D. Quixote de la Mancha
Miguel de Cervantes
Vol 1
O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha
Miguel de Cervantes
PRIMEIRA PARTE
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO XXX
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO XXX
Que trata da discrição da formosa Dorotéia, com outras coisas de muito sabor e passatempo.
Mal tinha acabado o cura, quando Sancho disse:
— Pois afirmo-lhe eu, senhor licenciado, que o fazedor dessa façanha foi meu amo; e olhe que não
foi por lhe eu não dizer a tempo que reparasse no que fazia, e que era pecado soltá-los, porque todos
iam ali por grandíssimos tratantes.
— Ó idiota — exclamou aqui D. Quixote — aos cavaleiros andantes não pertence averiguar se os
afligidos, acorrentados e opressos, que se encontram pelas estradas, vão daquela maneira por suas
culpas, ou por serem desgraçados; só lhes toca ajudá-los como necessitados que são, considerando-lhes as penas, e não as tratantadas. Encontro uma enfiada, um rosário de gente mofina; fiz nela o
que a minha religião pedia, e saísse o que saísse; e a quem o desaprova (sem faltar ao respeito que
devo ao senhor licenciado e à sua honrada pessoa) digo que sabe pouco dos contratempos da
cavalaria, e que mente como um biltre e malcriado, e eu lhe farei conhecer com a minha espada,
mais comprida e inteiramente.
Estas palavras já as proferiu firmando-se nos estribos, e ajustando o murrião, porque a bacia de
barbeiro, que pelas suas contas era o elmo de Mambrino, levava-a pendurada do arção dianteiro,
para a mandar correger do mau tratamento que lhe deram os galeotes.
Dorotéia, que era discreta e lépida, sabedora já da aduela de menos de D. Quixote, e de que todos,
afora Sancho Pança, judiavam com ele, não quis ficar atrás, e, vendo-o tão enojado, lhe disse:
— Senhor cavaleiro, recorde-se do que me prometeu; olhe que não pode intrometer-se em aventura
nenhuma, por urgente que seja; serene-se, que, se o senhor licenciado soubera que o libertador dos
galeotes fora esse braço invencível, daria três pontos na boca, e até mordera três vezes a língua,
antes de ter dito palavra que redundasse em desdouro de Vossa Mercê.
— Posso-lhe jurar — disse o cura — era mais fácil deixar cortar o bigode.
— Já me calo, senhora minha — disse D. Quixote — e reprimo a justa cólera que me ia abrasando,
e irei no meu sossego, até ter cumprido o que vos prometi. Agora em paga suplico-vos eu me digais,
se vos não dá incômodo, qual é a vossa mágoa, e quantas, quem, e quais são as pessoas de quem vos
hei-de dar devida e inteira vingança.
— De muita boa vontade — respondeu Dorotéia — se porventura vos não enfada ouvir lamentos e
desgraças.
— Não enfada — respondeu D. Quixote — não enfada, senhora minha.
— Sendo assim — disse Dorotéia — estejam Vossas Mercês atentos.
A estas palavras logo Cardênio e o barbeiro se lhe puseram ao lado, cobiçosos de ver como da sua
história se saía a espertíssima donzela; e o mesmo fez Sancho, que não ia ali menos enganado que o
amo. E ela, depois de se ter muito bem ajeitado na sela, preparando-se com tossir, e outras
semelhantes cerimônias com muito chiste encetou assim a sua narrativa:
— Primeiramente quero que Vossas Mercês saibam, senhores meus, que a mim me chamam...
Aqui deteve-se um pouco, por se lhe ter varrido o nome que lhe pusera o cura. Este porém lhe acudiu no encalhe, dizendo:
Aqui deteve-se um pouco, por se lhe ter varrido o nome que lhe pusera o cura. Este porém lhe acudiu no encalhe, dizendo:
— Não é maravilha, senhora minha, que Vossa Grandeza se perturbe no referir as suas desventuras;
é próprio delas o tirarem muitas vezes a memória a quem as padece, a ponto de nem dos seus
próprios nomes se lembrarem; é o que neste instante sucedeu a Vossa Grã-Senhoria, pois não lhe
lembra que se chama a Senhora Princesa Micomicadela, herdeira legítima do grande reino
Micomicão. Agora que já lhe fica apontado o caminho, pode Vossa Grandeza seguir sem empacho
o que lhe aprouver dizer-nos.
— Sim, senhor — disse a donzela — creio que daqui em diante já não será necessário recordar-me
nada; espero chegar a porto de salvamento com a minha verdadeira história. Ora pois: El-Rei meu
pai, que se chamava Tinácrio, o sábio, foi mui douto nisto que chamam arte mágica, e alcançou,
pela sua ciência, que minha mãe que se chamava a Rainha Charamela, havia de morrer primeiro que
ele, mas que ele também dali a pouco tempo havia de passar desta a melhor vida, ficando eu órfã de
pai e mãe. Dizia ele, porém, que menos o consumia isso, do que o atormentava saber por coisa
muito certa que um descomunal gigante, senhor duma grande ilha, que quase confronta com o nosso
reino, chamado Pandafilando da vista fusca (porque há toda a certeza de que, apesar de ter os olhos
no seu lugar, e direitos, sempre olha de revés como se fora vesgo, que ele faz por mau, e para meter
medo e espanto à gente)... Sim; repito, que meu pai soube que o tal gigante, logo que lhe constasse a
minha orfandade, havia de passar com grande quantia de gente sobre o meu reino, e tirar-mo todo,
sem me deixar nem uma aldeia para me eu recolher, porém que todas estas inclemências se
poderiam evitar, prontificando-me eu a casar com ele; mas que, segundo ele meu pai entendia,
nunca eu estaria por tão desigual casamento. Neste particular foi profeta, porque nunca jamais pela
idéia me passou casar-me com o tal gigante, nem com outro qualquer, fosse quem fosse. Mais disse
meu pai e senhor que, se depois da sua morte eu visse que Pandafilando começava a entrar pelo
meu reino, não perdesse tempo em preparos para me defender, que seria arruinar-me de todo, mas
que espontaneamente lhe despejasse a terra, se queria escapar à morte, e à destruição total dos meus
bons e fiéis vassalos, porque não havia de ser possível defender-me da endiabrada força do gigante,
mas que tornasse logo com alguns dos meus caminho de Espanha, onde acharia remédio a meus
males na pessoa dum cavaleiro andante, cuja fama a esse tempo encheria já todo o reino, e o qual se
havia de chamar (se bem me lembra) D. Azote, ou D. Gigote...
— Talvez dissesse D. Quixote — interrompeu Sancho Pança — ou por outro nome, o Cavaleiro da
Triste Figura.
— É verdade — disse Dorotéia — e ajuntou que esse tal cavaleiro seria alto de corpo, seco de rosto,
e que no lado direito, debaixo do ombro esquerdo, ou por ali perto, havia de ter um sinal pardo com
certos cabelos à maneira de sedas de porco.
Ouvindo aquilo, disse D. Quixote ao escudeiro:
— Sancho filho, acode cá; ajuda-me a despir, que preciso ver se não sou o cavaleiro que aquele tão
sábio monarca deixou profetizado.
— Para que se quer Vossa Mercê despir? — disse Dorotéia.
— Para ver se tenho o sinal indicado por vosso pai — respondeu D. Quixote.
— Não é preciso que se dispa — acudiu Sancho — que eu sei que Vossa Mercê tem um sinal assim
tal qual no meio do espinhaço, prova de ser homem esforçado.
— Então basta isso — disse Dorotéia; — com os amigos não se cortam as unhas rentes; que seja no
ombro, ou que seja no espinhaço, vem a dar na mesma. O caso é que haja o sinal, esteja onde
estiver, pois é tudo a mesma carne. Meu pai acertou em tudo, e eu também acertei em me
encomendar ao senhor D. Quixote, que este é o que meu pai disse. Os sinais do rosto concordam
com os da boa fama que este cavaleiro tem, não só em Espanha, mas até em toda a Mancha; tanto
assim, que apenas eu desembarquei em Ossuna, logo ouvi contar dele tantas façanhas, que me deu o
coração uma pancada de que era o mesmo que eu vinha a buscar.
— Como desembarcou Vossa Mercê em Ossuna, senhora minha — perguntou D. Quixote — se não
é porto de mar?
Apressou-se o cura antes que Dorotéia respondesse, e disse;
— Naturalmente quererá dizer a senhora Princesa que, depois que desembarcou em Málaga, a
primeira parte em que achou novas de Vossa Mercê foi em Ossuna.
— É isso mesmo — disse Dorotéia.
— E diz muito bem — acrescentou logo o cura — mas queira Vossa Majestade prosseguir.
— Prosseguir o quê? — replicou ela — Não há mais nada para diante. Tão boa foi a minha sorte em
achar ao senhor D. Quixote, que já me conto por soberana senhora de todo o meu reino depois que
ele, por sua cortesia e magnificência, me prometeu a mercê de vir comigo aonde quer que eu o leve,
que não será a outra parte senão a pô-lo diante de Pandafilando da vista fusca, para dar cabo dele, e
restituir-me o que tão contra razão me tem usurpado. Tudo isto se há-de realizar tal qual, que assim
o deixou prognosticado Tinácrio, o sábio, meu bom pai, o qual também deixou dito em letras
caldaicas ou gregas (que eu por mim não as sei ler) que se este cavaleiro da profecia, depois de ter
degolado o gigante, quisesse casar comigo, eu me entregasse logo sem réplica alguma por sua
legítima esposa, e lhe desse no mesmo ato a posse do meu reino e da minha pessoa.
— Que te parece, Sancho amigo? — disse a este ponto D. Quixote — não ouves isto? não te dizia
eu? vê se temos, ou não temos já reino que governar, e Rainha com quem casar?
— Isso juro eu — respondeu Sancho; — só algum tolo é que não iria logo cortar o gasnete ao
senhor Pandafilando para casar muito depressa com a senhora Princesa. Olha que peste! assim
fossem as pulgas da minha cama.
Com estas palavras deu dois pinchos no ar em demonstração de gáudio, passou logo a tomar as
rédeas à mula de Dorotéia, fazendo-lha parar, lançou-se de joelhos perante ela, suplicando-lhe que
lhe desse as mãos para as beijar, em sinal de que a recebia por soberana e senhora sua. Quem
haveria ali que pudesse ficar sério diante da loucura do amo e da simpleza do servo?
Deu-lhe com efeito as mãos Dorotéia, e lhe prometeu fazê-lo grande do seu reino, logo que o céu
lhe fosse tão propício, que lhe deixasse recobrar e gozar.
Agradeceu-lhe Sancho tudo aquilo em termos tais, que em todos renovou a gargalhada.
— Aqui está, meus senhores — prosseguiu Dorotéia — a minha história; só me falta dizer-vos que
de toda quanta gente do meu reino trouxe não me ficou vivo senão unicamente este barbadão
escudeiro; tudo o mais se afogou num grande temporal que tivemos à vista do porto; ele e eu
viemos em duas tábuas a terra como por milagre, que milagre de grande mistério tem sido o decurso
de minha vida, como já tereis notado; e se em algum ponto andei sobeja ou curta demais na minha
narrativa, queixai-vos do que logo ao princípio da minha fala ponderou o senhor licenciado: que os
trabalhos contínuos e extraordinários desarranjam as ideias a quem os padece.
— Tal me não há-de suceder a mim, alta e valorosa senhora — disse D. Quixote — por maiores
trabalhos que eu passe em vos servir. Confirmo pois o que já vos prometi, e juro acompanhar-vos
ao cabo do mundo, até me ver com o vosso cruel inimigo, a quem tenciono, com ajuda de Deus e do
meu braço, decepar a cabeça soberba com os fios desta... não, quero dizer boa espada, graças a
Ginez de Passamonte que me levou a minha. (Isto remordeu-o entre os dentes, e prosseguiu:)
Depois de lhe ter decepado, e ter-vos sentado a vós na pacífica posse dos vossos estados, ficará a
vosso arbítrio fazer da vossa pessoa o que mais vos apeteça, pois enquanto eu tiver ocupada a
memória, cativa a vontade e perdido o entendimento por aquela... e não digo mais, não é possível
que eu nem por pensamentos me arroste com a ideia de matrimoniar-me, nem que fosse com a ave
Fênix.
Este encarecimento de não querer casar-se destoou tanto a Sancho, como despropósito, que
levantou de agastado a voz, dizendo:
— Juro e rejuro por vida minha que não tem Vossa Mercê, senhor D. Quixote, o juízo inteiro. Pois
como é possível pôr Vossa Mercê em dúvida casar-se com tão alta Princesa como esta? pensa que a
fortuna lhe há-de oferecer a cada canto uns acertos como este? é porventura mais formosa a minha
senhora Dulcinéia? está na tinta; nem para lá caminha; estou até em dizer que nem chega aos
calcanhares da que presente se acha. Assim lá se me vai pelos ares o meu Condado, se Vossa Mercê
ateima a esperar hortaliça de sequeiro, ou apojadura de cabra velha. Case, case logo, ou que o leve o
diabo, e aceite esse reino, que por si se lhe está metendo nas mãos; e, em sendo Rei, faça-me a mim
Marquês ou Adiantado; tudo mais que o leve o diabo, se quiser.
D. Quixote, que tais blasfêmias ouviu proferir contra a sua senhora Dulcinéia, não o pôde levar à
paciência; e, levantando a chuça, sem proferir chus nem bus, nem “guarda de baixo”, apresentou
duas bordoadas em Sancho, que pregou com ele em terra; e se não fora o começar Dorotéia a gritar
que lhe não desse mais, sem dúvida lhe acabaria ali a vida.
— Pensais, vilão ruim — lhe disse passado pouco — que hei-de estar sempre para vos aturar, e que
tudo há-de ser tu a despropositares, e eu a perdoar-te? pois não o cuides, maroto excomungado, que
o és sem dúvida nenhuma, pois te atreveste a pôr língua na sem par Dulcinéia. Não sabeis vós,
mariola, biltre, que, se não fosse pelo valor que ela infunde no meu braço, eu por mim nem matava
uma pulga? Dizei-me, socarrão de língua viperina, quem julgais que foi o conquistador deste reino,
e o que decepou a cabeça deste gigante, e vos fez a vós Marquês (que tudo isto o dou eu já como
feito e processo findo), se não é o valor de Dulcinéia, fazendo de meu braço instrumento de suas
façanhas? Ela peleja em mim, e vence em mim; eu vivo e respiro nela; nela tenho vida e ser. Filho
da mãe, grande velhaco, como sois desagradecido, que vos vedes levantado do pó da terra, até
senhor dum título, e a tão boa obra correspondeis com dizer mal de quem vo-la fez!
Não estava Sancho tão mortal, que não ouvisse o que o amo lhe dizia: levantando-se com certa
presteza, foi pôr-se por trás do palafrém de Dorotéia, e dali respondeu:
— Diga-me, senhor; se Vossa Mercê está de pedra e cal em não casar com esta grande Princesa,
claro está que o reino dela não há-de ser seu; não o sendo, que mercês me pode então fazer? Aqui
está de que eu me queixo. Case-se Vossa Mercê aos olhos fechados com esta Rainha que para aí nos
choveu do céu, depois, se quiser, pode-se amantilhar com a minha senhora Dulcinéia; Reis
amancebados não devem ter faltado neste mundo. Lá nisso da formosura não me intrometo, que, a
dizer a verdade, ambas me parecem bem, ainda que eu a senhora Dulcinéia nunca a vi.
— Como nunca a viste, traidor blasfemo? — vociferou D. Ouixote — pois não acabas agora mesmo
de me trazer um recado da sua parte?
— O que eu digo é — respondeu Sancho — que a não vi tanto à minha vontade, que pudesse
afirmar-me bem na sua formosura, ponto por ponto; mas assim no todo e em bruto, como diz o
outro, pareceu-me bem.
— Agora te desculpo; perdoa-me o enfado que te dei, que os primeiros movimentos não estão na
mão da gente.
— Bem sei — respondeu Sancho — e em mim a vontade de falar é sempre o primeiro movimento;
o que me vem à boca não posso deixar de o dizer, ao menos uma vez.
— Com tudo isso, Sancho — disse D. Quixote — repara bem como falas, porque tantas vezes vai o
cântaro à fonte... e não te digo mais nada.
— Pois bem — respondeu Sancho — Deus lá está em cima, e vê as coisas; ele é que sabe quem faz
mal, se eu em não falar bem, ou Vossa Mercê em o obrar ao revés.
— Basta já — disse Dorotéia; — correi, Sancho, e beijai a mão a vosso amo, pedi-lhe perdão, e
daqui para diante tende mais tento em vossos louvores e vitupérios e não digais mal dessa senhora
Tobosa, a quem eu não conheço senão para a servir, e tende esperança em Deus que não nos há-de
faltar um estado em que vivais como um Príncipe.
Sancho lá foi cabisbaixo pedir a mão ao amo, que a deu com serena gravidade, e deitando-lhe,
após o beija-mão, a sua benção. Depois disse-lhe que se desviasse com ele um pouco, porque
tinham de tratar coisas de muita importância. Adiantaram-se ambos, e disse o fidalgo:
— Desde que vieste, não tive ainda azo de te perguntar muitas particularidades acerca da embaixada
que levaste e das respostas que trouxeste; agora que a fortuna nos depara folga, não me negues o
gosto que me podes causar com tão boas novas.
— Pergunte Vossa Mercê o que lhe parecer — respondeu Sancho; — darei a tudo tão boa saída,
como foi boa a entrada que tive. O que lhe peço, senhor meu, é que daqui em diante não seja tão
vingativo.
— Por que dizes isso, Sancho? — perguntou D. Quixote.
— Digo isto — respondeu ele — porque estas bordoadas agora foram mais pela pendência que
entre os dois travou o diabo na outra noite, do que pelo que eu disse contra a minha senhora
Dulcinéia, a quem venero e amo como se fora relíquia só em razão dela ser coisa de Vossa Mercê.
— Não tornes a essas coisas, por vida tua — disse D. Quixote — que me afligem; da outra vez
perdoei-o, e bem sabes o que se costuma dizer: “pecado novo, penitência nova”.
Nisto iam, quando viram pelo seu caminho vir para eles um homem num jumento; aproximando-se
mais, deu-lhes ares de cigano. Porém Sancho Pança, que onde quer que via asno se lhe iam trás ele
os olhos e a alma, tanto como avistou o homem, conheceu logo ser Ginez de Passamonte; e de ele o
ser inferiu logo que a cavalgadura era o seu ruço. Era com efeito o ruço com o Passamonte às
costas, o qual, para não ser conhecido e vender o asno, vinha entrajado à cigana; o falar a essa moda
sabia ele, e muitas outras línguas, tão bem como a sua própria. Mal que Sancho o reconheceu,
começou a grandes vozes:
— Ah! ladrão Ginezilho, larga a minha joia, restitui-me a minha vida, não te deites a perder com o
meu alívio, larga o meu burro, larga o meu consolo, põe-te a pé, sevandija, retira-te, ladrão, e deixa
o que te não pertence!
Nem tantas palavras e injúrias eram necessárias; logo à primeira saltou Ginez, e tomando um trote
que mais parecia carreira, num momento desapareceu. Saltou Sancho aos abraços ao animal,
dizendo:
— Como tens passado, meu bem, menina dos meus olhos, meu ruço, meu companheiro fiel?
Beijava-o e acariciava-o como se fora gente. O asno deixava-se beijar e acarinhar, sem responder
meia palavra. Aproximaram-se todos, dando ao pobre homem os parabéns de ter achado o seu ruço,
especialmente D. Quixote. Este disse-lhe que nem por isso anulava a ordem dos três burricos, o que
Sancho muito agradeceu.
Enquanto os dois iam adiante nestas conversas, disse o cura a Dorotéia que tinha andado com
grande tino, tanto na invenção do conto, como na brevidade dele, e na semelhança que teve com os
dos livros de cavalaria. Ao que ela respondeu que muitas horas se havia entretido a lê-los; o que não
sabia bem era onde ficavam as províncias e portos de mar; por isso tinha dito à toa que havia
desembarcado em Ossuna.
— Bem percebi — volveu o cura — e por isso acudi logo a deitar aquele remendo; com o que tudo
ficou uma maravilha. Mas não acha extraordinária a facilidade com que este desventurado fidalgo
acredita em toda aquela mentirada, só por se conformar no estilo e jeito com as tolices dos seus
alfarrábios?
— É verdade — disse Cardênio — e tão rara, se não única, que eu por mim não sei se, querendo
inventá-la, teria talento para tanto.
— Ora coisa tem ele — disse o cura — que não admira menos: para fora das necedades, que nunca
se lhe acabam no tocante à sua mania, se lhe falam noutras matérias discorre perfeitamente, e
mostra uma razão clara, que dá gosto. Não lhe falem em cavalarias, que ninguém o terá senão por
homem de boa cabeça.
Enquanto iam nestas práticas, continuava também D. Quixote na sua com Sancho, dizendo:
— Palavras e penas, Sancho amigo, o vento as leva. Conta-me agora tu, sem medo a enfadamentos
meus nem a rigor algum, onde, como, e quando achaste Dulcinéia, que estava ela fazendo, que lhe
disseste, que te respondeu, com que cara leu a minha carta, quem a copiou, e tudo o mais que vires
neste caso ser digno de saber-se, sem acrescentares nem mentires nada para me dares gosto, nem
encurtares para comprazer-me.
— Pois, senhor — respondeu Sancho — verdade, verdade, a carta ninguém me copiou, porque eu
tal carta não levei.
— É certo — acudiu D. Quixote — porque o livro de lembranças, em que eu a escrevi, cá o achei
em meu poder dois dias depois da tua partida, o que me fez grandíssima pena, lembrando-me como
não ficarias às aranhas quando te visses sem ela; sempre esperei que tomasses atrás logo que desses
pela falta.
— Fazia-o decerto — respondeu Sancho — se não tivesse a carta de memória, de quando Vossa
Mercê me leu; de maneira que a disse a um sacristão, que me trasladou do entendimento tão
pontualmente, que disse que em todos os dias da sua vida (ainda que tinha lido muitas cartas de
descomunhão) nunca tinha lido uma lindeza como aquela.
— E ainda a tens de cor, Sancho? — perguntou D. Quixote.
— Não senhor — respondeu Sancho — porque, depois que a entreguei, como vi que já não prestava
para mais nada, dei em me esquecer dela; e, se alguma coisa ainda me lembra, é só aquele começo
da Soterrana, digo da Soberana senhora, e o final: Vosso até à morte, o Cavaleiro da Triste Figura,
e, entre estas duas coisas do princípio e do fim, embuti-lhe mais de trezentas vezes: minha alma,
minha vida, e olhos meus.
continua na página 186...
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Leia também:
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Prólogo
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo I
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo IX
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XV
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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVII
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D. QUIXOTE
VOL. I
Cervantes
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte
(1605)
Miguel de Cervantes [Saavedra]
(1547-1616)
Tradução:
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875)
Visconde de Castilho
Edição
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Versão para eBook
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Fonte Digital
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com
(1999, 2005)
Copyright
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho
António Feliciano de Castilho
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879)
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914)
Edição: 2005 eBooksBrasil.com