com a sua, e depois o chefe militar da praça, que era um andino recém-chegado. Em seguida às autoridades estava Florentino Ariza, terno de lã escura, quase invisível entre tantos notáveis. Depois de cumprimentar o comandante da praça, Fermina pareceu vacilar diante da mão estendida de Florentino Ariza. O militar, disposto a apresentá-los, perguntou a ela se se conheciam. Ela não disse nem que sim nem que não, estendendo a mão a Florentino Ariza com um sorriso de salão. O mesmo acontecera em duas ocasiões do passado, e havia de acontecer outras vezes, e Florentino Ariza o aceitou sempre como um comportamento próprio do caráter de Fermina Daza. Mas aquela tarde perguntou a si mesmo com sua infinita capacidade de ilusão se uma indiferença tão encarniçada não seria um subterfúgio para dissimular um tormento de amor.

continua na página 169...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: POR OCASIÃO DAS festividades
O Amor nos Tempos de Cólera: A simples ideia lhe alvoroçou
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Quarta expedição: IV - Regímen de privações

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



Quarta expedição 


IV - 

Regímen de privações 

     Firmara-se definitivamente um regímen insustentável. A estadia na Favela era sobremaneira inconveniente porque, além de acumular baixas diárias sem efeito algum, desmoralizava dia a dia a expedição, lhe malsinava o renome e tornar-se-ia em breve inaturável pelo esgotamento completo das munições. Abandoná-la era deixar as contingências de um cerco mais perigosas que as alternativas da batalha franca. Alguns oficiais superiores sugeriram então a única medida — forçada e urgente — a alvitrar-se : o assalto imediato ao arraial.

"Seja, porém, como for, no dia 30 de junho as forças estavam bem dispostas; a artilharia podia continuar a bombardear Canudos durante algumas horas ainda; em seguida era possível levar-se um ataque à cidadela. Havia para isto a melhor disposição dos comandantes das colunas, brigadas e corpos e dos oficiais subaltenos e dos soldados cuja aspiração predominante era atingir o Vaza-Barris que lhes representava a abundância de que se achavam privados numa posição acanhada, enfiada por toda a parte, sem capacidade para dois quanto mais perto de 6 mil homens."

     O general-em-chefe, porém, repeliu o alvitre "acreditando que de Monte Santo chegasse, em breve, um comboio de gêneros alimentícios como lhe afiançara o deputado do quartel-mestre-general e só então, depois de três dias de ração completa, investiria sobre os baluartes do Conselheiro"
     O general-em-chefe, porém, repeliu o alvitre "acreditando que de Monte Santo chegasse, em breve, um comboio de gêneros alimentícios como lhe afiançara o deputado do quartel-mestre-general e só então, depois de três dias de ração completa, investiria sobre os baluartes do Conselheiro"


Aventuras do cerco. Caçadas perigosas

     Vivia-se à aventura, de expedientes. De moto próprio, sem a formalidade, na emergência dispensável, de uma licença qualquer, os soldados principiaram a realizar, isolados ou em pequenos grupos, excursões perigosas pelas cercanias talando as raras roças de milho ou mandioca, que existiam; caçando cabritos quase selvagens por ali desgarrados, em abandono desde o começo da guerra; e arrebanhando o gado. Não havia evitá-las ou proibi-las. Eram o último recurso. A partir de 2 de junho só houve gêneros — farinha e sal, nada mais — para os doentes. As caçadas faziam-se, pois, obrigatoriamente, a despeito dos maiores riscos e os que a elas se abalançavam — vestindo a pele do jagunço, copiando-lhe a astúcia requintada a marcha cautelosa, acobertando-se em todos os sulcos do terreno — aventuravam-se a extremos lances temerários.
     Não se podem individuar os episódios parciais desta fase obscura e terrível da campanha. O soldado faminto, cevada a cartucheira de balas, perdia-se nas chapadas, presumindo-se de resguardos como se fosse à caça de leões. Atufava-se no bravio das moiteiras... Rompia a galhada inflexa, entressachada de gravatás mordentes. E — olhos e ouvidos armados aos mínimos contornos e aos mínimos rumores — atravessava longas horas na perquisição exaustiva...
     Às vezes era um esforço vão. Volvia à noite para o acampamento, desinfluído e com as mãos vazias. Outros, mais infelizes, não apareciam mais, perdidos por aqueles ermos; ou mortos nalguma luta feroz, para todo o sempre ignorada. Porque os jagunços por fim opunham tocaias imprevistas aos caçadores bisonhos que sem lhes pleitearem parelhas na ardileza, não lhas evitavam.
     Assim é que, não raro, depois de muitas horas de esforço inútil, o valente faminto dava tento, afinal, de um ressoar de sincerros, pressagos da caça apetecida, porque é costume trazerem-nos as cabras, no sertão; e reanimava-se esperançado.
     Recobrava-se um momento das fadigas. Refinando no avançar cauteloso, por não espantar a presa fugidia, retraía-se das trilhas descobertas para o âmago das macegas. Seguia serpejando, deslizando devagar, guiado pelas notas da campainha, a pontilharem, nítidas e claras, o silêncio das chapadas. Adiantava-se até as ouvir perto... e era feliz, em que pese à dolorosa contrariedade, se as ouvia novamente ao longe, indistintas, inatingíveis, ao través do embaralhado dos desvios. Porque não imaginava, em certas ocasiões, os riscos que corria: a um lado, nos recessos da caatinga, em vez do animal arisco negaceava, sinistro e traiçoeiro, procurando-o por sua vez, o jagunço. Acaroado com o chão, rente da barba a fecharia da espingarda e avançando de rastros, quedo e quedo entre as macegas, e fazendo a cada movimento tanger o sincero que apresilhara ao próprio pescoço, via-se, ao invés da cabra, o cabreiro feroz. A caça caçava o caçador. Este, inexperto ,caía, geralmente abatido por um tiro seguro, a não ser que atirasse primeiro sobre o vulto lobrigado ao último momento.
     Outras vezes ante um grupo de famintos aparecia, num revesso de colina, uma magueira fechada. Dentro, alguns bois, presos. Eram um chamariz ardilosamente disposto: e o cercado uma arapuca grande. Ante a imprevista descoberta, porém, mal desfechavam, aqueles, olhos indagadores em roda. Transpunham num pulo as cercas do curral. Arremetiam com os bois, abatendo-os a tiro ou jugando-os à faca... e espalhavam-se, tontos, alarmados, batidos de descargas envolventes, partidas das esperas, adrede predispostas aos lados...
     No acampamento ouviam-se muitas vezes tiroteios nutridos e longos, com ecos de combates.
     Estas aventuras ao cabo foram regulamentadas. As ordens de detalhe escalavam, de véspera, os batalhões para as caçadas. Eram verdadeiras sortidas de praças de armas em apuros. Mas inglórias. Um triste avançar sem bandeiras e sem clarins pela maninhez dos ermos. As linhas inimigas dobravam-se-lhes em frente, ralas, invisíveis, traidoras. Os corpos em diligencia escoavam-se-lhes pelos claros. Batiam longo tempo a terra, onde a entrada da estação sem chuvas se refletia já na flora emurchecida. Recebiam meia dúzia de tiros de adversários incorpóreos.
     Voltavam abatidos e exaustos.
     Apenas o esquadrão de lanceiros agia com algum efeito. Partia diariamente em batidas longas pelos arredores. Montando cavalos estropiados, que rengueavam sob a espora, os gaúchos faziam façanhas de pealadores. Largavam, sem medir distancias e perigos, pela região desconhecida; e, conseguindo sopear na carreira os bois esquivos, lançavam-nos em tropel, todas as tardes, para dentro de uma caiçara, à ilharga do acampamento. O inimigo perturbava-lhes a montaria. Além do trabalho de reunir as reses espantadiças, tinham o de impedir a sua dispersão ante súbitos assaltos. E nestes recontros rápidos e violentos, contendo do mesmo passo os bois alvorotados prestes a espalharem-se por toda a banda, e replicando, a disparos de mosquetão, às tocaias que os aferroavam; caindo, surpresos, numa tocaia ao transpor uma baixada, alvejados por um tiroteio subitamente partindo do alto; e não abandonando nunca a presa irrequieta; circulando-a, arremessando-a para diante e ao mesmo tempo contendo-a pelos flancos, fizeram prodígios de equitação e bravura.
     O gado diariamente adquirido — oito a dez cabeças — era, porém, um paliativo insuficiente ao minotauro de 6 mil estômagos. Além disto, a carne cozida sem sal, sem ingrediente algum, em água salobra e suspeita, ou chamuscada em espetos, era quase intragável. Repugnava à própria fome.
     As pequenas roças de milho, feijão da vazante e mandioca, que atenuavam a princípio a sensaboria dessa alimentação de feras, exauriram-se prestes. Tornou-se necessário buscar outros recursos.
     Como os "retirantes" infelizes, os soldados apelaram para a flora providencial. Cavavam os umbuzeiros em roda, arrancando-lhes os tubérculos túmidos; catavam cocos dos ouricuris, ou talhavam os caules moles dos mandacarus, alimentando-se de cactos que a um tempo lhes disfarçavam ou iludiam a fome e a sede. Não lhes bastava, porém, este recurso, que para os mais inexpertos mesmo era perigoso. Alguns morreram envenenados pela mandioca brava e outras raízes, que não conheciam.
     Por fim a própria água faltava — tornando-se de aquisição dificílima. Nos regatos rasos do vale das Umburanas, não raro ficava de bruços, varado por um tiro, o soldado sequioso.
     Cada dia que passava aumentava esses transes. A partir de 7 de junho, cessou a distribuição de gêneros aos doentes.
     E os infelizes, mutilados, estropiados, abatidos de febres, começaram a viver da esmola incerta dos próprios companheiros...


Desânimos

     À medida que se agravavam estes fatos, surgiam, consequentes, outros, igualmente sérios. Relaxava-se a disciplina; esgotava-se a resignação da soldadesca. Uns murmúrios afrontosos de protestos, ante os quais se fingia surda a oficialidade impotente para os fazer calar, surgiam irreprimíveis, inevitáveis, como borborigmos dos ventres vazios.
     Por um contraste irritante, os adversários batidos em todos os combates afiguravam-se fartamente abastecidos, ao ponto de aproveitarem apenas nos comboios assaltados as munições de guerra. A 5.ª Brigada, ao seguir certa vez até às Baixas, encontrara em suas vizinhanças, orlando os caminhos até próximo ao Angico, malas de carne seca esturradas, montes de farinha, café e açúcar, de mistura com as cinzas das fogueiras que os haviam consumido. Era um traço firme de altivez selvagem com que se arrojavam à luta os jagunços que, afinal, não tinham abastança tal que justificasse tais atos. Afeitos, porém, às parcimônias de frugalidade sem par, os rudes lidadores, que nas quadras benignas atravessavam o dia com três manelos de paçoca e um trago d'água, haviam refinado a abstinência disciplinadora, na guerra, ostentando uma capacidade de resistência incomparável. Os nossos soldados não a tinham. Não podiam tê-la. A princípio reagiram bem. Deram um epíteto humorístico à fome. Distraíram-se nas aventuras perigosas das caçadas ou no rastrear os rebutalhos das roças em abandono. Ao soar dos alarmas precipitavam-se às linhas de fogo, sem que o jejum lhes sopeasse o arroio. Depois fraquearam. Sobre o aniquilamento físico descia dolorosa incerteza do futuro. Estavam em função da sorte de uma brigada única, a 1.ª , que seguira à descoberta do comboio e da qual nada se sabia. Cada dia que passava sem novas de sua vinda sobrecarregava-lhes os desalentos. Além disto a insistência inflexível dos ataques tornara-se inaturável. Não havia uma hora de tréguas. Surgiam investidas súbitas à noite, pela manhã, no correr do dia, sempre improvisas, incertas, e variáveis; carregando às vezes sobre a artilharia, outras sobre um dos flancos, outras, mais sérias, por toda a banda. Estridulavam os clarins; formava a tropa toda em fileiras bambas, em que mal se distinguiam as menores subdivisões táticas, e batia-se nervosamente por algum tempo. Os assaltantes eram repelidos. Caía-se, de improviso, na calma anterior. Mas o inimigo ali ficava, a dois passos, sinistramente, acotovelando os triunfadores. Cessava o ataque. Mas de minuto em minuto, com precisão inflexível, caía uma bala entre os batalhões. Variava vagarosamente de rumo, percorrendo a pouco e pouco todas as linhas, de um a outro flanco, num giro longo e torturante, indo e vindo, devagar, traçando ponto a ponto o círculo espantoso, como se um atirador único, ao longe, do alto de algum cerro remoto, houvesse o compromisso bárbaro de ser o algoz de um exército. E era-o. Valentes ainda ofegantes de recontros em que entravam intrêmulos, estremeciam, por fim, ante o assovio daqueles projetis esparsos, transvoando ao acaso para o alvo imenso, escolhendo, entre milhares de homens, um vítima qualquer...


Assalto ao acampamento. A "matadeira"

     E iam-se assim os dias, nesse intermitir de refregas furiosas e rápidas, e longas reticências de calma, pontilhadas de balas...
     Os assaltos, às vezes, contra toda a expectativa, não cessavam logo. Num crescendo aterrador, agitavam todas as linhas e tinham vislumbres de batalha. Num deles, a 1.° de julho, os sertanejos penetraram em cheio o acampamento até ao centro das baterias. O ódio votado aos canhões, que dia a dia lhes demoliam os templos, arrebatara-os à façanha inverossímil, visando a captura ou a destruição do maior deles, o Withworth 32, a "matadeira", conforme o apelidavam. Foram poucos, porém, os que se abalançaram à empresa. Onze apenas, guiados por Joaquim Macambira, filho do velho cabecilha de igual nome. Mas ante o grupo diminuto formaram-se batalhões inteiros. Deram-se cargas cerradas de baionetas a toques de corneta, como se fosse uma legião; até que baqueassem todos, salvo um único, que escapou miraculosamente. varando pelas fileiras agitadas.
     A tropa teve o adminículo de mais uma vitória pouco lisonjeira e acrescido o respeito ao destemor do adversário.
     O ascendente deste avultava dia a dia. Descobriam-se, mais próximas, avançando num constringir vagaroso, as trincheiras circulantes: pela esquerda, trancando o passo para a fazenda Velha; pela direita, ameaçando o posto de carneação e reduzindo a área do pequeno pasto em que estavam os animais de tração e montaria; e pela retaguarda, aproximando-se pelo caminho do Rosário. Os corpos destacados para as tomar e demolir tomavam-nas e demoliam-nas facilmente. Tornavam com poucas baixas ou de todo indenes. E no dia subsequente volviam à mesma tarefa, reconstruídos durante a noite, e cada vez mais próximos, os entrincheiramentos ameaçadores.
     Enquanto se empregavam de tal modo os dias, reservavam-se as noites para o enterramento dos mortos, missão, além de lúgubre, perigosa, em que não raro o carregador aumentava a carga, caindo por sua vez entre os cadáveres, baqueando dentro da vala comum, que com as próprias mãos abria.
     É natural que uma semana depois da ocupação do morro se generalizasse o desânimo. Afrouxamento em toda a linha. A própria artilharia, verificando-se a ineficácia do canhoneio e a necessidade de poupar a munição reduzida, apenas atirava, certos dias, dois ou três tiros longamente espaçados...

continua na página 255...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Histórias da Meia-Noite: Ponto de vista (XXIV)

Ponto de vista

Machado de Assis

Conto

PONTO DE VISTA

 

Capítulo XXIV
D. RAQUEL AO DR. ALBERTO

10 de abril


     Estou muito zangada por não teres vindo ontem; cedo começas a esquecer-me.
     Vem hoje ou eu fico zangada. Ao mesmo tempo quero que me tragas um retrato dos teus; é um segredo.
     Ontem perdeste muito; esteve aqui a G... e naturalmente sentiu a tua falta. Sentes isso, não? Pobre da Raquel! Adeus.

RAQUEL


continua na página 102...
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873 

Ulisses - Parte 2 (5a): Com um andar compassado

Ulisses

James Joyce

Parte 2

5

      Com um andar compassado o Sr. Bloom caminhou ao longo dos caminhões do cais de sir John Rogerson, passando por Windmill Lane, Leask o esmagador de linhaça, o prédio dos Correios e Telégrafo. Podia ter dado este endereço também. E passou pelo Abrigo do Marinheiro. Deixou para trás os ruídos matinais da beira do cais e enveredou pela Lime Street. Perto dos chalés um menino coletor de lixo estava refestelado, com o balde de refugo seguro por uma corda, fumando um coto de cigarro mastigado. Uma menina menor com cicatrizes de eczema na testa olhava para ele, segurando apaticamente sua argola de barril amassada. Diga pra ele que se ele fumar não crescerá. Ó deixe ele em paz! Sua vida não é lá esse mar de rosas. Esperando do lado de fora dos bares para trazer o pai pra casa. Vem pra casa pra mãe, pai. Hora de inatividade: não haverá muitas ali. Ele atravessou Towsend Street, passou em frente à fachada rebarbativa de Bethel. El, sim: casa de: Aleph, Beth. E por Nichols o agente funerário. É às onze. Tempo suficiente. Acho que Corny Kelleher se apossou do emprego para O’Neill. Canta com os olhos fechados. Corny. Encontrei com ela uma vez no parque. No escuro. Que achado. Um informante da polícia. Seu nome e endereço ela me deu então com meu patibum patibum bum, bum. Ó, certamente ele o abateu. Enterrá-lo barato num comosechama. Com meu patibum, patibum, patibum, patibum.
     Em Westland Row ele parou diante da vitrine da Companhia de Belfast de Chá Oriental e leu os rótulos dos pacotes de papel laminado: mistura requintada, a mais alta qualidade, chá da família. Muito calor. Chá. Tenho que conseguir um de Tom Kernan. Não poderia pedir-lhe isso no enterro, contudo. Enquanto seus olhos ainda liam brandamente ele tirou o chapéu aspirando serenamente o óleo do seu cabelo e pousando sua mão com lenta elegância sobre sua testa e cabelo. Manhã muito quente. Sob suas pálpebras caídas seus olhos encontraram a pequenina dobra da carneira de couro do seu chap de qualidade superior. Bem ali. Sua mão direita desceu até dentro da copa do chapéu. Seus dedos encontraram rapidamente um cartão atrás da carneira e o transferiram para o bolso do seu colete.
     Tanto calor. Sua mão direita passou de novo mais lentamente sobre sua testa e cabelo. Ele pôs então novamente o chapéu, aliviado: e leu de novo: mistura requintada, feita das melhores marcas do Ceilão. O Oriente distante. Lugar encantador deve ser: o jardim do mundo, folhas grandes preguiçosas a flutuar à volta, cactos, campinas floridas, cipós sinuosos assim os chamam. Me pergunto se é realmente assim. Aqueles cingaleses perambulando à volta sob o sol num dolce far niente, não fazendo absolutamente nada o dia inteiro. Dormem seis meses de doze. Calor excessivo para se brigar. Influência do clima. Letargia. Flores da ociosidade. O ar alimenta a maioria. Azotes. Estufa em Jardins Botânicos. Plantas sensitivas. Nenúfares. Pétalas cansadas demais para. Doença do sono no ar. Caminhar sobre pétalas de rosas. Imagine tentar comer tripa e mocotó. Onde é que estava aquele camarada que eu vi naquele quadro em algum lugar? Ah, sim, no mar morto flutuando de costas, lendo um livro com um guarda-sol aberto. Não poderia afundar mesmo que você tentasse: tão espesso de sal. Porque o peso da água, não, o peso do corpo na água é igual ao peso de quê? Ou é o volume que é igual ao peso? É uma lei ou coisa no gênero. Vance no ginásio estalando os dedos, ensinando. O currículo do colégio. Currículo estalejante. O que é realmente peso quando você diz o peso? Trinta e dois pés por segundo por segundo. Lei da queda dos corpos: por segundo por segundo. Eles todos caem no chão. A Terra. É a força de gravidade da Terra que é o peso.
      Ele virou em direção contrária e vagou pela rua. Como ela andava com suas salsichas? Desse jeito mais ou menos. Enquanto andava ele pegou o Freeman dobrado do seu bolso do lado, desdobrou-o, enrolou-o no seu comprimento como um bastão e bateu com ele na sua perna-de-calça a cada passo saracoteante. Ar descuidado: só dei uma passada para ver. Por segundo por segundo. Por segundo quer dizer cada segundo. Do meio-fio ele lançou um olhar penetrante através da porta do correio. Tarde demais para retirada das cartas das caixas. O correio aqui. Ninguém. Entrar.
      Ele estendeu o cartão através da grade de metal.

– Há alguma carta para mim? – perguntou.

     Enquanto a funcionária do correio procurava no escaninho ele olhou para o pôster de recrutamento de soldados de todas as armas em parada: e levou a ponta do bastão até as narinas, cheirando a tinta fresca do pedaço de jornal. Nenhuma resposta provavelmente. Fui longe demais da última vez.
     A funcionária estendeu de volta através da grade o cartão com uma carta. Ele agradeceu e olhou rapidamente para o envelope batido à máquina.

Henry Flower Esq. 
 c/o P. O. Westland Row 
 City.

     De qualquer forma respondeu. Ele enfiou o cartão e a carta no seu bolso do lado, revendo de novo os soldados em parada. Onde está o regimento do velho Tweedy? Soldado rejeitado. Ali; barretina de pele e penacho de pluma. Não, ele é um granadeiro. Punhos pontudos. Lá está ele: fuzileiros do Royal Dublin. Casacosvermelhos. Chamativos demais. Deve ser por isso que as mulheres vão atrás deles. Uniforme. Mais fácil de alistar e treinar. Carta de Maud Gonne para tirá-los da O’Connell Street à noite: uma desgraça para nossa capital irlandesa. O jornal de Griffith está com a mesma norma de ação agora: um exército podre com doença venérea: império ultramarino ou de embriagados. Parecem meio sazonados: como hipnotizados. Olhos fixos. Marcando o passo. Gamela: ela. Penacho: acho. Propriedade do rei. Nunca o vi vestido de bombeiro ou de policial. De maçom, sim.
     Ele se retirou do prédio do correio e dobrou à direita. Falar: como se isso consertasse as coisas. Sua mão entrou no bolso e um dedo indicador apalpou por baixo da aba do envelope, rasgando aos trancos ao abri-lo. Às mulheres pouco se lhes dá, creio. Seus dedos arrancaram a carta e amassaram o envelope em seu bolso. Alguma coisa presa com um alfinete: uma foto talvez. Cabelo? Não.
      M’Coy. Ficar livre dele rápido. Tirar-me do meu caminho. Detesto companhia quando se.

– Alô, Bloom. Para onde você está indo?

– Alô, M’Coy. Nenhum lugar em particular.

– Como vai essa força?

– Ótimo. E você como vai?

– Só me mantendo vivo – disse M’Coy.

     Com os olhos na gravata e na roupa preta ele perguntou em tom respeitoso:

– Há algum... nenhum problema espero? Vejo que você está...

– Ó, não – disse o Sr. Bloom. – Pobre Dignam, você sabe. O enterro é hoje.

– É isso aí, pobre homem. É mesmo. A que horas?

    Uma foto não é. Um emblema talvez.

– Ooonze – respondeu o Sr. Bloom.

– Eu vou tentar ir lá – disse M’Coy. – Onze, é isso não? Eu só soube ontem à noite. Quem foi mesmo que me disse? Holohan. Você conhece Hoppy?

– Conheço.

     O Sr. Bloom olhou para o outro lado da rua para o cabriolé parado diante da porta do hotel Grosvenor. O porteiro içou a valise no porta-bagagem. Ela ficou parada, aguardando, enquanto o homem, marido, irmão, como ela, procurava um trocado em seus bolsos. Tipo elegante de casaco com aquela gola alta, quente para um dia como aquele, parece um cobertor. Posição descuidada a dela com suas mãos naqueles bolsos de malha. Como aquela criatura altiva na partida de polo. As mulheres são todas a favor do sistema de classes até que se acerte no alvo. É bonito e faz bonito. Reservadas prestes a se render. A honrada Sra. e Brutus é um homem honrado. Possua-a uma vez e retire o formalismo dela.

– Eu estive com Bob Doran, em uma de suas bebedeiras periódicas, e como você o chama Bantam Lyons. Estivemos justamente ali no bar de Conway.

      Doran e Lyons no Conway. Ela ergueu uma mão enluvada até seus cabelos. Chegou o Hoppy. Tomando um trago. Inclinando a cabeça para trás e olhando para longe por entre as pálpebras abaixadas ele viu a pele castanho-clara brilhar no clarão, debruns engalonados. Posso ver claramente hoje. Talvez a umidade à volta permita uma visão de longa distância. Falando de uma coisa ou de outra. Mão de dama. De que lado ela vai se erguer?

– E ele disse: Que coisa triste aquela do nosso pobre amigo Paddy! Que Paddy?, disse eu. O pobrezinho do Paddy Dignam, disse ele.

      De partida para o campo: Broadstone provavelmente. Botas marrons de cano alto com os cadarços balançando. Pé bem torneado. Por que ele está alvoroçado com esse trocado? Me vê olhando. Sempre de olho em outro homem de reserva. Boa recuada. Para ela dois coelhos de uma só cajadada.

Por quê?, disse eu. O que há de errado com ele?, disse eu. 

     Altiva: rica: meias de seda.

– Sim – disse o Sr. Bloom.

     Ele andou um pouco para o lado da cabeça falante de M’Coy. Vai se levantar dentro de um minuto.

O que há de errado com ele?, disse ele. Está morto, disse. E, por certo, ele encheu a cara. O Paddy Dignam?, disse eu. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Eu estive com ele na sexta-feira passada ou quinta no Arco. Sim, disse ele: É sim. Ele se foi. Morreu na segunda-feira, pobre rapaz.

     Atenção! Atenção! Um lampejo de fina meia de seda branca. Atenção!
     Um pesado bonde buzinando a sineta girou no meio.
      Perdi. Maldito seja o seu nariz arrebitado e barulhento. Sente-se trancado do lado de fora. Paraíso e espírito benfazejo. Sempre acontece desse jeito. No momento exato. A moça na entrada de Eustace Street na segunda-feira estava ajeitando a liga. Sua amiga cobrindo a exibição da. Esprit de corps. Ora, por que você está aí embasbacado?

– Sim, sim – disse o Sr. Bloom depois de soltar um suspiro desanimado. – Um outro se foi.

– Um dos melhores – disse M’Coy.

      O bonde passou. Eles partiram em direção à ponte de Loop Line, sua bela mão enluvada no cabo de metal. Tremular, tremular: o brilho de renda do seu chapéu ao sol: tremular, tremor.

– Sua mulher está bem, suponho – disse M’Coy com voz mudada.

– Está, sim – disse o Sr. Bloom. – Excelente, obrigado.

      Ele desenrolou o bastão de jornal indolentemente e leu indolentemente:

O que é um lar sem 
Carne enlatada de Plumtree? 
Incompleto. 
Com ela uma moradia feliz.

– Minha cara-metade acabou de receber uma proposta de contrato. Pelo menos ainda não foi firmada.

      A tática da valise novamente. Por falar nisso nenhum problema. Estou fora disso, obrigado.
      O Sr. Bloom voltou seus olhos de longas pálpebras com afabilidade morosa.

– Minha mulher também – disse ele. – Ela vai cantar num negócio de alta esfera em Ulster Hall, Belfast, no dia vinte e cinco.

– É mesmo? – disse M’Coy. – Alegra-me ouvir isso, meu velho. Quem está pondo isso de pé?

     Sra. Marion Bloom. Ainda não está em pé. A rainha estava no seu quarto comendo pão com. Nenhum livro. Figuras sebentas de baralho estavam espalhadas ao longo de sua coxa em grupos de sete. Dama morena e homem louro. Carta. Gata como uma bola de pêlo negro. Pedacinho rasgado de envelope.

Velha. 
Doce. 
Canção. 
De amor. 
Vem velha doce...

– É uma espécie de tour, entendeu – disse o Sr. Bloom pensativamente. – Doooce canção. Há um comitê formado. Parte é repartida e parte é lucro.

     M’Coy acenou com a cabeça, puxando o bigode ralo.

– Ó, tudo bem – disse ele. – Isso é uma boa notícia.

     Ele se moveu para ir.

– Ora, é um prazer vê-lo em boa forma. Encontrá-lo perambulando.

– Sim – disse o Sr. Bloom.

– Por falar nisso – disse M’Coy. – Você poderia assinar o meu nome no enterro, está bem? Eu gostaria de ir mas é possível que eu não consiga, você sabe. Pode ser que um caso de afogamento em Sandycove venha à tona e então o médico-legista e eu teremos de ir para lá se o corpo for encontrado. Você só põe o meu nome se eu não estiver lá, está bem?

– Eu farei isso – disse o Sr. Bloom, se preparando para partir. – Está combinado.

– Certo – disse M’Coy vivamente. – Obrigado, meu velho. Eu iria se realmente pudesse. Bem. Até a vista. Só C. P. M’Coy basta.

– Isso será feito – respondeu o Sr. Bloom firmemente.

continua na página 70...
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Ulisses - Parte 2 (5a): Com um andar compassado
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.