Émile ZolaTradução de Francisco Bittencourt ... antes da leitura algumas pistas do que você encontrará neste livro...
Resenha | Bookster
I
Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e
espessura de tinta, um homem caminhava sozinho pela estrada real que vai
de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando
os campos de beterraba. A sua frente, não enxergava nem mesmo o solo
negro e somente sentia o imenso horizonte achatado através do sopro do
vento de março, rajadas largas como sobre um mar, geladas por terem
varrido léguas de pântanos e terras nuas. Nem sombra de árvore manchava
o céu; a estrada desenrolava-se reta como um quebra-mar em meio à
cerração ofuscante das trevas.
O homem partira de Marchiennes lá pelas duas horas. Caminhava a
passos largos, tiritando sob o algodão puído de sua jaqueta e da calça de
veludo. Um pequeno embrulho, feito com um lenço de quadrados,
incomodava-o bastante; ora o mantinha apertado debaixo de um braço, ora
de outro, para poder assim enfiar no fundo dos bolsos as mãos entorpecidas
que o açoite do vento leste fazia sangrar. Uma única ideia lhe ocupava o
cérebro vazio de operário sem trabalho e sem teto, a esperança de que o frio
se tornasse menos agudo com o romper do dia. Havia uma hora que ele
caminhava assim, quando percebeu à esquerda, a dois quilômetros de
Montsou, uns clarões vermelhos, três braseiros queimando ao ar livre, e
como suspensos. A princípio hesitou, tomado de receio; mas logo após não
pôde resistir à necessidade dolorosa de aquecer por um instante as mãos.
Entrou por um atalho que se afundava campo adentro. Tudo
desapareceu. À sua direita o homem tinha uma paliçada, um pedaço de
tapume feito de pranchas grossas protegendo uma via férrea, enquanto à
esquerda se elevava um talude de erva encimado por empenas confusas,
visão de uma aldeia de tetos baixos e uniformes. Percorrera uma distância
aproximada de duzentos passos quando, bruscamente, numa volta do
caminho, os fogos reapareceram próximos dele sem que o homem chegasse
a compreender como podiam elevar-se tão alto no céu morto, iguais a luas
enevoadas. Mas, ao nível do solo, outro espetáculo o fazia parar. Era uma
massa pesada, um amontoado de construções de onde se levantava a
silhueta da chaminé de uma fábrica. Raros clarões saíam das janelas sujas,
cinco ou seis lampiões tristes pendiam do lado de fora das vigas de madeira
enegrecidas do edifício, alinhando vagamente perfis de cavaletes
gigantescos. E, dessa aparição fantástica, engolfada na noite e na fumaça,
um único ruído se elevava: o arfar grosso e prolongado de um escapamento
de vapor, que não se via.
Só então o homem se deu conta de que aquilo era uma mina e a
vergonha tomou conta dele. Para que tentar? Não haveria trabalho... Em vez
de se dirigir para o edifício, decidiu escalar o terreno onde ardiam os três
fogos de hulha em tachos de ferro fundido que serviam para alumiar e
aquecer os homens no trabalho. Os operários encarregados do desaterro
certamente tinham trabalhado até tarde, ainda estavam retirando o entulho.
Agora ouvia os carregadores empurrando os vagonetes sobre os trilhos
montados nos cavaletes, divisava sombras que se moviam descarregando os
carros ao lado das fogueiras.
— Bom dia — disse ele aproximando-se de um dos fogos.
Em pé, de costas para o fogo, encontrava-se o carroceiro, um velho
com uma blusa de malha de lã violeta e gorro de pele de coelho; enquanto
seu cavalo, um cavalo baio e gordo esperava, numa imobilidade de pedra,
que esvaziassem os seis vagonetes puxados por ele. O trabalhador
encarregado da descarga, um rapagão ruivo e esguio, parecia não ter pressa,
e pressionava a alavanca com gestos lentos. No alto, o vento redobrava de
intensidade, um sopro glacial feito de grandes golfadas regulares que
cortavam como golpes de foice.
— Bom dia — respondeu o velho.
E de novo o silêncio. O homem, que se sentia olhado com
desconfiança, disse logo o nome:
— Eu me chamo Etienne Lantier e sou operador de máquinas. Não
haverá trabalho por aqui?
As chamas o iluminavam: devia ter vinte e um anos, bem moreno,
belo homem, de aspecto vigoroso, apesar de os membros serem pouco
desenvolvidos.
Tranquilizado, o carroceiro abanou a cabeça.
— Trabalho para operador de máquinas, não, não há. Ainda ontem
apareceram dois, mas não há nada.
Uma rajada de vento impediu-os de falar. Mas, em seguida, Etienne,
indicando o amontoado sombrio das construções ao pé do aterro, perguntou:
— É uma mina, não é?
Desta vez o velho não pôde responder imediatamente, um violento
acesso de tosse o sufocava. Por fim escarrou, e seu escarro fez uma mancha
negra no chão avermelhado.
— É, sim, é uma mina, a Voreux. E veja, lá bem próximo está o
conjunto habitacional dos mineiros.
Por sua vez, com o braço estendido, indicava no escuro a aldeia
cujos telhados o jovem já vira. Mas os seis vagonetes acabavam de ser
descarregados e o homem os seguiu sem mesmo fazer estalar o chicote, as
pernas rígidas pelo reumatismo, enquanto o cavalo baio partia sozinho,
puxando-os a custo entre os varais, debaixo de uma nova rajada de vento
que lhe eriçava os pelos.
Agora a Voreux tornava-se realidade. Etienne, que continuava em
frente ao braseiro aquecendo as pobres mãos escalavradas, olhava,
começava a perceber cada uma das partes da mina, o galpão preto onde o
carvão é peneirado, a torre do sino do poço, a vasta casa da máquina de
extração, o torreão quadrado da bomba de esgoto. Esta mina, apertada no
fundo de um buraco, com suas construções de tijolo atarracadas, de onde
sobressaía uma chaminé que mais parecia um chifre ameaçador, dava-lhe a
impressão de um animal voraz e feroz, agachado à espreita para devorar o
mundo. Examinando-a, pensava em si, na sua existência de vagabundo que
havia oito dias procurava trabalho; via-se na oficina da estrada de ferro,
esbofeteando o chefe, expulso de Lille, expulso de toda parte; sábado tinha
chegado a Marchiennes, onde se dizia que havia trabalho nas Forjas, e nada,
nem nas Forjas nem em Sonneville: tivera de passar o domingo escondido
sob as madeiras de uma fábrica de carroças, de onde o vigia acabava de
expulsá-lo, às duas horas da madrugada. Nada, nem mais um tostão, nem
mesmo uma côdea. Como continuar assim pelos caminhos, sem destino,
não sabendo sequer onde abrigar-se do vento frio? Sim, era de fato uma
mina, os raros lampiões iluminavam o pátio, uma porta subitamente aberta
permitira-lhe vislumbrar as fornalhas das caldeiras das máquinas envoltas
numa claridade viva. Encontrava explicação até para o escapamento da
bomba, essa respiração grossa e ampla, resfolegando sem descanso, e que
era como a respiração obstruída do monstro.
O encarregado da descarga dos vagonetes, de costas curvadas, nem
mesmo levantara os olhos para Etienne. No momento em que este ia
apanhar seu pequeno embrulho que estava no chão, um acesso de tosse
anunciou-lhe a volta do carroceiro. Lentamente ele surgiu do escuro,
seguido pelo cavalo baio que puxava outros seis vagonetes cheios.
— Há fábricas em Montsou? — perguntou o rapaz.
O velho escarrou preto antes de responder em meio à ventania:
— Fábricas é o que não falta. Você precisava ver há três ou quatro
anos: tudo produzindo, faltava mão-de-obra, nunca se ganhou tanto. E, de
repente, começa-se a apertar o cinto. Uma verdadeira desgraça cai sobre a
região, o pessoal é despedido, as oficinas começam a fechar uma após
outra. Talvez não seja culpa do imperador, mas que necessidade tem ele de
ir lutar na América? E isso tudo sem contar os animais que morrem de
cólera, como as pessoas.
E, em frases curtas, com a respiração entrecortada, ambos
continuaram a lamentar-se. Etienne falou sobre seus passos inúteis que já
duravam uma semana. Então havia-se de morrer de fome? Dentro em pouco
as estradas estariam cheias de mendigos. Sim, retrucava o velho, tudo isso
ia terminar mal, Deus não tinha o direito de jogar tantos cristãos na
desgraça.
— Nem todo dia se tem carne.
— Se ao menos houvesse pão!
— É verdade, se ao menos houvesse pão!
Suas vozes se perdiam, rajadas de vento transformavam as palavras
num lamento melancólico.
— Veja! — disse em voz alta o carroceiro, voltando-se para o sul.
— Montsou fica para lá.
E com a mão novamente estendida designou nas trevas pontos
invisíveis, à medida que os nomeava. Lá, em Montsou, a refinaria de açúcar
Fauvelle ainda trabalhava, mas a Hoton reduzira o pessoal. As únicas que
ainda se aguentavam: a fábrica de moagem Dutilleul e a cordoaria Bleuze,
que fazia cabos de mina. Depois, com um gesto largo, indicou, ao norte, a
metade do horizonte: as oficinas de construção de Sonneville não tinham
recebido nem dois terços das encomendas habituais; dos três altos-fornos
das Forjas de Marchiennes, só dois estavam em serviço; e, finalmente, na
fábrica de vidros Gagebois havia ameaça de greve porque se falava em
redução de salário.
— Sei, sei — repetia o rapaz a cada indicação. — De lá venho eu.
— Para nós aqui, as coisas até agora estão indo — continuou o
carroceiro. — Contudo, as minas diminuíram a extração. E repare, em
frente, na Victoire, há apenas duas baterias de fornos de coque acesas.
Escarrou, e seguiu de novo atrás do cavalo sonolento, depois de o
ter atrelado aos vagonetes vazios.
Agora Etienne dominava toda a região. As trevas continuavam
profundas, mas a mão do velho como que as povoara de grandes misérias,
que o jovem, inconscientemente, sentia naquela hora à sua volta, por toda
parte, na amplidão sem termo. Não era um grito de fome que rolava com o
vento de março através destes campos nus? As rajadas do vento haviam
aumentado e pareciam trazer consigo a morte do trabalho, uma escassez que
mataria muitos homens. E, com os olhos errando de um ponto a outro, ele
se esforçava por furar as sombras, atormentado pelo desejo e pelo medo de
ver.
Tudo se aniquilava no fundo desconhecido das noites obscuras; só
percebia, muito ao longe, os altos-fornos e as fornalhas de coque. Estas,
baterias de cem chaminés erguidas obliquamente, alinhavam rampas de
chamas rubras, enquanto as duas torres, mais à esquerda, ardiam, azuis, em
pleno céu, como tochas gigantescas. Era uma tristeza de incêndio, não havia
no horizonte ameaçador outros astros elevando-se a não ser esses fogos
noturnos dos países da hulha e do ferro.
— Você é da Bélgica, não é? — perguntou por trás de Etienne o
carroceiro, que estava de volta.
Desta vez ele trouxera apenas três vagonetes. Um acidente na gávea
de extração, uma porca quebrada, iria retardar o trabalho por um bom
quarto de hora, mas estes vagonetes ainda podiam ser descarregados. Ao pé
do aterro reinava silêncio, os carregadores não estavam mais sacudindo os
cavaletes com uma rotação prolongada. Ouvia-se apenas sair de dentro da
mina o ruído longínquo de um martelo batendo o ferro.
— Não, sou do sul — respondeu o jovem.
O encarregado de despejar os vagonetes sentara-se no chão, feliz
com o acidente. E continuava no seu mutismo selvagem, erguera apenas os
grandes olhos mortiços para o carroceiro, como incomodado com toda
aquela conversa. Na verdade, este último, de hábito, não falava muito. Era
preciso que o rosto de um desconhecido lhe agradasse e que ele estivesse
tomado por um desses desejos imperiosos de confidencias que fazem, às
vezes, as pessoas idosas falarem sozinhas, em voz alta.
— Eu — disse ele — sou de Montsou e chamo-me Boa-Morte.
— É apelido? — perguntou Etienne admirado.
O velho riu com gosto e, apontando para Voreux, respondeu:
— É, é... Retiraram-me três vezes lá de dentro, em pedaços. Uma
vez com o cabelo todo chamuscado, outra com terra até o bucho e a terceira
com a barriga cheia de água, como uma rã... Foi então que eles viram que
eu não queria morrer mesmo e começaram a me chamar Boa-Morte, de
troça.
Sua alegria redobrou — rangido de roldana mal azeitada que
degenerou num terrível ataque de tosse. O fogo iluminava-lhe agora a
grande cabeça de cabelos brancos e ralos, o rosto achatado, de uma palidez
cadavérica, cheio de manchas azuladas. Era baixo, pescoço enorme, a
barriga da perna e os calcanhares salientes, com braços compridos e mãos
quadradas que batiam nos joelhos. E, como o cavalo que permanecia imóvel
em pé, sem dar mostras de estar sofrendo com o vento, ele parecia de pedra,
insensível ao frio e às rajadas que assobiavam em seus ouvidos. Depois de
tossir, a garganta escoriada por um rascar profundo, escarrou para o lado do
fogo e a terra enegreceu.
Etienne olhou-o para em seguida examinar a nódoa no chão.
— Há muito tempo que você trabalha na mina? Boa-Morte abriu
muito os braços:
— Ah! Sim... Há muito tempo. Não tinha ainda oito anos quando
desci, imagine justamente na Voreux, e agora tenho cinquenta e oito. Veja
bem, fiz de tudo lá dentro: primeiro como aprendiz; depois, quando tive
forças para puxar, fui operador de vagonetes e, mais tarde, durante dezoito
anos, britador. Em seguida, por causa destas malditas pernas, puseram-me
para desaterrar, aterrar, consertar... Isso até o momento em que tiveram de
me tirar lá de baixo porque o médico disse que um dia eu não voltaria mais.
E faz cinco anos que sou carroceiro... Que tal? Não é bonito? Cinquenta
anos de mina, sendo que quarenta e cinco no fundo!
Enquanto falava, pedaços de hulha incandescentes, que, a espaços,
caíam do tacho, punham reflexos sangrentos em seu rosto lívido.
— Mandam-me descansar — continuou ele. — E, como não quero,
julgam que sou idiota. Faltam só dois anos para eu completar sessenta, e aí
terei direito à pensão de cento e oitenta francos. Se eu lhes desse boa-noite
hoje, concediam-me imediatamente a de cento e cinquenta. Esses velhacos
são vivos!... De resto, tirante as pernas, sou forte. Foi a água, isso é certo,
que me entrou na pele; durante a extração a gente fica todo o tempo dentro
dela. Há dias em que não posso mexer um pé sem gritar.
Outro acesso de tosse veio interrompê-lo.
— E a tosse vem disso também? — perguntou Etienne.
O velho respondeu que não, violentamente, com a cabeça. Depois,
quando pôde falar, disse:
— Não, não. Desde o mês passado que ando resfriado. Nunca
tossia, agora não consigo mais livrar-me desta tosse... E o mais engraçado é
como escarro, como escarro...
Pigarreou novamente e cuspiu negro.
— É sangue? — Etienne ousou perguntar.
Boa-Morte limpava lentamente a boca com as costas da mão.
— É carvão. Tenho tanto carvão no corpo que chega para aquecer o
resto dos meus dias. E já faz cinco anos que não ponho os pés lá embaixo.
Tinha tudo isso armazenado, parece-me, sem saber. Melhor, até conserva!
Houve um silêncio. Longínquo, o martelo batia regularmente na
mina, e o velho era como uma queixa, como um grito de fome e de cansaço
vindo das profundezas da noite. Diante das chamas enfurecidas o velho
continuou, mais baixo, a remoer suas lembranças. Ah! Certo, não era de
ontem que ele e os seus cavavam no veio. A família trabalhava para a
companhia das minas de Montsou desde a sua criação; e isso já vinha de
muito longe, cento e seis anos. Seu avô, Guillaume Maheu, na época um
garoto de quinze anos, fora o descobridor da hulha em Réquillart, a
primeira mina da companhia, uma velha galeria atualmente abandonada, lá
longe, perto da refinaria de açúcar Fauvelle. Toda a região sabia disso, e a
prova é que o veio descoberto se chamava Guillaume, do nome de batismo
do seu avô. Não o conhecera, mas diziam que fora um latagão; morrera de
velhice aos sessenta anos. Depois, seu pai, Nicolas Maheu, conhecido como
o Ruivo, com apenas quarenta anos de idade, ficara na Voreux, que nesse
tempo estava sendo aberta: um desabamento e ele ficara completamente
achatado, com o sangue bebido e os ossos engolidos pelas rochas. Dois dos
seus tios e seus três irmãos ali também haviam deixado a pele, mais tarde.
Ele, Vincent Maheu, que conseguira sair mais ou menos inteiro, apenas com
as pernas em mau estado, passava por astucioso. Mas que fazer? Era preciso
trabalhar. Isso já vinha sendo feito de pai para filho, como bem podia ser
outra coisa. Seu filho, Toussaint Maheu, já se matava no mesmo ofício,
assim como seus netos e toda a família, que morava em frente, no conjunto
habitacional. Cento e seis anos de trabalho para o mesmo patrão, as crianças
após os velhos: que tal? Muitos burgueses não saberiam contar tão bem a
sua história!
— Quando ainda se pode comer... — murmurou novamente
Etienne.
— É isso que eu digo: enquanto há pão para comer, vai-se vivendo.
Boa-Morte calou-se, os olhos voltados para o conjunto habitacional,
onde as luzes se acendiam uma a uma.
O campanário de Montsou deu quatro horas; o frio aumentava.
— E essa sua companhia é rica? — voltou à carga Etienne.
O velho levantou os ombros para, em seguida, deixá-los cair, como
que esmagado sob um monte de moedas.
— Sim, sim... Talvez não tanto como sua vizinha, a Companhia
d'Anzin. Mas assim mesmo tem milhões e milhões. Nem se pode contar.
Dezenove galerias, sendo que treze para exploração: Voreux, Victoire,
Crèvecoeur, Mirou, Saint-Thomas, Madeleine, Feutry-Cantel e outras, e seis
para esgoto ou ventilação, como a Réquillart... Dez mil operários,
concessões que se estendem por sessenta e sete comunas, uma extração de
cinco mil toneladas por dia, uma estrada de ferro ligando todas as galerias, e
oficinas, e fábricas! Se é rica! Dinheiro é o que não falta.
Um rolar de carros sobre os cavaletes pôs em pé as orelhas do
grande cavalo baio. Embaixo, o elevador já devia estar consertado, os
carregadores tinham voltado ao serviço. Enquanto atrelava o animal para
voltar a descer, o carroceiro falava-lhe com carinho:
— E agora não vais habituar-te a tagarelar, preguiçoso! Se o Sr.
Hennebeau soubesse em que tu perdes o tempo!
Etienne, pensativo, contemplava a noite. Perguntou:
— Então, esta mina é do Sr. Hennebeau?
— Não — explicou o velho —, o Sr. Hennebeau é apenas o diretor
geral. Ele é pago como nós.
O jovem mostrou com um gesto a imensidão das trevas.
— Então, de quem é tudo isto?
Boa-Morte, no entanto, ficou por um instante sufocado com nova
crise, de tal violência que não lhe permitia respirar. Por fim, tendo escarrado
e limpado a espuma preta dos lábios, disse, em meio à ventania cada vez
mais violenta:
— O quê? De quem é tudo isso? Não se sabe. É de umas pessoas. E
com a mão designou no escuro um ponto vago, um lugar ignorado e remoto,
povoado por essas pessoas para quem os Maheu cavavam no veio havia
mais de um século.
Sua voz elevava-se com uma espécie de medo religioso, era como
se estivesse falando a respeito de um tabernáculo inacessível onde se
escondia o deus farto e acocorado, a quem todos eles davam a sua própria
carne e que nunca tinham visto.
— Se ao menos se comesse o pão necessário para viver! — repetiu
pela terceira vez Etienne, sem transição aparente.
— Pois é! Se a gente pudesse comer sempre pão! Mas isso é
impossível.
O cavalo partiu e o carroceiro seguiu-o com passo arrastado, de
inválido. Sempre próximo do basculante, o operário encarregado de
manobrá-lo não se mexera, todo curvado, com o queixo fincado nos
joelhos, os grandes olhos mortiços fixos no vácuo.
Apesar de já ter apanhado o embrulho, Etienne permaneceu onde
estava. Sentia as rajadas de vento gelando-lhe as costas, enquanto seu peito
queimava, devido à fogueira. Talvez devesse tentar a mina, o velho podia
não saber; e depois, estava resignado, aceitaria qualquer trabalho. Onde ir e
em que transformar-se nesta região faminta devido ao desemprego?
Esconder atrás de algum muro sua carcaça de cão vadio? No entanto,
hesitava ainda; era medo, medo da Voreux no meio desta planície rasa,
mergulhada numa noite tão profunda. A cada nova rajada o vento parecia
aumentar, como se soprasse de um horizonte distendendo-se cada vez mais.
Nenhum sinal de alvorada clareava o céu morto, apenas os altos-fornos e as
fornalhas de coque ensanguentavam as trevas, sem alumiar seu mistério. E a
Voreux, do fundo do seu buraco, com sua postura de bicho maligno
parecendo cada vez mais retraído, respirava agora mais grossa e
amplamente, como que sofrendo com sua dolorosa digestão de carne
humana.
continua na página 13...
____________________
Primeira Parte - (I) Na planície rasa
____________________
O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie
Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença
de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram
casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em
12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris.
O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu.
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe
procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho
estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do
Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu
a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da
família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em
prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença).
Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo
costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de
si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o
emprego para dedicar-se à literatura.
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e
passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal
(1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo
devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias
evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da
Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da
Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito
decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina
Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra
foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o
rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das
experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O
que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria
com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples
busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região
mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins
e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos
operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde
viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças
causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os
sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade
incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete
por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles
têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável,
descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio
animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência
viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total
destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os
pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade
de pais e filhos em casas muito pequenas.
A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.