domingo, 22 de dezembro de 2024

D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XXX: Que trata da discrição da formosa Dorotéia

D. Quixote de la Mancha

Miguel de Cervantes

Vol 1

O Engenhoso Fidalgo 
D. Quixote de la Mancha 
Miguel de Cervantes


PRIMEIRA PARTE

LIVRO QUARTO

CAPÍTULO XXX

Que trata da discrição da formosa Dorotéia, com outras coisas de muito sabor e passatempo.


     Mal tinha acabado o cura, quando Sancho disse:

 — Pois afirmo-lhe eu, senhor licenciado, que o fazedor dessa façanha foi meu amo; e olhe que não foi por lhe eu não dizer a tempo que reparasse no que fazia, e que era pecado soltá-los, porque todos iam ali por grandíssimos tratantes. 
— Ó idiota — exclamou aqui D. Quixote — aos cavaleiros andantes não pertence averiguar se os afligidos, acorrentados e opressos, que se encontram pelas estradas, vão daquela maneira por suas culpas, ou por serem desgraçados; só lhes toca ajudá-los como necessitados que são, considerando-lhes as penas, e não as tratantadas. Encontro uma enfiada, um rosário de gente mofina; fiz nela o que a minha religião pedia, e saísse o que saísse; e a quem o desaprova (sem faltar ao respeito que devo ao senhor licenciado e à sua honrada pessoa) digo que sabe pouco dos contratempos da cavalaria, e que mente como um biltre e malcriado, e eu lhe farei conhecer com a minha espada, mais comprida e inteiramente.

     Estas palavras já as proferiu firmando-se nos estribos, e ajustando o murrião, porque a bacia de barbeiro, que pelas suas contas era o elmo de Mambrino, levava-a pendurada do arção dianteiro, para a mandar correger do mau tratamento que lhe deram os galeotes. 
     Dorotéia, que era discreta e lépida, sabedora já da aduela de menos de D. Quixote, e de que todos, afora Sancho Pança, judiavam com ele, não quis ficar atrás, e, vendo-o tão enojado, lhe disse:

— Senhor cavaleiro, recorde-se do que me prometeu; olhe que não pode intrometer-se em aventura nenhuma, por urgente que seja; serene-se, que, se o senhor licenciado soubera que o libertador dos galeotes fora esse braço invencível, daria três pontos na boca, e até mordera três vezes a língua, antes de ter dito palavra que redundasse em desdouro de Vossa Mercê. 
— Posso-lhe jurar — disse o cura — era mais fácil deixar cortar o bigode. 
— Já me calo, senhora minha — disse D. Quixote — e reprimo a justa cólera que me ia abrasando, e irei no meu sossego, até ter cumprido o que vos prometi. Agora em paga suplico-vos eu me digais, se vos não dá incômodo, qual é a vossa mágoa, e quantas, quem, e quais são as pessoas de quem vos hei-de dar devida e inteira vingança. 
— De muita boa vontade — respondeu Dorotéia — se porventura vos não enfada ouvir lamentos e desgraças. 
— Não enfada — respondeu D. Quixote — não enfada, senhora minha. 
— Sendo assim — disse Dorotéia — estejam Vossas Mercês atentos.  

     A estas palavras logo Cardênio e o barbeiro se lhe puseram ao lado, cobiçosos de ver como da sua história se saía a espertíssima donzela; e o mesmo fez Sancho, que não ia ali menos enganado que o amo. E ela, depois de se ter muito bem ajeitado na sela, preparando-se com tossir, e outras semelhantes cerimônias com muito chiste encetou assim a sua narrativa:

— Primeiramente quero que Vossas Mercês saibam, senhores meus, que a mim me chamam... 

     Aqui deteve-se um pouco, por se lhe ter varrido o nome que lhe pusera o cura. Este porém lhe acudiu no encalhe, dizendo:

— Não é maravilha, senhora minha, que Vossa Grandeza se perturbe no referir as suas desventuras; é próprio delas o tirarem muitas vezes a memória a quem as padece, a ponto de nem dos seus próprios nomes se lembrarem; é o que neste instante sucedeu a Vossa Grã-Senhoria, pois não lhe lembra que se chama a Senhora Princesa Micomicadela, herdeira legítima do grande reino Micomicão. Agora que já lhe fica apontado o caminho, pode Vossa Grandeza seguir sem empacho o que lhe aprouver dizer-nos. 
— Sim, senhor — disse a donzela — creio que daqui em diante já não será necessário recordar-me nada; espero chegar a porto de salvamento com a minha verdadeira história. Ora pois: El-Rei meu pai, que se chamava Tinácrio, o sábio, foi mui douto nisto que chamam arte mágica, e alcançou, pela sua ciência, que minha mãe que se chamava a Rainha Charamela, havia de morrer primeiro que ele, mas que ele também dali a pouco tempo havia de passar desta a melhor vida, ficando eu órfã de pai e mãe. Dizia ele, porém, que menos o consumia isso, do que o atormentava saber por coisa muito certa que um descomunal gigante, senhor duma grande ilha, que quase confronta com o nosso reino, chamado Pandafilando da vista fusca (porque há toda a certeza de que, apesar de ter os olhos no seu lugar, e direitos, sempre olha de revés como se fora vesgo, que ele faz por mau, e para meter medo e espanto à gente)... Sim; repito, que meu pai soube que o tal gigante, logo que lhe constasse a minha orfandade, havia de passar com grande quantia de gente sobre o meu reino, e tirar-mo todo, sem me deixar nem uma aldeia para me eu recolher, porém que todas estas inclemências se poderiam evitar, prontificando-me eu a casar com ele; mas que, segundo ele meu pai entendia, nunca eu estaria por tão desigual casamento. Neste particular foi profeta, porque nunca jamais pela idéia me passou casar-me com o tal gigante, nem com outro qualquer, fosse quem fosse. Mais disse meu pai e senhor que, se depois da sua morte eu visse que Pandafilando começava a entrar pelo meu reino, não perdesse tempo em preparos para me defender, que seria arruinar-me de todo, mas que espontaneamente lhe despejasse a terra, se queria escapar à morte, e à destruição total dos meus bons e fiéis vassalos, porque não havia de ser possível defender-me da endiabrada força do gigante, mas que tornasse logo com alguns dos meus caminho de Espanha, onde acharia remédio a meus males na pessoa dum cavaleiro andante, cuja fama a esse tempo encheria já todo o reino, e o qual se havia de chamar (se bem me lembra) D. Azote, ou D. Gigote... 
— Talvez dissesse D. Quixote — interrompeu Sancho Pança — ou por outro nome, o Cavaleiro da Triste Figura. 
— É verdade — disse Dorotéia — e ajuntou que esse tal cavaleiro seria alto de corpo, seco de rosto, e que no lado direito, debaixo do ombro esquerdo, ou por ali perto, havia de ter um sinal pardo com certos cabelos à maneira de sedas de porco.

     Ouvindo aquilo, disse D. Quixote ao escudeiro:

— Sancho filho, acode cá; ajuda-me a despir, que preciso ver se não sou o cavaleiro que aquele tão sábio monarca deixou profetizado. 
— Para que se quer Vossa Mercê despir? — disse Dorotéia. 
— Para ver se tenho o sinal indicado por vosso pai — respondeu D. Quixote. 
— Não é preciso que se dispa — acudiu Sancho — que eu sei que Vossa Mercê tem um sinal assim tal qual no meio do espinhaço, prova de ser homem esforçado. 
— Então basta isso — disse Dorotéia; — com os amigos não se cortam as unhas rentes; que seja no ombro, ou que seja no espinhaço, vem a dar na mesma. O caso é que haja o sinal, esteja onde estiver, pois é tudo a mesma carne. Meu pai acertou em tudo, e eu também acertei em me encomendar ao senhor D. Quixote, que este é o que meu pai disse. Os sinais do rosto concordam com os da boa fama que este cavaleiro tem, não só em Espanha, mas até em toda a Mancha; tanto assim, que apenas eu desembarquei em Ossuna, logo ouvi contar dele tantas façanhas, que me deu o coração uma pancada de que era o mesmo que eu vinha a buscar. 
— Como desembarcou Vossa Mercê em Ossuna, senhora minha — perguntou D. Quixote — se não é porto de mar?

     Apressou-se o cura antes que Dorotéia respondesse, e disse;

— Naturalmente quererá dizer a senhora Princesa que, depois que desembarcou em Málaga, a primeira parte em que achou novas de Vossa Mercê foi em Ossuna. 
— É isso mesmo — disse Dorotéia. 
— E diz muito bem — acrescentou logo o cura — mas queira Vossa Majestade prosseguir. 
— Prosseguir o quê? — replicou ela — Não há mais nada para diante. Tão boa foi a minha sorte em achar ao senhor D. Quixote, que já me conto por soberana senhora de todo o meu reino depois que ele, por sua cortesia e magnificência, me prometeu a mercê de vir comigo aonde quer que eu o leve, que não será a outra parte senão a pô-lo diante de Pandafilando da vista fusca, para dar cabo dele, e restituir-me o que tão contra razão me tem usurpado. Tudo isto se há-de realizar tal qual, que assim o deixou prognosticado Tinácrio, o sábio, meu bom pai, o qual também deixou dito em letras caldaicas ou gregas (que eu por mim não as sei ler) que se este cavaleiro da profecia, depois de ter degolado o gigante, quisesse casar comigo, eu me entregasse logo sem réplica alguma por sua legítima esposa, e lhe desse no mesmo ato a posse do meu reino e da minha pessoa. 
— Que te parece, Sancho amigo? — disse a este ponto D. Quixote — não ouves isto? não te dizia eu? vê se temos, ou não temos já reino que governar, e Rainha com quem casar? 
— Isso juro eu — respondeu Sancho; — só algum tolo é que não iria logo cortar o gasnete ao senhor Pandafilando para casar muito depressa com a senhora Princesa. Olha que peste! assim fossem as pulgas da minha cama. 

     Com estas palavras deu dois pinchos no ar em demonstração de gáudio, passou logo a tomar as rédeas à mula de Dorotéia, fazendo-lha parar, lançou-se de joelhos perante ela, suplicando-lhe que lhe desse as mãos para as beijar, em sinal de que a recebia por soberana e senhora sua. Quem haveria ali que pudesse ficar sério diante da loucura do amo e da simpleza do servo?
     Deu-lhe com efeito as mãos Dorotéia, e lhe prometeu fazê-lo grande do seu reino, logo que o céu lhe fosse tão propício, que lhe deixasse recobrar e gozar.
     Agradeceu-lhe Sancho tudo aquilo em termos tais, que em todos renovou a gargalhada.

— Aqui está, meus senhores — prosseguiu Dorotéia — a minha história; só me falta dizer-vos que de toda quanta gente do meu reino trouxe não me ficou vivo senão unicamente este barbadão escudeiro; tudo o mais se afogou num grande temporal que tivemos à vista do porto; ele e eu viemos em duas tábuas a terra como por milagre, que milagre de grande mistério tem sido o decurso de minha vida, como já tereis notado; e se em algum ponto andei sobeja ou curta demais na minha narrativa, queixai-vos do que logo ao princípio da minha fala ponderou o senhor licenciado: que os trabalhos contínuos e extraordinários desarranjam as ideias a quem os padece. 
— Tal me não há-de suceder a mim, alta e valorosa senhora — disse D. Quixote — por maiores trabalhos que eu passe em vos servir. Confirmo pois o que já vos prometi, e juro acompanhar-vos ao cabo do mundo, até me ver com o vosso cruel inimigo, a quem tenciono, com ajuda de Deus e do meu braço, decepar a cabeça soberba com os fios desta... não, quero dizer boa espada, graças a Ginez de Passamonte que me levou a minha. (Isto remordeu-o entre os dentes, e prosseguiu:) Depois de lhe ter decepado, e ter-vos sentado a vós na pacífica posse dos vossos estados, ficará a vosso arbítrio fazer da vossa pessoa o que mais vos apeteça, pois enquanto eu tiver ocupada a memória, cativa a vontade e perdido o entendimento por aquela... e não digo mais, não é possível que eu nem por pensamentos me arroste com a ideia de matrimoniar-me, nem que fosse com a ave Fênix.

     Este encarecimento de não querer casar-se destoou tanto a Sancho, como despropósito, que levantou de agastado a voz, dizendo:

— Juro e rejuro por vida minha que não tem Vossa Mercê, senhor D. Quixote, o juízo inteiro. Pois como é possível pôr Vossa Mercê em dúvida casar-se com tão alta Princesa como esta? pensa que a fortuna lhe há-de oferecer a cada canto uns acertos como este? é porventura mais formosa a minha senhora Dulcinéia? está na tinta; nem para lá caminha; estou até em dizer que nem chega aos calcanhares da que presente se acha. Assim lá se me vai pelos ares o meu Condado, se Vossa Mercê ateima a esperar hortaliça de sequeiro, ou apojadura de cabra velha. Case, case logo, ou que o leve o diabo, e aceite esse reino, que por si se lhe está metendo nas mãos; e, em sendo Rei, faça-me a mim Marquês ou Adiantado; tudo mais que o leve o diabo, se quiser.

     D. Quixote, que tais blasfêmias ouviu proferir contra a sua senhora Dulcinéia, não o pôde levar à paciência; e, levantando a chuça, sem proferir chus nem bus, nem “guarda de baixo”, apresentou duas bordoadas em Sancho, que pregou com ele em terra; e se não fora o começar Dorotéia a gritar que lhe não desse mais, sem dúvida lhe acabaria ali a vida.

— Pensais, vilão ruim — lhe disse passado pouco — que hei-de estar sempre para vos aturar, e que tudo há-de ser tu a despropositares, e eu a perdoar-te? pois não o cuides, maroto excomungado, que o és sem dúvida nenhuma, pois te atreveste a pôr língua na sem par Dulcinéia. Não sabeis vós, mariola, biltre, que, se não fosse pelo valor que ela infunde no meu braço, eu por mim nem matava uma pulga? Dizei-me, socarrão de língua viperina, quem julgais que foi o conquistador deste reino, e o que decepou a cabeça deste gigante, e vos fez a vós Marquês (que tudo isto o dou eu já como feito e processo findo), se não é o valor de Dulcinéia, fazendo de meu braço instrumento de suas façanhas? Ela peleja em mim, e vence em mim; eu vivo e respiro nela; nela tenho vida e ser. Filho da mãe, grande velhaco, como sois desagradecido, que vos vedes levantado do pó da terra, até senhor dum título, e a tão boa obra correspondeis com dizer mal de quem vo-la fez! 

     Não estava Sancho tão mortal, que não ouvisse o que o amo lhe dizia: levantando-se com certa presteza, foi pôr-se por trás do palafrém de Dorotéia, e dali respondeu:

— Diga-me, senhor; se Vossa Mercê está de pedra e cal em não casar com esta grande Princesa, claro está que o reino dela não há-de ser seu; não o sendo, que mercês me pode então fazer? Aqui está de que eu me queixo. Case-se Vossa Mercê aos olhos fechados com esta Rainha que para aí nos choveu do céu, depois, se quiser, pode-se amantilhar com a minha senhora Dulcinéia; Reis amancebados não devem ter faltado neste mundo. Lá nisso da formosura não me intrometo, que, a dizer a verdade, ambas me parecem bem, ainda que eu a senhora Dulcinéia nunca a vi. 
— Como nunca a viste, traidor blasfemo? — vociferou D. Ouixote — pois não acabas agora mesmo de me trazer um recado da sua parte? 
— O que eu digo é — respondeu Sancho — que a não vi tanto à minha vontade, que pudesse afirmar-me bem na sua formosura, ponto por ponto; mas assim no todo e em bruto, como diz o outro, pareceu-me bem. 
— Agora te desculpo; perdoa-me o enfado que te dei, que os primeiros movimentos não estão na mão da gente. 
— Bem sei — respondeu Sancho — e em mim a vontade de falar é sempre o primeiro movimento; o que me vem à boca não posso deixar de o dizer, ao menos uma vez. 
— Com tudo isso, Sancho — disse D. Quixote — repara bem como falas, porque tantas vezes vai o cântaro à fonte... e não te digo mais nada. 
— Pois bem — respondeu Sancho — Deus lá está em cima, e vê as coisas; ele é que sabe quem faz mal, se eu em não falar bem, ou Vossa Mercê em o obrar ao revés. 
— Basta já — disse Dorotéia; — correi, Sancho, e beijai a mão a vosso amo, pedi-lhe perdão, e daqui para diante tende mais tento em vossos louvores e vitupérios e não digais mal dessa senhora Tobosa, a quem eu não conheço senão para a servir, e tende esperança em Deus que não nos há-de faltar um estado em que vivais como um Príncipe.

     Sancho lá foi cabisbaixo pedir a mão ao amo, que a deu com serena gravidade, e deitando-lhe, após o beija-mão, a sua benção. Depois disse-lhe que se desviasse com ele um pouco, porque tinham de tratar coisas de muita importância. Adiantaram-se ambos, e disse o fidalgo:

— Desde que vieste, não tive ainda azo de te perguntar muitas particularidades acerca da embaixada que levaste e das respostas que trouxeste; agora que a fortuna nos depara folga, não me negues o gosto que me podes causar com tão boas novas. 
— Pergunte Vossa Mercê o que lhe parecer — respondeu Sancho; — darei a tudo tão boa saída, como foi boa a entrada que tive. O que lhe peço, senhor meu, é que daqui em diante não seja tão vingativo. 
— Por que dizes isso, Sancho? — perguntou D. Quixote. 
— Digo isto — respondeu ele — porque estas bordoadas agora foram mais pela pendência que entre os dois travou o diabo na outra noite, do que pelo que eu disse contra a minha senhora Dulcinéia, a quem venero e amo como se fora relíquia só em razão dela ser coisa de Vossa Mercê. 
— Não tornes a essas coisas, por vida tua — disse D. Quixote — que me afligem; da outra vez perdoei-o, e bem sabes o que se costuma dizer: “pecado novo, penitência nova”.

     Nisto iam, quando viram pelo seu caminho vir para eles um homem num jumento; aproximando-se mais, deu-lhes ares de cigano. Porém Sancho Pança, que onde quer que via asno se lhe iam trás ele os olhos e a alma, tanto como avistou o homem, conheceu logo ser Ginez de Passamonte; e de ele o ser inferiu logo que a cavalgadura era o seu ruço. Era com efeito o ruço com o Passamonte às costas, o qual, para não ser conhecido e vender o asno, vinha entrajado à cigana; o falar a essa moda sabia ele, e muitas outras línguas, tão bem como a sua própria. Mal que Sancho o reconheceu, começou a grandes vozes:

— Ah! ladrão Ginezilho, larga a minha joia, restitui-me a minha vida, não te deites a perder com o meu alívio, larga o meu burro, larga o meu consolo, põe-te a pé, sevandija, retira-te, ladrão, e deixa o que te não pertence! 

     Nem tantas palavras e injúrias eram necessárias; logo à primeira saltou Ginez, e tomando um trote que mais parecia carreira, num momento desapareceu. Saltou Sancho aos abraços ao animal, dizendo:

— Como tens passado, meu bem, menina dos meus olhos, meu ruço, meu companheiro fiel?

     Beijava-o e acariciava-o como se fora gente. O asno deixava-se beijar e acarinhar, sem responder meia palavra. Aproximaram-se todos, dando ao pobre homem os parabéns de ter achado o seu ruço, especialmente D. Quixote. Este disse-lhe que nem por isso anulava a ordem dos três burricos, o que Sancho muito agradeceu.
     Enquanto os dois iam adiante nestas conversas, disse o cura a Dorotéia que tinha andado com grande tino, tanto na invenção do conto, como na brevidade dele, e na semelhança que teve com os dos livros de cavalaria. Ao que ela respondeu que muitas horas se havia entretido a lê-los; o que não sabia bem era onde ficavam as províncias e portos de mar; por isso tinha dito à toa que havia desembarcado em Ossuna.

— Bem percebi — volveu o cura — e por isso acudi logo a deitar aquele remendo; com o que tudo ficou uma maravilha. Mas não acha extraordinária a facilidade com que este desventurado fidalgo acredita em toda aquela mentirada, só por se conformar no estilo e jeito com as tolices dos seus alfarrábios? 
— É verdade — disse Cardênio — e tão rara, se não única, que eu por mim não sei se, querendo inventá-la, teria talento para tanto. 
— Ora coisa tem ele — disse o cura — que não admira menos: para fora das necedades, que nunca se lhe acabam no tocante à sua mania, se lhe falam noutras matérias discorre perfeitamente, e mostra uma razão clara, que dá gosto. Não lhe falem em cavalarias, que ninguém o terá senão por homem de boa cabeça. 

     Enquanto iam nestas práticas, continuava também D. Quixote na sua com Sancho, dizendo:

— Palavras e penas, Sancho amigo, o vento as leva. Conta-me agora tu, sem medo a enfadamentos meus nem a rigor algum, onde, como, e quando achaste Dulcinéia, que estava ela fazendo, que lhe disseste, que te respondeu, com que cara leu a minha carta, quem a copiou, e tudo o mais que vires neste caso ser digno de saber-se, sem acrescentares nem mentires nada para me dares gosto, nem encurtares para comprazer-me. 
— Pois, senhor — respondeu Sancho — verdade, verdade, a carta ninguém me copiou, porque eu tal carta não levei. 
— É certo — acudiu D. Quixote — porque o livro de lembranças, em que eu a escrevi, cá o achei em meu poder dois dias depois da tua partida, o que me fez grandíssima pena, lembrando-me como não ficarias às aranhas quando te visses sem ela; sempre esperei que tomasses atrás logo que desses pela falta. 
— Fazia-o decerto — respondeu Sancho — se não tivesse a carta de memória, de quando Vossa Mercê me leu; de maneira que a disse a um sacristão, que me trasladou do entendimento tão pontualmente, que disse que em todos os dias da sua vida (ainda que tinha lido muitas cartas de descomunhão) nunca tinha lido uma lindeza como aquela. 
— E ainda a tens de cor, Sancho? — perguntou D. Quixote. 
— Não senhor — respondeu Sancho — porque, depois que a entreguei, como vi que já não prestava para mais nada, dei em me esquecer dela; e, se alguma coisa ainda me lembra, é só aquele começo da Soterrana, digo da Soberana senhora, e o final: Vosso até à morte, o Cavaleiro da Triste Figura, e, entre estas duas coisas do princípio e do fim, embuti-lhe mais de trezentas vezes: minha alma, minha vida, e olhos meus.

 continua na página 186...
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Leia também:

D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Prólogo
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo I
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo IX
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XXX
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D. QUIXOTE 
VOL. I 
Cervantes 
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte 
(1605) 
Miguel de Cervantes [Saavedra] 
(1547-1616)
Tradução: 
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo 
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) 
Visconde de Castilho
Edição 
eBooksBrasil www.ebooksbrasil.com 
Versão para eBook 
eBooksBrasil.com 
Fonte Digital 
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com 
(1999, 2005)
Copyright 
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes 
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho 
António Feliciano de Castilho 
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879) 
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914) 
Edição: 2005 eBooksBrasil.com

O Cortiço - XIX: o seu destino de enxotadas

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


XIX 
.

     Daí a dias, com efeito, a estalagem metia-se em obras. À desordem do desentulho do incêndio sucedia a do trabalho dos pedreiros; martelava-se ali de pela manhã até à noite, o que aliás não impedia que as lavadeiras continuassem a bater roupa e as engomadeiras reunissem ao barulho das ferramentas o choroso falsete das suas eternas cantigas.
     Os que ficaram sem casa foram aboletados a trouxe-mouxe por todos os cantos, à espera dos novos cômodos. Ninguém se mudou para o “Cabeça-de-Gato”.
     As obras principiaram pelo lado esquerdo do cortiço, o lado do Miranda; os antigos moradores tinham preferência e vantagens nos preços. Um dos italianos feridos morreu na Misericórdia e o outro, também lá, continuava ainda em risco de vida. Bruno recolhera-se à Ordem de que era irmão, e Leocádia, que não quis atender àquela carta escrita por Pombinha, resolveu-se a ir visitar o seu homem no hospital. Que alegrão para o infeliz a volta da mulher, aquela mulher levada dos diabos, mas de carne dura, a quem ele, apesar de tudo, queria muito. Com a visita reconciliaram-se, chorando ambos, e Leocádia decidiu tornar para o “São Romão” e viver de novo com o marido. Agora fazia-se muito séria e ameaçava com pancada a quem lhe propunha brejeirices.
     Piedade, essa e que se levantou das febres completamente transformada. Não parecia a mesma depois do abandono de Jerônimo; emagrecera em extremo, perdera as cores do rosto, ficara feia, triste e resmungona; mas não se queixava, e ninguém lhe ouvia falar no nome do esposo.
     Esses meses, durante as obras, foram uma época especial para a estalagem. O cortiço não dava ideia do seu antigo caráter, tão acentuado e, no entanto, tão misto: aquilo agora parecia uma grande oficina improvisada, um arsenal, em cujo fragor a gente só se entende por sinais. As lavadeiras fugiram para o capinzal dos fundos, porque o pó da terra e da madeira sujava-lhes a roupa lavada. Mas, dentro de pouco tempo, estava tudo pronto; e, com imenso pasmo, viram que a venda, a sebosa bodega, onde João Romão se fez gente, ia também entrar em obras. O vendeiro resolvera aproveitar dela somente algumas das paredes, que eram de um metro de largura, talhadas à portuguesa; abriria as portas em arco, suspenderia o teto e levantaria um sobrado, mais alto que o do Miranda e, com toda a certeza, mais vistoso. Prédio para meter o do outro no chinelo; quatro janelas de frente, oito de lado, com um terraço ao fundo. O lugar em que ele dormia com Bertoleza, a cozinha e a casa de pasto seriam abobadadas, formando, com a parte de taverna, um grande armazém, em que o seu comércio iria fortalecer-se e alargar-se.
     O Barão e o Botelho apareciam por lá quase todos os dias, ambos muito interessados pela prosperidade do vizinho; examinavam os materiais escolhidos para a construção, batiam com a biqueira do chapéu de sol no pinho de Riga destinado ao assoalho, e afetando-se bons entendedores, tomavam na palma da mão e esfarelavam entre os dedos um punhado da terra e da cal com que os operários faziam barro. Às vezes chegavam a ralhar com os trabalhadores, quando lhes parecia que não iam bem no serviço! João Romão, agora sempre de paletó, engravatado, calças brancas, colete e corrente de relógio, já não parava na venda, e só acompanhava as obras na folga das ocupações da rua. Principiava a tomar tino no jogo da Bolsa; comia em hotéis caros e bebia cerveja em larga camaradagem com capitalistas nos cafés do comércio.
     E a crioula? Como havia de ser?
     Era isto justamente o que, tanto o Barão como o Botelho, morriam por que lhe dissessem. Sim, porque aquela boa casa que se estava fazendo, e os ricos móveis encomendados, e mais as pratas e as porcelanas que haviam de vir, não seriam decerto para os beiços da negra velha! Conservá-la-ia como criada? Impossível! Todo Botafogo sabia que eles até ai fizeram vida comum!
     Todavia, tanto o Miranda, como o outro, não se animavam a abrir o bico a esse respeito com o vizinho e contentavam-se em boquejar entre si misteriosamente, palpitando ambos por ver a saída que o vendeiro acharia para semelhante situação.
     Maldita preta dos diabos! Era ela o único defeito, o senão de um homem tão importante e tão digno!

- Agora, não se passava um domingo sem que o amigo de Bertoleza fosse jantar à casa do Miranda. Iam juntos ao teatro. João Romão dava o braço à Zulmira, e, procurando galanteá-la e mais ao resto da família, desfazia-se em obséquios brutais e dispendiosos, com uma franqueza exagerada que não olhava gastos. Se tinham de tomar alguma coisa, ele fazia vir logo três, quatro garrafas ao mesmo tempo, pedindo sempre o triplo do necessário e acumulando compras inúteis de doces, flores e tudo o que aparecia. Nos leilões das festas de arraial era tão feroz a sua febre de obsequiar a gente do Miranda, que nunca voltava para casa sem um homem atrás, carregado com os mimos que o vendeiro arrematava.

     E Bertoleza bem que compreendia tudo isso e bem que estranhava a transformação do amigo. Ele ultimamente mal se chegava para ela e, quando o fazia, era com tal repugnância, que antes não o fizesse. A desgraçada muita vez sentia-lhe cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes estrangeiras e chorava em segredo, sem animo de reclamar os seus direitos. Na sua obscura condição de animal de trabalho, já não era amor o que a mísera desejava, era somente confiança no amparo da sua velhice quando de todo lhe faltassem as forças para ganhar a vida. E contentava-se em suspirar no meio de grandes silêncios durante o serviço de todo o dia, covarde e resignada, como seus pais que a deixaram nascer e crescer no cativeiro. Escondia-se de todos, mesmo da gentalha do frege e da estalagem, envergonhada de si própria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste de sentir-se a mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e clara.
     E, no entanto, adorava o amigo; tinha por ele o fanatismo irracional das caboclas do Amazonas pelo branco a que se escravizam, dessas que morrem de ciúmes, mas que também são capazes de matar-se para poupar ao seu ídolo a vergonha do seu amor. O que custava aquele homem consentir que ela, uma vez por outra, se chegasse para junto dele? Todo o dono, nos momentos de bom humor, afaga o seu cão... Mas qual! o destino de Bertoleza fazia-se cada vez mais estrito e mais sombrio; pouco a pouco deixara totalmente de ser a amante do vendeiro, para ficar sendo só uma sua escrava. Como sempre, era a primeira a erguer-se e a ultima a deitar-se; de manhã escamando peixe, à noite vendendo-o à porta, para descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante, com o coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham à luz. Afinal, convencendo-se de que ela, sem ter ainda morrido, já não vivia para ninguém, nem tampouco para si, desabou num fundo entorpecimento apático, estagnado como um charco podre que causa nojo. Fizera-se áspera, desconfiada, sobrolho carrancudo, uma linha dura de um canto ao outro da boca. E durante dias inteiros, sem interromper o serviço, que ela fazia agora automaticamente, por um hábito de muitos anos, gesticulava e mexia com os lábios, monologando sem pronunciar as palavras. Parecia indiferente a tudo, a tudo que a cercava.
     Não obstante, certo dia em que João Romão conversou muito com Botelho, as lágrimas saltaram dos olhos da infeliz, e ela teve de abandonar a obrigação, porque o pranto e os soluços não lhe deixavam fazer nada.
     Botelho havia dito ao vendeiro:

- Faça o pedido! É ocasião. 
- Hein? 
- Pode pedir a mão da pequena. Está tudo pronto! 
- O Barão dá-ma? 
- Dá. 
- Tem certeza disso? 
- Ora! se não tivesse não lho diria deste modo! 
- Ele prometeu? 
- Falei-lhe; fiz-lhe o pedido em seu nome. Disse que estava autorizado por você. Fiz mal? 
- Mal? Fez muito bem. Creio até que não é preciso mais nada! 
- Não, se o Miranda não vier logo ao seu encontro é bom você lhe falar, compreende? 
- Ou escrever. 
- Também! 
- E a menina? 
- Respondo por ela. Você não tem continuado a receber as flores? 
- Tenho. 
- Pois então não deixe pelo seu lado de ir mandando também as suas e faça o que lhe disse. Atire-se, seu João, atire-se enquanto o angu está quente! 

     Por outro lado, Jerônimo empregara-se na pedreira de São Diogo, onde trabalhava dantes, e morava agora com a Rita numa estalagem da Cidade Nova.
     Tiveram de fazer muita despesa para se instalarem; foi-lhes preciso comprar de novo todos os arranjos de casa, porque do “São Romão” Jerônimo só levou dinheiro, dinheiro que ele já não sabia poupar. Com o asseio da mulata a sua casinha ficou, todavia, que era um regalo; tinham cortinado na cama, lençóis de linho, fronhas de renda, muita roupa branca, para mudar todos os dias, toalhas de mesa, guardanapos; comiam em pratos de porcelana e usavam sabonetes finos. Plantaram à porta uma trepadeira que subia para o telhado, abrindo pela manhã flores escarlates, de que as abelhas gostavam muito; penduraram gaiolas de passarinho na sala de jantar; sortiram a despensa de tudo que mais gostavam; compraram galinhas e marrecos e fizeram um banheiro só para eles, porque o da estalagem repugnou à baiana que, nesse ponto, era muito escrupulosa.
     A primeira parte da sua lua-de-mel foi uma cadeia de delicias continuas; tanto ele como ela, pouco ou nada trabalharam; a vida dos dois resumira-se, quase que exclusivamente, nos oitos palmos de colchão novo, que nunca chegava a esfriar de todo. Jamais a existência pareceu tão boa e corredia para o português; aqueles primeiros dias fugiram-lhe como estrofes seguidas de uma deliciosa canção de amor, apenas espacejada pelo estribilho dos beijos em dueto; foi um prazer prolongado e amplo, bebido sem respirar, sem abrir os olhos, naquele colo carnudo e dourado da mulata, a que o cavouqueiro se abandonara como um bêbedo que adormece abraçado a um garrafão inesgotável de vinho gostoso.
     Estava completamente mudado. Rita apagara-lhe a última réstia das recordações da pátria; secou, ao calor dos seus lábios grossos e vermelhos, a derradeira lágrima de saudade, que o desterrado lançou do coração com o extremo arpejo que a sua guitarra suspirou.
     A guitarra! substituiu-a ela pelo violão baiano, e deu-lhe a ele uma rede, um cachimbo, e embebedou-lhe os sonhos de amante prostrado com as suas cantigas do norte, tristes, deleitosas, em que há caboclinhos curupiras, que no sertão vêm pitar à beira das estradas em noites de lua clara, e querem que todo o viajante que vai passando lhes ceda fumo e cachaça, sem o que, ai deles! o curupira transforma-os em bicho-do-mato. E deu-lhe do seu comer da Bahia, temperado com fogoso azeite-de-dendê, cor de brasa; deu-lhe das suas muquecas escandescentes, de fazer chorar, e habituou-lhe a carne ao cheiro sensual daquele seu corpo de cobra, lavado três vezes ao dia e três vezes perfumado com ervas aromáticas.
     O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só ela, e mais ninguém.
     A morte do Firmo não vinha nunca a toldar-lhes o gozo da vida; quer ele, quer a amiga, achavam a coisa muito natural. “O facínora matara tanta gente; fizera tanta maldade; devia, pois, acabar como acabou! Nada mais justo! Se não fosse Jerônimo, seria outro! Ele assim o quis- bem feito!”
     Por esse tempo, Piedade de Jesus, sem se conformar com a ausência do marido, chorava o seu abandono e ia também agora se transformando de dia para dia, vencida por um desmazelo de chumbo, uma dura desesperança, a que nem as lágrimas bastavam para adoçar as agruras. A principio, ainda a pobre de Cristo tentou resistir com coragem àquela viuvez pior que essa outra, em que há, para elemento de resignação, a certeza de que a pessoa amada nunca mais terá olhos para cobiçar mulheres, nem boca para pedir amores; mas depois começou a afundar sem resistência na lama do seu desgosto, covardemente, sem forcas para iludir-se com uma esperança fátua, abandonando-se ao abandono, desistindo dos seus princípios, do seu próprio caráter, sem se ter já neste mundo na conta de alguma coisa e continuando a viver somente porque a vida era teimosa e não queria deixá-la ir apodrecer lá embaixo, por uma vez. Deu para desleixar-se no serviço; as suas freguesas de roupa começaram a reclamar; foi-lhe fugindo o trabalho pouco a pouco; fez-se madraça e moleirona, precisando já empregar grande esforço para não bulir nas economias que Jerônimo lhe deixara, porque isso devia ser para a filha, aquela pobrezita orfanada antes da morte dos pais.
     Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dores de cabeça, zoada nos ouvidos e o estômago embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um trago de parati. Ela aceitou o conselho e passou melhor. No dia seguinte repetiu a dose; deu-se bem com a perturbação em que a punha o álcool, esquecia-se um pouco durante algum tempo das amofinações da sua vida; e, gole a gole, habituara-se a beber todos os dias o seu meio martelo de aguardente, para enganar os pesares.
     Agora, que o marido já não estava ali para impedir que a filha pusesse os pés no cortiço, e agora que Piedade precisava de consolo, a pequena ia passar os domingos com ela. Saíra uma criança forte e bonita; puxara do pai o vigor físico e da mãe a expressão bondosa da fisionomia. Já tinha nove anos. Eram esses agora os únicos bons momentos da pobre mulher, esses que ela passava ao lado da filha. Os antigos moradores da estalagem principiavam a distinguir a menina com a mesma predileção com que amavam Pombinha, porque em toda aquela gente havia uma necessidade moral de eleger para mimoso da sua ternura um entezinho delicado e superior, a que eles privilegiavam respeitosamente, como súditos a um príncipe. Crismaram-na logo com o cognome de “Senhorinha”.
     Piedade, apesar do procedimento do marido, ainda no intimo se impressionava com a idéia de que não devia contrariá-lo nas suas disposições de pai. “Mas que mal tinha que a pequena fosse ali? Era uma esmola que fazia à mãe! Lá pelo risco de perder-se... Ora adeus, só se perdia quem mesmo já nascera para a perdição! A outra não se conservara sã e pura? não achara noivo? não casara e não vivia dignamente com o seu marido? Então?!” E Senhorinha continuou a ir à estalagem, a principio nos domingos pela manhã, para voltar à tarde, depois já de véspera, nos sábados, para só tornar ao colégio na segunda-feira.
     Jerônimo ao saber disto, por intermédio da professora, revoltou-se no primeiro ímpeto, mas, pensando bem no caso, achou que era justo deixar à mulher aquele consolo. “Coitada! devia viver bem aborrecida da sorte!” Tinha ainda por ela um sentimento compassivo, em que a melhor parte nascera com o remorso. “Era justo, era! que a pequena aos domingos e dias santos lhe fizesse companhia!” E então, para ver a filha, tinha que ir ao colégio nos dias de semana. Quase sempre levava-lhe presentes de doce, frutas, e perguntava-lhe se precisava de roupa ou de calçado. Mas, um belo dia, apresentou-se tão ébrio, que a diretora lhe negou a entrada. Desde essa ocasião, Jerônimo teve vergonha de lá voltar, e as suas visitas à filha tornaram-se muito raras.
    Tempos depois, Senhorinha entregou à mãe uma conta de seis meses da pensão do colégio, com uma carta em que a diretora negava-se a conservar a menina, no caso que não liquidassem prontamente a divida. Piedade levou as mãos à cabeça: “Pois o homem já nem o ensino da pequena queria dar?! Que lhe valesse Deus! onde iria ela fazer dinheiro para educar a filha?! “
     Foi à procura do marido; já sabia onde ele morava. Jerônimo recusou-se, por vexame; mandou dizer que não estava em casa. Ela insistiu; declarou que não arredaria dali sem lhe falar; disse em voz bem alta que não ia lá por ele, mas pela filha, que estava arriscada a ser expulsa do colégio; ia para saber que destino lhe havia de dar, porque agora a pequena estava muito taluda para ser enjeitada na roda! Jerônimo apareceu afinal, com um ar triste de vicioso envergonhado que não tem animo de deixar o vicio. A mulher, ao vê-lo, perdeu logo toda a energia com que chegara e comoveu-se tanto, que as lágrimas lhe saltaram dos olhos às primeiras palavras que lhe dirigiu. E ele abaixou os seus e fez-se lívido defronte daquela figura avelhantada, de peles vazias, de cabelos sujos e encanecidos. Não lhe parecia a mesma! Como estava mudada! E tratou-a com brandura, quase a pedir-lhe perdão, a voz muito espremida no aperto da garganta.

- Minha pobre velha... balbuciou, pousando-lhe a mão larga na cabeça.

     E os dois emudeceram um defronte do outro, arquejantes. Piedade sentiu ânsias de atirar-se-lhe nos braços, possuída de imprevista ternura com aquele simples afago do seu homem. Um súbito raio de esperança iluminou-a toda por dentro, dissolvendo de relance os negrumes acumulados ultimamente no seu coração. Contava não ouvir ali senão palavras duras e ásperas, ser talvez repelida grosseiramente, insultada pela outra e coberta de ridículo pelos novos companheiros do marido; mas, ao encontrá-lo também triste e desgostoso, sua alma prostrou-se reconhecida; e, assim que Jerônimo, cujas lágrimas corriam já silenciosamente, deixou que a sua mão fosse descendo da cabeça ao ombro e depois à cintura da esposa, ela desabou, escondendo o rosto contra o peito dele, numa explosão de soluços que lhe faziam vibrar o corpo inteiro.
     Por algum tempo choraram ambos abraçados.

- Consola-te! que queres tu?... São desgraças!... disse o cavouqueiro afinal, limpando os olhos. Foi como se eu te tivesse morrido... mas podes ficar certa de que te estimo e nunca te quis mal!... Volta para casa; eu irei pagar o colégio de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vai, e pede a Deus Nosso Senhor que me perdoe os desgostos que te tenho eu dado!

     E acompanhou-a até o portão da estalagem.
     Ela, sem poder pronunciar palavra, saiu cabisbaixa, a enxugar os olhos no xale de lã, sacudida ainda de vez em quando por um soluço retardado.
     Entretanto, Jerônimo não mandou saldar a conta do colégio, no dia seguinte, nem no outro, nem durante todo o resto do mês; e ele, coitado! bem que se mortificou por isso; mas onde ia buscar dinheiro naquela ocasião? o seu trabalho mal lhe dava agora para viver junto com a mulata; estava já alcançado nos seus ordenados e devia ao padeiro e ao homem da venda. Rita era desperdiçada e amiga de gastar à larga; não podia passar sem uns tantos regalos de barriga e gostava de fazer presentes. Ele, receoso de contrariá-la e quebrar o ovo da sua paz, até ai tão completo com respeito à baiana, subordinava-se calado e afetando até satisfação; no intimo, porém, o infeliz sofria deveras. A lembrança constante da filha e da mulher apoquentava-o com pontas de remorso, que dia a dia alastravam na sua consciência, à proporção que esta ia acordando daquela cegueira. O desgraçado sentia e compreendia perfeitamente todo o mal da sua conduta; mas só a ideia de separar-se da amante punha-lhe logo o sangue doido e apagava-se-lhe de novo a luz dos raciocínios. “Não! não!! tudo que quisessem, menos isso!”
     E então, para fugir àquela voz irrefutável, que estava sempre a serrazinar dentro dele, bebia em camaradagem com os companheiros e habituara-se, dentro em pouco, à embriaguez. Quando Piedade, quinze dias depois da sua primeira visita, tornou lá, um domingo, acompanhada pela filha, encontrou-o bêbedo, numa roda de amigos.
     Jerônimo recebeu-as com grande escarcéu de alegria. Fê-las entrar. Beijou a pequena repetidas vezes e suspendeu-a pela cintura, soltando exclamações de entusiasmo.
     Com um milhão de raios! que linda estava a sua morgadinha!
     Obrigou-as logo a tomar alguma coisa e foi chamar a mulata; queria que as duas mulheres fizessem as pazes no mesmo instante. Era questão decidida!
     Houve uma cena de constrangimentos, quando a portuguesa se viu defronte da baiana.

- Vamos! vamos! Abracem-se! Acabem com isso por uma vez! bradava Jerônimo, a empurrá-las uma contra a outra. Não quero aqui caras fechadas!
 
     As duas trocaram um aperto de mão, sem se fitarem. Piedade estava escarlate de vergonha.

- Ora muito bem! acrescentou o cavouqueiro. Agora para a coisa ser completa, hão de jantar conosco!

     A portuguesa opôs-se, resmungando desculpas, que o cavouqueiro não aceitou.

- Não as deixo sair! É boa! Pois hei de deixar ir minha filha sem matar as saudades?

     Piedade assentou-se a um canto, impaciente pela ocasião de entender-se com o marido sobre o negócio do colégio. Rita, volúvel como toda a mestiça, não guardava rancores, e, pois, desfez-se em obséquios com a família do amigo. As outras visitas saíram antes do jantar.
     Puseram-se à mesa às quatro horas e principiaram a comer com boa disposição, carregando no virgem logo desde a sopa. Senhorinha destacava-se do grupo; na sua timidez de menina de colégio parecia, entre aquela gente, triste e assustada ao mesmo tempo. O pai acabrunhava-a com as suas solicitudes brutais e com as suas perguntas sobre os estudos. À exceção dela, todos os outros estavam, antes da sobremesa, mais ou menos chumbados pelo vinho. Jerônimo, esse estava de todo. Piedade, instigada por ele, esvaziara frequentes vezes o seu copo e, ao fim do jantar, dera para queixar-se amargamente da vida; foi então que ela, já com azedume na voz, falou na divida do colégio e nas ameaças da diretora.

- Ora, filha! disse-lhe o cavouqueiro. Agora estás tu também para com essa mastigação! Deixa as tristezas para outra vez! Não nos amargures o jantar! 
- Triste sorte a minha! 
- Ai, ai! que temos lamúria! 
- Como não me hei de queixar, se tudo me corre mal?! 
- Sim! Pois se é para isso que aqui vens, melhor será não tornares cá!... resmungou Jerônimo, franzindo o sobrolho. Que diabo! com choradeiras nada se endireita! Tenho eu culpa de que sejas infeliz?... Também o sou e não me queixo de Deus!

     Piedade abriu a soluçar.

- Aí temos! berrou o marido, erguendo-se e dando urna punhada forte sobre a mesa. E aturem-na! Por mais que um homem se não queira zangar, há de estourar por força! Ora bolas!

     Senhorinha correu para junto do pai, procurando contê-lo.

- Sebo! berrou ele, desviando-a. Sempre a mesma coisa! Pois não estou disposto a aturar isto! Arre! 
- Eu não vim cá por passeio!... prosseguiu Piedade entre lágrimas!. Vim cá para saber da conta do colégio!... 
- Pague-a você, que tem lá o dinheiro que lhe deixei! Eu é que não tenho nenhum! 
- Ah! então com que não pagas?! 
- Não! Com um milhão de raios! 
- É que és muito pior do que eu supunha! 
- Sim, hein?! Pois então deixe-me cá com toda a minha ruindade e despache o beco! Despache-o, antes que eu faça alguma asneira! 
- Minha pobre filha! Quem olhará por ela, Senhor dos Aflitos?! 
- A pequena já não precisa de colégio! deixe-a cá comigo, que nada lhe faltará! 
- Separar-me de minha filha? a única pessoa que me resta?! 
- Ó mulher! você não está separada dela a semana inteira?... Pois a pequena, em vez de ficar no colégio, fica aqui, e aos domingos irá vê-la. Ora aí tem! 
- Eu quero antes ficar com minha mãe!... balbuciou a menina, abraçando-se a Piedade. 
- Ah! também tu, ingrata, já me fazes guerra?! Pois vão com todos os diabos! e não me tornem cá para me ferver o sangue, que já tenho de sobra com que arreliar-me! 
- Vamos daqui! gritou a portuguesa, travando da filha pelo braço. Maldita a hora em que vim cá!

     E as duas, mãe e filha, desapareceram; enquanto Jerônimo, passeando de um para outro lado, monologava, furioso sob a fermentação do vinho.
     Rita não se metera na contenda, nem se mostrara a favor de nenhuma das partes. “O homem, se quisesse voltar para junto da mulher, que voltasse! Ela não o prenderia, porque amor não era obrigado!”
     Depois de falar só por muito espaço, o cavouqueiro atirou-se a uma cadeira, despejou sombrio dois dedos de laranjinha num copo e bebeu-os de um trago.

- Arre! Assim também não!

     A mulata então aproximou-se dele, por detrás; segurou-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-o na boca, arredando com os lábios a espessura dos bigodes.
     Jerônimo voltou-se para a amante, tomou-a pelos quadris e assentou-a em cheio sobre as suas coxas.

- Não te rales, meu bem! disse ela, afagando-lhe os cabelos. Já passou!
- Tens razão! besta fui eu em deixá-la pôr pé cá dentro de casa!

     E abraçaram-se com ímpeto, como se o breve tempo roubado pelas visitas fosse uma interrupção nos seus amores.
     Lá fora, junto ao portão da estalagem, Piedade, com o rosto escondido no ombro da filha, esperava que as lágrimas cedessem um pouco, para as duas seguirem o seu destino de enxotadas.

Continua página 113...
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Leia também:

O Cortiço - XIX: o seu destino de enxotadas
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   Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
   Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
   Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
   A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
   Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
   Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Tendo-se dispersado os fiéis - d)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust


um amor de swann


III(d) 


     Tendo-se dispersado os fiéis, sentiu o doutor que a ocasião era propícia; enquanto a sra. Verdurin dizia uma última frase sobre a sonata de Vinteuil, ele, como um nadador principiante que se atira à água para aprender, mas escolhe um momento em que não haja muita gente a vê-lo, exclamou com brusca resolução: 

— Então é o que se chama um músico di primo cartello!  

     Swann apenas se inteirou de que o recente aparecimento da sonata de Vinteuil causava grande impressão numa escola de tendências muito avançadas, mas era completamente desconhecida do grande público.

— É verdade que conheço alguém que se chama Vinteuil — disse Swann, pensando no professor de piano das irmãs de minha avó. 
— Talvez seja ele — exclamou a sra. Verdurin. 
— Oh!, não — respondeu Swann, a rir. — Se o tivesse visto dois minutos, a senhora não formularia a questão. 
— Então formular a questão é resolvê-la? — disse o doutor. 
— Mas poderia ser um parente — tornou Swann —, o que seria triste, mas enfim um homem de gênio bem pode ser primo de um velho animal. Se assim fosse, confesso que não fugiria a nenhum suplício para que o velho animal me apresentasse ao autor da sonata: antes de tudo, o suplício de frequentar o velho animal, que deve ser atroz.[1] 

     O pintor sabia que Vinteuil estava naquele momento muito doente e que o dr. Potain receava não poder salvá-lo.

— Como! — exclamou a sra. Verdurin. — Ainda há gente que manda chamar Potain?[2]
— Ah!, senhora Verdurin — disse Cottard, num tom de afetada discrição —, esquece-se de que fala de um de meus confrades, de um de meus mestres, deveria eu dizer.

     O pintor ouvira dizer que Vinteuil estava ameaçado de alienação mental. E acrescentava que a gente o podia perceber em certas passagens da sua sonata. A Swann não pareceu absurda a observação, mas perturbou-o muito; pois, como uma obra de música pura não contém nenhuma dessas relações lógicas cuja alteração na linguagem denuncia a loucura, a loucura reconhecida numa sonata lhe parecia algo de tão misterioso como a loucura de uma cachorra, a loucura de um cavalo, que no entanto se observam realmente.[3]

— Não me venha com os seus mestres! O senhor sabe dez vezes mais do que ele — respondeu a sra. Verdurin ao dr. Cottard, no tom de uma pessoa que tem a coragem das suas opiniões e enfrenta bravamente os que lhe são contrários. 
— O senhor ao menos não mata os seus doentes! 
— Mas, minha senhora, ele é da Academia — replicou o doutor com ar irônico. — Se um doente prefere morrer por mão de um dos príncipes da ciência… É muito mais chique poder dizer: “É Potain quem me está tratando”. 
— Ah, é mais chique? — disse a sra. Verdurin. — Com que então agora há chiquismo nas doenças? Eu não sabia… Como o senhor é divertido! — exclamou de súbito, mergulhando o rosto nas mãos. — E eu tão tola que estava a discutir seriamente, sem notar que engolira a pílula. 

     Quanto ao sr. Verdurin, achando um tanto cansativo pôr-se a rir por tão pouco, limitou-se a tirar uma baforada do cachimbo, pensando com tristeza que jamais poderia igualar-se à mulher no terreno da amabilidade.

— Sabe que o seu amigo nos agradou muito? — disse a sra. Verdurin a Odette no momento em que esta se despedia. — É simples, encantador; se você sempre tiver de nos apresentar amigos como esse, pode trazê-los à vontade.

     O sr. Verdurin observou que no entanto Swann não havia apreciado a tia do pianista.

— O homem sentiu-se um pouco desambientado — respondeu a sra. Verdurin. — Não hás de querer que ele já tenha o tom da casa, como Cottard, que faz parte de nosso clã há vários anos. A primeira vez não conta, é para pegar a embocadura. Odette, combinamos com ele um encontro amanhã, no Châtelet.[4] E se você fosse buscá-lo em casa? 
— Não, ele não quer. 
— Bem!, como queira… Contanto que ele não vá desertar no último momento!

     Com grande surpresa da sra. Verdurin, Swann jamais desertou. Ia encontrá-los em qualquer parte, às vezes nos restaurantes de arrabalde, ainda pouco frequentados, pois não era época, e mais seguido no teatro, de que a sra. Verdurin gostava muito; e como um dia dissera diante dele que, para os espetáculos de estreia, de gala, lhes seria muito útil um passe livre para o seu carro e que muito lhes aborrecera não o terem no dia do enterro de Gambetta,[5] Swann, que nunca falava das suas relações brilhantes, mas apenas das mal cotadas, que julgaria pouco delicado ocultar e em cujo número adquirira o hábito, no bairro de Saint-Germain, de incluir as relações com o mundo oficial, respondeu:

— Vou tratar disso, prometo, tê-lo-ão a tempo para a reprise dos Danichef ;[6] precisamente amanhã almoço com o chefe de polícia no palácio dos Campos Elísios. 
— Como? Nos Campos Elísios?! — bradou o dr. Cottard. 
— Sim, na residência do senhor Grévy[7] — respondeu Swann, um pouco embaraçado com o efeito que sua frase causara.

     E o pintor disse ao médico, à guisa de gracejo:

— Isso lhe dá muito seguido?

     Geralmente, uma vez dadas as explicações, Cottard dizia: “Ah!, bem, bem, está certo”, e não mais dava mostras de emoção. Mas, desta vez, as últimas palavras de Swann, em vez de lhe trazerem o apaziguamento habitual, levaram ao cúmulo o seu espanto de que um homem com quem ele estava jantando, que não tinha nem funções oficiais nem distinções de nenhuma espécie, privasse com o chefe do Estado.

— Como, o senhor Grévy? Conhece o senhor Grévy? — disse ele a Swann com o ar estúpido e incrédulo de um guarda municipal a quem um desconhecido pede para falar com o presidente da República e que, compreendendo por essas palavras “o que tem em mãos”, assegura ao pobre louco que será imediatamente recebido e o encaminha à enfermaria especial da Detenção. 
— Eu o conheço um pouco, temos amigos em comum (não ousou dizer que se tratava do príncipe de Gales); de resto, ele convida com muita facilidade e asseguro-lhe que esses almoços nada têm de divertido; são muito simples aliás, nunca há mais de oito à mesa — respondeu Swann, que procurava atenuar o que as relações com o presidente da República pudessem apresentar de demasiado ofuscante para o seu interlocutor. 

     E logo Cottard, baseando-se nas palavras de Swann, adotou a opinião a respeito dos convites do sr. Grévy, de que eram coisa muito pouco procurada e que andava por aí aos pontapés. Desde então, não mais se espantou de que Swann, bem como qualquer outro, frequentasse os Campos Elísios, e até o lamentava um pouco por ir a almoços que o próprio convidado confessava serem aborrecidos.

— Bem, bem, está certo — disse ele no tom de um guarda aduaneiro, suspeitoso ainda há pouco, mas que, depois de ouvir as explicações, dá o seu visto e deixa-nos passar sem abrir as nossas malas. 
— Ah! Bem creio que não devam ser divertidos esses almoços, e o senhor tem muita coragem em comparecer — disse a sra. Verdurin, a quem o presidente da República se afigurava um “maçante” particularmente temível porque dispunha de meios de sedução e de coação que, empregados em relação aos fiéis, seriam capazes de fazê-los desertar. — Parece que ele é surdo como uma porta e que come com os dedos. 
— Com efeito, o senhor não deve divertir-se muito por lá — disse o doutor, com uma sombra de comiseração; e, lembrando-se do número de oito convivas: — São almoços íntimos, não? — indagou vivamente, mais por zelo de linguista do que por curiosidade de basbaque. 

     Mas o prestígio que tinha a seus olhos o presidente da República acabou triunfando da humildade de Swann e da malemolência da sra. Verdurin, e a cada jantar Cottard perguntava com interesse: “Veremos esta noite o senhor Swann? Ele tem relações pessoais com o senhor Grévy. É mesmo o que se chama um gentleman, não?”. Chegou até a oferecer-lhe um convite para a Exposição Odontológica.

— O senhor será admitido com as pessoas com quem estiver, mas não deixam entrar cachorros. Bem compreende que digo isso porque tive amigos que não o sabiam e ficaram roendo as unhas.

     Quanto ao sr. Verdurin, notou o mau efeito que causara à mulher aquela descoberta de que Swann tinha amizades poderosas a que jamais se referira.
     Quando não se havia arranjado um divertimento fora, era em casa dos Verdurin que Swann encontrava o pequeno grupo, mas só comparecia à noite e quase nunca aceitava convite para jantar, apesar das instâncias de Odette.

— Eu poderia até jantar sozinha com você, se assim preferisse — dizia ela. 
— E a senhora Verdurin? 
— Oh!, seria muito simples. Bastava dizer-lhe que meu vestido não ficou pronto ou que meu carro chegou atrasado. Sempre se dá um jeito. 
— É muito gentil.

     Mas Swann considerava que, se mostrasse a Odette (só consentindo em vê-la após o jantar) que havia prazeres que preferia ao de estar com ela, tão cedo não se saciaria o gosto que ela lhe dedicava. E, por outro lado, como preferia infinitamente à beleza de Odette a de uma pequena operária fresca e rechonchuda como uma rosa, de quem se enamorara, agradava-lhe mais passar o começo da noite com ela, estando certo de encontrar-se em seguida com Odette. A pequena operária o esperava perto de sua casa, numa esquina que Rémi, o cocheiro, já conhecia; sentava ao lado de Swann e ficava em seus braços até o momento em que o carro parava diante da casa dos Verdurin. Ao entrar, enquanto a sra. Verdurin, mostrando a Swann as rosas que este lhe enviara de manhã, dizia-se zangada e lhe indicava um lugar perto de Odette, o pianista tocava para os dois a pequena frase de Vinteuil, que era como o hino nacional do seu amor. Começava tenuta dos trêmulos de violino, que era só o que se ouvia durante alguns compassos, ocupando todo o primeiro plano; depois, de súbito, pareciam afastar-se e, como nessas telas de Pieter de Hooch, cuja perspectiva é aprofundada pelo quadro estreito de uma porta entreaberta ao longe, numa outra cor, no aveludado de uma luz interposta, a pequena frase aparecia, dançante, pastoral, intercalada, episódica, pertencente a um outro mundo. Passava em ondulações simples e imortais, distribuindo aqui e ali os dons de sua graça, com o mesmo inefável sorriso; mas Swann julgava distinguir-lhe agora um certo desencanto. Ela parecia conhecer a inconsistência dessa felicidade cujo caminho entremostrava. Na sua graça leve havia algo de consumado, como o desinteresse que se segue ao pesar. Mas pouco lhe importava, considerava-a menos em si mesma — no que podia significar para um músico que ignorava a existência dele e de Odette quando a compusera e para todos aqueles que a ouvissem nos séculos vindouros — do que como um penhor e lembrança de seu amor, que até ao pianista e aos Verdurin fazia pensar ao mesmo tempo em Odette e nele; e lhes servia de traço de união; tanto assim que, cedendo a um capricho de Odette, renunciara a pedir a um artista que lhe tocasse a sonata inteira, da qual continuou conhecendo apenas aquela passagem. “Que necessidade tem do resto?”, dissera-lhe Odette. “Este é o nosso trecho.” E sofrendo ao pensar, quando a frase passava tão próxima e ao mesmo tempo no infinito, que, enquanto se dirigia a eles, não os conhecia, Swann quase lamentava que ela tivesse um significado, uma beleza intrínseca e fixa, estranha aos dois, como, na joia que damos ou mesmo na carta que recebemos da amada, censuramos à água da gema e às palavras da linguagem não serem constituídas unicamente da essência de um amor fugaz e de uma determinada criatura.
     Sucedia-lhe às vezes demorar-se tanto com a jovem operária antes de ir aos Verdurin que, apenas executada ao piano a pequena frase, apercebia-se de que estava quase na hora de Odette recolher-se. Levava-a até a porta de seu apartamento, na rua La Pérouse, atrás do Arco do Triunfo.[8] E era talvez por causa disso, para não lhe pedir todos os favores, que Swann sacrificava o prazer (para ele menos necessário) de a ver mais cedo, de chegar com Odette em casa dos Verdurin, ao exercício daquele direito que ela lhe reconhecia, de partirem juntos, e ao qual ele dava mais valor, porque, graças a isso, tinha a impressão de que ninguém a via, nem se metia entre os dois, nem a impedia de estar ainda com ele, depois que a deixava.
     Assim costumava ela regressar no carro de Swann; uma noite, depois de apear e quando ele se despedia, Odette colheu precipitadamente no jardinzinho fronteiro à casa um último crisântemo e lho deu antes que ele partisse. Swann manteve-o apertado contra os lábios durante a volta, e quando, passados alguns dias, a flor murchou, guardou-a preciosamente na secretária.
     Mas nunca entrava em casa dela. Duas vezes apenas, à tarde, fora participar da operação, capital para Odette, de “tomar chá”. O isolamento e o vazio daquelas curtas ruas (constituídas quase todas de pequenas casas contíguas, cuja monotonia era de súbito interrompida por algum sinistro pardieiro, testemunho histórico e sórdido remanescente dos tempos em que aqueles quarteirões ainda eram mal-afamados), a neve que quedava no jardim e nas árvores, o desordenado da estação, a proximidade da natureza davam um não sei quê de mais misterioso ao calor e às flores que ele encontrara ao entrar.
     Deixando à esquerda, no térreo de nível superior ao da calçada, o quarto de dormir, cujos fundos davam para uma ruazinha paralela, uma escada reta subia para o salão e para o pequeno salão, entre paredes pintadas de cor sombria e de onde pendiam panos orientais, fios de rosários turcos e uma grande lanterna japonesa suspensa a um cordel de seda, mas que, para não privar os visitantes dos últimos confortos da civilização, era iluminada a gás. Eram as duas peças precedidas de um estreito vestíbulo, cuja parede, quadriculada com uma grade de jardim, mas pintada a ouro, se apresentava marginada em todo o seu compartimento por uma caixa retangular onde floria, como numa estufa, uma fila desses grandes crisântemos ainda raros naquela época, mas ainda muito longe dos que os horticultores conseguiram obter mais tarde. Irritava a Swann a moda dos crisântemos que lavrava desde o ano passado, mas desta vez sentira prazer ao ver a penumbra da peça zebrada de rosa, laranja e branco pelos raios olorosos daqueles astros efêmeros que se acendem nos dias cinzentos. Odette recebera-o de chambre cor-de-rosa, com o colo e os braços descobertos. Fizera-o sentar perto dela num dos inúmeros e misteriosos retiros arranjados nos desvãos da sala, protegidos por imensas palmas em vasos chineses, ou por biombos a que estavam pendurados retratos, laços de fita e leques. “Você assim não está a gosto”, disse-lhe ela, “espere que já vou acomodá-lo”, e, com o risinho vaidoso que teria por alguma invenção particular, instalara atrás da cabeça de Swann e sob seus pés almofadões de seda do Japão, que ela amassava como se fosse pródiga daquelas riquezas e descuidadosa do seu valor. Mas quando o criado foi trazendo sucessivamente as numerosas lâmpadas que, encerradas quase todas em globos chineses, ardiam isoladas ou aos pares, todas em móveis diferentes, como em altares e que, no crepúsculo já quase noturno daquele fim de tarde hibernal, faziam reviver um outro poente mais durável, mais róseo e mais humano — talvez fazendo parar na rua algum enamorado, a sonhar com o mistério daquela presença que ao mesmo tempo delatava e ocultava as vidraças acesas —, ela vigiava severamente de esguelha o homem, para ver se ele as colocava no lugar consagrado. Imaginava que, se pusessem uma única lâmpada em lugar impróprio, ficaria prejudicado o efeito de conjunto do salão e que o seu retrato, colocado num cavalete oblíquo forrado de pelúcia, não receberia boa luz. Assim, seguia febrilmente com o olhar os movimentos daquele homem grosseiro e repreendeu-o asperamente por ter ele passado muito perto de duas jardineiras e que ela própria se encarregava de limpar por medo que as quebrassem e que foi examinar em seguida para ver se o criado não lhes causara algum dano. Todos os seus bibelôs chineses, achava-os Odette de formas “divertidas”, bem como as orquídeas e as catleias, principalmente, que eram, com os crisântemos, as suas flores prediletas, porque tinham o grande mérito de não se assemelharem a flores, mas parecerem de seda ou de cetim.[9] “Esta parece que foi recortada do forro de meu mantô”, disse a Swann, mostrando-lhe a orquídea, com um quê de estima por aquela flor tão chique, aquela irmã elegante e imprevista que a natureza lhe dava, tão longe dela na escala dos seres e no entanto refinada, mais digna que muitas mulheres de que lhe desse um lugar em seu salão. Mostrando-lhe aqui umas quimeras de línguas de fogo pintadas numa porcelana ou bordadas numa tela, ali as corolas de um ramo de orquídeas, além um dromedário de prata esmaltada com olhos incrustados de rubis que vizinhava na lareira com um sapo de jade, ela ora afetava recear a maldade dos monstros ou zombar do seu grotesco, ora corar da indecência das flores ou sentir um desejo irresistível de beijar o dromedário e o sapo, a quem chamava de “queridos”. E essas afetações contrastavam com a sinceridade de algumas das suas devoções, principalmente a que dedicava a Nossa Senhora de Laghet, que a curara em Nice de uma doença mortal;[10] trazia sempre consigo a sua imagem numa medalhinha de ouro à qual atribuía um poder sem limites. Odette preparou para Swann o “seu” chá e indagou: “Limão ou creme?”, e como ele respondesse “creme”, disse-lhe a rir: “Uma nuvem, hem!”. E como ele o tivesse achado bom: “Bem vê você que eu conheço os seus gostos”. Aquele chá, com efeito, parecera a Swann, como a ela, algo de muito precioso; e tal necessidade tem o amor de encontrar uma justificação, uma garantia de durabilidade, em prazeres que, sem ele, não o seriam, e que com ele acabam, que, depois que a deixou às sete horas para ir preparar-se, durante todo o trajeto do cupê, não podendo conter a alegria que lhe proporcionara aquela tarde, ia Swann repetindo consigo: “Que agradável seria ter assim uma criaturinha em cuja casa se pudesse encontrar essa coisa tão rara, um bom chá”. Uma hora depois recebeu um bilhete de Odette, e logo reconheceu aquela caligrafia graúda em que uma afetação de rigidez britânica impunha aparências de disciplina a caracteres informes que talvez significassem, para olhos menos parciais, desordem de pensamento, insuficiência de educação, falta de franqueza e de vontade. Swann esquecera a cigarreira em casa de Odette. “Foi pena você não ter esquecido também o seu coração, pois isso eu não devolveria.”

continua na página 151...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Tendo-se dispersado os fiéis - d)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Swann se recusa a vincular a grandeza da obra à mediocridade da pessoa que conhecera. Proust defendia ardentemente essa separação, e o projeto de escrita que deu origem ao livro criticava justamente aquele que pretendia ler a obra pelo autor, o crítico Sainte-Beuve. [n. e.]
[2] A pergunta indignada remete à “condição indispensável” para tomar parte na “igrejinha” dos Verdurin, apresentada no primeiro parágrafo deste capítulo. Pierre Potain, diferentemente do jovem dr. Cottard, já era médico e membro da Academia de Medicina desde 1882. [n. e.]
[3] Swann, na verdade, teme entrar em contato com o conteúdo de dor que a sonata contém. Por isso, preferirá associá-la à doçura do início de seu amor por Odette. [n. e.]
[4] Teatro enorme, com 3 mil lugares, o Châtelet apresentava concertos aos domingos. Dentre as peças de grande sucesso que ali foram encenadas conta-se também Cendrillon, citada mais adiante pela sra. Cottard. [n. e.]
[5] Ocorrido no dia 6 de janeiro de 1883. [n. e.]
[6] Peça de grande sucesso, escrita por Alexandre Dumas Filho e Pierre de CorvinKroukowski. A referência à reprise da peça e ao enterro de Gambetta situam, embora de maneira confusa, esse trecho do romance entre 1883 e 1884. [n. e.]
[7] Jules Grévy, presidente da França entre 1879 e 1885. Reeleito, renunciaria em 1887. [n. e.]
[8] Situada nos novos bairros residenciais, loteados por Haussmann, a residência de Odette se opõe ao cais de Orléans, que, situado na ilha Saint-Louis, não era ainda um lugar “elegante”. [n. e.]
[9] As “catleias” são orquídeas obtidas no final do século XIX pelo inglês William Cattley. À mesma época, expande-se a moda dos crisântemos na França. [n. e.]
[10] Laghet é lugar de peregrinação perto de Nice, cuja referência serve para aludir ao passado um tanto misterioso de Odette nessa última cidade. [n. e.]

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (13.3) - Não chovia há três meses

Cem Anos de SOLIDÃO

Gabriel Garcia Márquez


(13.3)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío


     Não chovia há três meses e era tempo de seca. Mas quando o Sr. Brown anunciou a sua decisão, precipitou-se em toda a zona bananeira o aguaceiro torrencial que surpreendeu José Arcadio Segundo a caminho de Macondo. Uma semana depois continuava chovendo. A versão oficial, mil vezes repetida e repisada em todo o país por quanto meio de divulgação o Governo encontrou ao seu alcance, terminou por se impor: não houve mortos, os trabalhadores satisfeitos tinham voltado para o seio das suas famílias, e a companhia bananeira suspendia as suas atividades até passar a chuva. A lei marcial. continuava, prevendo que fosse necessário aplicar medidas de emergência para a calamidade pública do aguaceiro interminável, mas a tropa estava aquartelada. Durante o dia, os militares andavam pelas torrentes das ruas, com as calças enroladas na metade da perna, brincando de naufrágio com as crianças. De noite, depois do toque de recolher, derrubavam as portas a coronhadas, arrancavam os suspeitos das camas e os levavam para uma viagem sem regresso. Era ainda a busca e o extermínio dos malfeitores, assassinos, incendiários e revoltosos do Decreto Número Quatro, mas os militares o negavam aos próprios parentes das suas vítimas, que atulhavam os escritórios dos comandantes em busca de notícias. “Claro que foi um sonho”, insistiam os oficiais. “Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo nem acontecerá nunca. É um povoado feliz.” Assim consumaram o extermínio dos lideres sindicais.
     O único sobrevivente foi José Arcadio Segundo. Uma noite de fevereiro se ouviram na porta as batidas inconfundíveis das coronhas. Aureliano Segundo, que continuava esperando que estiasse para sair, abriu a seis soldados comandados por um oficial. Ensopados de chuva, sem pronunciar uma palavra, revistaram a casa cômodo por cômodo, armário por armário, das salas até a despensa. Úrsula acordou quando acenderam a luz do quarto e não exalou um suspiro enquanto durou a revista, mas manteve os dedos cruzados, movendo-os para onde os soldados se moviam. Santa Sofía de la Piedad conseguiu prevenir José Arcadio Segundo que dormia no quarto de Melquíades, mas ele compreendeu que era tarde demais para tentar a fuga. De modo que Santa Sofía de la Piedad tornou a fechar a porta e ele pôs a camisa e os sapatos e se sentou no catre para esperar que chegassem. Nesse momento estavam revistando a oficina de ourivesaria. O oficial tinha feito abrir o cadeado e, com uma rápida passagem da lanterna, tinha visto a mesa de trabalho e a prateleira com os frascos de ácidos e os instrumentos que continuavam no mesmo lugar em que os deixara o seu dono e pareceu compreender que naquele quarto não vivia ninguém. Entretanto, perguntou astutamente a Aureliano Segundo se era ourives e ele lhe contou que aquela tinha sido a oficina do Coronel Aureliano día. “Ãhã”, fez o oficial e acendeu a luz e ordenou uma vista tão minuciosa que não lhes escaparam os dezoito peixinhos de ouro que tinham ficado sem fundir e que estavam escondidos atrás dos frascos na vasilha de lata. O oficial os examinou um por um na mesa de trabalho e então se humanizou por completo. “Eu gostaria de levar um para mim, se o senhor permite”, disse. “Em certa época foram uma senha da subversão, mas agora são uma relíquia.” Era jovem, um adolescente, sem nenhum sinal de timidez e com uma simpatia natural que não tinha sido notada até então. Aureliano Segundo lhe deu o peixinho de presente. O oficial o guardou no bolso da camisa, com um brilho infantil nos olhos, e jogou os outros na vasilha para colocá-los onde estavam.

— É uma lembrança inestimável — disse. — O Coroa Aureliano Buendía foi um dos nossos maiores homens.

     Entretanto, o acesso de humanização não modificou a conduta profissional. Diante do quarto de Melquíades, estava outra vez com cadeado, Santa Sofía de la Piedad lançou mão de uma última esperança. “Faz mais ou menos século que não vive ninguém neste quarto”, disse. O oficial o fez abrir, percorreu-o com o foco da lanterna, e Aureliano Segundo e Santa Sofía de la Piedad viram os olhos árabes de José Arcadio Segundo no momento em que passou pela cara a rajada de luz e compreenderam que aquele era o fim de uma ansiedade e o princípio de outra que só encontraria alívio na resignação. Mas o oficial continuou examinando cômodo com a lanterna e não deu nenhum sinal de interesse enquanto não descobriu os setenta e dois penicos arregimentados nos armários. Então acendeu a luz. José Arcadio Segundo estava sentado na ponta do catre, pronto para sair, mais grave e pensativo do que nunca. Ao fundo estavam as prateleiras com os livros escalavrados, os rolos de pergaminho e a mesa de trabalho limpa e arrumada e ainda fresca a tinta nos tinteiros. Havia a mesma pureza no ar, a mesma diafanidade, o mesmo privilégio contra a poeira e a destruição que conhecera Aureliano Segundo na infância e que só o Coronel Aureliano Buendía não pudera perceber. Mas o oficial não se interessou a não ser pelos penicos. 

— Quantas pessoas vivem nesta casa? — perguntou. 
— Cinco. 

     O oficial, evidentemente, não entendeu. Deteve o olhar no espaço onde Aureliano Segundo e Santa Sofía de la Piedad continuavam vendo José Arcadio Segundo e também este se deu conta de que o militar estava olhando para ele sem vê-lo. Em seguida apagou a luz e encostou a porta. Quando falou com os soldados, Aureliano Segundo compreendeu que o jovem militar tinha visto o quarto com os mesmos olhos com que o vira o Coronel Aureliano Buendía.

— É verdade que ninguém entra nesse quarto há pelo menos um século — disse o oficial aos soldados. — Deve ter até cobra.

     Ao se fechar a porta, José Arcadio Segundo teve a certeza de que a sua guerra tinha terminado. Anos antes, o Coronel Aureliano Buendía lhe falara da fascinação da guerra e tratara de demonstrá-la com exemplos inumeráveis tirados da sua própria experiência. Ele tinha acreditado. Mas na noite em que os militares o olharam sem vê-lo, enquanto pensava na tensão dos últimos meses, na miséria da prisão, no pânico da estação e no trem carregado de mortos, José Arcadio Segundo chegou à conclusão de que o Coronel Aureliano Buendía não fora mais que um farsante ou um imbecil. Não entendia que tivesse necessitado tantas palavras para explicar o que se sentia na guerra, se uma só bastava: medo. No quarto de Melquíades, pelo contrário, protegido pela luz sobrenatural, pelo barulho da chuva, pela sensação de ser invisível, encontrou o repouso que não tinha tido por um só instante na sua vida anterior e o único medo que persistia era o de que o enterrassem vivo. Contou isso para Santa Sofía de la Piedad, que lhe trazia as refeições diárias, e ela lhe prometeu lutar para estar viva até além das suas forças, para assegurar-se de que só o enterrariam morto. A salvo de todo o temor, José Arcadio Segundo se dedicou então a reler muitas vezes os pergaminhos de Melquíades, tanto mais satisfeito quanto menos os entendia. Acostumado com o barulho da chuva, que ao fim de dois meses se transformou numa nova forma de silencio, a única coisa que perturbava a sua solidão eram as entradas e saídas de Santa Sofía de la Piedad. Por isso lhe suplicou que deixasse a comida no parapeito da janela e pusesse o cadeado na porta. O resto da família o esqueceu, inclusive Fernanda, que não teve inconveniente em deixá-lo ali, quando soube que os militares o tinham visto sem reconhecer. Depois de seis meses de clausura, em vista de terem os militares deixado Macondo, Aureliano Segundo tirou o cadeado, procurando alguém com quem conversar enquanto não passava a chuva. Desde que abriu a porta se sentiu agredido pelo mau cheiro dos penicos que estavam colocados no chão e todos muitas vezes ocupados. José Arcadio Segundo, devorado pela careca, indiferente ao ar rarefeito pelos vapores nauseabundos, continuava lendo e relendo os pergaminhos ininteligíveis. Estava iluminado por um brilho seráfico. Mal levantou a vista quando sentiu que a porta se abria, mas ao irmão bastou aquele olhar para ver repetido nele o destino irreparável do bisavô.

— Eram mais de três mil — foi tudo quanto disse José Arcadio Segundo. — Agora estou certo de que eram todos os que estavam na estação. 

Cem Anos de Solidão (13.3) - Não chovia há três meses

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