Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo XV
Uma Consulta Médica
NA BRUZUNDANGAS, quando lá estive, a fama do doutor Adhil Ben Thaft não cessava de
crescer.
Não havia dia em que os jornais não dessem notícias de mais uma proeza por ele feita, dentro ou
fora da medicina. Em tal dia, um jornal dizia: “O doutor Adhil, esse maravilhoso clínico e excelente
goal-keeper acaba de receber um honroso convite do Libertad Football Club, de São José de Costa
Rica, para tomar parte na sua partida anual com o Ayroca Football Club, de Guatemala. Todo o mundo
sabe a importância que tem esse desafio internacional e o convite ao nosso patrício representa uma alta
homenagem à ciência da nossa terra e ao football nacional. O celebrado mestre, porém, não pôde
aceitar o convite, pois a sua atividade mental anda agora norteada para a descoberta da composição da
Pomada Vienense, específico muito conhecido para a cura dos calos.”
O extraordinário clínico vivia assim mais citado nos jornais que o próprio mandachuva e o seu
nome era encontrado em todas as seções dos quotidianos. A seção elegante do O Conservador, logo ao
dia seguinte da notícia acima, editada nos sueltos do Jornal ocupou-se do famoso médico da seguinte
maneira:
“O doutor Adhil apareceu ontem no Lírico inteiramente fashionable.
“O milagroso clínico saltou do seu coupé completamente nu. Não se descreve o interesse das
senhoras e o maior ainda de muitos homens. Eu fiquei babado de gozo.”
A fama do doutor corria assim desmedidamente. Deixou em instantes de ser médico do bairro ou
da esquina, como dizia Mlle. Lespinasse, para ser o médico da capital do país, o lente sábio, o literato
ilegível, à João de Barros, o herói do football, o obrigado papa-banquetes diários; o Cícero das
enfermarias, o mágico dos salões, o poeta dos acrósticos, o dançador dos bailes do tom, etc., etc...
O seu consultório vivia tão cheio que nem a avenida em dia de carnaval; e havia quem dissesse
que muitos rapazes preferiam-no para as proezas daquelas que os nossos cinematógrafos são o teatro
habitual.
Era procurado sobretudo pelas senhoras ricas, remediadas e pobres, e todas elas tinham garbo,
orgulho, satisfação, emoção na voz quando diziam:
Estou me tratando com o doutor Adhil.
Moças pobres sacrificavam os orçamentos domésticos para irem à consulta do doutor Adhil e
muitas houve que deixavam de comprar o sapato ou o chapéu da moda para pagar o exame perfunctório
do famoso doutor. De uma eu sei que lá foi com enormes sacrifícios para curar-se de um defluxo; e
curou-se, embora o doutor Adhil não lhe tivesse receitado um xarope qualquer, mas um específico de
nome arrevesado, grego ou copta, Mutrat Todotata.
Porque o maravilhoso clínico não gostava das fórmulas e medicamentos vulgares; ele era original
na botica que empregava.
O seu consultório ficava em uma rua central, ocupando todo um primeiro andar. As ante-salas
eram mobiliadas com gosto e tinham mesmo pela parede quadros e mapas de cousas da arte de curar.
Havia mesmo, no corredor, algumas gravuras de combate ao alcoolismo e era de admirar que
estivessem no consultório de um médico, cuja glória o obrigava a ser conviva de banquetes diários,
bem e fartamente regados.
Para se ter a felicidade de sofrer um exame de minutos do milagroso clínico, era preciso que se
adquirisse a entrada, isto é, o cartão, com ante- cedência, às vezes, de dias. O preço era alto, para evitar
que os viciosos do grande clínico não atrapalhassem os que verdadeiramente necessitavam das luzes do
célebre clínico...
Custava a consulta cerca de cinquenta mil-réis, na nossa moeda; mas apesar de tão alto preço, o
escritório da celebridade médica era objeto de uma verdadeira romaria e toda cidade o tinha como uma
espécie de Aparecida médica.
Cator Krat Ben, sócio principal da firma Suza & Cia, estabelecido com armazém de secos e
molhados, lá pelas bandas de um arrabalde afastado da cidade, andava sofrendo de umas dores no
estômago que não o deixavam comer com toda liberdade o seu bom cozido, rico de couves e nabos,
farto de toucinho e abóbora vermelha, nem mesmo saborear, a seu contento, o caldo que tantas saudades
lhe dava de sua aldeia natal.
Consultou mezinheiros, curandeiros, espíritas, médicos locais e não havia meio de lhe passar de
todo aquela insuportável dorzinha que não lhe permitia comer, com satisfação e abundância, o cozido
e tirava-lhe de qualquer modo o sabor do caldo que tanto amava e apreciava.
Era ir para a mesa, lá lhe aparecia a dor e o cozido com os seus pertences, muito cheiroso, rico de
couves, farto de toucinho e abóbora, olhava-o, namorava-o e ele namorava o cozido sem ânimo de
mastigá-lo, de devorá-lo, de engoli-lo com aquele ardor que a sua robustez e o seu desejo exigiam.
Krat Ben Suza era solteiro e quase casto.
Na sua ambição de pequeno comerciante, de humilde aldeão tangido pela vida e pela sociedade
para a riqueza e para a fortuna, tinha recalcado todas as satisfações da vida, o amor fecundo ou infecundo,
o vestuário, os passeios, a sociabilidade, os divertimentos, para só pensar nos contos de réis que lhe
dariam a forra mais tarde, com toda a certeza, do seu quase ascetismo atual, no balcão de uma venda
dos subúrbios.
À mesa, porém, ele sacrificava um pouco do seu ideal de opulência e gastava sem pena na carne,
nas verduras, nos legumes, no peixe, nas batatas, no bacalhau que, depois do cozido, era o seu prato
predileto.
Desta forma, aquela dorzita no estômago o fazia sofrer extraordinariamente. Ele se privava do
amor; mas que importava se daqui a anos, ele pagaria para seu gozo, em dinheiro, em joias, em carruagens,
em casamento até, corpos macios, veludosos, cuidados, perfumados, os mais caros que houvesse aqui
ou na Europa; ele se privava de teatros, de roupas finas, mas que importava, se dentro de alguns anos,
ele poderia ir aos primeiros teatros daqui ou da Europa com as mais caras que escolhesse; mas deixar de
comer — isto não! Era preciso que o corpo estivesse sempre bem nutrido para aquela faina de quatorze
ou quinze horas por dia, a servir ao balcão, a ralhar com os caixeiros, a suportar os desaforos dos
fregueses e a ter cuidado com os calotes.
Certo dia, ele leu nos jornais a notícia que o doutor Adhil Ben Thaft tinha tido permissão do
governo para dar alguns tiros com os grandes canhões do grande couraçado da esquadra do país —
“Witopá”.
Leu a notícia toda e feriu-lhe o fato da informação dizer: “Esse maravilhoso clínico é, certamente,
um exímio artilheiro...”
Clínico maravilhoso! Com muito esforço de memória, pôde conseguir recordar-se de que aquele
nome já por ele fora lido em qualquer parte. Maravilhoso clínico! Quem sabe se ele não curaria daquela
dorzita ali, no estômago? Meditava assim, quando lhe entra pela venda adentro, o Sr. Hutekle, empregado
na Repartição das Arapucas, funcionário público, homem sério e pontual no pagamento.
Krat foi-lhe logo perguntando:
— Senhor Hutekle, o senhor conhece o doutor Adhil Ben Tad?
— Thaft, emendou o outro.
— Isto mesmo. Conhece-o, Senhor Hutekle?
— Conheço.
— É bom médico?
— Milagroso. Monta a cavalo, joga xadrez, escreve muito bem, é um excelente orador, grande
poeta, músico, pintor, goal-keeper dos primeiros...
— Então é um bom médico, não é meu caro senhor?
— É. Foi quem salvou a minha mulher. Custou-me caro... Duas consultas...
— Quanto?
— Cinquenta mil-réis cada uma... Some.
O merceeiro guardou a informação, mas não se resolveu imediatamente a ir consultar o famoso
taumaturgo urbano. Cinquenta mil-réis!
E se não ficasse curado com uma única consulta? Mais cinquenta...
Viu na mesa o cozido, olente, fumegante, farto de nabos e couves, rico de toucinho e abóbora
vermelha, a namorá-lo e ele a namorar o prato, sem poder gozá-lo com o ardor e a paixão que o seu
desejo pedia. Pensou dias e afinal decidiu-se a descer até à cidade, para ouvir a opinião do doutor Adhil
Ben Thaft sobre a sua dor no estômago, que lhe aparecia de onde em onde.
Vestiu-se o melhor que pôde, dispôs-se a suportar o suplício das botas, pôs ao colete o relógio, a
corrente e o medalhão de ouro com a enorme estrela de brilhante que parece ser o distintivo dos pequenos
e grandes negociantes de todas as terras, e encaminhou-se para a estação da estrada de ferro. Ei-lo no
centro da cidade.
Adquiriu a entrada, isto é, o cartão, nas mãos do contínuo do consultório, despedindo-se dos seus
cinquenta mil-réis com a dor de pai que leva um filho ao cemitério. Ainda se o doutor fosse seu freguês...
Mas qual! Aqueles não voltariam mais...
Sentou-se entre ‘cavalheiros bem vestidos e damas perfumadas. Evitou encarar os cavalheiros e
teve medo das damas... Sentia bem o seu opróbrio, não de ser taverneiro, mas de só possuir de economias
duas miseráveis dezenas de contos... Se tivesse algumas centenas — então, sim, ele! — ele poderia
olhar aquela gente com toda a segurança da fortuna, do dinheiro, que havia de alcançar certamente,
dentro de anos, o mais breve possível.
Um a um, iam eles entrando para o interior do consultório; e pouco se demoravam. Suza começou
a ficar desconfiado... Diabo! Assim tão depressa?
Boa profissão, a de médico! Ah! Se o pai tivesse sabido disso... Mas qual!
Pobre pai! Ele mal podia com o peso da mulher e dos filhos, como havia de pagar-lhe mestres?
Cada um enriquece como pode...
Foi, por fim, à presença do doutor. Krat gostou do homem. Tinha um olhar doce, os cabelos já
grisalhos, apesar de sua fisionomia moça, umas mãos alvas, polidas.
Perguntou-lhe o médico com muita macieza de voz:
— Que sente o senhor?
Krat Ben Suza foi-lhe dizendo logo o terrível mal no estômago de que vinha sofrendo, há tanto
tempo, mal que aparecia e desaparecia mas que não o deixava nunca. O doutor Adhil Ben Thaft fê-lo
tirar o paletó, o colete, auscultou-o bem, examinou-o demoradamente, tanto de pé, como deitado,
sentou-se depois, enquanto o negociante recompunha a sua modesta toilette.
Suza sentou-se também, e esperou que o médico saísse de sua meditação.
Foi rápida. Dentro de um segundo, o famoso clínico dizia com toda segurança:
— O senhor não tem nada.
O humilde vendeiro ergueu-se de um salto da cadeira e exclamou indignado:
— Então, senhor doutor, eu pago cinquenta mil-réis e não tenho nada! Esta é boa! Noutra
não caio eu!
E saiu furioso do consultório que merecia da cidade uma romaria semelhante à da milagrosa
Lourdes, no doce país de França.
continua na página 52...
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)
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Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
Os Bruzundangas - Capítulo II : A Nobreza de Bruzundanga
Os Bruzundangas - Capítulo XV: Uma Consulta Médica
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Departamento Nacional do Livro
* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.